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RUDOLF VON JHERING

Professor da Universidade de Goettingen

O E S P IR IT O DO
D IR E IT O RO M A N O
Nas d i v e r s a s fa ses de
s e u d e s e n v o lv im e n to .

TRADUÇÃO DE
RAFAEL B EN A I ON
P rof, da Faculdade de Direito do Amazonas, membro efetivo do Instituto da Ordem
dos Advogados Brasileiros e advogado nos auditórios da Capital Federal.

PREFACIO DE
CLOVIS B E V I L'A Q U A

Volume I

a l b a
EDI TORA
LAV R A D I O , 60 — RIO DE J A N E I R O
BRASIL
19 4 3
ADVERTENCIA

Teve publicidade o primeiro volume de O ESPÍRITO


DO DIREITO ROMANO, em 1934, sendo editora a antiga
firm a Calvino F ilho.
Essa edição, executada com certo açodamento, não per­
m itiu, ao tradutor, uma correção de provas relativamente
perfeita.
E, mesmo imperfeita, a correçãó não fo i observada,
sem, contudo, podermos afirm ar se a culpa coube aos senho­
res linotipistas, ou às pressas do editor, na publicação do
liv ro .
Além das incorreções graves, porém, notadas à prim ei­
ra vista, ha períodos completamente truncados, e, até, um
capítulo inteiro suprim ido.
Sobre as citações latinas e gregas, nem é conveniente
falar; as primeiras estão eivadas de crasíssimos êrros, e as
grêgas totalmente invisíveis, pois, no logar em que deve­
riam ser impressas, apenas se observas. .. um espaço em
branco.
Esta nova edição, que, corajosamente, a \ALBA\ inicia,
com a publicação de dois volumes, dos quatro de que se
compõe a incomparável obra de RUDOLF von JHERING,
estamos certo, obedecerá aos nossos originais.
Sentimo-nos satisfeitos em vêr O ESPÍRITO DO DI­
REITO ROMANO publicado em língua portuguesa). Em
nossas letras jurídicas ainda não havia uma tradução dêsse
extraordinário estudo que realizou von JHERING.
Julgamos, pois, ter contribuido, com o nosso modesto
quinhão, para o enriquecimento do nosso patrimônio jurí­
dico, traduzindo a obra m esira do excelso jurista-filósofo,
como, também merecidamente, cultuamos aquele a quem.
6 RUD OLF VON J H B R I N G

na exaltação feliz do divino D ANTE, poder-se-ia, ao per­


lustrar tão extraordinària obra, repetir o verso que sagrou
Virgílio, ao penetrar no Inferno com seu discípulo amado :
Tu duca, tu signore e tu maestro!
(Divina Comédia — Inferno, II, 140)

Rio, Agosto de 1942,

RAFAEL BENAION
PREFACIO
Meu distinto colega, Dr. Rafael Benaion

Saudações cordiais.

Venho trazer-lhe o meu aplauso pela em preza, que tom ou


a si de traduzir para o português a obra de R udolf von J hering ,
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO. Em 1887, o Dr. J. J. PIN­
TO JUNIOR, lente de direito romano na Faculdade de Direito do
Recife, iniciou uma tradução desse livro adm iravel, e publicou
as primeiras folhas, que não iam além do segundo parágrafo, no
Arquivo Jurídico. Desaparecendo essa revista, a tradução ficou
sem seguimento. Mas era lamentável que se não incorporasse á
lingua portuguesa estudo de tão subido valor. X LUTA PELO
DIREITO já teve entre nós dois tradutores 0 ) ; os INTERDITOS
POSSESSÓRIOS e as QUESTÕES DE DIREITO foram vertidos
para o vernáculo por ADERBAL DE CARVALHO. De Portugal
nos remetem, sob a denominação um tanto fantasista de EVO ­
LUÇÃO DO DIREITO, a primeira parle FINALIDADE NO D IREI­
TO (Der Zweck im Recht) (123) Estava a fazer grande falta um a
versão do ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO tão vivo em idéias
quanto as outras obras já traduzidas, e de 1interesse doutrinário
e prático muito considerável.
J hering é um dos mais poderosos espíritos que tem ilum ina­
do o direito. E f o jurisconsulto que representa o pensamento da
teoria evolucionista aplicada ao fenóm eno jurídico. J oseph K o h ­
ler foi rudemente injusto em negar-lhe a capacidade filosó­
fica <*)

(1 ) J oão V ieira c T avares R a s t o s .


(2) Eu mesmo tintei trasladar a português o curioso opúsculo sôbre a 11ospita
lidade no Passado.
(3) Ganz unphilosophischer Kopf (Rechtsphilosophie, p. 1G da 1* edição).
8 RUDOLF VON JH E R Í NG

Capacidade filosófica é a que permite atingir ás m ais altas


generalizações. E a estas elevou-se J hering, em muitos dos seus
form idáveis trabalhos jurídicos, não somente nos de feição pu­
ram ente filosófica, porém , aindaf tanto nos de grande extensão,
quanto nos ensáios menores.
Foi na LUTA PELO DIREITO que, pela primeira vez, se re­
velou a função da liita na vida do direito. Na HOSPITALIDADE
NO PASSADO, explica-se porque tão cuidadosamente os costu­
m es velavam pelo estrangeiro, em um a época em que o direito
lhe recusava toda a proteção.
Quem escreveu a PREHISTORIA DOS INDO-EUROPEUS,
possuia o raro dom de descobrir, na confusão dos factos, as leis
que êles obedecem.
Mas o filósofo não fazia m al ao erudito e ao técnico R udolf
von J hering , se nos forneceu um a concepção do direito, larga e
sólida, ilustrada com a observação e com a história, foi também
Mm sábio organizador dos elementos técnicos do direito.
E foi, precisamente, no opulentissimo tesouro do direito ro­
m ano que êle os fo i haurir.
E m suas mãos, o direito romano não é um simples corpo de
leis, tpreparado para um povo que possuia, como nenhum outro,
a faculdade criadora da jurisprudência, porém que, ha m uitos
séculos, deixou de existir. E ’ um organismo cheio de vida, ou,
antes, um mundo onde as idéias continúam a viver, agitar-se, de­
senvolver-se, proliferar, com um a fecundidade assombrosa, O
direito romano ensina-lhe a função de fenómeno jurídico em
toda a sociedade, fornece-lhe os ¿elementos de uma dinámica so­
cial, com as famosas alavojicas: o direito, a moral, a remunera­
ção e o amor. O direito romano mostra-lhe as origens da vida
social e a influência do habitat sobre a civilização dos povos. O
direito romano revela a seus olhos percucientes os elementos que
entram nq composição das regras jurídicas e dos institutos.
A s verdades. que êle descobriu nesse mundo encerrado em
trechos insignificantes para o jurista com um , e translúcidos, ir­
radiantes para os seus olhos de vidente, são aquisições definiti­
vas da ciência do direito. Por isso, O ESPÍRITO DO DIREITO
ROMANO e os seus estudos complementares sobre a pòsse e os
interdictos não se apresentam como exposição mais ou m enos
completas das idéias dos jurisconsultos romanos. São tratados,
que, tomando o direito romano por ponto de partida, se aprofun-
0 E S P ÍR IT O DO D IR E IT O ROM ANO 9

dam em análises de excepcional sagacidade, e se exalçam a sin­


teses. que fixam as fôrmas de direito universal, porque apanham
a idéia do direito no que ela tem de geral e permanente.
E ’, pois, um bom serviço prestado ás letras jurídicas, em
nosso país, vulgarizar o pensamento do altíssimG&^risconsulto.
Os nossos romanistas, como AFONSO CLAUDIO *V AM PRÉ e
outros, compreenderam que o interesse piaior do estudo do di­
reito romano está em pô-lo em confronto com a lei vigente, para
fazer ressaltar como o pensamento dos romanos, fonte originá­
ria do nosso direito privado, se adaptou ás novas fôrmas da
cultura hum ana. E, para um estudo com essa orientação, em ne­
nhum livro a inteligência se prepara melhor do que no ESPÍ­
RITO DO DIREITO ROMANO.
Clovis B evilaqua
V O L U ME II
ÍNDICE DAS MATERIAS
DO S E G U N D O VOLUME

LI VRO S E G U N D O
SISTEMA DO DIREITO ESTRITO
§ 26. Introdução 3
PARTE PRIMEIRA
CARACTERÍSTICA GERAL DO SISTEMA
TÍTULO I
IMPRESSÃO EXTERIOR DO MUNDO JURÍDICO
§ 27. Publicidade da vida jurídica. — Plástica do direito 7
TÍTULO n
TENDÊNCIAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO ANTIGO
CAPÍTULO I. — Expontâneidade do direito . .................. 15
§ 28. Espontaneidade do direito sob o aspecto da fórma e do
fluido 15
Secção I. — Origem do direito escrito .................................. 21
§29. O uso e a lei, direito escrito e não-escrito. — Impor­
tância desta distinção para a espontaneidade do direito;
— Tendência do direito antigo para o sistema de direi­
to escrito (direito privado — direito público — justiças
populares) 21
II Secção. — Espontaneidade interna do direito.................. 36
§ 30. Separação dos elementos extranhos. — O elemento
religioso satisfeito no fas, o elemento moral e econômico
na censura. — A censura contrapeso do direito. — Con­
traste'assinalado entre o direito e a moral. 36
III Secção. — Conservação e extensão do direito escrito 44
§31. Estabilidade do direito da lei das XII tábuas. — Razão
deste fenómeno. — A?-antiga interpretado 44
no RUDOLF VON JH BRI NG

IV Secção. — Segurança é independencia para a realiza*


çáo do direito escrito ............ ................... 48
§ 32. Princípio da inviolabilidade dos iura quaestio. — Indè-
pendêcia interná e externa da justiça. — Relação da
polícia e a administração como justiça "48
CAPÍTULO II. — Espirito de igualdade ................... 32
§ 33. Igualdade de facto e de direito. Sistema de generaliza­
ção. — Diferenças jurídicas e desigualdades perante
a lei. — Natureza da antiga igualdade romana. -—
Suas manifestações no direito público e no direito pri­
vado. — Distinção das pessoas e das cousas. — Situa­
ção do juiz. — Computação do tempo e dos danos e
prejuízos. — Importância permanente da força de igual­
dade no direito romano. 62
CAPÍTULO III. — Amor ao poder e à liberdade 84
I Secção. — Sistema dé.liberdade e de tirania em geral... 84
§ 34. 84
II Secção. — Sistema romano. 90
A. Situação do indivíduo 90
I Secção . — A vontade e o poder como fins da vontade sub­
jetiva .............................. .................... .................. 90
§ 35. Desejo moderado de dominação dos. romanos. — LiberT
dade política e pessoal. — Liberdade jurídica abstrata
do indivíduo e sua dependência efetiva. — Os usos e
o poder d a opinião pública em Roma. — Sistema de
autonomia jurídica privada em suas diversas partes 90
II Secção. — O poder doméstico .............................. 107
§ 36. A casa é um asilo. — Refúgio e concentração da fa­
mília na casa romana. .— Os três poderes domésticos
(sobre os escravos, os filhos e as mulheres). — Seu con­
teúdo jurídico abstrato. — Aspecto exterior da escravi­
dão na vida romana 107
III Secção. — Aspecto exterior das relações dé família em
sua vida íntima .............. 133
§.37. Fim e sentido da patria potestas na família. — A paz
no lar romano. — Vida familiar. — Condição d a mu­
lher e dos filhos. — Tribunal de família. .133
IV Secção. — A liberdade objetiva das instituições é uma
barreira à autonomia subjetiva. 149
§ 38. A liberdade corre o perigo de destruir-se por si mesma.
— A objetividade, dentro da idéia d a liberdade, indica
que a liberdade é um dever. — Provas tiradas do Direi­
to romano, notadamente na propriedade (servidões). .. 149
V Secção. — A questão social é o Estado. 159
§ 39. Participação do Estado no bem-estar do indivíduo. —
A questão social. — Causas do pauperismo (o escravo
O ESPÍRITO DO DIREITO RÖMANO th
© o gênio maléfico da sociedade romana). — Situação
das classes elevadas (suas obrigações sociais). — Me­
didas adotadas pelo Estado. 159
B. Poder e liberdade no direito público. 177
§ 40. Ação livre da personalidade nas relações do direito
público. — Atribuições dos magistrados romanos. '—
Garantia contra os abusos do poder dos funcionários
públicos. — Prática do direito político. — Importância
da personalidade na magistratura. 177
C. Importância histórica do sistema da liberdade. 198
§ 41. Idéia abstrata da liberdade e sua importância no direi­
to privado. — Independência desta abstração com rela­
ção à vida. — Fecundidade do movimento autónomo
do comércio jurídico. — Aspecto moral do sistema <la
liberdcde .no mundo romano. 198
INTRODUÇÃO

26. — O objeto do presente livro é determ inar o carater


peculiar ao sistema do direito romano, especifico ou estrito (jus
strictum ) 0 ) . P ara alcançar êste fim, faz-se m istér um a dis­
tinção artificial, recorrendo ao método que anteriorm ente segui­
mos (§ 5), e de cuja justificação não nos ocuparemos agora.
Aquilo que pertence, de um mòdo certo e indubitável, quer à
época antiga, quer à nova, servirá para deduzir o que, princi­
palmente, se destaca da arquitetônica de cada época, e, depois,
classificar as respectivas partes, em que não existe essa certeza
exterior.
O edifício do direito, na época clássica, é vasto e compli­
cado. Sabemos que se construiu em diferentes épocas" e nos in­
teressa achar, sob as construções modernas, o edifício primitivo,
a cidadela do jus strictum . Muitas partes dêsse m onum ento es­
tão completamente transform adas, outras foram demolidas ou
jazem em escombros; mas, em todas elas, ainda aparece a alve­
naria indestrutível da antiguidade, que nos perm itirá reconhe­
cer a arquitetura e os planos primitivos.
Chamámos ao antigo direito um a cidadela, e a comparação
é exata, pela impressão que nos prodús. Q uadrado e tosco, es­
treito, pouco-elevado, construido como os castelos da Idade Mé­
dia, nem por isso é menos sólido e durável. E* incômodo, mas
seguro. Como naqueles velhos solares, sentimos flutuar em
tórno de nós o espírito de um passado que impõe respeito, e a
recordação de um a raça robusta, dotada de energia feróz e domi­
nadora. O logar é bem escolhido, para evocá-lo entre os m or­
tos — nêle até as,pedras falam .
A edificação compietà do antigo jus civile levou séculos.
Deu-se o último retoque, quando já os prim eiros contornos do
novo sistema se vinham m anifestando. Colocou, no entanto.

(1) Sobre esta expressão e sua significação, para os jurisconsultos do direito novo,
vejam-se os textos citados por D ir k s e n , Manuale, v. Strictu s. Utiliza-se deles para
designar o direito antigo, circunscrito, rigido e estrito, em oposição ao direito novo,
mais livre c mais dútil. Determinaremos, no fim déste sistema, a idéia do jus strictum
por meio dc noções que déle tenhamos adquirido no Recorrer de nosso estudo.
4 RTJDOLF VOI£ J H E R ING

seus diversos prödutos, sim ultáneam ente, uns no antigo direito,


outros no direito novo. Explicar-nos-emos suficientemente a
êste respeito, quando tratarm os da im portância do elemento de
facto, em contraposição aò elemento cronológico (§ õ ) . Nêste
segundo livro, não rios ocuparemos do direito pretoriano e do
jus gentium, por mais que possamos afirm ar, sem hesitação, que
o progresso dos dois começou antes que cessasse o império do
antigo direito .civil. Deberemos, no entanto, tocar oportuna­
mente nas instituições do jus gentium, únicamente para provar
que, enquanto floreceu o antigo jus civile, elas ainda não esta-
vam protegidas por ações.
Não podemos dizer, agora, com que intuitos internos deter­
minamos o que colocamos no sistema antigo, e como traçamos
os limites deste sistem a. Para isso, deveriamos antecipar o que
terá a sua justificação no conjunto do sistema.
Relativam ente aos limites cronológicos do sistema, já dis­
semos rio § 6.°, que a sua formação foi determ inada na segunda
m etade da época dó poder real, e a sua completa expansão, no
intervalo dò século IV ao VI, da fundação de Roma. Os "primei­
ros princípios de um novo direito mais livre se encontram no
século VII. Cronológicamerite, pois, teremos que nos ocupar,
principalm ente, da épocá mais florescente da República rom a­
na. Mas não renunciarem os, por isso, como já dissemos, em
completar o sistem a com os m ateriais que nos fornece a época
seguinte.
Se daqui em diante dedicamos, preferentem ente, a nossa
atenção ao direito privado, não apenas pela simples razão de
sua im portância especial para o m undo moderno, mas pelo ri­
goroso cunho e profunda perfeição que distinguem o direito pri­
vado e o processo que lhe está íntim am ente ligado, de todas as
outras partes do direito. Geralmente, atribúi-se o nascimento
dò direito rom ano, propriam ente dito, ao período seguinte, mas
esperamos provar que êste é um dos mais graves êrros da histó­
ria dó direito. Não vacilamos em dizer que a antiga jurispru­
dência; causou-nos um a admiração m aior, á m edida que penetra­
mos á fundo em sua admirável construção, assombro que em
nada cède ao que temos pela jurisprudência nova. Se esta ob­
teve tão rico tributo de louvores, é porque estava mais próxima
de nossa conciência científica e de nossos estudos „modernos;
enquanto que o m érito da época anterior, que teve, se assim
rios podemos exprim ir, cíe utilizar a dogmática do direito, salta
menos aos olhos. Ao nosso vèr, no entanto, èsse primeiro tra­
balho é que realm ente decide do valôr do direito romano, a quem
a ciência posterior é devedora dos fundam entos sólidos e resis­
tentes, sobre os quais nada mais fez do que continuar o ed ifi­
cio. Insistimos nêste ponto, agóra, p ara chegar à asserção de
que o direito rom ano deve a sua grandeza à ciência jurídica ante­
rior, se bem que o período brilhante da sua história, só comece
Õ ESPIRITÓ Í)Ò DIREITO RÒMÁNÒ 5

no terceiro sistema. Aqui se inicia êlé. Se o interesse históri­


co, por si só, nos obrigasse a conceder ao direito antigo a aten­
ção qüe merece, o seu valor intrínseco, o seu próprio merito in­
telectual bastariain para assegurá-lo. Para nós não existe, em
toda a jurisprudência, assunto mais empolgante.
Êste livro está dividido em três partes:
I. característica geral do sistema . Desenvolve-se,. nesta
parte, ps traços gerais e as idéias dirigentes do antigo direito*
Veremos, prim eiram ente (§ 27) :
1. O lado exterior do mundo jurídico, que nos fam iliari­
zará rápidam ente com a impressão exterior do direito (Publici­
dade, P lástica).
2. As tendências fundamentais (§ 28-41), que nos descer-
rárão, em seguida, o véu da essência íntim a do direito. Cha­
mamo-las fundamentais, porque são as mais elevadas e as mais
gerais que acompanham o direito, tendências que podemos con­
siderar como a finalidade e o ideal da concepção jurídica dos
rom anos. Estes sao :
a) a espontaneidade do direito;
b) o espírito de igualdade;
c) o amor ao poder e à liberdade.
Estas três tendências nos mostram o querer do espírito ro­
mano, no terreno do direito.
3. A técnica jurídica, aplicada à realização prática dessas,
tendências (§ 42-68), mostrar-nos-á o poder intelectual do espi­
rito rom ano. Nesta parte, determinaremos o ponto culminan­
te da concepção e a origem racional da m atéria, a riqueza das
idéias e dos nieios que esta técnica dispõe, o seu método de de­
composição, a análise jurídica —a sua junção com o elemento
exterior (materialismo, interpretação dás palavras, formalismo)
— e a arte jurídica.
II, A TEORIA DOS DIREITOS NO SENTIDO SUBJETIVO (§ 69 e Se-
guintes) mostrar-nos-á, novamente, essas idéias gerais, sob um a
fórm a mais concreta e um ponto de vista de conjunto. Esta teo­
ria compreenderá:
4 . A teoria do direito subjetivo, que tem por objeto a parte
geral, e
2. A história dos diversos direitos, que se ocupa de seu as-
peto original, tais como já não os tornaremos a encontrar.
III. A terceira parte consiste, verdadeiramente, na crítica
negativa. Tem por fim provar que as idéias mais simples do
jus gentium e do direito pretoriano, que muitos autores coloca­
ram na época antiga, lhe são estranhas.
E reservamos, para o livro terceiro, a transição do segundo
p ara o terceiro sistema e a exposição das causas que o produ­
ziram .
PRIMEIRA PARTE

CARACTERÍSTICA QERAL DO SISTEMA*

TÍTULO PRIMEIRO

IMPRESSÃO EXTERIOR DO MUNDO JURÍDICO v

Publicidade da vida jurídica. — Plástica do direito.

27. — Antes de tudo, devemos pôr em relevo a impressão


exterior que nos produziu o direito antigo. E s ta 'ta re fa é um
tanto complicada, pelo contraste que oferece com o nosso direi­
to atual. Hoje, o direito é pouco visível, exteriorm ente, na vida
comum. *Póde-se mesmo dizer que, atualmente, tem um a ação
dinâmica, enquanto que na sua adolescência apresenta um a ação
mecânica, no sentido de que se móve por meio de engrenágens
e procedimentos visíveis. Atualmente, o direito im prégna a
realidade, como o calôr e a eletricidade penetram os corpos.
E’ completamente im ánente; a sua ação e eficácia raras vezes se
apresentam aos nossos olhos. Em regra geral, os atos juridL
cos de nosso tempo são desprovidos de cor; não form am um
corpo sólido, exatam ente delimitado, caindo sob a impressão
dos sentidos. Algumas vezes, perdem-se num a palestra, sem
que aio nenhum exterior assinale a sua conclusão e separe o
direito das outras partes do diálogo; outras, concluem-se entre
ausentes, por meio de cartas; e ainda em outras, só se póde es­
tabelecer a existência do direito pelas suas conseqüências.
Esta indivisibilidade do movimento e de operações do di­
reito atual, esta natureza não-plástica que o caracterisa (2), ser-

(2) Extende-se, também, ao processo. Recentes reformas deram um outro aspecto


exterior ao processo criminal; éste, porém, não tem, nem teve, durante longo tempo,
como atualmente acontece com o processo civil, mais vida que nos protocolos. Come­
çando e terminando a sua existência no livro da cúria, nenhum dos dois processos
oferecem o mínimo interesse, e só se manifestaram cm suas conseqüências. Poder-se-ia
dar, como emblema, à jusUça, uma pena, em vês duma espada, porque as penas lhe
são tão necessárias, como aos pássaros. Com a diferença», porém, que a celeridade da
justiça se acha na razão inversa do número de penas que emprega.
g &ÜD. OLF VON J H BRI NG*

Vir-nos-ãò p a ra p ô t em relêvo o direito rom ano antigo. *Não


desconhecemos* absolutamente, qué esta qualidade, do mesmo
modo que o carater abstrato de um a língua aperfeiçoada, anun­
cia um a fase de m ais progresso que a que envolvem o cara ter
plástico do direito e e estilo simbólico e ,concreto da linguàgem.
Mas, a m agia da juyenfudé que o im pregna, oferece um extraor­
dinàrio encáiito e, nessa qualidade, póde-se reconhecer a vantá-
gem da juventude, sem, contudo, ser injusto para com a idade
m adura.
A fisionom ia do direito romano antigo, tal como agora o
apresentamos, traz a expressão da juventude do direito. Esta
expressão se reprodús em todos, os ram os do direito, no mesmo
espaço de tem po. Manifesta-se, naturalm ente, na publicidade
de todos os atos da vida e na plasticidade das fôrmas, que re­
vestem as relações jurídicas.
O qüé nos ' cham a a atenção, prim eiram enté, quando nos
transportam os ao antigo mundo jurídico de Roma, é a brilhante
luz da publicidade que nele se -projeta, e que nos atrái ao Forum
onde o P retor dá audiência ao àr livre, sob as vistas diretas do
povo romaifo. Sentado na sella curulis, as partes permanecem,
diante dele* de pé (3) . Aí, unicamente ai, e mais em parte algu­
ma, se exerce na época antigas a justiça civil. Só “muito mais
.tarde foi que o P reto r pôde atender as partes e dar as suas sen­
tenças de pé ( de pleno), em suá residência, ou em qualquer Io-
gai* em que sè encontrasse (4) . Assim é que as partes se reu­
niam, acom panhadas de seus amigos e auxiliares versados no
.conhecimento do direito. Deviam com parecer e expor pessõal-
mente. as suas queixas; a representação e o escrito eram contrá­
rios ao espírito do direito antigo. As partes deviam, também,
comparecer juntas^parar que o processo pudésse ser iniciado,
porque se o dem andante não comparecia conjuntam ente com o
demandado, não podia haver debate. Nos processos sôbre a
propriedade^ deveriam levar as cousas que davam motivo ao
litígio* Se eram imóveis, o Pretor em pessoa ia com os litigan­
tes aos logares onde estavam situados. As pessoas e as cousas,
que deviatn. ser objeto de deliberação jurídica (in ja te cessio),
deviam, igualm ente, ser exibidas.
Não. proseguirem os no exame do curso ulterior do processo.
Tudo o. que nele se pratica, torna-se público, como, por exem­
plo, â inquirição testem unhai. O juram ento Só podia ser pres­
tado ao ar livre : os Deuses invocados deviam vèr e ouvir a quem
jurava (5) .
A publicidade sé m ostra ainda na execução das sentenças
Crimináis. A tríplice exibição pública do condenado, tem por

(3X T h . MOm MSe M, R óm . Staasrecht (Direito público romano), I, pag. 315.


(4) P u c h ta , I n s t i t u t tomo n, § 153.
(5) Varalo, de L. E. 66.
V .,
0 ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 9

fim. levar o facto de sua condenação ao conhecimento de todos.


E’ urna èspécie de consulta que se faz ao povo para saber se al­
guém está dispostoa resgatar o delinquente.
A publicidade é ainda mais necessària no processo crimi­
nal. Qaundo a espada sangrenta da justiça está suspensa sobre
a çabeça de um cidadão, suscita-se uma questão nacional. Con­
voca-se o povo p ara deliberar, como tribunal; a acusação feita
anteriorm ente é pública, afim de que todos os que saibam al­
guma cousa, pró ou contra o acusado, póssam, comparecendo,
declará-la. Se a natureza do crime e a pessoa do acusado não
se opõem a èsse favôr, fica êste em liberdade m ediante uma
caução e, 'àssim, póde ganhar tempo para obter a benevolência
pública. Chega o dia da decisão. O povo, preparado dêsde
longo tempo para o julgamento* compõe o tribunal. Jamais
houve assemblèa mais importante, nunca existiu umã publicida­
de mais opressiva para a m entira e mais eficás para a manifes­
tação da verdade. Encerrado o debate, procede-se à votação.
Éste ato é também característico por sua publicidade; é oral.
Cada qual tem, ou deve ter, a corágem de sustentar a opinião
que professa. Isto, porém, mais tarde, m udou. ^ P ara incobrir
a falta de independência dos votantes, introduziu-se, na primei­
ra m etade do século VII, o voto secreto, ou por escrito (per ta­
bellas), tanto para* os tribunais populares, comò para as outras
assembléas do povo. *
A publicidade das relações jurídicas (6) já nos é conhecida,
em grande parte, pelas explicações precedentes. Recordaremos,
somente, a decisão perante a assemblèa do povo, dos atos publi­
camente garantidos (§ 18), as cinco testemunhas, representando
o povo (mancipatio, nexum ) nos atos perante o Pretor e Censor
(manumissio) (7) . Também citaremos, como muito caracterís­
tica, a publicidade dos testamentos, que, quanto à sua confecção,
nos comicios, caiu em desuso, çonservando-se, de um mòdo mais
restrito, para o testaménto por màncipação (8). Em parte al­
guma essa publicidade tem tão má aplicação, existindo^motivos
para se supor que em Roma, na época posterior, assiriTse pen-

(6 ) G n e i s t (Die fo rm . Verträge . . . (Convenções form ais do direito novo das obri­


gações em Roma), pags. 483-485, fez notar o contraste que oferece, néste ponto, o di­
reito grégo, “no qual a fórma mais usada (depósito de documentos seladas), tinha por
fim único, se fosse preciso, ocultai* o negocio das vistas de terceiros”.
(7) Vóda-se citar, como exemplo, a publicidade para a caução. Veja-se Gaio, III,
§ 123: prsedicat palam et declaret, et de qua re satis accipiat, et quod* sponsores aut
fidepromissores in earn obligaiionem accepturus sit.
(8) A introdução dos testamentos escritos, que permitem o segredo das últimas
yontades, a nosso ver, pertenceu a urna época posteroir. Com isso, sómente tratam
de provar ó jmpéxio da publicidade, nêsse sistema. As tabulte do testamento, para a
mentalidade da época antiga, hão são mais que as tabultse na votação dos comícios. Uma
demonstração, mais ampla,- conduzir-nos-á mais além. Insistiremos, não obstante, sôbre
a- escritura dos •átos' jurídicos, no terceiro sistema.
10 RUDOLF VON JHÊRÍNG

savá. Vemos, na confecção pública dos testamentos, como rio


voto público, urna prova de independência m oral. E isto por­
que há na essência das disposições de última vontade alguma"
cousa que, frequèntemente, contraria as pretensões e as esperan­
ças dos parentes e amigos do testador. Contemplando a uns,
prejudicam os outros pelo esquecimento em q u e je lhes deixa, O
hábito de fazer semelhantes disposições em púhlico pressupõe,
pois, em geral, um grande valôr moral e corágem de afrontar o
ódio e a perseguição das pessoas não satisfeitas em seus dese­
jos. O testamento secreto é o paladium da covardia. Em mui­
tos casos, porém, é o mais capaz de encobrir justas resoluções
(9) . Mina escavada sob os pés de pessoas que se não ousou fe­
rir de frente, e prodús a explosão quando o autor está bem res­
guardado das conseqüências do perigo. Durante o Império, as
disposições de última vontade serviram, frequèntemente, para
èsse fim. Fazia-se o testamento oral, mas um segundo testa­
mento escrito reformava estas disposições, sem que as pessoas
tivessem conhecimento disso, e a burla de que eram vitimas, só
se descobria com a morte do testador (101) .
Não podemos omitir, mas pôr bem em destaque, duas ins­
tituições que tinham, se bem que em esferas diferentes, o mês-
mo destino de publicidade: os registos ou listas do censo e os
livros domésticos. Estas duas instituições nasceram do grande
espirito de órdem dos Romanos. As listas do censo dão conhe­
cimento ao Estado da situação das fortunas privadas e os-livros
domésticos oferecem ao proprietário e, em caso de dúvida, aos
terceiros, uma exposição resumida, constante da situação de
seus negócios (n ) . Mas tais instituições só prosperam onde a

(9) Esta apreciação está expressamente confirmada pelo Tit. 16, § 1, das Novelas
de Teodósio II, H a e n d e l (Novellae constitution.es imperatorum, etc., pag. 6.1). Os com­
piladores de Justiniano não se ocuparam dessa passagem do resumo da L. 21, Cod. de
test. (6, 23). Natura, diz ela, talis est hóminum, ut quosdam diligant, alios timeant,
quibusdam sint officiosae, gratiae debitores, alios suspicentur, quorundam fidem intel-
ligant eligendam, aliis nihil credendum existiment, n e o t a m e n a u d e a n t d e s i n g u l i s
q u a e SEN TiA N T cO M F iT E R i. I d e o veteres testamenta scripta testibus offerèbant ablaturum-
que eis tubularum perhiberi testimonium postulabant. S ed... eo res processa, —
ITT DUM SUA QUISQUE NON NUNQ UAM JUDICIA PUBLICARE FORM ID AT, DUM TERTIBUs' TESTA­
M EN TI SUA N ON AUDET SECRETA COM M ITERE, NE SUIS FAOULTATIBUS IN H I ANTES OFFENDAT, IN ­
TESTATUS MORI, QUAM SUA M ENTES ARCANA PERICULOSI PATIATUR EXPRIM ERE. Teófilo 4II,
10, § 1) acresce outro motivo, que em determinadas circunstâncias podia ser muito triste:
o temor, por parte dos testadores, de que atentassem contra sua vida as pessôàs insti­
tuídas ou conhecedoras da última vóntade. Esta explicação foi desfeita por L a s s a l l e ,
System der erworbenen Rechte, 11, pag. 150 (Sistema dos direitos adquiridos), que a
substitúi com “a função orgânica dos testamentos no espirito do povo” (!).
(10) O próprio Augusto foi vitima de um caso semelhante. Valerius Maximus,
Jiv. Ill, c. 8, § 6, refere-o c assinala muitos outros casos de verdadeiras velhacarias
dêsse gênero. Veja-se, também, Petronio, Sat., c. 71, et haec omnia publico ideo, ut
familia mea jam nunc sic me amet ut mortuum, c. 141.
(11) Essas duas instituições parecem haver tido entre si certa relação. Pelo menos
T ito L ivio , VI, 27 e 31, se exprime de mòdo a fazer crêr que os registos do censo de-
o ÈsM&rro bo d i r e i t o ü ôm àko u

retidão da conciência e a probidade eram soberanas, porque


pressupõem confiança e veracidade. Onde essas qualidades fal­
tam á multidão, onde há receios de m ostrá-las ás claras, não
preencherão nunca o seu fim. Essa sinstituições, sem dúvida
alguma, grande influência tiveram no sistema do crédito pes­
soal (12), podendo-se vêr, com certeza, na extensão gradual des­
sas duas instituições, a causa p rim ária da preponderância cada
vez maior e decisiva, que, mais tarde, tomou o sistem a do crédi­
to real. Êste último é, como o voto secreto e a confecção do
testamento, o resultado da inquietação e da desconfiança. Ca­
racteriza a época seguinte, do mêsmo mòdo que o crédito pes­
soal, como a sua publicidade de votos e testamentos, caracterisa
a época anterior. Todos sabem até que ponto influênciou a pu­
blicidade na vida politica dos romanos. Basta ponderar que
ela se manifestava até na parte criminal . A antiga Roma não
.conhecia os m alfeitores e os criminosos dissimulados, dos quais
deveria defender-se mais tarde. Os velhacos, os envenenado­
res, os falsários, os cavalheiros de indústria, delatores, calunia­
dores, etc., lhe eram desconhecidos. Os crim es da época antiga
eram o homicídio, a extorsão, a violência, o roubo.
A publicidade, segundo o que precede, constitúi o traço fun­
damental da época antiga, sendo desenecessário salientar que
ela estereotipa a situação m oral do povo, e que vantágens traz
consigo. Para nós, é produto do vinculo íntim o que existe, em
sua origem, entre o indivíduo e a com unidade. Póde-se dizer
que é a fórm a exterior, sob a qual se m anifesta a comunhão pri­
mitiva da vida e dos interesses. Supõé1 um a sã conciência e
valôr moral, e tem como conseqüência um a grande confiança
no cumprimento das relações jurídicas.
A segunda qualidade quê se nos depara, no exame externo
do direito antigo, é a plástica do direito. Manifesa-se nas fôr­
mas imutáveis, prescritas pelas relações jurídicas. A sua uti­
lidade prática consiste em fazer palpáveis, exteriormente, suas
diferenças intrínsecas e que salte á superfície, por assim dizer, a
sua natureza íntim a. Por ela se julga o valôr das diversas fôr­
mas, sob o ponto de vista prático e não por sua qualidade nem
por sua expressão exterior, ou por seu carter (§ 50). Mas um
direito póde ser infinitam ente rico de fôrm as, de atos simbólicos,
etc., e, no entanto, não corresponder ás condições práticas da
plástica, como sucede quando há mais fôrmas exteriores e meios
de expressão do que diferenças intrínsecas, mais sinais que
idéias. A insignificância intrínseca recebe, então, uma consa-

deviam igualmente conter os capitais colocados a juros : fugere senatum testes tabulas
publicas census cujusqne, quia nolint conspici summam eeris alieni (27), e aes alienum
cujus noscendi causa censores facti (31).
(12) E’ provável que a estas instituições fòsse preciso acrescentar a publicidade
da caução, prescrita no direito antigo (nota 7).
12 R tJ D O L P VON J H È R 1 N G

gração exterior tal, que, se não é absolutamente desvantajosa


para a vida, torna, entretanto, mais difícil a explicação intelec­
tual do direito.
0 valôr^ prático da plástica não se determina, pois, pelo ca-
rater das fóçm as. Estas só devem assinalar a idéia, como no,
*direito germ ânico, de um mòdo poético, ou, como no direito ro­
mano, de um mòdo séco e prosàico. Pódem ser accessoriamente
"empregadas p a ra exprimir, de um a fórm a simbólica, idéias pro­
fundas, sentimentos penetrantes, ou restringir, como deveip, os
critérios extrínsecos das diferenças intrínsecas. Esta distinção
é de grande valor para caracterisar o espírito do povo, mas com­
pletam ente diferente para o valor jurídico da plástica.
Sómente apreciaremos, agora, a plástica do direito romano,
sob o ponto de vista prático, que acabamos de indicar. As for­
mas que empregámos, para èsse fim, são pouco numerosàs (13),
a sua fisionom ia é obscura e prosàica. Não vão além do que
reclam a o pròprio fim jurídico (por exemplo : o comparecimen-
tq das partes, associação e intim ação das testemunhas, ö pro­
nunciam ento de um a fórm ula), ou daquilo que parecia neces­
sário p a ra exprim ir exteriormente o sentido íntimo dos atos (por
exemplo: tocar os objetos com a mão, em sinal de aquisição da
propriedade, p esar sim uladam ente a moeda, em sinal de con­
clusão ou extinção de uma obrigação, o emprego da lança para
o combate sim ulado da vindicatio (14) . As duas fôrmas prin­
cipais dos atos, a mancipatio e a in jure cessio, pódem mêsmo
ser analisâdas de unj^^nódo racional. Não contem nenhuma
adição sinbólica. Porque o que representa, por exemplo, a ba­
lança e o brônze que nela se põe, é um elemento m aterial do pró­
prio ato, elem ento necessário antes da introdução da moeda
cunliada e, m ais tarde, conservado pela força do hábito.
As relações jurídicas movimentam-se, as mais das vezes, em
torno destas duas fôrm as. Obrigatórias nas transmissões de
propriedade das cousas móveis ou imóveis, na venda de escra­
vos e de filhos-fam ílias, na adoção, no casamento, na emanci­
pação, na m anum issão, na confecção do testamento, na conclu­
são e extinção do nexum , etc., a repetição contínua das soleni-
dades da m ancipatio e da injure cessio, dão aó comércio jurídico
certa m onotonia exterior.
Isto èm n ad á prejudica o valor prático da plástica romana.

(13) Aqui só se trata, bem entendido, das fôrmas juridicamente necessárias. A


vida romana conheceu, além disso, uma enorme quantidade de fôrmas que nâo tinham
esta importância. Estudaremos a fundo a teoria das fôrmas romanas. V. § 50-57.
(14) Éste ponto merece ser novamente examinado. Existe sobre o assunto uma
obra de E vf.rard Ot t o n , de jurisprudentiu sgm bolicar exercitationum trias. Traj. ad.
Rhen. 1730, que devia ser a precursora de outra mais extensa, a qual, que saibamos,
não foi publicada.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 13

A simplicidade, a sohriedadè e a pobreza da plástica rom ana


m anifestam , precisamente, o talento jurídico desse povo-, A
vantágem da economia (15), em direito, salta aos olhos. O co­
mércio ju rídico. acomoda-se mais facilmente a duqs do que a
vinte-fôrmas, e a jurisprudência pôde aperfeiçoar a teoria com
mais penetração e certeza. ~
Mas, perguntar-se-á, se os atos diversos se concluem, ^om
as mesmas fôrmas, em que, pois, consiste á sua diferença? Na
diversidade de seu conteúdo e na fórm ula que lhes correspon­
dia. E ra impossível a confusão para quçm via e ouvia o at<K
Onde havia um ato jurídico, a fôrm a o anunciavá. Que ato era
èsse? O seu objeto e o seu conteúdo, também o indicavam, sa­
tisfazendo, assim, todas as exigências do comércio jurídico. 0
mesmo elogio não se pôde fazer ao nosso direito atual. A ca­
rência de fôrmas (salvo alguns atos, como o testamento e a letra
de câmbio) tornam, frequèntemente, difícil, senão impossível,
dizer se existe o ato jurídico, e qual deles as partes quizeram
celebrar. Havia, igualmente, entre os romanos, da época anti­
ga, atos que não revestiam, habitualmente, certa íó rm a jurídica;
ocupar-nos-emos déles depois, procurando dem onstrar que como
não eram atos jurídicos, no sentido do direito antigo, não esta-
vam protegidos pelo direito e mêsmo não tinham necessidade
de$sa proteção.
Não há mais atos jurídicos verdadeiros, na época antiga, se­
não os que tem fôrm a jurídica e se publicam exteriormente como
tais. A ausência de fôrm a repugna á natureza intim a dos anti­
gos romanos, como nô-lo ensina a própria antiguidade. Quem
quizer examiná-la, sob êste ponto de vista, verá que esteve sem­
pre anim ada da tendência d ê fazer visível, por meio de sinais
exteriores, as diferenças intrínsecas. Ora, onde esta tendência
poderá manifestar-se melhor qi*e no direito? Assim como o se-
nadoi*, o cavaleiro, o homem livre, o m aior e m enor de idade, o
acusado, etc., se distinguhn por suas vestes, por seu anel, etc.,
o direito também devèria ser exteriormente reconhecível por seu
uniforme jurídico ou toga civilis, se assim nos podemos exprimir. >
Qunado dela carecem, quér dizer que as partes não tiveram a"
intenção de concluir um ato jurídico, porque, do contrário,, lhe
deveriam ter revestido das fôrmas necessárias.
Designámos, anteriormente, a indivisibilidade do movimen­
to do comércio j uri dico atual, como conseqüência não-plástica.
O direito romano distingue-se, ao contrário, pela visibilidade de
suas relações jurídicas. Efeito jurídico nenhum existe nêsse
direito que não tenha uma causa exterior. Ó mínimo que exi­
gia, era o comparecimento e a ação pessoal das partes, ainda

(15) Voltaremos sôbre éste ponto, nos §§ 43 e 66.


14 RUDOLF YON JHERING

mesmo que se cingisse, como na estipulação, à simples recitarão


de uma fórmula, sem outro ato exterior.
----- »
, Abordênios agora o organismo interno do direito antigo,
p ara que, dêsde logo, devamos assenhorear-nos de suas idéias
dónldáantes, õu tendências fundamentais (§ 28-34) . Podem vér­
se Uá alm a do povo romano, como o ideal de seu sentimento ju ­
rídico, porque èsse ideal que se apresenta á intuição do povo,
toma, no direito, a fórm a de privilégio, da tendência do progres­
so jurídico. Procuremos, pois, qual era ó fim de todo o direito
romano pára o sentimento jurídico, e quais são, segundo as idéias
dàquêle tempo, as condições mais elevadas que deve realizar o
direito. Êsses fins mais elevadados, as suas tendências funda­
mentais, são em número de três. Designamo-las, em falta de
melhor expressão, com os nomes de Espontaneidade, Espírito de
igualdade e Am or ao poder e á liberdade.
TÍTULO 11
TENDÊNCIAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO ANTIGO

CAPÍTULO PRIMEIRO
Espontaneidade do direito
OBSERVAÇÃO PRELIMINAR

Espontaneidade do direito sob o aspecto da fórma e do fundo.

28. — Reconhecemos a espontaneidade dos atos de uma pes­


soa, quando esta possui o poder suficiente p ara se determ inar-
por si mêsma, afastandò-se das influências extranhas, se estas
não correspondem á sua própria convicção e ao fim a que se
propõe alcançar. A espontaneidade não é a perfeição, porque
se concilia tanto com o m al como com o bem. Mas é a condição
da perfeição, porque esta adquire o seu valor dêsde o momento
em que o bem foi praticado. >
Transportando a idéia da espontaneidade ao domínio do
direito, diremos que êste se determina segundo as considera­
ções e os fins que lhe são próprios, perm anecendo insensível a
todas as influências externas. Suponhamos que o conteúdo do
direito pudesse ser objetivamente tão determ inado e indubitá-
vel como as verdades matemáticas, de fórm a a que os povos sé
tivessem que conhê-lo, como um fruto m aduro, da árvore da ex­
periência. O direito afirm aria a sua espontaneidade, realisan-
do èsse conteúdo puro, sem m ixtura, de um mòdo uniforme, para
todos ós casos e contra as correntes e obstáculos que se lhe opu­
sessem. O meio mais apropriado, para conseguir êste efeit%
funda-se na instituição de um mecanismo destinado exclusiva­
mente ao fim da realização do direito, que som ente pelo seu con­
traste com os outros mecanismos, por meio dos quais se exerce
o poder público, assinale os limites que separam aquêle fim dos
outros pertencentes á com unidade. Qualquer usurpação do po­
der público, no domínio do direito, é assim; se não se faz impos­
sível, de facto, ao menos se assinala como um a contradição con-
16 RUDÖL| VON JHERING
K
sigo mêsiho, como um ato de violência* e por isso, sé torna, mo­
ral e politicamente, mais difícil d e . cum prir-se. Falta ao direito
a condição prim eira, necessária à sua espontaneidade, desde (pié
não se dê a separação do poder, especialmente consagrado à rea-
^lisação dêsse direito e o conjunto dé poderes do Estado, enquaii-
fó éste provê; sem .distinção, á todos os interesses da comunidade,'
como poder único, indivisível.
O prim eiro passo para a espontaneidade do direito, cóñsiste
em separar a adm inistração da justiçà, dos outros ramos da ad­
ministração pública, por meio da instituiêão de autoridades às
quais o Estado confie a missão e im ponha o dever de aplicar o
direito, isto é, os triòunais. 0 juiz é a personificação da espon­
taneidade e independência do direito, reconhecidas, em princí­
pio, pelo Estado. Em Roma, parece, êste prim eiro passo se deu
no tempo de Servius Tullius. Àté então, o poder público era
exercido, sem divisão, pelo rei (-16) . Servius Tullius foi o pri­
meiro à criar os cargos dé juizes para as ações civis (17), e quem
prescreveu as Tegras, segundo as quais se devia aplicar o direito.
Verdadeiro ou falso, êste acontecimento é digno de nota. Mostra
que èsse rei, ou pelo mênos, a intuição popular que criou a len­
da, bem com preendeu a im portância da organização judiciária
na própria constituição, cujo criador e ordenador, em Roma, foi
precisamente èsse inêsmo rei.
A simples separação da adm inistração da justiça dos outros
ramos da atividade do Estado, não é o prim eiro passo indispen­
sável; mas Outros deviam seguido, se o Estado atingisse o fim a
que se propunha. Que vantágem adquiríam os com a institui­
ção do juiz, se com isso estamos expostos ao mêsmo perigo que
oferecia o poder único e indivisível do Estado, que se'queria evir
tar, instituindo-o, — perigo do abuso de poder, para desígnios e
considerações alheios ao direito? Somente o instrumento da ar­
bitrariedade m udaria. Mas, como evitar êste perigo, quando-já»
há muito tempo, os homens aplicavam o direito, mêsmo sem es­
tarem sentados na cadeira de juiz? Como im pedir o juiz dé se
deixar guiar, em seus julgamentos, por considerações extranhas
ao direito? , Impedi-lo, não era aboslutam ente possível, como não
, o é separar, completamente, o E stadd da adm inistração da-jus*
*tiça. Mas póde-se, quando nada, opor sérios obstáculos e reprir
m ir a arbitráriedade por meio de instituições que lhe oponham
um a b arreira que só pòssa transpor, quebrando-a, isto é, mos^
trando-se ao m undo completamente núa, tal como é. Estas ins­
tituições são de duas espécies: a determ inação legal das regras
de processos e a determ inação do fundo do direito. A prim eira

(16) Cic. dc rcpubl. 5, 2; L 2 § 1, de O. J. (1, 2).


(17) Êstes e ra m , segundo supõe B etm añ n -H o ii.w eg , Rer rôm , civil process (O
processo c iv il rom an o ), I,
pag. 56 e
seguintes; os c e n tu m v iri e
os d ecem viri liiib u s ju*
dica n d is.
m
•v*. iS
. ,;-v. . ;.'. ;'^:^v;~ J ..... s, , ^ .• :...

-à diyi^ir -csgái^^v-a^^lé; o<ar e a luz entre as


duasppár tésy A ou tr a e le v a -o à esfer a- ei an ílu en cia d as i déias
eíi t irô.êrito jurídico absoluto, quCvéarmíelbQr g u a ld a contra
:; torna possível a missão do juiz* dando aò direito
í p a .^ is tendei a m aterial è evidente.^
do processo é a determ ináção legàlc'dbè
qüe terá de aplicar, são, pois, as iristitui^â^
áque^asSçgücam ao direito um domínio exteriorm ente definido é
perceptivel, um mecanismo, dando-lhe as-con-
méoéa^iéxteriôÇ necessárias para rêalisar, fielmente, com se-
guráhca e uniformidade, o conteúdo que deve receber. Essas
ipatitutções,j e p mòdo por que estão organisadas, fòririam a base
fundam ental da justiça: — a justiça na aplicação do direito.
Esta parte dè sua espontaneidade, que tem por fim único a rea-
lisàção do direito, e que deixa completamente de lado o, seit con­
teúdo, designamo-la com o nome de espontaneidade form al do
diretto. A sua m edida e o seu fim consistem únicamente* ná-
^ ^ ||p e f e ^ n £ t v^^íonhecido conio direito, sèja inevitavelmente
p ara conseguir éste p ro p o sitó le
ktfprm a. i s t f é, a determinação, a encarnação da substância fluir
daí^do. direi to egn tim corpo, sólido è, por isso mêariáo, limítâoKí;^
N a jfóriria se dèscobre a força, conio, também, a fraqueza do di­
reito (18)'. A contiíiuação deste estudo m ostrará a exatidão des--
iaá >duãs asserções, A prim eirà se verifica no sistema de qué
rios^ocupamos agorà, a segunda, rio terceiro sistema.
Á espontaneidade formal, ou prática, do direito, que se côpM
fundè/coiri a aptidão do mecanismo consagrado à sua iealíáação
prática, oporiios a espontaneidade intèrna, ou materiah Vdo di-
r « |^ ^ É s t a ;últiriia repousa sôbre a idéia de, que o'direito não é
sim ples fórm a que póde receber um conteúdo qualquer, pias que^
certos fins somente estão* autorisados a ser realisados nesta for-
iria., ^ E iá conclusão, ela não quér para o direito outro conteúdo
ßeriäö-aqpele que é dado pêla idéia do direito. Trata-se, pois*
^ indicai qual é o çónteúdo deséjado para a id é ia do direito^
A idéia 4 a direito ! Somente esta palavra oferece um problema
i p ^ reievndo e difícil qiie toda a ciência jurídica; somente, esta,
coíííeiri à sua essência, a sua missão ísôbre a terra, sqa
posição no" mundô in orai, .relativamente ao homem e à Immani^
dàdè.- ; Somente esta. palavra, enfim, encerra, ao mesmo teinpd,
toda a crítica dá história inteira do direito.
. ^Sè ftratássemos aqui dêsse pro b lem a/seria impossível pçe-
yer o muito qúe puderam o^ acrescentar no terreno da história.
Mas:; não é necessário tão grande preparo p ara a compreensão,
exata dos fenômenos que vamos m ostrar. São suficientes as
observações que se seguem .

><18K T ren d elen burg , Natur recht (Direito naturai), segunda edição, pag. 88.
Éntre todas as forças ê -idéias que influem nas^ ações huma-¿
nas;: — o bem, o béld, o útil, a religião, —1 o direito se dìstingiiè;;
porque se utiliza da força para se realisar e, deste mòdo, en fia rá
a liberdade das realisações espontâneas, o livre arbítrio. À
mèdi d a que o direito difunde o seu domínio, mais diminúè a 1Í-;
berdade que resta ao homem. Se o direito pudésse chegaria^
compreender todo o conteúdo destas idéias; se os preceitos d a '
moral, os usos da vida, os dogmas da religião e as leis naturais?
do bèlo, do verdadeiro e do útil, se transformassem em regras
de direito, o indivíduo seria um autômato, sem poder fazer ou­
tros movimentos senão os que a lei lhe prescrevesse. Entenden­
do-o dessa m aneira, o direito estaria em contradição comsigo
mêsmo, isto é, com a sua missão pela hum anidade. Não é pos­
sível, com efeito, que' esta missão consista em fazer do homem
uma máquina, despojando-o, precisamente, do que o eleva aci­
ma da natureza inanim ada e do reino animal, ou seja da livre
determinação de suas próprias ações. O reconhecimento do di­
reito de espontaneidade é,vpois, a prim eira condição que nêle en­
contramos. Os limites e os módos de como esta condição se
realisa num direito particular, constituem a medida por meio
da qual apreciamos a sua espontaneidade interna, isto é, o gráu
segundo o qual compreende e reprodús a verdadeira essência do
direito. Mas esta missão, não é a única que se impõe ao direito.
O fim da hum anidade não é apenas o de assegurar a existência
efêmera e livre determinação dos atos do indivíduo; a humani­
dade eleva-se acima da esfera da vida puram ente individual,
compreendendo organisações mais elevadas e mais duradóuras,
que, também, necessitam de espontaneidade para a missão que
têm de cum prir.
A existência dessas organisações se manifesta, relativam ente
ao indivíduo, de um duplo mòdo : primeiramente, elevando (ao
mais alto gráu) a sua cultura e atividade; depois, subordinan­
do-o aos fins e às necessidades da vida comum, e restringindo-o
consequêntemente, na espontaneidade e liberdade de sua vonta­
de. A missão suprem a do direito é a de conter, assegurar e, re­
forçar ¿ vontade do indivíduo, como a de outros seres artificiais.
Póde-se, portanto, denominar a jurisprudência, a teoria do equi­
líbrio da espontaríeidade humana. A experiência da história
mostra que êste equilíbrio, se bem que fundado e m antido pela
força da lei/não implica sempre o equilíbrio real dêsses dois ele­
mentos, postos que, um e outro se desenvolvem enérgicamente.
Aqui, o direito de espontaneidade do particular prevalece con­
tra o da generalidade, ou força do poder público; além, êste úl­
timo impéra à custa da espontaneidade do particular, ou da li­
berdade do indivíduo. Nêste último caso se realisa uma situa­
ção crítica, a que chamamos não-esp,ontaneidade do direito. O
primeiro extremo, ao contrário, quaisquer que sejam os perigos
O E S P ÍR IT O DO D IREITO ROM ANO 19

«e os males que atraia, permanece fiel à idéia superior do direito:


*que o homem não é úm sêr sem vontade, um a m áquina nas
mãos da lei, mas, sim, que recebeu de Deus um poder em que
.a.sua vontade deve fazer pender o fiel da balança, na execução
d e seus atos. A m edida da espontaneidade, ou da não-espom»
táneidade do direito positivo é, pois, g,ara nós, a medida da li­
berdade individual que garente. Disto resulta que não podere­
m os depúràr inteiram ente a questão de que se trata, senão no
capítulo sobre a tendência à liberdade (§ 34-41). Por ora, —
;sem fálar das, explicações que se referem à espontaneidade for­
m al do direito, da qual já tratamos, — resta-nos m ostrar como
o direito romano antigo se condús ante essas idéias, que em ou­
tros lugares, como a experiência o provou, dificultou grande­
m ente a espontaneidade' do direito, avassalando-o em seus fins
especiais e impondo-lhe a força opressora do dever. E’ neces­
sário exam inar o contraste que, a êste respeito, apresenta o di-
.reito de outros povos, para apreciar em seu justo valor a impor­
tância^ do aspecto rom ano antigo. Dominado pela elevação dii
ídéia da divindade, o Oriente encadeia os dogmas, os preceitos
vé,©s deveres da religião nos liames do direito. O próprio pro­
c e s s o , que Roma antiga realisou sob êste aspecto, separando,
justam ente, o divino do humano, perde-se, novamente, para a
'hum anidade, no século XX, desde a fundação da cidade eterna.
Como no Oriente, o direito deve prestar o seu apôio p ara per­
seguir e pimir os heréticos e dissidentes, até que em princípios
<do século XXX o protestantismo conquista novamente ao cris-
lianism o a idéia que Roma pagã já havia praticado: a liberdade
de conciência e de culto.
Na antiga Roma, o contraste entre o direito e a m oral era
perfeitamenter limitado, não porque os rom anos estimassem me­
nos as leis da m oral, mas porque sentiam claram ente, maj^ do
cjue qualquer outro povo, que o homem livre quér o bem pelo
próprio bem e não por que a isso seja constrangido. Mas um a
naçãp, como o povo chinês, que se entorpece num a perpétua mi­
noria, que copi toda a sua civilização não passou da experiência
de um a criança envelhecida, jámais teve a intuição da idéia de
liberdade pessoal e com ela a distinção entre, a essência parti­
cu lar e o conteúdo.do direito e da m oral. As leis cliinêsas acom­
panham o habitante do Celeste Impèrio em tudo o que faz em
sua casa e fora dela. A m anufatura, a poesia, até mesmo a ciên­
cia, se rejubilam de estar legalmente reguladas e fiscalisadas
pela autoridade (19) . E sg no sólo europeu quizessemos procurar
contraste entre a separação rigorosam ente'estabelecida em Roma
antiga, no que era puram ente juridico e no que era puram ente

(19) Veja-se o excelente quadro da situação da China, em H egel, Filosofia da


.H istória.
dß R U D O L F V Ö/ N J H ERING

-moral ou útil, — que abundante colheita se nos ofereceria! (20)..


¿Que quadro sombrio xepresenta o estado "policiado moderno de;
urna-época pouco distante da nossa, se se com parar com a bri­
lhante luz que revelam as origens do direito romano antigo! Um
im pudente despotismo abusa do direito; o direito de esponta­
neidade do cidadão é calcado aos pés p ara favorecer fins em
que a utilidade real ou ficticia produzissem outra cousá nas leis
que não o avassàlam ento da liberdade pessoal. A legislação;
deve* garantir e respeitar, do melhor mòdo possível, o direito dé
espontaneidade dos indivíduos; cada um deve ter o direito de
fazer até mêsmo cousas intempestivas, e não deve depender so­
mente da lei, como vassalo, sujeito à servidão pessòal, que serve
a todos os fins que o poder publico julga dignos de ser alcan­
çados. A legislação desta época não tinha a m enor noção de
tão nobres idéias. N a Roma antiga, ao contrário, todos, até o
último cidadão, tinham disso o sentimento mais exato, porque
o direito antigo realisqu êsses princípios.
Agora examinêmos o direito antigo. Vejamos em que me­
dida se conformou com as condições que acabamos de desen^
volver. Não tom arem os por base déste exame a distinção da
espontaneidade form al e m aterial do direito. Será mais conve­
niente agrupar a m atéria, segundo òs quatro pontos de vista se­
guintes:
1. ° — Origem do direito escrito (§ 29).
2. ° — Espontaneidade interna do direito (§ 30).
3. ° — Conservação e extensão espontâneas do direito escrito
(§ 3 1 ).
4. ° — Segurança e independência da realisação do direit
{escrito (§ 32).

(20) Não queremos falar aqui do direito turco, porque pertence mais às legisla­
ções orientais que às europeias. Veja-se, relativamente a èsse direito, N. v o n T o r n a u w ,
Mosl. *Recht (Direito Musulmano), Leipzig. 1885, pags. 56, 83, 92 e 93. Nêle se en­
contram disposições legais sôbre a regação das árvores e a criação de" animais«
tfSECÇÃO. — ORÍGÈM DO DIREITO ESCRITO

O üso e a lei, direito escrito e não-escrito. — Importância desta dis­


tinção para a espontaneidade do direito. — Tendência do direito antigo
para o sistema do direito- escrito (direito privado — direito público —
■justiças populares).

L éges s u n t in v e n ia e , q u a e o m n ib u s
se m p e r u n a a tq u e e a d e m v o c e loqu e -
r e n tu r , x
Cíe., de off., H, 12.,

Ê9. — Comécemos pelo primeiro passo dado pelo direito, n a


«enda da espontaneidade, que é o mais simples, e, no entanto,
em suas conseqüências, muito mais im portante do que comunmen­
te se crê. Refiramórnos à transição do direito não-escritò ao
direito escrito, á conversão dos usos e dos^ direitos consuetudi-
nários em lei.
A questão da origem do direito é o ponto capital de diver­
gência éntre a teoria do século passado e a do presente. Segun­
do aqúela, ó direito nasce de regras gerais da legislação e só ex­
cepcionalmente procede do costume, sendo o Legisládor quem
provê de leis o Estado. O direito, pois, no fundo, não é.m ajs do
que um a soma de leis promulgadas, produto da arbitráriedade,
ou da soberania legislativa. O povo desconhece a priori o direi-
to; êste se lhé aplica e impõe; deve aprende-lo e a êle se adap­
ta r : — tal é a teoria antiga. Segundo a nova, o direito é, origi­
nàriam ente, o produto imediato da atividade de um povo. O
sentimento juridico nàcional sie realisa, im ediatam ente, pelo
Tacto, e se tradús nos usos (dreito consuetudinàrio) . Com o de­
correr do tempo, um a segunda fonte do direito, a legislação, une-
s e àquela, qué,'m uitas vezes, não cria nada de novo e que, fre­
quentem ente, nada m ais faz do que form ular o existente. Ao
iad o da legislação, e com /) riiêsmo direito, continúa existindo a
prim eira fonte, ou seja o sentimento juridico nacional com a
su a realisação im ediata pór meio do direito consuetudinario, que
existe de um mòdo imperfeito, e somente tolerado, mas que év o
mòdo natural e m oral da formação do direito. O-direito consue­
tudinario foi, realmente, o enfant gâté da escola que se intitula
22 RÚ D Ó L F VON. J H B R IN G ■>
\
histórica. Parece que se julgou no dever die^indeni^á-lo, pela afeí-¿
>ção> do abandonodo de que anteriorm ente^oi vítima (21h
Primeiro que tudo, a novidade e o m érito desta opinião con­
sistem em ter substituido a produção exterior e mecânica do di­
reito pela via legislativa, até então ensinada, como um a origem?
imediata, isto é, orgânica, fazendo brotar o direito da fonte dò»
sentimento jurídico nacional (22j . Por outro lado, esta òpinião,
restituindo ao direito sua àmpia base nacional e devolvendo-lhe^
assim, a sua dignidade moral, preparou a conciliação do
movimento jurídico subjetivo com o facto exterior do direito
objetivo. 0 espírito subjetivo não se póde harm onisar com
èsse facto, e sem expandir as suas aspirações, refugiou-se nas
melancólicas solidões do direito natural. A noção do direito
consuetudinàrio permitiu-lhe sentir-se e colocar-se no mundo ex­
terior, como dentro de um a criação em que toma parte; ensinan­
do-lhe a não ver, nessa criação, senão a expressão das aspira­
ções obsçuras e imperfeitas que êle traz consigo.
Mas um á verdade nova sobrepuja, fácilmente, xo fim a q u e
se propõe, e cai no exagero. Assim ocorreu com a teoria de
que tratámos, sem que, por issò, tente em nada diminuir o m éri­
to de seus criadores e primeiros partidários. Todá verdade pro­
funda e nova deve, a nosso vêr, passar pela fase da exageração-

(21) Não pódc haver glorificação mais exagerada do direito consuetudinario, que.
a seguinte passágein que tomámos de um trecho de Stahl, sobre a obrigação da lei
comunal, de 11 de março de 1850 (Gazeta d ’Augesburg, 1^53, n.° 15, pag. 228). Esta,
passagem merece iser conservada, cuidadosamente, para provar até que ponto pôde se
afastar dos principios essa doutrina malsã e absolutamente falsa na historia. “A co­
dificação, diz èie, destroy por toda a parte, ou relaxa, pelo mènos, as mais sólidas
relaçõès jurídicas, altera a consciencia jurídica, acabando, em ffltútos casos, com a.
sua ingenuidade. E’ nociva para os povos rurais, porque lhes arranca sua inocência
primitiva, provoca entre iêles a reflexão de poder existir o contrário do que atualmente
.éxiste e que lhes foi conservado sem respeito algum ao direito”. Mas a história nos
mostra o que realmente era èsse estado de “inocência” (!). Que sc recorde, por exem­
plo, a origem da lei das XII tábuas (L. 2, § 3,4 de orig. juris, 1-2).
Os viajantes que aprenderam a conhecê-lo por experiência, nos povos não civili-
sados, como Lad. Magyar (Viagens na Africa do Sul, I, pág. 286. Pest. 1859), vèm.
precisamente na incerteza e na elasticidade do direito consuetudinàrio a fonte prin­
cipal da confusão do direito. O ideial do direito consuetudinàrio somente existe na-,
imaginação dos que o inventaram.
(22) Tal é a idéia que se tcin, comumcnte, da primitiva formação dc todo o di­
reito. O direito,, segundo esta idéia, nasceu, como o idioma, sem esforço. K’ o fruto
da ação invisivel, inconeciente c pacifica do talento do povo. ?£ns a idealisação das
origens dos povos, correspondendo mal ao que vimos em outro logar, c à'opinião que-
sustentámos em nossa Luta pelo direito, 5.a edição, 1873, pag. 26 e seguintes, c que cor­
responde melhor à história. Em qualquer época e, consequentemente, mais ainda em
sua origem' o direito c seus princípios, para serem postos em vigor, tiveram que susten­
tar rude luta. Damos, sobre isto, a nossa aprovação completa à passagem seguinte de-
T r e i t s c h x e , cm sua Historish-politische Aufsatsen (Escritos sobre a *historia política),
pag. 137: “ O que parece à posteridade que c simples obra indispensável da opinião
pública universal, em realidade só é fruto dos rudes combates sustentados por alguns,
homens enérgicos e valorosos**.
O E S 'P íR IT O DO D IR E IT O R O M A N O 23

Parece-nos, sómente, que a sustentada, neste sentido, durou bas­


tante tem po. ¿
Esta opinião atribuiu um a im portância exagerada á for­
mação natural do direito consuetudinàrio, fechando os olhcxs
ante o grande progresso que recebeu do direito, ao passar do es­
tado de costume ao de lei. Para evidenciá-lo, compararemos
estes dois-módos de existência do direito.
O aspecto prim itivo que assinala as origens do direito em
todos os povos, e que ainda hoje achamos, de um mòdo isolado,
no -direito consuetudinàrio, apresenta, desde lógo, por seu cara-
ter señtimental, um lado bastante sedutor, motivo precisamente
para que a crítica sã o considere como contam inado de urna
inexatidão radical. A perfeição aparente deste estado origi­
nário do direito, que oculta uma im perfeição real, consiste na
harm onia e unidade que o caracterisam . O direito está identi­
ficado com seu sujeito; vive em seu coração, como sentimento,
com convicção jurídica (opinio necessitatis). Está identificado
com a vida, não se choca com ela, como faz a lei, como uma exi­
gência extranha;- é imánente, constitúe a própria órdem, e para
ela está form ado. Está identificado com o tempo, progride sem­
pre ao/seú lado e jám ais se retarda, como a lei. finalm ente, a
concepção de todo o direito é sempre a m esm a: nada de discre­
pância de leis. A decisão não surge de um artigo isolado, re­
sulta do conjunto do direito. Mas esta unidade geral, esta coe­
são é, precisamente, o sinal de sua imperfeição. O progresso do
direito consiste na destruição dessa coesão natural, numa sepa­
ração, num isolamento continuo.
A expressão direito consuetudinàrio não contribuiu pouco
p ara complicar o assunto. Os romanos, em verdade, falam de
um jus quod moribus introductum est; mas empregam, de prefe­
rência, a expressão mores majorum , consuetudo, usus longae-
vus, que estabelecem, a nosso ver, de um modo concludente, o
ponto de vista exato.
Nos usus, pois, os costumes de um povo encontram a sua ex­
pressão puram ente moral e a língua indica, com exatidão, a ex­
pressão dessa tendência moral dos usos, designando-os com o
nome de mores. Mas, sob outro aspecto, é, precisamente, nessa
mesma fó rm a 'que a convicção jurídica se m anifesta no direito
consuetudinàrio. Exteriormente, não se as póde distinguir. Só
resta, pois, como carater distintivo, o elemento interno, isto é, a
oposição do direito e da moral, ou a diferença que se deve pro­
curar estabelecer p ara cada caso especial, éntre a obrigação ju ­
rídica e o dever puram ente moral. Esta distinção, efetiyamente,
cômoda para um grande número de casos, poderá ocorrer, j a m ­
bó n , manifestando-se com uma diferença gradual, segundo a
força do sentimento do dever Sucederá, também, que a distinção
não se desenvolverá de modo algum. Em suma, o sentimento,
que é a base do uso, leva, graças à suá determinação, a possibi-
m- U ü D O L F VO N J H I r I WG

lidaâè, de uma oscilação entre um e outro. È’ a s u h sìà ^ iè ì^ È tì^ ^


era séú estâdo flùido, ó càos em que os elementos do m ündö mõráfc
flutuam amalgamados, do qual as sínteses è as espécies só se d ç sâ —
gregam muito insensivélmente. Uma excitação, où fórca èxtérròt;
póde impelir a massa flùido, quér dp ladö dp direito, quér
lai. No prim eiro caso, ò sentimento se m anifesta como õf dêmí
absoluta; rio segundo, que no caso é idêntico, como puro respèí4
to (?3) . O piotivo disto consiste em que a substância inorai s e
confunde com a personalidade do homem, ficando esta substituí­
da, bem como tudo aquilo que é puram ente interno, às oscilações
do critério individual.
O equilíbrio das forças, que designamos mais acima, como
um a das qualidades fundam entais do direito, ainda não estava
estabelecido- O direito ainda não tinha a solidês que fórm a a
sua essência, distinguindo-o da moral, e o estado de influidês em
que se encontra, caracterisa essa situação extrema, que anterior
m ente chamámos a não-espontaneidade do direito. Seja-nos
perm itido, entretanto, m ais adiante, contrapor o uso ao direito;
como estado de identidade do direito com a moral.
Já vimos que o direito natural de todos os povos começa por
essa fase prim itiva, cuja duração varia segundo a diferença in­
dividual dos povos (2324), sem que seja necessário, p a ra dá-la a
conhecer, que rem ontem os à época muito mais atrazada na his­
tória, porque o espetáculo da form ação do direito consuetudinà­
rio se reprodús di ariam ente, mêsmo quando somente seja em
suas aplicações isoladas, e com êle possamos com provar a exa­
tidão do que precede.
Quém quér que se encontre no caso de ter qüe provar a exis­
tência de um determ inado direito consuetudinàrio, chocarse-ia
com o que designamos de carater essência! do uso, ou seja a falta
de precisão. Verá, tqmbém, que o sentimento da necessidade
se nota umas vezes m ais energicamente e outras núm ^ráu m ais
fraco, isto é, que, segundo a diversidade de pessoas ' interessa-
dás, se tradús ora como sentimento jurídico, ou como crença de

(23) Podem citar-se, como exemplos tirados da história do Direito romano,, a in­
fluência que ^exercem os usos nas relações da família romana (§ 36), e potadamente
sobre os tribunais desta, ao tratar-se de. aplicar o. direito de vida e morte, confiado
ao pai e ao marido. Os romanos tinham perfeito conhecimento dêsse carater de indé-
términaçao do direito consuetudinàrio e do contraste que oferece com a lei. Veja-se,
por exeniplo, L, 2, § 3, de O. J. (1-2): INCERTO magis jure et consuetudine, quam per
BEGEM LAT AM. § 4. Postea NE DIUTIUS ID FIELET placuit, etc. Os grêgos sen­
tiram a elasticidade e a incerteza do direito consuetudinàrio, como Róma antes da leí
das XII tábuas. Segündo êlés, a verdadeira liberdade pública se manifesta no im­
pério da lei, enquanto que o direito consuetudinàrio apresenta um lado de imperfeição
e de atrazo que só vonvem aos Bárbaros. Assim o grêgo expressa claramente qüe sc
deve checar ás leis: vóu,iiia> ° bárbaro nada mais tem que vójwmx- Veja-se a êste res­
peito K. F. Hermann, Ucher Gesetz. . . (Da lei, da legislação e do poder legislativo ña
antiguidade)., Göttingern, 1849, paginas 9, 21.
(24) Daí a designação grêga do direito: âí/T) I, P- 255, nota ’165.
Ó ESPÍRITO DÒ DIREITO ROMANO 2S

um a obrigação puram ente m oral. A experiência também ensina


que, para os juizes, a m esm a prova do direito consuetudinàrio
foi considerada, muitas vezes, como evidente e outras como de­
feituosa. No entanto, a teoria do direito consuetudinàrio, para
decantar a sua pretendida exatidão, houve por bem opor o sen­
tim ento jurídico, como fonte do direito consuetudinàrio in abs­
tracto, aó sentimento da obrigação puram ente m oral; mas, na
vida, ambas nãp são, frequèntem ente, senão um corpo fluido. A
falta de precisão é a nota congênita da m aior parte dos direitos
consuetudinários concretos (25) À m edida que menos seguran­
ça ê precisão possúe um direito em estado primitivo, mais a sua
flutuação é mais valor tem a virtude da justiça nessa fase. O
direito elevaTsè com ela até libertar-se da instabilidade de opi­
niões e da influência dos interesses pessoais, para criar a igual­
dade do tratam ento jurídico. , E’ o prim eiro impulso da ten­
dência para a espontaneidade do direito. Além disso, a justi­
ça tem que lutar contra á substancia sentimental em que se vê
envolvida, sendo-lhe preciso desenvolver, nesta luta, um grau
extraordinário de discernimento e de fórca de vontade. Daí
tam bém, o reconhecimento extraordinário que encontra, e que
não teria nenhum sentido p a ra as fases posteriores do desenvol­
vim ento do direito. No nosso direito atual, o m érito d a justiça
évm uito mais lim itado. P a ta a m aioria dos casos, está na pró­
p ria construção do nosso direito, sem que o indivíduo agregue
n ad a mais de especial. Desde que o direito por si m êsm o triun­
fe soV o ponto de vista puram ente sentimental, se economisa esse
trabaMio, ou, pelo menos, se facilitará notadamenie para o indi­
víduo. Aquilo que antes devia ser dificultosamente procurado
e conseguido, e apenas encontrado por naturezas privilegiadas,
hoje é evidente, accessível a todas as inteligências e talvez ad­
quirido sem grande esforço C26) *
À m edida que tun povo reconhece a necessidade da justiça,
isto é, d a igualdade,, sente dentro de si form ar-se a tendência
que o arrasta a fazer-se independente dos azares da inspiração
puram ente individual, e a procurar mais e mais a justiça dentro
do próprio direito. Èsse meio o encontra na lei.

(25) Se se quizer uma prova evidente, comparem-se os casos em que nossa dou­
trina fala de um .moderno direito consuetudinàrio universal, transportando-o para o
terréno do direito romano. Ai, onde um admite uma prática obrigatória (por exem­
plo, éxtènsão da restitutio minorum a todas as universitafes personarían), o outro diz
“que uma pratica baseada numa teoria errônea não é suficiente para motivar ó prin­
cipio em questão”. Jâ^ mencionámos os dois córifeus do-direito consuetudinario: P uchta
(Pandectas, § 103) e S avigny , (System, VII, pag. 161).
(26) Cic. de o ff., II, 12. Jus enim semper est quaesitum aequabile ñeque enim
bitter esset jus. Id si ab uno justo et bono viro consequebantur, erant eo contenti;
quum id m initi contingeret; leges sunt inventae, queue, cuçn omnibus semper un. aatque
eadem volee loquerentur.
26 RUDOLF VÕN JHBRING

A lei «è o ato pelo qual ó direito, quando atinge oficialmente*


a conciencia de si mèsmo, despe-se de sua túnica de inocencia.
Ainda que o acontecimento pareça insignificante, aparentemen­
te, generalizando-se, faz, contudo, surgir no mesmo direito, uma
série de transformações da mais alta im portância. Cada uma?,
dessas transformações tem os seus inconvenientes. Quem sfc
atende a estas, quem esquece que não há progresso no mundo?
que delas esteja isento, e considera èsse estado primitivo comer
o da perfeição paradisíaca; para êsses o aparecimento da legis­
lação será o pecado original do direito. Onde quér que ante­
riorm ente reinasse a harm onia e a unidade, seriam despedaça­
das em virtude dessa culpa original. O direito era unificado
com o sentimento subjetivo, mas ambos separam-:se. O direito já
não é aquilo que vkre no coração do sujeito, é apenas uma cousa
inanim ada. E ’ como a vida; com ela se move e se transfórma.
Nunca estava fora de seu tempo, nem em contradição com as
necessidades quotidianas. Estaj união cessou com a lei. O
direito já não é o conteúdo da vida, não avança mais; coloca-se
fõra, aparte dela, insensivelmente; dirige de longe as suas or­
dens. Á lei imobilisa-se na fórm a que se lhe dá, enquanto que
a vida continua o seu movimento incessante. E, no entanto,
esta deve submeter-se à regra m orta do passado!
E isto não é tudo; a apreciação das relações jurídicas con­
cretes se modifica sob a influência do direito escrito e sofre
outra quéda aparente. O sentimento jurídico era indiviso, uno;
em parte alguma agia por si só; era como üm espelho que refle­
tia as relações jurídicas concretas de um a só vez, em toda sua
extensão e em todas as suas formas (27) .
Em suma, as relações jurídicas concretas se apreciavam no
período de simplicidade do direito, por sua expressão de con­
junto. E depois? O espelho quebrou-se; seus brilhantes frag­
mentos se encerram nos parágrafos estreitos de uma lei, ou de
um código. Por isto, posteriormente, cada caso concreto deve­
rá refletir tal aspecto em tal parágrafo e optro distinto, em tal
outro. -Assim, em vez de unidade, produz-se um a completa dis­
persão .
Fácil é, como se*vê, descubrir os defeitos do direito escrito
e suscitar éntre os espíritos romanescos e desprovidos de idéias
próprias, o am or ao direito que nasce conosco. Nem sempre a
verdade teve bom êxito; o sentimento natural do homem a
contradiz de antem ão. A tendência do direito para a esponta­
neidade e a objetividade, da qual à lei é a emanação, tem por
fim, dêsde lógo, destruir o império do sentimento no direito (28).

(27) Veja-se .sébre êste contraste, III, nota 13.


(28) Tito Livio, II, 3: Leges rem surdam inexorabilem esse, nihil laxamenti
veniae habere, si modum excesseris.
O ÈSPíálTÓ DO DIREITO ROMANO 2T

O método, a técnica, a construção do direito tendem ao mésmo


fim . Compreende-se. que o sentimento assim ameaçado na sua
essência íntima, se levantará iracundo, porque, quanto mais pre­
valece a natureza sentimental num povo, ou num indivíduo,
m ais difícil lhes é conciliar-se com. esta tendência do direito.
Todas: as transform ações, que faz surgir o sistem a do. direito es­
crito, se apoiam, pois, na separação e no isolam ento. 'E agora
temos aqui motivo p ara apreciar a justeza da observação acima
indicada, dé que o progresso do direito consiste na separação.
A vida independente da criança começa no momento em que a
separam da mãe, e assim, também, ó direito — não tem vida
própria senão quando se afasta do sèíitimento jurídico nacional,
que foi a sua .origem. A lei é que cria essa separação. 0 di­
reito perde, com isso, certamente, a sua fluidez e a sua sensibili­
dade; mas compensa a pèrda com a vantágem que encontra na
fixidez, precisão, uniformidade, em um a palavra, na esponta­
neidade. O direito escrito póde, também, receber certa elasti­
cidade, como o dem onstrará o terceiro sistem a. Modificando-se
a si próprio, póde sem pre seguir o desenvolvimento das relações
jurídicas e dos desígnios gerais. Depois, a precisão, a sagaci­
dade, a igualdade, a calma e a fixidez do direito, são infinita­
mente mais im portantes para a vida, que a faculdade de se con­
form ar sempre, a cada momento e p ara cada relação especial,
com as exigências da vida. Com efeito, as relações, em virtude
das quais se tradús a vida jurídica da espécie, não jsão tão indi­
viduais, que não póssam ser tipicamente reguladas pela lei. Bas­
ta, para isso, que ela, em sua classificação, evite descer profun­
damente a detalhes. Por. outro lado, essas relações não são tão
variáveis que não se possa, sem violência, submetê-las, por longo
tempo, a um a regra única.
O desenvolvimento positivo que toma o direito ao ser escri­
to, póde exprim ir-se como a transição da intimidade subjetiva
á exterioridade objetiva, desenvolvimento que lhe faz adquirir,
desde logo, a espontaneidade da fórm a. 0 uso, manifestação
primitiva, ainda não era a sua fórm a própria, porque aquilo
que é puram ente oportuna, mésmo que não tenha a menor rela­
ção com o direito, póde, também, constituir um uso. A lei, ao
contrário, é a fórm a exclusiva do direito. O que é uso, póde
não ser, por si só, direito; a lei, ao contrário, é sempre a expres­
são do direito. Disto, origina-se a indeterm inação do direito,
quanto a fórm a. Mas, além disso, a qualidade mais im portante
do direito, á sua uniformidade, fica prep arad a. Semelhante,
em sua origem, à imagem refletida na água e sujeita a todas as
flutuações da superfície reverberante, o direito se reflete, daí
em diante, num espêlho imóvel; nêle, certam ente, pode vêr-se
como em qualquer outro; tudo depende de quem nêle fixar a vis­
ta . Como tudo o que é objetivamente conhecido pelo homem,
a lei não exclúe inteiram ente a influência das diferenças subje-
R II?D' O Xi F Y ON JH FRI N G
y'- ;'"1 X

fivas e das disposições peculiares ao homem; m as conquistou,


èntretanto, um ponto de apoio objetivo e, até certo pohto^um
ãiqiie oposto às oscilações da oposição individual e às influem
cias da sensibilidade. De objeto de sentimento que era, o dí-
roito passa a ser o d a inteligência logicamente apreciável e ob­
jetivam ente m ensurável. A razão dedtuiva substitüe, por con­
seguinte, á intuição.
Já falámos, anteriorm ente, da m aneira de apreciarem -se as
relações jurídicas, segundo a impressão que deixa o seu con-
júnto. O defeito consiste em que esta im pressão pode, fácil­
mente, e de fórm a inconciente, falsear por influências externas.
Impossível é fazer um a com paração rigorosa dos diversos casos,
quando não se os considere senão em sua totalidade; m as é ne­
cessário, como na composição química dos corpos, resolvê-los
em suas partes fundam entais, decompô-los, compará-los e pesar,
isoladamente, cadá um a de suas partes. Teremos, m ais adian­
te, oportunidade de vêr em ação a química jurídica, e, por isso,
não insistiremos agora nessa questão, e volveremos ao direito
rom ano antigo, p ara considérá-lo sob o ponto que acabámos de
desenvolver.
«Contrário deveria ter sido à natureza dos rom anos satisfa^-
zer-se, por muito tempo, com, a simplicidade prim itiva, de seus
usos, porque a um direito m ais do que a nenhum outro, pelo m e­
nos nas relações civis, anim ava um a força expontânea, devia sen­
tir acentuada tendência p a ra o sistema do direito escrito, sendo
expressivo sob êste aspecto, que a época posterior atribua às
leis de Rómulo e de N um a ás mesmas disposições da época pri­
m itiva, que evidentem ente eram produtos naturais. Muito mais
simples para o espírito rom ano era que a reflexão e a conciência
dotassem de fórm a ao m undo moral, ou, pelo menos, que trou­
xessem os princípios que dêle existem, em fórm a de leis (§ 8).
Esta época, a m ais antiga, com as suas pretensas leis, está
fóra de nossa vista e d o <alcance de nossas cogitações. O direito
da República, ao contrário, dá-nos a imágem de uinà grande ati­
vidade da legislação, se bem que não possamos considerá-la de-
talhádam ente. A lei das XII tábuas, que em seu fundo não fòi
outra cousa senão a codificação do direito existente, é o fenô­
meno que mais se destaca nêste período e constitúe o fundam en­
to do segundo sistem a. À semelhança dos. fenômenos análogos
de outros povos, por exemplo, entre os germanos a época da imi­
gração dos povos, a lei das XII tábuas nasceu da incerteza que
reinava no direito. Este é, pelo menos, o motivo que se dá de sua
origem (29) . Em reg ra geral* as perturbações profundas da

(29) P o m p o n i i s , L. 2, § 3 de orig. juris ( 1 - 2 ) , interumque caepit populas Ro-


manus incerto magis jure et consuetudine uti, quam per legem latam. Attribue-so à le­
gislação de Draco a mesma causa, porque a incerteza do direito foi Insuportável. K.
F. H e r m a n n ; na obra citada, em nota 23, pag. 37.
0 ESPÍRITO DO blREITÖ köMANO 29

vida anterior dos povos são as qüe \produzem' semelhante incer­


teza, que acarreta a necessidade da codificação; mas, também,
são concorrentes importantes os novos elementos étnicos, as trans­
formações operadas na composição das camadas sociais, etc. Km
Roma, a causa residia na perturbação, que produziu a desigual­
dade em qué se achavam os patrícios com os plebeu^, depói§ da
expulsão dos reis; correspondendo à plebe o m érito dè haver
im posto a codificação do direito existente, tão fecundo em con­
seqüências pára todo, o desenvolvimento do direito rom ano. O
fim e ra formular, de um mòdo completo, o direito que estava
em vigôr; más não há necessidade de dizer, depois de nossas
explicações sobre a relação das fórm ulas do direito com o direi­
to real (volume I, Introdução), que esta fórm ula só pódè'expri­
m ir-se de um mòdo aproxim ado. Não é agora o m om ento'de
e n tra r no exame da lei das XII tábuas; basta haver indicado o
facto de sua codificação. Voltaremos a ocupar-nos dela, com
frequência, sob outros pontos de vista.

Dissemos que o direito antigo, em. geral, acusava um a ten-


dêhcia para o sistèma do direito escrito., * Esta asserção exige
ser dem onstrada pelo exame das diversas partes do direito . A
referida tendência se m anifesta de um mòdo bem assentuado no
terreno do direito privado e do processo civil, com menos fixi-
dez no direito público e ainda menos no direito crim inal.
Quem se entregar, sem cautela, A impressão que nasce do
exam e do direito antigo, achará, nas duas m atérias, tudo, menos
um a codificação d a teoria da escola histórica sóbre a existência
e propagação naturais do direito (30) . As prim eiras páginas da
-história rom ana já ofereciam um a obrà dè legislaçáo fundam en­
tal: — a de Servius Tullius. O direito rom ano identificava per-
feitam ente o reinado do direito com o da .lei, a ponto »de ter
transform ado as idéias da época mítica em leis de Rómulo e de
N um a Pompilio (31) .
Não se póde explicar como, apesar de existirem as leis reais,
a legislação das XII tábuas se fizera, tão depressa, necessária, na
época da realeza, senão que intercalando, no começo da Repú-

(30) P u c h t a , Gewohnheitsrecht (Direito consuetudinario), tomo I, pag. 16, é de


opinião diametralmente oposta. Crê que, para OS romanos, a antítese entre o direito
legal e o direito consuetudinario, não houve nunca a eficácia que teve em nossos dias.
Apóia-se, ' para isso, em que a interpretatio era considerada como continuação do direito
estrito. Mas êste argumento é antes uma prova contra a sua opinião, porque ¿le prò­
prio reconhece (pagina 24) a “preeminencia do direito escrito qué surgiu legalmente da
lei das X n tábuas, a que qualquer direito outro deveria subordinar-se e ser idêntico,
ainda que ocupando um lugar secundário depois do direito legal”.
(31) Tanto assim que, segundo T i t o L i v i o (I. 8), a legislação data da fundação
de Roma: oocuta multitud ine, quae coalescere in populi anius corpus nulla re pràe-
te r q u a m l e g i b u s poterai, jura ded it.
30 R ii p O Li. F V ON JH B RIN G

blica, um período de direito consuetudinàrio, isto é, de direito


inderto (*2) . V arrão designa a lei como a ùnica fonte à qual p
Pretor, na época antiga, devia obedecer, enquanto que o censor
só podia guiar-se pela equidade, isto é, segundo o direito escri­
to (á3) . O próprio G a io , ao enum erar as fontes do directo, em
suas Instituições, esquece completamente o direito consuetudinà­
rio (3233435), e  E L iu s nao o contempla na siia divisão tripartida (J$ ) ..
O processo antigo denuncia, pelo seu p róprionom e ( l e g is actio) ,
o papel importante que nêle tem desempenhado a lei. Não sa­
bemos se, com razão, ou sem ela, G aio e P o m p o n i u s vêm nas legis
actiones uma instituição.que, tendo por fim a realização das leis,
a elas se adaptando com minuciosa precisão, foi destinada a pôr
termo à pureza que gozava o direito durante a sua exÜtência
natural (36) . G aio somente encontra um caso, em que a legis
actio era aplicável à outra relação — p ara a qual a lei a havia
introduzido — o da legis actio per pignoris capionem —, sendo
ainda esta, para o referido autor, mais uni ato extra-
judicial, em que a natureza da legis actio era muito contestada.
Nenhuma das reformas importantes a que esteve sujeito o pro­
cesso, no decurso do tempo, teve um a origem consuetudinària.
G aio designa um a lei para cada um a dessas reformas e diz que
a emenda gradual e consuetudinària das fórmulas do processo
das legis actiones era proibida, por causa de sua conhecida de­
pendência com as leis (Gaio, IV, 11). Em resumo, o processo
romano antigo é, pela sua própria» base, e por toda a sua histó­
ria, o protesto mais categórico e mais claro contra o direito con­
suetudinàrio (37) . Se se pensar que a incerteza do ^direito con­
suetudinàrio foi a causa alegada e o motivo que deu logar à for­
mação da lei das XII tábuas, compreender-se-à éste protesto. O
fim da instituição era colocar o m agistrado na impossibilidade
de julgar segundo outra fonte de direito que não fòsse a da lei.
Este fim se alcançaria, imperfeitamente, se as leis, que deveriam
pôr limite à arbitrariedade do magistrado, atendessem, como as
nossas leis do processo atual, à fórm a. Mas èsse não era, modo
algum, o caso; efetivamente, a nossa m oderna distinção entre o
fundo do direito e o processo, era desconhecida na época antiga
(III, 19); as legis actiones continham ao mesmo tempo o fundo

(32) P o m p o n iu s , na lei frequèntemente citada. L. 2, § 3 de O. J. (1, 2).


(33) V arrão , de L. L. VI, 71, quod tum praetorium jus ad legem et censorium
judicium ad aequum aestimabatur.
(34) G a iu s , I, 2. E* isto que, com razão, fez notar L e n z , Uber die gesch. Enest
(Da origem histórica do direito), Greifswald c Leipz, 1854, pag. 164, que divide a op i­
nião aqui' desenvolvida.
(35) L. 2, § 38 de O. J. (1-2).
(36) P o m p o n iu s , l. c. § 6: ex his legibus actiones compositae s u t ..., quas ne
populus PROUT \ELET institueret, certas soiennesque esse voluerunt.
(37) Voltaremos a este ponto, no § 53.
O E S P ÍR IT O DO 'D IR E IT Ò R O M A N O 31

io direito. Não existia, para o juiz, dem anda que não pudésse
invocar, em seu favor, o apoio de um a lei.
O campo de ação do direito consuetudinario era, pois, muito
imitado no direito antigo. Afóra os casos da pignoris capio,
lão sabemos de outro exemplo senão a faculdade que se deu
10 Pretor, nos litígios sòbre a propriedade, em não acom panha^
iomo antes, as partes ao logar litigioso (m anum conserere),
juando a extensão do território rom ana tornava incômoda esta
form alidade (II) (3839) . Com relação ao fundo do direito, não"
conhecemos exemplo, de espécie alguma, nesta época, de produ­
tos expontâneos do direito consuetudinàrio; e os que se pudés-
»em^designar como tais, eram conseqüência da inierpelatio dos
juristas (§ 31), isto é, do progresso da lei. Se se quizer consi­
derar a obra dos juristas como direito consuetudinàrio, conse-
^uir-se-á dilatar grandemente o seu dom ínio; porque, sob a fôr­
ma da interpretatio, o trabalho dos juristas fez realm ente flo­
recer princípios novos do direito. Mas esperamos provar, sem
3antestação, m ais adiante (§§ 49, 53-68), que essas criações dos
jurisconsultos, que form ám o jus civile, no seu sentido estrito,
já não bastaram para apoiar .a idéia do desenvolvimento natural,
ou orgânico, do direito, e que tudo quanto sae de suas mãos, leva
o cunho de um a intenção calculada e de um a arte altamente
aperfeiçoada, sujeita á regras fixas. Se o direito romano tor­
nou-se grande, deve unicamente a sua grandeza a circunstâncias
jue êle não conheceu jam ais, ou m elhor, atravessou rápidam ente
B com felicidade ‘èsse pretendido período de nostalgia dos po­
vos, esse letargo primitivo, no qual o homem cruza os bjaços, dei- -
gando que a força natural obre por si mésnaa; o direito romano
diegou m uiío depressa ao objetivo da reflexão e da atividade
conciente dos hom ens (3Ô) . *
Outro motivo, mais geral, vem juntar-se aos testemunhos
históricos especiais que acabamos dfe citar, e que não nos é pos­
sível conciliar com a suposta im portância que tivesse o direito
consuetudinàrio-no direito privado da antiguidade. Tal é a ten-
íência para a precisão formal exterior, tendência que se m a­
nifesta, de m òdo incontestável, no direito antigo. Repugna a
êste reconhecer eficácia jurídica ao pacto nú, isto é, à vontade
individual despida de fôrm as; porque deveria ser muito contrá­
rio à essa natureza, concedê-la a vontade geral despojada de
Formas, ou vontade objetiva, isto é, ao direito consuetudinàrio.
Mão é só a ausência de formas o que constitúe a imperfeição.

(33) Gk. XX, tO, institution CONTRA XII tabulas tacito consensu. A que­
rela" inofficiosi, nnscida da prática da jurisprudência centunviral, pertence ao terceiro
sistem a. Vostarcmos a ela, quando nos ocuparmos do terceiro sistema.
(39) Não citaremos aqui nenhum capitulo, ou parágrafo da segundo sistema; de­
veríamos citá-los todos, porque cada matéria que tratássemos levaria a prova desta
v¿> ì 4 , .. <• -, . :i \ & W &
32 RUÇO X.1T V O N J H E R I N G

vn£sses casos, senão,’ por sua vez, a falta de precisão. Tap difí­
cil éLem cortas circunstâncias discernir se um a promessa despida-
dé form as criou um laço m oral, ©u jurídico, como s a f e se uiir
costume repousa sobre o sentimento jurídico, oü sobre o de üitiá^
obrigação puram ente m oral. O formalismo (§ Õ0-53)*, um dos
fracos fundam entais que mais se destacou ito direito antigo, con-f
duziu, no direito privado, às convenções formais, e no procèsso^
ao agrupam ento das ações sob form as fixas. Assim, a menos-
que se ponha em contradição comsigo mesmo, conduziu o direb
to, dêsde as suas origens, á formação e ao desenvolvimento do*
sistem a escrito, em oposição ao do direito não-escrito.
As relações privadas pódem, sem inconveniente alguiíu sub­
m eter-se a regras fixas e inflexíveis, porque se m ovim entam sob
fôrm as estereotipadas. A regularidade, a segurança, a visibili­
dade, são, precisam ente, as condições que reclam am ; e qüàndo
as suas vias são amplas e estão traçadas com precisão, as vantá-
gens que disso resultam , são nüm erosas. Mas outra cóusa ocor­
re, com relação ao Estado e à vida pública. As situações p o r
que tem que atravessar, as contingências que pódem sobrevir e
as medidas que se devém tom ár, não pódem seç calculadas der
antem ão. O Estado deve chegar ao extraordinário, possuindo
p a ra èsse fim um a organização flexível e elástica, que lhe torne
apto para lutar em casos anorm ais. Se assim não fòsse, se um a
política de baixas vistas, com pretenciosa sabedoria, crê cons­
tru ir a organisação do Estado, à semelhança dè tun relógio, onde
cada mola, cada roda, tem exatam ente designada, a sua fN u nção,
a m enor discrepância proporcionaria um a interrupção e as con­
seqüências mais sensíveis, ou melhor, obrigaria o poder público
a ,p ô r por terra a constituição. Habituados os romanos, por seu
direito privado, a fixar o direito, a assegürar-lhe um a existência
objetiva, deram prova de seu imenso instinto político, não se
deixando levar pelo mesmo afan, em m atéria de direito públi­
co. Enquanto, que, no processo civil, tinham, por intermédio:
da lei e com bastante cuidado, ligado as mãos ao m agistrado,
não se lhes ocultava que nas relações do direito público, a li­
vre intenção, e não a regra m orta, é a que deve prevalecer e as­
sim sé abstinham de tira r ao m agistrado a faculdade dé fazer o
bem para impedir-lhé á de fazer o mal (§ 40).
Foi no direito crim inal) que menos se manifestou a força
suprem a da lei (40) . Do mêsmo mòdo, por muito tempo, o povo
exerceu por si mêsmo, a jurisdição criminal nos comícios; esta
form a de processo foi, pelo menos, \desfavoi%vel p ara a fixa­
ção dos princípios do direito penal. A lei d*as XII tábuas con­
tin h a algumas dispbsições crim inais especiais, notadam ente o

(40) Esta c a parte em que as nossas idéias atuais mais diferem. A divergência
entre o nosso direito moderno e o direito romano antigo, está contida nestas duas
máximas: Rmlla POENÁ sine lege e nulla ACTIO sine lege (legis actio).
Ö ESPÍRITO DO ÖIREITO áOM'ANO 33

principio geral -de que as penas •capitais não podiam impõr-se


Señao pelos comícios por ceritúriás. Mencionam-se, em alguns
casos, as leges e as mores, como base da acusação (41); mas, não
e menos certo qúe a m aneira pela qual o pòvo exércia o podèr
que lhe pertencia, prova, como, em geral, não estava sujeito
a regras senão que se deixándo dom inar pela impressão de con*
junto dp càso e inspiração do momento, podendo-se dizer, do
nosso atual ponto de vista moderno, pelo caprich© e arbitrarie­
dade; Uni só crime produzia, frequênfemente, penas diferentes,
motivos qué, segundo as idéias atuais, não tinham nada de co­
m um cóm. a culpabilidade do indivíduo, e faziam quasi sempre
oscilar a balança da justiça (42) .-
Chamou-s€? à jurisdição crim inal do povo, á acumulação do
poder legislativo e do poder judiciário; os julgamentos eram
•considerados como leis p a ra os casos particulares (43) . Esta
designação é p p f ei tarnen te exata. Mas, como se concine que
o povo jurídico por excelência tenha conseguido tão tarde, no
terreno dp diréito crim inal, a separação éntre o direito e a sua
aplicaçãõ, que é a prim eira condição da é ^ ^ ta n e id a d e e da
uniform idade jurídica? E quando a. tendêncià"à fikidez, à p re­
cisão^ à objetividade, à' uniform idade está tão profundam ente
im pressa em todo o direito civil, — como se concluir que o di­
reito criminal.pudésse m anter-se, em tão longo tempo, num esta­
do precisamente oposto de fluidez extrema e de dependência
completa da subjetividade do sentimento? A razão, segundo
pensamos, está na idéia que antigapiente se tinha dás relações
'do cidadão com o Estado. Em nossa concepção atual, essa re­
lação é puramente jurídica: o Estado exige de seus membros
atòs exteriores; o sentimento dé que procedénr lhe é mêsmo in­
diferente. Mas o Estado antigo, ao contrário, só pedia ações;
dirige-se à alma, apôia-se no sentimento do amor e da abnega­
ção, nascendo disso um a fonte abundante de ações nobres è. be­
las. „ Às suas exigências são, pois, todas morais, internas; as
do Estado atual* ao contrário, são dè natureza jurídica, exterior.
Não yera por uma ação de exterioridade legal, que o. Grego e o
Romano concorriam com seu voto p ara _a formação do Estado;
ençóntrando-se com ele no mêsmo pé de reciprocidade distinta

(41) T i t o L iv io , -XXVI,' 3 . . . quominus sea legibus, seu moribus m allet, anquireret.


(42) yeja-se, sôbre éste ponto, E. P ia t n e r , Quacstiones de juré criminum .Romanó.
Quaest. I c Gcib. Geschichte (História, do processo criminal' de Roma), pags. 125-128.
(43) G eib , I. c ., pag. 125: “Na Grécia, como cm Roma, foi um principio fundá-
mental qüe os juizes, nos assuntos criminais, eram servidores gà lei, e como tais, â
41a subordinados; mas df* certo 'mòdo vinham a ser considerados como os. senhores da
lei, e. deviam, consequentemente, cada vês que as circunstâncias o exigiam, elevar-se
acima dela e constituir-se em legisladores para um caso particular”. Página 127: “O
povo, segundo os casos, não erá sempre legslador ou juiz; se bem ;que reunisse muitas
vêses essas duas qualidades num mesmo momento, acabaram por confundir-se a , tal
ponto, que em teoria, apenas se distinguiam uma da outra”. *
34 RUDOLF VON JHERING

à^ijue lem atualmente, em que ‘enganar o Estado é apenas consi­


derado como uma ação deshonrosa. Mas o cidadão pertencia ao
Estado, tal como era e com tudo quanto possuia. Não tinha ne­
cessidade da "lei para saber como se devia conduzir na vida pú­
blica; somente o amòr dá semelhantes instruções. O próprio
sentimento inspira á sua conduta. E’ por esta razão que a cen­
sura penal que o Estado exercia contra o cidadão, não incluía os
seus atos particulares, exteriores; abrangia o Estado e o indi­
víduo, em íoda a sua personalidade. A ação susceptível de cas­
tigo, que entre nós constitúe o objeto de um inquérito, não era
na antiguidade mais do que a ocasião. Não são as regras do
direito e as ações isoladas; é todo o povo, por um lado, e por
outro, o delinquente, que comparecem . O povo, com o seu mòdo
de pensar e de sentir, é o espêlho em que se reflete a existência
m oral-interna do delinquente, e onde vai lêr sem descrédito á
dignidade nacional. E* a conciência nacional que se dirige ao
acusado, com toda a sua autoridade; ignorância, falta de proi­
bição legal expressa, são subterfúgios que lhe pódem desculpar
(44) . Não é o facto que se castiga na sua pessoa, é a intenção de
que o facto, foi a emanação, intenção que de nenhum mòdo co­
meçou com êle, mas que chegou a ser somente visível por esse
motivo; não é a precipitação de um momento de fraqueza, é o
valôr de toda um a vida qüe se pondera e julga.
Por bela, por atrativa que seja a m aneira de tratar os as­
suntos criminais, nem por isso deixa de reconhecer-se que, ape-
zar de sua legitimidade relativa, pertence a um a fase im perfeita
do desenvolvimento do direito. ío m o . essa jurisprudência é, por
sua vez, criada e aplicada a um caso particular (45), dependia a
opinião momentânea do povo "de considerações e influências po­
líticas, em um a palavra, de jnil qualidades que não tinham nada
de comum com a culpabilidade do acusado. Sucede com a con­
ciência nacional, chamada a dar a sua opinião, como com a do
indivíduo, que não se encontra em todos os momentos igualmen­
te dispertada; e, segundo o tempo e as circunstâncias, umas ve­
zes é inais severa e irritável, outra tím ida e indulgente. Excita­
da ou calma, a vindita pública por meios artificiosos, de discur­
sos e réplicas que se'verificavam logicamente na esfera do sen-

(44) Civem, diz Platcner, Z. c ., pag. 8: scire debet ex noíione reipublicae, cui
adscriptus est» quae peccata sint fugienda, si in poenam incurrere n olit. Legem hic
omnino deesse dici nequìt, verum enim vero lex, qua poena infllngitur, est ilia om­
nium civium communis conscientia, quae cum nnoquoque quasi nascitur et adolescit,
ita ut a nemine ignorari possit, qui vinculo reipublicae illigatus teneaiur.
(45) Por exemplo, para satisfazer a vingança popular, Tito Livio, II, 35: se ju -
dicem quisque, se dominum vitae necisque inimici \>id ebani; como meio para fins po­
liticos, por exemplp, XXXVII, 58; III, 59: hoc anno nec diem dici cuiquam nec in vin­
cala duci quemquam suum pàssurus; IV, 41: de doùs acusados pelo mdsxno crime, um
condenado e*outro indenisado e absolvido.
O ESPIRITO DO DIREITO'ROMANO 35

timento, não dava de facto ao acusado a garantia da verdadeira


justiça, isto é, a justiça constante e sem pre igual a si m esm a.
Esta condição não se podia conseguir senão pràticam ente, por
uma separação; seria preciso abolir a liberdade do legislador è
do juiz, subtraindo o direito das influências políticas e da opi­
nião do momento, e realizando a separação do facto e da p er­
sonalidade do autor (46); em um a palavra, era preciso erigir ré-
gras objetivas e traduzi-las em fórm a de lei. Foi o caminho em
que o direito rom ano entrou, no fim da República, e que o m un­
do moderno continuou e não abandonará.

Concluimos, déste exame do direito antigo, que a sua ten­


dência para a fixidez do direito exterior se m anifesta de modos
diferentes, conforme é exercida nas diversas partes do direito.
À’ m edida que o direito privado se deixava guiar por esta ten­
dência, tudo o que se refere ao direito público, a ela se opunha
Encontramos nisto o motivo ,principal do impulso que a cultura
científica do direito privado tomou sôbre a do direito penal.
Quando esta últim a começou a fixar-se nas leis sôbre as ques­
tiones perpetuae, o primeiro já havia, há séculos, conquistado jbl
vantágem da fixidez. E’ preciso acrescentar, por outro lado, a
que esta fixidez do direito penal verificou-se nas condições mais
desfavoráveis, ou seja na dissolução da República.

(46) Esta exposição, de importância tão extraordinaria para o processo, está muito
^bem indicada por G ellius , XIV, 2, que a assinala, a propósito de um litigio que o
mesmo teve que resolver:' ut cognovisse et condemnasse de m o r i b t t non de probatio-
nibus reL.gestae viderer.
II SECÇÂO, — ESPONTANEIDADE INTERNA DO DIREITO

Separação dos elementos externos. — O elemento religioso satisfeito


no fas , o elemento moral e económico na censura. — A censura contra­
peso do direito. — Contraste assinalado entre o direito e a moral.

Inter ea relinquimus, quae ad in ­


dices déos m ittim us.
S eneca de b è n e f., HI, 16.

30. —i P ara aprèciar a; espontaneidade interna .do direito


antigo de Roma, é preciso ter eri! vista, prim eiram ente a dife­
rença entrerò jus e o fas, já explicada (§ 21). A substância reli­
giosa, po que dizia respeito à relação jurídica, adquire no. fãs
úm a existência isolada, vindp o jus a estar completam ente sepa­
r a d o do ponto religioso. Assim o jus póde, sem encontrar obs­
táculos em considerações ou em necessidades religiosas, quais­
quer que fossem, elevar o caratar puram ente hum ano do direito
privado à sua expressão m ais p u ta e acabada. O dualism o des­
sas partes, ou modos do direito, se extende, indubitavelm ente,
além dá Roma prim itiva: já existe nos um brais da história do
direito rom ano propriam ente d ito . Não investigaremos jse esse
dualismo foi, 'então, étnico, ou im portado em Roma pela fusão
dé dois povos, dos quais um havia concebido o direito como fas
e o outro como ju s, ou se foi obra de um só povo. O diréitò
rom ano, enconfrando-o estabelecido, dele tirou um a vantágem
extraordinária, porque o dualismo : imprim ia, desde logó, no esv
pirito romano, idéia do direito que outros muitos povós jám ais
alcançaram , assegurando ao direito privado liberdade completa
de ação e m ovimento,
O que-originàriam ente, existia de elementos religiosos se ha­
via refugiado, por assim dizer, no fas. Depois desta separação*
os outros gérmens e substâncias contidos íio direito e que lhe
eram extranhos, se desprenderam por sua vez e encontram seu
logar ná censura. Nesta, como no fas, o elemento obstruinte
não foi posto de lado, nem afastado incidentalm ente; o instinto
rom ano achou um meio m elhor de assegurar o .direito contra ou­
tros ataques. Êle assinalou a êste elemento, fora do direito pri­
vado, um campo de ação onde éüçontrou a sua plena satisfação.
0 ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 3?
y
seni ter a tentação de buscá-lo no direito ou a- süas expensas.
-■Qual era este elemento? A pròpria censura nos responderá. Ver
jam os um de seus aspectos: o da vigilância dos costumes (*7) ì
Analisemos os casos em que intervinha o censor (474849) . Cómó
tais, citam-se: o perjúrio, o adultério, o divórcio sem ju sta cau­
sa, o celibato, a falta de liuinanidade com os subordinados (com­
preendendo entre êles os escravos), a vida licenciosa, a prodi­
galidade, até o simples luxo, a alteração das relações econômi­
cas, a dé$órdem dos trabalhos agrícolas, a conduta públicá vitu­
perai, como, por exemplo, a cabala do favor popular, o afan das
novidades, a falta desrespeito às autoridades, etc. Esta enu­
m eração indica que o poder do censor não se exercia únicam en­
te sobre factos de im oralidade propriam ente dita, m as ia àté
às ações que podiam" ser consideradas mais como im prudentes
do que imõrais; em um a palavra, ações nas quais o diligens pa-
ter-familias romano tinha o costume de abster-se. O censor não
representava somente os interesses da m oral, mas, também, os
da; economia política pública, oü privada: era a regra personi­
ficada dé moral simples.
.Tais eram os interesses que tivemos em vista, p á ra fá la i
d e Um elemento extranho ao diiéitó, que encontrou a sua satis­
fação na censura. Surpreenderá a palavra extranho; mas pou­
co im porta que a tenhamos escolhido, de vez que nos serve p ára
acentuár, cómo convém, a diferença que existe éíitre êsses inte­
resses e o principio do direito. Não negamos qüe possam exis­
tir, no direito, disposições que devem realizar fins análogos; mas
se essas disposições pretendessem usurpar o prim eiro posto, no
terreno do ditei to, acabariam com ã liberdade* jurídica, e »con­
sequentemente, com a do próprio diréito. A liberdade juridicà
consiste, precisamente, em fazer, por vontade própria, ó que é
m oral e oportuno (4ft) . ' '
Designámos (§ 17) ä censura como uma instituição deriva­
d a da familia, cujo cárater peculiar era a vigilância suprem a que
â gens exercia sobre séüs membros. Mas na constituição da
gentilidade ainda nãò aparece a- separação, que dèpòis se- ehcon>
tra entre a cènsura e o d ire ito . A gens abrangia, sem distinção,
toda a existência m oral, jurídica, política e religiosa dé seus
m em bros. Quando, graças à plebe, o direito privado rom peu
os laços do principio patrício da fam ília (§ 25) ; quando o prin-

(47) A relação dessas funções judiciais <£om as funções económicas do censor,


não é porventura tão acidental como poderia parecer à primeira vistá,. Sob éste as*
:pecto, a censura tinha por objeto dirigir a estatística das forças nacionais;: destas ás
outras funções, aos cuidados das forças nacionais, não haverá senão um passo. Logo,
■essa função não é sómente de natureza económica, mas, também, d e natureza moral.
(48) . Veja-se J a r k e , V ersuch. ,. {Ensaio d e um a exposição do d ire ito crim in al dom
ro m a n o s). B onn , 1824, cap . 2 .
(49) Veja-se § 34.
cipio do direito fez a sua irrupção coiti todà a sua forca, o equi-
líbrio éntre o direito e a moral, até aqui contido no pròprio di­
reito, encontrou, naturalmente, o apoio exterior nó lastro, ou,
contrapeso, da censura, jámais se acreditou que a liberdade, pro­
clam ada'pelo direito, não tivesse lim ites. Nada mais se fizéra-
que transportar do direito o carater que até então nêle se. havia
encerrado. Depois, como antes, considierou-se o m atrim ônio
como sagrado, o pai devia abster-se de tra ta r com crueldade seus
filhos e o proprietário usar de seus bens com prudência e corti
as considerações devidas à sua fam ilia. Mas esta obrigação não
se tinha como dever moral, imposta pelo órgão público do cen­
sor, porque o direito reconhecia a liberdade de fazer o contrá­
rio. A extraordinária extensão que se dá à esta liberdade (§
34), prova a grande confiânça que esta época tinha de sua pró­
pria m oralidade. Basta lançar um olhar sobre a censura, p ara
convencer-se de que essa liberdade, longe de ser uma prova em
favôr da indiferença, em m atéria de m oral, demonstra belissi-
mamente o interesse que tomava o Estado por ela. Se o Estado
deixava à liberdade jurídica um campo de ação tão vasto, era
porque podia fazê-lo, como o confirma a vida da antiguidade.
Aquela época possuia força moral suficiente para usar desta
liberdade com prudência, tendo o censor a autoridade necessá­
ria para reprim ir qualquer abuso, por pequeno que fòsse. Mais
tarde, as restrições legais produziram èsse resultado, caracteri-
sando os diferentes meios de que se' serviram para consegui-lo,
nu m a e noti tra época.
O carater positivo da censura, como protetora da moral, e
carater negativo, de antítese do direito, se manifesta em toda
a estrutura daquela instituição. 0 direito é fixo e escrito, os
costumes, ou os usos, e o sentimento m oral, foram a sua base
rtióvel; do mêsmo modo, a tendência à fixidez, à precisão e, pelas
régras que encontram a sua aplicação na vida, à escrita, não se
descobre no dominio da policia moral do censor, enquanto a vê
manifestar-se, francamente, em todo o mais do mundo romano
(s°). Por que razão não se promulga, como na prática dos Pre- *
tores* um edictum perpetuum, um Código oficial da m oralidade
romana? (*51) . Isso revela novamente o tacto romano, que sou­
be m anter a liberdade dos costumes e do sentimento individual
da moralidade ante a sujeição e objetividade do direito. Esca­
pou a tentação inerente ao carater da censura, enquanto foi ins­
tituição pública, de fixar e de regular os princípios da moral,
entravando assim o livre movimento do pensamento m oral. O

<50) V arrão, de lingua lat., liv. V, pag. 58. Praetorium jus ad legem, censorium
judicium ad eequum aestimabalur.
(51) Citam-se os ¿ditos dos censores sobre certas fôrmas do luxo. P l in io , / / i s ­
toria naturai, liv . V ili, c. 77, 78, 82; liv. XIII, c. 5; mas não temos necessidade de
fazer notar que não correspondem ä questão que aqui se trata.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 39

gênio do Oriente aí sucumbiu. A religiosidade, em Roma, teve


fôrmas fixas, mas não assim a m oralidade rom ana (52) .
A sentença judicial e a censorial são termos opostos, como
a m oral e o direito (53) A prim eira se apôio na base objetiva
da lei, e chega a ser imutável désde que se realiza. O julgam en­
to do censor, ao^contrário, contem a expressão do sentimento
moral subjetivo, sendo suscetível de apelação. A sentença do
juiz traz efeitos jurídicos, a do censor não os tem. Ainda quan­
do êste último haja ordenado, ou proibido, a sua vontade não é
legalmente obrigatória (54) . O meio de que "dispõe, para casti­
gar, ou intim idar, e para coibir, com a am eaça de pena, cor­
responde igualmente ao carater dom inante em toda a censura.
O censor não comina penas que atinjam à fortuna, à liberdade,
ou à pessoa; m as dispõe de um exército auxiliar, cujo sentimen­
to de m oralidade pública ultrajada se m ostra em toda parte,
mésmo sem a censura: a opinião pública. A reprovação geral,
prim eira conseqüência de semelhante ultrage, se traduz, no cen­
sor, pela nota c e n so ria , pela reprovação pública. A isto se acres­
centa, como o sum m um da pena censorial, a exclusão do culpa­
do da comunidade política à que pertence: senado, cavalaria,
tribu, cuja norm a é a privação, de facto, de todas as relações
comuns e livres com que a opinião pública fere espontáneam en­
te, e segundo"o costume, ão indigno.
É evidente que a oposição éntre o direito e a moral, antes
de se m anifestar de fórm a visível, na censura, deve ter residido
já, de um mòdo íntimo, nas idéias jurídicas dos romanos; desta
oposição, como de toda causa interna, não adquire consistência
senão tomando um a fórm a exterior, a qual, por sua vez, reage,
conservando-a e fortalecendo-a. A encarnação da moral, na
censura, perm ite à doutrina e à jurisprudência não perder já-
mais de vista o verdadeiro fim do direito. Nem o jurista, que
desenvolve os princípios jurídicos, déles tira as conseqüências,
nem o juiz, que os aplica, póde inclinar-se a fazer que interve-
nham nêles considerações m orais; nem a povo tãopouco pensa­
va impôr-lhes èsse dever, que pelo censor estava suficientemente
cum prido. Não exageramos, sustentando que o censor contri­
buiu essêncialmente para fazer compreensível o carater e a m is­
são do juiz "romano, tanto a éste como ao povo. Todos, em

(52) A religiosidade e a moralidade podem opôr-se em Roma, como já se dlssé


(§ 25, voi. I).
(53) C icero, pro cluentio, c . 42. M a jo res n o s tr i (a n im a d v e r s ¿on em e t a u c to r ita te m
c a n s o rìa m ) nunqvam ñ equ e ju d ic iu m n o m in a v e r u n t, ñeque p e r ie n d e ut ren i o b serva -
v e r u n t.
(54) Por importante que fòsse a influência do censor e por mais alta consideração
que gozasse, não se atrevería jámais em ter a pretensão de que suas ordens conti­
vessem uma eficacia jurídica; cómo, por exemplo, que a venda de quelquer objeto de
luxo devia ser nula, fundando-se em que o censor proibira, em seus éditos, o comer­
cio de semelhantes artigos de luxo.
^oniáy se babituãram a distinguir a sentença do censor e d;5a l­
ga Men to, do ju W nao oferecendo dúvida alguma a legitim idadè
djesie iUtìmo (5¿j .
Sob este aspecto, a situação do juiz moderno é m uito mais
delicada, porque está m ais fácilm ente exposto a se. deixar jgúiar,
èm suas decisões, pelo sentim ento moral,, e ,até-se lhe G ehs^à paf
se unir e respeitar, com excessivo rigo?:, ö principiò jüridic^;
Esta censura desaparecería, se hoje, com então, se pudesse ápeí-
la r da sentença do ju iz p a ra a do sensor. ■'é'
Os tribunais- eclesiásticos dá Idade Média têm certa seme­
lhança com a censura, porque foram p a ra os tribunais láicòs o
que o censor era com relação ao Pretor v Ambos, espontânea e
independentem ente um do outro, prosseguiam num fim próprio,
esforçando-se em realizá-lo sob o seu ponto de vista especial.
Éste fim, era a pureza m oral da comunidade, que no censor re­
vestia um a cor mais política, enquanto que os tribunais eclesiás­
ticos lhe davam m elhor um carater religioso. Ambòs aplica­
vam , como pena m áxim a, a exclusão da comunidade fpplítieá
ou religiosa) '. Os doiá conciliavam as exigências do d ire ita abs­
trato com as dos costumes e do sentimento m oral. Aindà o qüê
aproxim a a exatidão da comparação, é que na quéda d a censura
e dos, tribunais eclesiásticos, o direito transform ara-se, tendo de
adotar grande num ero de princípios, què fôram "aplicados an­
teriorm ente por essas instituições. Esta modificação do direito
rom àno, depois do desaparecimento, da censura, pertence ao ter­
ceiro sistema, e será explicada mais adiante; mas podemos, des­
de já, advertir que a fixidez e a cláreza do direito ro m an a nada
sofreram com isso. O direito se fixa; o q u e te r ia podido pre-
jüdicá-lo, durante ó trabalho d e,su a fòrmaçãò* sucedeu depois
sem perigo. Os lim ites rigorosos do dirèito não podiam render-
se ào elemento m o ral; por qualquer parte que a invasão déste
irrompesse, encontrava fôrm as fixas e imutáveis, que não ò po­
dia abalar.
A antítese entre o direito e a m oral, que. se encontra no
sen timen toOda m oralidade rom ana, se m anifestava ná censura.
Qual era a causa désta oposição? Em qué consiste o princípio
constitutivo do direito? O qué já considerámos como tál, isto
é, o princípio subjetivo, que mais acima descrevemos (§10-15),
em seus gérmens .originários é o que vamos exam inar, mais de
perto, nêste livro. A esfera jurídica subjetiva é um facto e um
produto do indivíduo; está por tal razão, entregue exclusivamen­
te à sua autonomia, e ainda contra a vontade dêíe, tem o direito
de perm anecer ao abrigo de todos os atentados dirigidos por par- *

<55) Veja-se, v . g ., no exemplo citado , por Gellius , XVI, 2, a argumentação do


demandado; qtiod de utriusque autem vita atque faclis diceretur, frustra id fieri atque
dici; rem enim de petendd pecunia xpud ja-Jicem privatum agi, non àpud Censóses de
ÜOJUBUS.
0 E^PfRI^Ö DO DIRÈTTO ROMANO if

te dos outros individuos* como pélo Estado. Tal era a quin-


tésséncia dò sentimento^jurídico rom ano. A lei das XII tábuas
fêconheçera espressamente esta autonomia* em stia dupla aplica­
ção áòs atòs éntre vivos e äos de última vontade, considerando-
se durante séculos este recoiíhecimento como um a conquista ina-
taéávei. #Más o sentimento romano possuía em si mêsmo um a
m édida determinada dò que era* obrigação jurídica, ou dever
inorai. Não havia obrigação jurídica senão quando se aceitava
^ p rò p rio facto e em fórm a jurídica. Éste criterium, tão como­
do para tudo quanto era jurídico, se aperfeiçoou a ponto de qùe
o: dominio do direito, sua fórtna exterior, bem como em seus
princípios, formava o contraste mais notório com o das obriga-
tcões morais/. Quando um rom ano intentava um a ação, por
exemplo, quando fazia um a promessa, sabia sempre em que ter­
reno, jurídico ou moral, pisava. Que distância tão grande não
"separava, na concepção dos romanos, as promessas jurídicas
obrigatórias das que o eram moralmente, e quanto não se con­
fundem em nossa concepção atual! Um só e mêsmo princípio
hôjê as rege. Toda promessa deve ser m antida, diz-se, e assini
chègou a ser possível prometer^ sem saber, claramente* se alguém
/quer-obrigar-se, jurídicamente, pu apenas: m oralmente. Ös do-v
minios do direito e da m oral não estão atualm ente separados
por limites precisos, reconhecíveis exteriorm ente e que m arquem
necessàriamente a transição de um a outro; enquanto que em
Roma, ao contrário, um abismo os separa. Direito e m oral
eram , aos olhos dos romanos, tèrmos contrários, cuja distinção,
fam iliar à sua inteligência, sem pre a tinham premente, manifes-
tàndo-se-lhes em seu conjunto, bem como em suas aplicações,
mesmo nos mais insignificantes atos da vida. Jám ais os rom a­
nos pretendéram introduzir um a ação para fazer válida úm á
obrigação moral, nem se satisfizeram com esta, quando queriam
c ria r um vinculo jurídico. <
A opinião, que aqui nos serve de ponto de partida, de que
o direito romano antigo levava seu fundam ento em si mêsjno^
contradiz formalmente outra nascida recentemente (5e) . Se­
gundo ésta última, “no conceito dos romanos, a vontade dp povo 56

(56) C. A. Schm idt, Der p rin zip ie lle U ntersch ... {Da diferença dé p rin c ip io s exis-
éentes entre o direito romano e o germ anico ).R o sto ck e S c h w e rin , 1853, pags. 65 e 67.
Nunca se emitiu juizo mais errôneo quç éste sobre o direito romano; e se tivessêmos ne­
cessidade de justificar nossa afirmação, a encontraríamos nas circuntânciàs de- qúe se­
melhantes opiniões continuam atualmente a se emitirem. A falta consiste em \que não
se teve até àqui o costume de estudar semelhantes questões ! gerais-; mas isso não es­
cusa . ineiramente ao autor de que se trata, porque não é tão difícil, com efeito, acudir
As origens nessa questão fundamental para o direito romano. Congratulamô-nos ei *
poder mencionar o apoio que em A h re n s encontrou o nosso modo de vêr, J u r . Énc.
(E nciclopédia do direito), I, pags. 330-352 (1885) e R öder, G rundgedanken.... (Idéias
fun d a m en ta is e im portancia do D ireito rom ano e do D ireito germ anico ), pag. 72 e sc­
emiate? (1855).
Jjß- RUDOLF VON J H ERI N G

era ó único fundamento do direito, sendo completamente extra-


-nha-aos jurisconsultos a idéia de ^ue, acima da vontade do povo,
existía uní poder m oral-que os regia” . P ara provar esta asser­
ção, diz-se que os jurisconsultos romanos designavam o direito
como o produto da vontade do povo, que baseavam a força obri­
gatória do direito Gonsuetudiñário no consentim ento, tácito dos
cidàdãos, que lhes importava 'pouco saber o que impelira a for­
m ar o seu direito de tal ou qual m aneira. Mas a tudo isso se
póde responder simplesmente: quando os jurisconsultos queriam
dar a definição de lei, do direito consuetudinàrio, etc., não ti­
nham nenhum motivo para se deixarem levar por investigações
teóricas sobre os últimos fundamentos do direito. Para todo o
mundo, o fundamento jurídico da validês do direito positivo re­
side no facto de que o direito é a vontade do Estado; mas desta
validês não depende, de mòdo algum, a questão de saber se a
lei corresponde às apreciações individuais do juiz sobre à m ora­
lidade, etc. Mas os romanos, quando deviam designar a vonta­
de do povo, com fundam entoíórm al da validês dos direitos, não
consideravam esta vontade do povo, isto é, o arbitrário, como
princípio do direito; sustentavam a opinião de “que o diréito
nasce no Estado pelai lei”, como se póde provar à evidência.
Lembraremos, desde já, o fas, que, tendo seu fundamento na
vontade dos deuses, opunha, em prinoípio, um a barreira insu­
perável à soberania do povo. Além disso, o próprio jus, como
tudo aquilo que existia e chegava ao Estado romano, não se
apoiava no consentimento dos deuses, mesmo que tivessem por
conteúdo a vontade do povo? Póde-se, certamente, considerar
como form alidade vã, a indagação do consentimento dos deuses
por meio dos auspícios, que não podia restringir a vontade m a­
terial do povo; mas, no fundo, entretanto, resulta implicitamen­
te, reconhecido o facto de que a vontade do povo se subordinava
à vontade divina. E, com .efeito, ocorre frequèntemente que a
vontade do povo teve que se inclinar ante a dos deuses, m ani­
festada por certos sinais. Todo o prim eiro livro dé C ícero so­
bre as leis, está consagrado aò desenvolvimento da idéia de que
só a vontade do povo, ainda quando seja a fórm a do direito, não
é, no entanto, o princípio (57) . Os discursos (58) do orador ro-

(57) Cic. de leg., I, 16: Quod si populorum jus s i s . . . jura constiterer.tur, ju s


esset latrocinar».. jus adulterare... si hcec sufragiis áut sc it is multitudinis probarentur.
V. bid. II. 4, 5.
(58) Cíe pro Caecina. c . 33: Sed quiero abste, putesne si populos jusserit, me
tunm aut item te meum servum esse, id jussum return aique firmum faturum? Pers-
pteis hoe nihil esse. Primum iüud; NON QülDQUID POPÜLUS, jusserit, RATUM
ESSE OP.ORTERE; pro Balbo, c. 13: O jura preeclara atque divinitus jam a principio
Romani nominis a majoribus nostris comperata, ne q u is. . . invitus civitate mutetur,
neve in civitate maneat invitus. Rece sunt enim fundamenta firmissima nostree liber-
tatis, .sui quemque juris et retinendi et dimittendi esse dom inium ; pro domo, c. 30 :
Majores n o str i... de civitate et libertati ea jura sanxorunt, quee nec vis temporum, pee
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 43'

mano fornecem um a série de preceitos eloquentes, com os quais^


reivindica a responsabilidade do direito ih d iv id ü a^ cò n tra a
vontade soberana do povo. Mas, independentem ente avisas opi­
niões dos romanos, basta lançar um olhar sobre o princípio«
subjetivo (§ 10-15), para convencer-nos da falsidade do assèrto
de que tratam os. O limite da m anifestação prática desse prin­
cípio dependia da legislação, e não tinha outro acesso prático
senão o reconhecido por e la . : Mas, assim como seria falso dizei
que a sentença do juiz é o fundam ento e a fonte do direito sub­
jetivo que proclama, pelo motivo de que só existe èsse direito
quando seja reconhecida por uma sentença passada em julgado,,
tàmbém não basta èsse motivo para encontrar o fundam ento do
direito no póder legislativo do povo rom ano (õ9) . Os romanos
não admitem, de fórm a alguma, que o Estado e a legislação crias­
sem o direito. Para êles o direito não existia, porque era lei;
mas que a lei existia, porque era direito. Ò direito concreto,
como o direito abstrato, dão à lei, não a sua existência, mas
unicamente o seu reconhecimento form al (5960) . Entre o antigo-
direito privado, cuja originalidade, espontaneidade, energia e
virilidade do sentimento jurídico individual se descobrem por­
tada parte, e a idéia m oderna que se deu déle, p ara dizer q u e
Roma deveu seu direito unicamente ao Estado, que os princípios
de direito tã o ,sagrados para os romanos, e venerados, como ar­
tigos de fé, em outros povos, vieram a ser em Roma objeto de
pura conveniência popular, arbitràriam ente introduzida e po­
dendo arbitrariam ente desaparecer, existe d£ facto um a contra­
dição das m ais palm ares. Um rom ano da antiguidade julgara
essa apreciação, como o arrebatam ento de um homem, que já-
mais vivêra no sólo romano e que nem sequer ouvisse falar das-
idéias rom anas.

potentia magistratuum, nec res judicata, nec deninque UNIVERSI POPULI ROMANI PO-
TESTÄS, qusé ceteris in rebus est maxima, labefactere possit.
(59) Na teoria dos direitos subjetivos, examinaremps a questão do fundamento-
do direito no sentido objetivo, e estabeleceremos (§ 63-64) que, segundo a opinião dos
romanos, o direito assim entendido sae do próprio indivíduo.
(60) Compare-se, por exemplo, a conhecida passágem de C icero, pro Csecina, e.
26: fundus-a PATRE reliqui potest, ad usucapió fundi, hoc est finis sollicitudinis ac
pericuti litium non a patre reliquitur, sed a legibus. Aquse ductus, haustus, iter, actus-
A PATRE, SED RATA AUCTORITAS HARUM RERUM OMNIUM A JURE CIVILI SU-
M1TÜR.
I ll SECÇÃO. — CONSERVAÇÃO E EXTENSÃO DO
DIREITO ESCRITO

E s ta b ilid a d e d o d ir e ito d a le i d a s X I I t á b u a s . R a z ã o d é s te f e n ô ­
m e n o . A a n t i g a in t e r p r e t a ti o .

A n tiq u ita s p a tr o n a a u c to r ita tis le -


gum .
B aco a V e rulam .

31. — A lei estaciona, a vida progride sempre. Qualquer


qué seja a harm onia prim itiva, que haja reinado entre, a lei e
a vida, chega o instante em que o acordo cèssa e a lei torna-se
incômoda, ou inoportuna. Que fazer? Abrogar, a lei, fazer ou­
tra ínelhor, respohder-nos-ão. Mas o povo romano acha outra
resposta e tom a m elhor partido: o de conservar a lei, fazehdo
desaparecer, ou dim inuir, os inconvenientes qué oferecia, supor­
tando^ os que não póde evitar. Como se explica esta m aneira
de se conduzir?
A relação de um povo com o seu direito, estabelece-se, como
no casamento, de modo perfeitam ente harm ônico; onde existe o
verdadeiro am or, o m atrim ônio não se dissolve com a-prim eira
rixa, òu dificuldade. O dissentimento só fácilm enté im plica se­
paração, onde nãojéxiste senão o carinho passageiro. Um povo
ao qual o direito, em vez de ser-lhe imposto pela força exterior^
ele mesmo o escolheu, e que talvês o tenha conquistado à custa
dè lutas penosas e sangrentas, vê no direito um custoso e ina-
preciável bem, que não sacrifica irrefletidam ente seiíão. quando
já não corresponde a tbdos os seus desejos. A energia da for­
ça moral, vantagem qife só d tempo transm ite à lei, é a recom­
pensa desta fidelidade e desta constância. De outro mòdo su­
cede com as leis que vimos nascer, e, talvês, tenhamos ajudado
a form ar, qüe é-o que se dá com as qué aparecem no presente,
como um capítulo glorioso e distante de nossa própria história.
A piedade filial começa, para as leis, na terceira geração,,
resistindo à lei da consagração que se impõe, por si só, àò ar­
bitrário (61) . A lei não atinge o apogeu de sua força senão

(61) Póde-se analisar a força moral do direito de urna época pelas tabelas de^ mor­
talidade da vida média de suas leis.
Q ESPIRITO DO D IR E Itq ' ROMANO 45
■Ä

quando as leis atravessaram os séculos. Quando as leis Se su-


cedem e se Substituem, rápidamente, perdem , ao rpar do respeito
qué se lhe deve, a sua força e ãütoridade.
A lei das XII tábuas, que fórm a a base do sistema de que
tt-atàmos, oferece, a êste respeito, um exemplo admirável; sua
estabilidade é tão conhecida, que não há necessidade de ipsistir
sobre éste ponto (62) . Mas as razões da estabilidade e a ,im p o rt
tànçia que tem pára o desenvolvimento do direito romano, re ­
clamam exame atento.
Aq espirita conservador do povo r o n f i o ( t § 24), quâli-
,dade qué lhe é própria e que coristitúe a ra ia o geral da fixidéz
das instituições jurídicas romanas, ¿Vieram unir-se outros mo­
tivos particularès, que deram, no momento, à lei das XII tábuas,
uma assinalada estabilidade. Êstes motivos concernem exclu­
sivamente à esta lei, ou, pelo menos, a ela principalhiente se re­
ferem . Em prim eiro logar, figuram as circunstâncias que cer­
cam o seu nascimento. Aquilo que foi gerado com dor, çhega-
nqs a ser mais precioso que o que fácilm ente é adquirido; isto
ç tão. verdadeiro no:m undo físico, como no m oral (6à) . Nãó é
sempre-o conteúdo das leis que decide da sua sorte; as éiréuhs-
tâncias gerais, que acompanham o seu nascimento* exercem
também a sua influência, porque as leis nâscém sob sig n ö s fa -
vorâveis ou nefástos, e a missão do legislador não se lim ita à
escolha de boas sementes, Smas deve escolher o tempo pròpjtciq
para as sementeiras.
A lei das XII tábuas foi um bem dolosamente adquirido. A
recordação das lutas que ela custou, o preço com que sé pagou
ò seu delineamento, conservava-se ná m em ória das geráções que
se sucediam . Não era somente um a lei, um conjunto de dispo­
sições, jurídicas; suas disposições eram, ao mêsmo tempo, direi­
tos no sentido subjetivo. Esta lei era a carta magna, o pala-
dim a dá p lèb e. Um interesse, ou melhor, um a honra de casta
exige, zélosamente, a sua manutenção e guarda.
Ninguém se exalta nem derram a o seu sangue por uma léi-
abstrusa; mas se nos direitos se encontra toda a nossa persona­
lidade, nossa iionra é que sofre lesão, violando ós mesmos direi^
tos. Quando o direito não tira a iixidez e a sua força da consà^
gr ação divinà, como sucede com os povos dp'" Oriente, adquire,
como direito individual de certa classe, ou de determinado
povo (64) (privilégios, liberdade, etc.), m uito m aior eficácia. A

(623 T ito L ivio , em uma passágem bem conhecida, III, 34? díz desta lei: q h i nono
q u o q u e in h o c im m e n s o a lia r a m s u p e r a lia s a c e r v a ta ru m legu m cuzriulo fo n s o m n i»
p u b lic i p r iu a tiq u e est j u r i s . Na época da juventude de Cícero» os meninos aprendiam
de cór a lei das Xll tábuas (de leglb., II, 23). Dois séculos depois, os jurisconsultos-
clássicos ainda a citavam.
, (.63). Èsse ponto se encontra desenvolvido com mais amplitude na obra de J h e r í n g ,
A lu ta p é lo d ir è tto , 3.» ed., pags. 34 e 35.
(64) Em Roma, èsse caráter individual da lei se entende^ com a família ou com
.í; v . 'i,

46 RUDOLF V O N J H E R I NG

Ihistória do direito de todos os povos ocidentais, disso oferece


numerosos exemplos.
O mêsmo sucedeu, em Roma, com a lei das XII tábuas. Mas
.a fixidez e a inviolabilidade que deve às circunstâncias, não
degenerou, de modo algum, em estagnamento, porque subsiste
durante séculos, como a base de todo o direito privado e dó prò-
-cesso civil (*65), sem excluir, não obstante, os progressos alcan­
çados, quér pela doutrina, quér pela prática.
Os romanos chamaram jus civile, no sentido estrito, ao di­
reito que procede dêsse livre desenvolvimento da lei das XII tá­
buas. A cooperação dos jurisconsultos, nesta obra, se denomina.
interpretatio, que não era um a simples explicação da lei, mas,
comò o próprio nome o indica (interpres: conciliador, negocia­
dor), a conciliação do direito escrito com âs exigências da vida.
.Ela compreendia, pois, a preparação do direito com a intenção
4le fazê-lo valêr na justiça, as fórmulas do processo, a sua adap­
tação às relações jurídicas, a confecção dos formulários p ara os
contratos, os atos jurídicos, as disposições de última vontade de
-qualquer espécie, a descoberta de caminhos e meios p a ra tornar
possível, de um mòdo indireto, fins jurídicos, cuja persecução
direta podia ser duvidosa. Para o reconhecimento do princí­
pio da autonomia individual ém suas três aplicações capi­
tais: de atos entre vivos (66), disposições de últim a vontade
(67) e associações (68), a lei abriu, de antemão, vasto campo ao
livre movimento do comércio jurídico, e a jurisprudência velou
p a ra que èsse movimento não se perdesse na incerteza, mas que
fòsse mantido, por vias seguras (§ 47). Com a interpretação
pròpriam ente dita das disposições da lei, a jurisprudência sa-
tisfês as necessidades crescentes da vida, e manteve a lei á altura
dos progressos do tempo. Teremos oportunidade, no curso des­
ta obra (§ 49), de conhecer, com mais exatidão, o carater da in­
terpretação rom ana antiga, e, então, nos convenceremos de que
a jurisprudência, longe de considerar que a sua missão era sub­
m eter-se servilmente aos tèrmos da lei, julgava-se chamada pára
-completar o seu sentido, fazendo-a progredir e dando-lhe maio-

u gens, relativamente à s leis propostas ou obtidas em uma época qualquer por um d t


•seus mémbros. Comparem-se, por exemplo, as expressões de Trro Livio, V, 11: Fori
ita tulit, ut eo anno tribunos plebis Cn. Treboñius esset, qui NOMINI AC FAMILIAR
T>EBITUM PIUESTARE vidretur Trebcnites legis PÁTROCINIUM. Certas familias tinham,
em conseqüência da ação heroica de um dos seus antepassados, uma espécia de po-
1iti ca doméstica muito perfeita.
(65) As disposições do direito público da lei das XII tábuas se fizeram antiquadas
*m conseqüência dos progressos ulteriore da plebe.
(66) Cum nexum faciet mancipiumve, uti lingua nuncupassit, ita jus esto,
(67) Uti legassit super pecunia tutelave, suce rei, ita jus esto.
(68) L. 4, de Colleg. (47-22). Gaio, liv.' 4, ad leg. XII tab. Sodales sunt, qui
ejusdem collegia sunt,, quam Greed ¿xaiQÍav vocant. His autem potestatem fucit lees
^actionem, quam velini, sibi ferre, dvm se quid ex publica lege corrumpant.
O ESPÍRITO DÓ DIREITO ROMANO 47

res alcances. Sem falar da extensão, por analogia, das dispo­


sições de lei (69), há um grande número de casos em que os ju ­
risconsultos introduziram , contrariando os termos da lei, novas
disposições jurídicas, que vieram a ser necessárias com o decor­
re r dos tempos (70), afastando-se, para isso, de interpretações
tradicionais, quando não eram as mais exatas (71) . Em suma, a
lei não era letra m orta, à qual o presente se ligava obstinada­
m ente em recordação do passado. E ra uma força viva, que re­
gulava seus passos com os do tempo. Muitos séculos m ais tar­
de, quando Cícero tinha ante os olhos a árvore magestosa que
a jurisprudência tirára de um frágil ramo, podia entregar-se à
ilusão de que não vira jam ais sôbre a terra um a obra tão perfei­
ta como a lei das XII tábuas (72) ; e, no entanto, não via tudo o
que ela tinha chegado a ser, porque a sua origem desaparecia
ante seus olhos.

(69) Por exemplo, a vocação do patrono à tutela, Ulp., XI, 3.


~(70) Nós chamaríamos, por exemplo, a restrição da sucessão agnaticia das mu­
lheres rio grau das consanguíneas. Gaio, III, § 14-23. Ulpiano , XXVI, 6. P aul . -Sent,
ree. IV, 3. § 22: ...idequ e JURE C iyiL l vocaniana rationedvidetur effectum ; ceterum
lex XII tabularum nulla" discretione sexus cognatos edm ittit. Veja-se tambein L. 120
de V. S. (50-16). Verbis legis XII tabularum . . . latissima potestas tributa vid etu r. . .
sed in interpretation coangustatum est vel legum vel AUTORITATE JURA CONSTI-
TUENTIUM.
(71) Por exemplo', no usucapió-pro herede (G a io , II, § 64: .. .olim ipsee here­
ditates usucapí CREDEBANTUR.... postea creditum est, ipsa hereditates usucapì non,
posse) ; .assim, também, quanto à possibilidade de roubo de cousas imóveis c para
explicar a Impossibilidade do usucapião das res fu rtiva .
(72) Cíe. de orat. I. c. 44: Bibliothecas mehercule omnium philosophorum unus
m ihi videtur XII tabularum libellus, si quis legum fontes et capita viderit, et auto-
jita tis pondere et uttlitatis ubertale saperare..." Quantum p ra stiler nostri majores
prudencia aeteris gentilibus, tum faciliim e intelligentis, si cum illorum Lycurgo et
Oratone et So-one nostras leges conferre volueritis. Incredibile est enim, quam sit
omise ja s civile prater hoc nostrum inconditum ac pcene ridiculum .
IV SEGÇÃO. — SEGURANÇA E INDEPENDÊNCIA PARA A
REALIZAÇÃO DO DIREITO ESCRITO

Princípio da inviolabilidade dos ju r a q u o e stio . — Independência in­


terna e externa da justiça. — Relação da policio e a administração com
a justiça.
M a jo re s n o s tr i a d m ir a b ili cequ itate
n e ea q u in d e m e rip u e re p r iv a tis, quce
a d m o d u m p ú b lic u m , p e r u t in su is f i -
n ib ú s p r o p r iu m ju s tarn tin e b a n i . . . re s
p u b lic a q u à m p r iv a ta h a b e r e n t.
Frontín de aqused, c. 128.

32. — As explicações, que precedem, dem onstram que con­


correram três circunstâncias importantes, p á ra o engrandecimen-
to do direito, no antigo direito privado de Rom a. TaisX/foram :
a codificação, que desde muito cedo lhe deu a espontaneidade
na fórm a; a separação do direito das esferas de ação do fas e da
censüra, que assegurou a espontaneidade do desenvolvimento
dos princípios jurídicos ^e tornou“possível o desenvolvimento dõ
direito privado em toda a sua pureza; e, finalmente, o carater
de inviolabilidade da lei das XII tábuas, que manteve o direito,
durante m uito tempo, sobre um a base fixa e ipquebrantável.
Mas a espontaneidade do direito, nãó sô exige que a sua essên­
cia pòssa ser reconhecida e distinguida exatam ente com a fórm^a
e o fundo d em iatérias conexas. 0 direito existe para se rea­
lizar, e só alcança a sua espontaneidade onde, se realiza em
toda a sua extensão, onde impéra. O im pério do direito é ó triun­
fo sôbre a resistência que lhe opõe a injustiça,Stendo por con­
dição precisa a preponderância da força exterior. E’ necessá­
rio; pois, que esta preponderância sè áche sempre ao lado^ do
direito. A piissao do Estado é a de procurar %gta prepqnde-
rância no íntim o de seus domínios e arrojá-lá ñ iT ip lí|¡^ a do
direito. Atinge o prim eiro fim com o desenvolvimenìx? da vida
política; garante o segundo com a energia e sensibilidade do sen­
timento jurídico nacional. Onde o direito carece de apoio in­
terno do Estado, não tem senão força externa, e é só onde o po­
der público póde tentar ultrajá-lo im punem ente.
O E S P Í R I T O DO D IR E IT O RO M A N O 49

Em Roma* o poder não se atreveu a tanto. Houve duas ten­


tativas, mas produziram a quéda dos culpados. A expulsão dos
reis e dos decenviros ensinou aos poderosos o que custava, em
Roma, espesinhar o direito. Duro, cruel, brutal, no que tinham
em si as fôrm as do direito, se submetiam, de bom grado, à sua
dureza e à sua severidade, porque o sentimento romano era exa-
famente sensível a violação das fôrmas da lei. O coração rom a­
no perm anecia frio ao aspecto do devedor vendido como escravo
ao extrangeiro; ninguém se comovia pela sua situação; mas a
injustiça de um credor contra seu devedor, suscitou um a suble-
vação que não se pôde apasiguar senão pela transform ação com­
pleta do direito das obrigações (73) Quando, mais tarde, para
recuperar interesses duvidosos, um Pretor aconselhou restabe­
lecer um a lei antiga, há muito tempo esquecida, foi morto na
sua própria cadeira pretoria (74) .
Se alguma vês a espontaneidade formal do direito, isto é,
a sua realização inevitável e sem obstáculos foi a expressão da
verdade em alguma parte, fito ocorreu em Roma, e em uma épo­
ca em que a espontaneidad! interna dêssès princípios atingiu ao
m ais alto gráü de deséávolvimento, foi nos tempos mais flore-
centes da República. Esta realização implacável do direito, ofe­
rece um espetáculo elevado e digno de adm iração. Para asse--
gurar a1vitória do direito, sacrificam-se todos os bens, as m ais
naturais inclinações, os sentimentos mais sagrados; as mais po­
derosas considerações foram reprim idas e contrariadas. Bruto,
no começo da República, deu um exemplo imperecível, memo­
rável para os romanos, de um heroísmo semelhante, e de tal ab­
negação, posta ao serviço do direito. Ao lado da'im ágem do
rei* que não soube ensinar a seus filhos os preceitos do direito,
e que expiara, com a proscrieão a sua culpa e a de seus sequa-
zes, Bruto, o m ártir do direito, com a^machada tinta e gotejan­
te de sangue de seu próprio filho, deixou escrito o programa do
porvir. Não podia existir melhor título posto no cabeçalho a
história da República romana, para assinalar o espírito de que
estava possuida, relativamente áó direito.
À prim eira vista, no entanto, èsse título parece falaz e su­
põe que, frequèntemente, o Estado romano fosse infiel a seu
program a. Não era, efetivamente, desmentir èsse programa,
perm itir, pelas riovae tabulae, frustar os direitos dos credores, em
favôr da massa^dos devedores? Responderemos com outra per­
gunta, que já jle m o s como resposta. A implacável realização
do d ií^ |^ á ^ ^ Ç o s tu la d o extremo e mais elevado da idéia ju rí­
dica? I^^P exfste um a finalidade mais alta, ante a qual aquela
deve ceder?

(78) T ito L ivio , Vili, 28.


(74) Veja-se voi. IV, § 62.
RUDOLF VON JH BRING

A tôdos os povos que conhecem, ou conheceram, a opressão,


sob a fórma de escravidão ou sob a de servidão, chega o mo­
mento em que se apercebem da injustiça de semelhante estado^
a sua conciência lhes dita os meios pelos quais deve pôr termo
a èsse mêsmo estado. Mas, se a legislação não póde abolir di­
reitos existentes, terá de respeitar a resistência do particular,
que se opõe á abolição da escravidão, ou da servidão, mêsmo ao
preço de uma completa indenisação. Déste mòdo, a obstina­
r ã o de alguns indivíduos poderia eternisar um a instituição, que
a opinião pública maldiz e condena como ím pia. Semelhante
respeito aos direitos existentes, corresponde à idéia do direito?
Ao contrário, ofende-o. A idéia do direito exige que tôda a in­
justiça, dêsde que a reconheça como tal, deve ser extirpada pela
raiz. Mas, extirpar-se-á a injustiça, q.uando se lim itar a abolir as
disposições do passado e deixa de pé as relações jurídicas, por
meio das quais se realizaram ? São direitos adquiridos, dir-
nos-ão. Certo, mas não são direitos eternos. O passado garan­
tia aquêles direitos, mas não podia garantir que semelhantes
disposições de direito tivessem existência perpétua. Quando o pre­
sente parte as -cadeias do passado, dever-se-á, por isso, condená-lo
a sofrer eternamente as conseqüências? Não. Esses direitos
são para quem os goza, um disfarce exterior; caída a m áscara,
quando desaparecem da vida, as idéias a que devem a sua exis­
tência, sucumbem sob o anátema da história. Invocar em seu
favôr a santidade do direito, é calcar aos pés o próprio direito, é
abusar de seu nome para sustentar injustiças. Sem a abolição
dos direitos existentes (com ou sem indenizarão, esta não é
agora a questão) o progresso do direito é impossível, porque êle
é como Saturno, devora seus próprios filhos (75) .
Mas não somente êsses direitos, que em si mêsmo trazem
o gérmen da morte, são os.que o Estado póde e deve abolir. Póde
o aludido Estado encontra-se no caso de ter que sacrificar, p a ra
conservação de tôdos os indivíduos, o direito de um só, ainda
que èsse direito esteja reconhecido, seja fundado e m ereça apoio.
Quando á salvação do navio o exige, o capitão arroja ao m ar a
carga; o sacrificio de um membro póde ser neçessário, quando
a vida está em perigo. Assim é que o Estado póde e deve agir
contra os direitos1 dos particulares, quando a saúde comum o
exige. Não é somente a lei da necessidade suprema, é um di­
reito fundado na missão do Estado e na posição do indivíduo
relativamente à comunidade. O Estado impõe, com o mêsmo
título, ao particular, o sacrifício de seus bens, como reclam a o
de sua vida contra o inimigo externo. Se é um á lei, para.o Esr
tado indenizar o cidadão pelo primeiro de seus sacrifícios, não *29

(7 5 ) S ô b r c is t e c o n f l i t o d o p a s s a d o d o d i r e i t o , i s t o é , d o s d i e r i t o s q u e ê le fez
s u rg ir, com o d i r e i t o a t u a l , v e ja - s o J h e r i n g , .4 l u t a p e l o d i r e i t o , t e r c e i r a e d i ç ã o v p a g s .
29 e 30.
0 E S P ÍR IT O DO D IREITO ROMANO 51

se lhe póde recusar o direito de exigir os dois ao mesmo tem*


po. Proteger e garantir os direitos do indivíduo isolado, fixar
-aqueles que nascem do conjunto da comunidade, são os dois
deveres ineludíveis do Estado; mas o último é o m ais impor­
tante, e, em caso de conflito, o primeiro é o que se deve cum­
p rir.
Reatêmos, no entanto, o estudo do direito rom ano antigo.
Será certo, como se tem sustentado (nota 56), qüè o povo acre­
ditava não dever respeitar os direitos dos particulares? A his­
toria dá à esta afirmação um desmentido fórm al. Por toda
parte aparecem o respeito e as atenções mais ciosas para os
direitos privados. Mas não basta alegar simplesmentes a in­
violabilidade dos direitos privados (76), é preciso, também, de­
m onstrar que èsse princípio era conhecido na prátida como o
atestam inúmeras provas, em demonstração do qual queremos
reunir algumas; porque a questão, que saibamos, não foi jám ais
tratada com a atenção que merece.
Ocorria, em caso de necessidade, que o Estado exigia os
csòravos para o seu serviço, mas os proprietários eram indeni­
zados do preço (77) O mêsmo sucedia, quando um escravo
prestava bons serviços ao govèrno, por exemplo, quando denun­
ciava um complot, obtinha do Estado a liberdade (78) . Ofere­
ceu-se uma recompensa a quem achasse os supostos livros de
Numa, que o Senado ordenou queim ar (7d) . A expropriação
<ios materiais necessários para construção de ruas e de obras
públicas, se fazia, segundo as prescrições legais, m ediante o pa­
gamento de seu custo (80) . Na expropriação do sólo se prúce-
dia com tanto respeito e atenção que se com prava ao dono toda
a propriedade, ainda quando não se utilizasse mais que um a
parte (81), e nada havia de extraordinário que se renunciasse
inteiram ente à obra^&nte a jnegativa dos possuidores (82) . In-
-------------- \
(76) S ch w epp e, Das rôm . p riv a tr . . . (O Direito romano) , I , . § 1, reuniu algumas
amágens para- provar que os romanos conheciam a necessidade que tinha o Estado de
respeitar os direitos bem adquiridos; mas essas provas são de pouca monta. Efeito
*dc uma contradição chocante, êste autor ensina em outra obra. História do direito, § 15£,
■*‘que sob a relação da extensão do poder do Estado não estava limita/ílo,.“segundo as
¡idéias romanas, mais do que a sua própria vontade. O Estado não via, pois, mais do
•que direitos particulares invioláveis”.
(77) T ito L ivio , XII, 57.
(7 8 ) V a l . M a x ., f», 6, § 8 ; T it o L iv io , X X X II, 2 6 .
(7 9 ) T it o L iv io , L X , 2 9 .
(80) F r o n t ín de aquaed. c. 128.
(81) F r o n t ín d e a q u a e d . c . 128.
(82) T ito L iv io , 40, 51: Impedmenlo operi M. Licinius Crassus, qui per fund um
suiim duci non est passus. Suet. August., c. 56: forum augustus fecit non ausus ex-
torquerc possessoribus provimas dom us. Para dar urna ideia das somas enormes que se
pagavam pela expropriação, é suficiente ter-se em conta que a demolição de uma ba­
silica no Forum custou mais de 15 milhões (Cic., adit, att., IX, 1G), e o terreno do
.Forum Julium mais de 26 inilhões. (Plin. 36, 15, 24).
52 R U D O L F VON JH BRIN' G

denisava-se do daño causado pelos trabalhos públicos1'(8?) aos^


proprietários de prédios ribeirinhos, e em tempo de carestia, s e y
eiiviavam comissionados às provincias para com prar c-ereais,: com
a proibição, áos habitantes destas, de Vendê-los a outros, m as
fixañdo-se, üm preço equitativo (8384) Ás npuilheres que, em caso^
de calamidade publica, punham à disposição dip Estado suas
jóias, recebiam a restituição dessas dádivas. (8^) . Não se ^co­
nhece nenhum exemplo em que o Estado deixasse de satisfazei
ás obrigações que contra ele tinham seus credores. Üm dia, em
conseqüência de um a guerra que acabava de estalar, os cofres
do Estado se viram na impossibilidade dè pagar no dia do venci-
m ento; mas satisfês aos credores, concedendo-lhes terrenos pú­
blicos e reservando-lhes o direito à restituição da sòma devida,
quando as circunstâncias chegassem a ser m ais favoráveis (86) .
A êstes num erosos exemplos de justiça rigorosa, que guiava
o poder supremo nas relações com as pessoas privadas, e que
merece, realm ente,, as laudatorias frases de E r o t i n , colocadas
no princípio déste parágrafo, não se póde opor, que saibamos*;:
nos bons tempos da República, maisTdo qüe um só caso em que
o Estado, sob a pressão das necessidades, separou-se dessá nor­
m a de conduta, e foi quando, áepois dé m uitas tentativas frus­
tradas, ordenou, durante as guerras púnicas, reduzir a taxa d e
juros. Esta m edida, irrepreensível n a fórm a, era, no entanto,
no fundo, um a defraudação parcial dos,direitos dós credores do
Estado (87) . Mas não se deve tira r disso um a prova em apoio
da teoria da onipotência da vontade soberana~do povo de Roma;
basta assinalar que semelhantes medidlas foram tomádas, com
muito mais frequência, em outras partes, que em Roma. Se os
romanos tivessem realm ente acatado essa onipotência, o E stado
teria um meio m uito mais equitativo e mais simples para se li­
b ertar de seus credores. Bastar-lhe-ia decretar que se lhes
désse a garantia dé serem pagos no tôdo, ou em parte. Não nos:
consta que esta prom essa fosse jam ais feita em Roma; o que
é tanto mais significativo, quando, semelhântes pactos eram, fre­
quèntemente, feitos ém favor das dividas privadas, que rece­
biam fo rç a ‘de lei. Daí as nove tabula, de que anteriorm ente
nos ocupámos'. E rám leis que concediam aos devedores p riv ai

(83) Tacit. Ann., 1, 75.


(84) Vejam-se, em apôio do que dissemos, òs textos de Burmannus, Vectigatia po-~
pulì Romani. Leid., 1734, c. 2, pag. 19, 20. Veja-se Tito Lñrio? IV, 12, ura caso de-
fome e carestia, em que .se obrigoií aos detentores a profitari frumentum et vedneré.
quad usu menstruo superesset.
(85) Tito Livio, VI, 4.
(86) Tito Livio, XXXI, 13: medium inter aequum et utile. E* assim que caracte-
risa esta medida. rDO..
(87) P lin ., H. N ., 33, 13: ita quinqué pprtes factae lucri dissolutumque aes alie-
n u m . Dá como razão: cum impesis respublica non sufficerit. Festus exprime-se d a
mèsmo modo: grave a e s ... populus, pressus aere alieno.
0 E S P ÍR IT O DO DIR EITO ROMANO 53

dos a m ora de sua divida, quér pela diminuição dos juros ven­
cidos, quér pela impútação, regulada dé antemão, do pagamen­
to sobré o capital, etc., traziam um prejuízo sensível aos direi­
tos privados. Se se as julgar sob um ponto de vista completa­
m ente abstrato, sem conhecer as circunstâncias que as ocasio-
main e legitimam, só se as póde condenar; mas tomam outro
'aspecto, quando examinadas sob seu verdadeiro momento his­
tórico. Eram sinais, periódicos que tornav)am necessárias as
congestões do organismo social, cuja necessidade tinha, sem
dúvida, origem em um defeito do organismo; mas o defeito era
tão profundam ente inerente ao organismo social de Roma, que
nenhum poder humano poude curá-lo. ' Roma tivera que deixar
de ser Roma! Todas as medidas que tinham por fim a reform a
econômica, por exemplo, o meio duvidoso de proibir em abso­
luto os juros, eram necessariamente impotentes. O defeito con­
sistia na desgraça e na incerteza da sorte econômica das classes
haixas (88), que, arruinadas pela concorrência do trabalho dos
-escravos, e reduzidas a um mesquinho salário, tinham dificul­
dade, .mesmo no tempo de paz, de ganhar o necessário para á
s u a subsistência. Uma interrupção de trabalho, como a m iúde
¡acontecia, por motivo de frequêntes guerras, um a colheita m á,
tim a calamidade pública, bastavam para arro jar homens livres
nas garras dos onzenários. Se se recordar, além disso, o au­
m ento de juros, que na antiguidade se impunha, compreender-
se-á que, apezär da mais severa economia e do aniquilam ento
d a s forças, um empréstimo adquirido em momento de apertura,
p odia chegar a ser o abismo que devorasse o devedor e a toda
sua fam ília. Somente assim se explica o aumento colossal da
-dívida das4classes pobres e a espantosa sorte sob a qüal gemiam,
A dívida era a maldição e a acusação mais am arga que se levan­
tav a contra o sistema do inundo romano, resultando disso, para
o Estado, um a situação política extremam ente grave. Oprimi­
do pela dívida, o devedor, não somente perdia a sua indepen­
dência ej ã sua fortuna privada, mas, também; a espontaneidade
c independência políticas. Devia votar como seu credor lhe*
ordenasse (alguns usurários dispunham, assim, de centenas de
v o to s). Mas, ainda fazendo caso omisso deste facto, a sorte mi­
serável de um a fração numéricamente" muito im portante do po­
vo romanq^fcnstituia, justam ente por não ser merecedora, um a
afronta e um perigo para a comunidade. A tão decantada sa­
gacidade política dos romanos fora totalm ente defeituosa, não
procurando o remédio, quando o mal chegou a atingir propor­
ções ameaçadoras. O Estado adiantava dinheiro aos necessita­
dos (89) ; mas, como não estava sempre em condições de fazê-lo,
-a simples mudança de credor não aliviava a posição dos deve-

(88) Para maiores esclarecimentos, veja-se o .§^ 39;


(89) T ito L ivio , VII, 2 1 .
54 RUDOLF VON JH ER IN G

dores. Então se recorria a um meio censurado, — o de fazèr-


'perder uma parte respeitável aos credores; mas estes, em resu­
midas contas, não perdiam na troca.
Longe de ser um ato afrentosam ente-arbitrário, que um a
parte do povo recebesse dádivas com detrimento da òutra, a pro­
mulgação das novtt tabula foi, em realidade, uma medida dè'
alta justiça social, um ato de conservação para a com unidade
(90). Tal foi, desde logo, a apreciação que dela fizeram os p ró -
prios romanos. O princípio da soberania do povo não consti-
tuiu, de mòdo algum, a seus olhos, a justificação desta m edida;
só viram nela um meio de salvação, pedido e sancionado pela
mais imperiosa necessidade (91) . Mas, se na época da decadên­
cia a consideraram cómo um ato de inexcusável arbitrariedade
e como uma irritante injustiça (92934), foi porque se esqueceram
de sua verdadeira origem.
Compreende-se, pelo que precede, que a aplicação retro -
ativa das leis, prejudicando tão desastrosamente as relações es­
tabelecidas e os direitos adquiridos, fosse, em regra geral, proi­
bida por um disposição formal (9S) .
Ao lado do princípio da inviolabilidade dos direitos jadqui-
ridos, de que já nos ocupámos, existe outro ponto de importân­
cia maior para a livre realização do direito: — a garantia dá:
justiça civil independente, uniforme e) incorruptível (°4). As
instituições exteriores da organização judiciária, as formas d o

(90) Remetemos o leitor, para a justificação detalhada dessas medidas, à opinião


dc N iebV hr , Rôm. Gesch. ( História romana ), tomo II, pag. 23 e s. (a propósito da»;
negociações licinias).
(91) Cícero, dc republ. 2. 3 4 ... quum plebes publica calamilate impendiis debi
litata deficerint, S a l u t is o m n i u m cau sa aliqua sublevatio et medicina quaesita est. Sue-
tonio Jul. Caes., c. 42.
(92) Va. Max., 6, 2, § 12. (Sobre o jurisconsulto Cascellius, que não pôde de­
cidir: de aliqua earum rerum, qtias trium viri dederant, formulam, com pónere... be­
neficia eorum extra o m n e m o rjd in e m i.ec.um ponens). Cicero de offic. 2, c. 22: qui autenr
p o p u l a r e s se esse volunt, ob eanque cauam aut agrariam rem tentant, ut possessores suis
sedibus pellantur aut pecunias creditas debitoribus condonandas putant, ii l a b e f a c t a n t '
f u n d a m e n t a R E iP U B L iC A E . .. deinde acquitatem, quae tollitur om nis, si habere suum cui-
que non licet. Ide enim est proprium civitatis atque urbis, ut sit libera et non sallicitcr
suae rei cujusquc custodia. Alqnc in hac p e r n i c i e r e i p u b i .i c a e , etc. E* difícil admitir
que nos 10 anos que- separam as duas passágens de Cicero, éste pudesse trocar de
idéias, como admite Niebuhr (Historia romana), nota 1347, porque o primeiro se refere-
ao uso, e o segundo, ao abuso do meio. Não podemos compreender como Schmidt
(veja-se nota 56), motiva a idéia que atribúe ao Direito romano, dizendo que “con­
sidera a absorvição do direito civil por ato de poder público como urna perda ocasio­
nada pela vis major ou casus' Ao nosso ver,, exprime o contrário, porque vis major,
casus, assinala, precisamente, a antítese do direito c essa abolução se assinala como-
ato de pura violência.
(93) Por exemplo: .Ve quis post hanc legem rogatavi (L. 1, pr. ad leg. Fale.,.
35, 2), ne quis p o s t h a o (I,. 12, ad leg. Jul. de adult., 48, 5).
(94) A natureza especial da justiça criminal, cm Roma, foi examinada anterior­
mente e não necessitamos voltar ao assunto.
O E S P ÍR IT O DO DIR EITO ROM ANO 55

processo e o fundo do direito, não apresentam , por si, esta garan­


tia. Não suportam necessàriamente a integridade m oral dos jui­
zes. Oferecem, no entanto, certa proteção, mêsmo no lugar onde
os juizes estavam m oralmente corrompidos, tendo por conse­
guinte, um' valor m aior, à medida que a época era menos vi­
ciada. A organização judicial podia estabelecer sôbre bases tais,
um a vez neutralizasse, mais ou menos, as influências legítimas
d o 'p o d er público (revogabilidade ou inam ovibilidade dos jui­
zes, e tc .). Podia, de certo mòdo, expor os juizes a outras vá­
rias influências legítimas (juizes isolados, colégios de juizes,
situação financeira dos magistrados, etc.), sem contar que as
fôrm as do processo deixassem, mais ou mênos. campo à arbi­
trariedade. O ideal, que o antigo processo civil buscava rea­
lizar, era o de um a máquina jurídica: caracteriza-se pela segu­
rança, pela infalível uniformidade e, por conseguinte, também
pela ausência de liberdade. O direito antigo limitava, tanto
quanto possível, a influência da apreciação individaul, a que o
direito posterior deu tão amplo acesso. Isto equivale a preve­
n ir a arbitrariedade. A pessoa do Pretor, a do juiz, que funcio­
nava no processo, eram peças de um mecanismo, cujo movimento
era invariavelmente o mesmo; sem dúvida, o lado puram ente ex­
terior da fórm a era conservado desta m aneira; mas, que garantia
oferecia esta organização para a justiça m aterial? Quanto a pes­
soa do Pretor, basta, para julgá-la, um rápido olhar*, lançado sô­
bre sua posição e sôbre as suas funções; a respeito dos juizes, e,
especialmente, do tribunal de centumviros, ligamos uma impor­
tância especial a ^eu número e à sua organização em colégios;
quanto aos juizes isolados, lembramos a posição social dos jui­
zes inçcritos nas listas (9596), e a influência reservada às partes
na escolha do juiz; e a respeito de todos, recordarem os a publi­
cidade do processo e sua independência de qualquer poder, que
não fosse o da opinião publica, cuja crítica severa já era uma
podérosa garantia. A divisão das funções entre p Pretor e o,
juiz, elemento característico do processo form ulário posterior e
que tem a sua origem no processo déste período, no procedimene
to das ações da lei, não deixa de ter im portância sob o nosso
ponto de vista, se bem que tenha sua origem éntre outras cdfi-
siderações (°6) . Efetivamente, claro está que a organização que
exigia o concurso dos dois magistrados, dim inuía essêncialmen-

(95) Durante todo òste período, foram eleitos entre os senadores. Somente o
arbiter, no sentido antigo, tal como nô-lo indica a lei das XII tábuas, isto é, o perito
que não tem que resolver questões de direito, senão puras questões de Tacto (avalia­
ção de fa^os na r c i v i n d i c a t i o , distribuição dc curso dáguas, divisão de sucessões c
de propriedades), podia ser da plebe.
(96) O. Büi.ow. na sua teoria sôbre as exceções. G i e s s e n , 1868, pags. 285-296, o
primeiro reduz essa divisão do processo in jure c in judicio a uma distinção simples
e perfeitamente fundada, ao nosso ver. (Distinção entre a rcccptibilidadc do processo
e o exame dc seu fundo).
55 ^R tiD Ò trP VON J H B R I N G

tC fepm g'P de um a justiça parcial. A plenitude do poder judi-


ciai;¿^ ta y ä dividida, e mvês de achar-se concentrada em um a
só mãò;' çada um a destas duas pessoas que a ela concorria era
independente da outra, e tinha um a 'realização análoga à que
existía éntre os .tesoureiros dos fundos públicos e os intervento-
res ^ eadã u m -déles-era provido de um a chave diferente, mas hão
podia abrir a caixa-forte sem o concurso de seu colega. ^ O jus
dicer e, do Pretor representava uma dessas chaves; o juiz tinha a
outra com o judicare. O Pretor ligava-se ao juiz por meio da
fórmula, mas não de tal mòdo que àí onde, segundo o sentido da
pergunta, deveria responder sim, não pudesse responder não, e
frustar assim o$ cálculos deshonestos. Mas a censura moral, que
resultava, p a ra os dois magistrados, de sua situação respectiva,
e da latitude garantida às duas partes, de poder, perante o juiz,
censurar, sem reserva, livremente, as decisões do Pretor, exer­
cia talvês um a influência m aior que esta recíproca dependên­
cia jurídica. À fórm ula dadá pelo Pretor vinculava a decisão
do juiz á càusa, m as não a sua decisão à mesma fórm ula. A
parte que se julgava prejudicada por éste, não era forçada, no
momento dos debates, constrangida, pela presença do Pretor, a
acatar a expressão de sua vontade (97) . O processo in judicio
transform ava-se sem esforço em um a crítica do processo in jure.
Por sua vês, o juiz dèvia, em sua decisão, ter em conta que ou­
tro havia feito um processo prelim inar d a causa, da qual já ti­
nha um conhecimento geral. O princípio da irrevogabilidade
jurídica do julgam ento, válidamente feito, não punha, de ne­
nhum mòdo, xobstáculo "à querela da parte dirigida ao Pretor
sobre a origem dá causa e não lhe am parava, de fórm a algumà,
m oralm ente. Èsse princípio não se extendía, em direito, ao
ponto de livrá-lo de toda e qualquer responsabilidade. A amea­
ça da pena de m orte (989) , com efeito* continha o juiz de^eome-
ter o crime mais grave de que podia fazer-se culpado: o de dei­
xar-se subornar por um a das partes. Esta m edida encontrava
^ Correlativo epi outra lei"f"), \que declarava sacer a parte que
executava as- ameaças feitas com intuito de in flu ir no animo
do juiz e tentar violar a sua im parcialidade. Independen temen­
te^ desta sançao, dois meios contribuíam p a ra m anter o juiz no
caminho dò dever. O prim eiro consistia ha faculdade discipli­
n a r do Pretor, que podia, pela multsc dictio e da pignoris capio,
lem brar ao juiz o cumprimento de seus deveres, especialmente
em caso de negligência. O Pretor, mêsmo depois de ter dado a
sua sentença, perm anecia em exercício, ainda que em plano in­
ferior, cómo instância de agravo, p ara os casos que se denegas-

(97) Cic. pro T u ll., § 3 8 ... in JUDITIO queri PRJETORIS IN¡QUATEM, quod
injuria (in formula) non ADDIDERIT.
(98) Çellius, 20, 1, 7.
(99) A lei Valeria do^tno 305; Trro L ivio , UI, 55.
-O E S P íR JT Ô ^ ;b ó M R E ÌT O ROMANO 57

:se ao ofendido justiça, ou retardam ento no julgamento (10| ) . O


segundo 'meio é a conseqüência de uma disposição da lei, em
Virtude da qual o juiz que proferia uma decisão nula (10101), ou
que, por culpa ou m aldade, privada um a das partes de seu di­
reito, se lhe declarava responsável perante a lei, A lei substi­
tuía, assim, o juiz, em, vèz da parte contrária, já fora da càusa:
iiteih suam fecit {102) .
Mais tarde veremos; examinando o fundo do direito, como
isto contribuiu poderosamente para a segurança e uniform ida­
de da administração da justiça.
O que precede, autorizã-nos a concluir, que se encontram
reunidas, no direito antigo, todas as condições necessárias a úm a
boa e uniforme ádministração da justiça. Dois fenômenos éx-
tranhos, no entanto, se nos apresentam, que não concernem à
administração da justiça, senão em sua relação com o poder
público. Nota-se, por outro lado, a suspensão das leis dç pro­
cesso e das obrigações civis contra os funcionários superiores,
durante o tempo de suas funções (103), e, por outro lado, a livre
ação qué se deixa aos magistrados e aos tribunos, na adminis­
tração da justiça. Esta intervenção é absolutamente; contrária
ás nossas idéias m odernas sobre a independência da justiça, Re-
p'ousa no vèto, que correspondia a ditos funcionários nas deci­
sões de seus colegas, contra quem podiam protestar, mas isto
somente nas causas judiciais, em que se tratasse das decisões do
Pretor (104) .

(100) L. 49, § l.° de jud*. (5, 1 ) . . . COGI proñuntiare. Nos ju ditia legitima, que
depoi§ da lei Julia judiciaria ampliou para um ano e meio (G aio . IX, 104), quando o
'retardamento era devido por culpa do juiz, considerava-se como um facto litem suam.
O Pretor podia também fixar um prazo ainda mais curto; arg. L. 32, ibid.
(101) Tal era o caso quando o juiz não correspondia â formula, porque lhe fal­
tava então a força que assegurava ao Pretor com sua fórmula. Segundo os principios
-do processo romano, o demandante nêste caso estava destituido de todo o direito. Efe-
tivamenté, o juiz não podia, uma vez pronunciada a sentença, retificá-la, nem o- de­
mandante intentar uma nova ¿ação. Era então o mesmo juiz declarado responsável,
•colocando-se no lugar da parte adversa. Gaio, IX, 52.
(102) L. 5, § 4 de O. e> A. (44, 7).
(103) A in ju s vocatio não er a possível con tra e le s , sem seu co n sen tim én to . Gel -
iu ü s, 13, § 4.
(104) Veja-se P u c h ta , Cours d ’Institutes, T. 2, § 180, in f. Seria difícil encontrar
um entrave contra as funções do juiz na suspensão temporal de audiência que ordena
o tribuno, no caso mencionado por C icero pro cluenció', c. 27. Não conhecemos nenhum
-outro caso em que um tribuno pu um magistrado tenham turbado o curso do processo
perante o judex. (O PRETOR podia fazê-lo em virtude de seu direito de vigilância,
ou inspeção, mas islo não contradiz o que acabamos de indicar). Os textos que se
•citam (K leller , Rôm. C io ilp r. . . ( Processo civil romano ) , § 82, nota 987) não fala
absolutamente de tribunais civis, mas de magnus imperium IN EADEM JURISDICTIONS.
A lei Rubia, XX, vers. 51, proibe expressamente a intercessão em u mainstancia civil.
.Ainda se i$rae acrescentar que numa questiò perpetua era, pelo menos, inaceitável na
fórma. (Geib, Criminalprozess, pag. 289) se não estava absolutamente proibida pela
¡propria lei. (V., por exemplo, a lex Acilia, c. 21).
58 RUDOLF VON JHBRING

O vèto não podia suspender a sentença do juiz. Dêsde que


éste funcionava num a causa ,era proibida qualquer interferên­
cia por parte de outros funcionários. Na época antiga, nenhum
poder humano podia anular a sentença do juiz; nem o Pretor,
neni. mêsmo o próprio juiz, podiam modificá-la, ou retratar-se.
Assim, não se vê em parte alguma, que saibamos, que na época
antiga um poder, qualquer que fosse, se insurgisse jám ais con­
tra a autoridade de uma sentença judicial. Mas era possível a.
influência indireta dos funcionários extranhos à administração
da justiça, tanto sobre a instrução do processo, como sôbre ou­
tras decisões judiciais do Pretor, sem que existisse motivo al­
gum para fazê-la datar de uma épbca mais avançada. Seme­
lhantes intervenções diminuem de gravidade, quando apenas ti­
nham um valôr negativo, e que podiam aprazar a decisão judi­
cial projetada, mas não substitui-la por outra. Resultava disso,
que o vèto não podia ter força de cousa julgada, e que podia, não
somente ser suspenso pelo sucessor em exercício, como retirado ^
por seu próprio autor. Esta instituição não apresentava, abso­
lutamente, nenhum carater de hostilidade na administração da
justiça. Servia-lhe, ao contrário, de auxiliar, opondo um freio
à parcialidade, ou à injustiça do Pretor. Nos primeiros tempos
da República, o vèto dos tribunos, também aplicado às deci­
sões judiciais dos funcionários patrícios, deveria parecer preci­
so aos olhos da plebe. 'Com4efeito, nesta época, a adm inistra­
ção da justiça, confiada exclusivamente aos patrícios, se achava,
exposta a todas as influências do espirito partidário (105) .
De facto, os romanos eram pouco inclinados a ofender o
império da justiça, ou a entravar a sua independência, como se
demonstra, de um mòdo claro, num assunto em que habitual­
mente se produzem os maiores conflitos entre o poder pública
e o judicial; falamos das relações éntre a justiça, a policia ou a
administração. Enquanto que hoje, por toda parte, a polícia ex-
tende espontaneamente o seu domínio, em Roma, ao contrário,.,
cède uma parte im portante dêsse domínio, à justiçá. As infra­
ções atuais da polícia eram, em Roma, na m aioria dos casos,
objefo da actio popularis, isto é, de um a jurisdição civil perfei-
tamentè regular (106) . O Pretor, bem como o juiz, observam,
rigorosamente, nisto, os princípios do direito civil. O Estado, ou

(105) - E* certo que aqui se confirma novamente a verdade, de que não ha hem
que o abuso não pòssa converter em um mal. Compare-se, por exemplo, o caso citado*
por T ito L ivio, VI, 27, em que os tribunos se opuseram, copi um fim politico, a toda
a execução pessoal, oferecendo assim um dia de descanso à justiça. O Senado tinha o
mesmo poder, e dele usou para acalmar uma efervescência popular: decretou: “nc q u is
m a g istra tu s, q u o d b e lla tu m es^et, jju s de pecu n ia c r e d ila diceret**. Tiro Livio, VI, 31, ou
melhor: u t p r a e t o r e s ... re s in d ie m tr ic c s sim u m d iff e r r e n l, ,iionec, etc. T ito Livio*
XXXIX, 18.
(106) Já demos, mais acima, (§ 17), a nossa opinião sôbre a causa histórica dêsse-
fenómcno. Veja-se, também, III, 337 (edição alemã).
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 5$

o povo, do qual o querelado era tido como representante, (107)


submetia-se inteiram ente à justiça e combatia o acusado com
armas iguais.
O mêsmo sucedia, exatamente, nos outros ram os mais im­
portantes da adm inistração: — o regime dos impostos. Abstra­
ção feita da cobrança do tributimi, ou imposto direto, o Estado
romano praticava, como é sabido, o sistema de arrendám ento
das rendas públicas, dos impostos, dízimos, imposto de trânsito,
etc. Disto resulta, sob o ponto de vista de que nos ocupamos,
a importante conseqüência de que, em logar do Estado ou de
seus empregados, eram os arrendatários do imposto (publicani)
quem os cobravam. Nas demandas, éntre os publícanos e o^
contribuintes, não compareciam o Estado e um a pessoa privada,
mas duas pessoas privadas que deviam estabelecer sua ação, por
via do processo civil ordinário; e como o objeto do processo não
interessava diretam ente ao Estado, a intervenção das autorida­
des administrativas era, portanto, inútil. Os publícanos goza­
vam, no entanto, de um ^favôr não concedido, ordinariám ente,
às pessoas privadas, o da ação privilegiada especial, a lêgis actio
per pignoris capionem, privilégio que lhes era indispensável
e que também era destinado a outros credores (108109) . Mas eístava
compensado pela ação penal, dada à p arte contrária, p ara o
caso de extorsão por parte dos publícanos (10* ) . E’ certo que
um a grande distância separava as partes, sob a relação da influên­
cia e do poder. Na época da decadência da República, como é
sabido, a proponderância, de facto nos províncias, a igualdade

(107) Em várias leis que criaram uma actio popularis, dizia-se’ abertamente : PO­
PULO dare damnas esto, e ejus pecunias PETITIO ei sit, qui volet.
(108) Póde-se, como nós (§ 15), reconhecer o aspecto militar,' religioso ou po­
lítico dos créditos protegidos pela pignoris capio, ou, pelo menos, como Degekkoi.v (Die
lex Hieronica, Berlim, 1861, pag. 97), falar do caratcr püblicd da ação dos arredantá-
rios dc impostos, sem se pôr, por isso, çm contradição com a doutrina que sustenta­
mos. O publicano sequestrava para si, como as outras pessoas designadas por G aio,
IX, 28, e não no interesse do Estado; não o fazia um funcionario público, e o processo
entre êle e o devedor de impostos não coristituia um processo entre o Estado e um
particular. Quando B k th m a n n H o l l w e g , § 10, nota 37, diz: “O publicano não agia
por mandato judicial contra o devedor de contribuições, mas por sua própria auto­
ridade”, insistimos nas nossas explicações sobre esta espécie de legis odio, expostas
no § 15. Ali crêmos haver estabelecido que essa ação não tranca, de ^mòdo algum,
as vias judiciais ao deyedor declarado; mas só êle tinha o inconveniènte de obrigá-lo
a apresentar-se como demandante no processo. Se essa legis actio não contivesse üma
jurisdição judicial eventual, teria passado por uma espécie de processo da legis actio.
O pig nus capere entrava também nas atribuições do magistrado; mas como não tinha
então processo civil ulterior, não se contava, para èsse caso, e coçn razão, entre as
aplicações da pignores capio PER LEGIS ACTIONEM. Tanto assim, que se pôde expli­
car que por, desde á introdução do processo formulário, essa legis adio póde trans-
formar-se em uma actio fictitia ordinária. Gaio, IV, 32.
(109) Sobre essa ação,-veja-se Cícero em Varrão, III, 11; G aio, IV, § 28, 32. Tit.
Fand de pubi. (39, 4).
ÒÔJ R lf b O L'F V ON J H E*R I Ñ G
. . , V.
jurídica dös cidadãos O10) . Mas não sucedeu o mesmo, na épo­
ca dç que nos ocupamos, nem em Roma, nem na Ita lia . 'Q ualquer
qde seja, além disso, o facto da subordinação jurídica Úó regime
dös impostos à justiça, subsiste e não apresenta, por essá razão,
menos interesse,
0 Estado procurava., igualmente, no que e ra possiyeí; còlo-
c ar nas mãos de um a pessoa privada a arrecadação dè outros
créditos que tinha contra diversos p articu lares., Agia assim no
interesse próprio e pai-a evitar embaraços não no interesse do
devedor, se bem que obtivesse p ara éste a vanfágem dá igualda­
de, como seu adversário. Mas se êste não era o objeto, pelo me­
nos era um a conseqüência digna de atenção. A pessoa do con­
cessionário de créditos públicos (pr&diator) (n i ), substituindo
o funcionário público, representante do Estado,'dazia desapare­
cer a preponderância que a presença déste pudesse influir na ba­
lança. —
" O Estado, tam bém , fazia ó mêsmo, quando recusava receber
trabalhos^ de em preitada. A obra era, nêste caso, concedida de
növo, com as despezas ocasionadas pelò prim eiro empreiteiro, é
o segundo acionava éste pelas vias ordinárias do direito civil,
afim de cobrar o seu crédito.
O Estado, da m êsm a fórjna, não intervinha na arrecadação
das ordens que dava sobre o aes m ilitare e hordearium, cobran­
ça, que ficava a cargo daqueles a quem se confiava (110*112) . Em
todo caso, apezar dà origem, ou do caráter público do crédito,
o devedör tinha" a possibilidade de demandar* seguindo as vias
do; processo civil ordinário, contra um a pessoa privada* que lhe
-era completam ente igual. Verdade é que existiram certos ca­
sos em que a autoridade pública executava, po r si mêsma, suas
pretençdes contra um a pessoa privada; assim, por exemplo, as
m ultas da p arte condenada no processo per sacramentum, , as
penas disciplinares (mu/íae), as m ultas penais (ptenae pecunia-
rite), p ara o tributum e as cònfiscações (11314) . Conhecemos, tam ­
bém,. outro caso, em que p Estado tinha que se socorrer das fôr­
mas ordinárias ^do processo civil, isto é,* das demandas sobre a
propriedade O*4) .
(110) Quanta audacias, escre v e U lpÌ ano , fa la n d o d e s u a ép o ca (2 .1 2 ^ p r . de
p u b l ic .) , quanta tem eritatis sint publicanorum factiones, nemo est qui nesciat; iccirco
P ra to r ad compesccndam eorum, audaciam heç edictum p ropo su it. {
7 (IH ) P rades vendere se relaciona à esta especie de venda de créditos do E&tador;
V. sobre éste assunto, R u d o b ff , E ,st. rom .. Il, 308.
(11 2 ) G àio, IV, 2 7 . f ' N
(113) Veja-se, sobre éste caso, B e th m a n n H o l lw e g , l. c ., pags. 95 a 09 a Ru-
sòBFF, l. c., pag. 307; sobre a jurisprudência administrativa romana cm geral. T h .
M om m sen, Rôm. S taatsr., 1, pags. 119 a 121. A realização das totalidades confiscadas
se fazia por m eio da venda de pessoas privadas {sectores), R u d o b f f ,' i . c .
(114) Assim resulta das vin dica secundam poputum . F estu s , veja-se vindicice.
Igualmente sucede com os litígios sôbre as*lindes. B etelmann H olweg, l . c ., pag. 100,
nota 53. 1
f
O. S P Ì R I T O DO DIREITO ROMANO 61

Outros fenômenos, singularmente característicos, sob o pon­


to ,.de vista de que nos ocupamos, é a predileção dos romanos
p ara que se decidissem, pelas pias dò processo civil, ações que
em si mésmas não tinham carater civil algum. A sponsio pr&-
judiciaiis (lí5)., oferecia-lhes uma fórma de extensão ilim itada.
0 oferecimento dá spònsio podia não ser aceito, mas.-acarretava
no entanto, certas espécies de obrigação m oral. Não som ente'
as' pessoas privadas, mas os funcionários entre si (*116) e os fun­
cionários contra as pessoas privadas (117), ou, reciprocamente,
estes contra aquêles, usavam deste meio para deter, pela con­
firm ação em juizo de um meio de escusa, o curso de um a m edi­
da iminente (118) . Este meio, também, serviu para tornar certo o
fundam ento de uma acusação, afim de convencer alguém de< um
delito, sem o judicium publicum, ou com este, p ara decidir as
contendas políticas, etc. (119120) .
Se os romanos tendem a dilatar o principio dó processo ch-
vil, não levam, no entanto, esta tendência ao ponto de que os
funcionários devessem submeter ao conhecimento da justiça as
controvérsias sobre a sua competência, ou a legitimidade de suas
decisões postais em dúvida. . Existe um a jurisdição especial para
eles, fó rà .d a jurisdição ordinária. Assim, quando se contesta a
validade das sentenças criminais dos funcionários, ou quando,
no térm ino do mandato, se lhe pedia contas de sua conduta, por
abuso de poder, tinham, para conhecer do caso, a assemblèa do
povo. A intervenção de seus colegas era um segundo meio de
controle, que se exercia sôbre todas as espécies de atos executa­
dos pelos funcionários. Essas garantias eram tão eficazes que
a exclusão dos meios ordinários não tinha im portância. Acres-
cente-se a isto, também, o princípio de que as decisões dos fun­
cionários careciam de autoridade de cousa julgada e podiam, por
conseguinte, ser retiradas, tanto por setfs autores como por seus
sucessores. A execução do ato podia, pois, xtrazer, peri eoam en­
te,. como conseqüência, a pèrda de um direito privado de facto,
m ás nunca de direito (12° ) .

v (115) R t jd o r ff , Rôm. R . G ., II, § 2 8 .


(116) ’Veja-se* o exem plo d ad o p o r V aler. Max ., 2, 8, 2, d e u m a aposta sôbre
a s h o n ra s d a v itó ria .
(117) Tito Livio, m , 56, 57.
(118) Val. Max., 6, 1, 10.
(119) K eller, Ciuilprozess (Processo Civil), § 26 e os semestria, citados por èsse
autor.
(120) Daremos a prova disto no capitulo sobre o fundamento do direito (voi. IV).
CAPÍTULO I I

Espirito de Igualdade

Igualdade de facto e de direito. — Sistema de generalisação. — Di­


ferenças jurídicas e desigualdades perante a lei. — Natureza da antiga
igualdade romana. — Suas manifestações no direito público e no direito
privado. — Distinção das pessôasi e das cousas. — Situação do juiz. —
Computação dQ tempo e dos danos e prejuizos. — Importância permanente
da força de igualdade no direito romano.

A e q u ita te c o n stitu e n d a su m m o s cu m
in fim is p a ri ju r e v e tin e b a t. Jus e v im
se m p e r e s t qucesitu m cequabile, ñ eq u e
e n im a lite r e s s e t ju s .
Cíe. de off. n , 12.

33. — A segunda e terceira de nossas tendências fundam en­


tais trazem o nome de duas verdades idênticas que, ha mais de
meio século, agitam o mundo. A liberdade e a igualdade, santo
e senha de tudo quanto existe de grande e nobre, são, também,
o grito de guerra da m ultidão selvágem. Despertando idéias sobe-
jamente extravagantes e recordações sumamente odiosas, parecem
pouco apropriadas para servir de base a um exame imparcial do
antigo Direito romano. Dêle muito nos distanciamos em tal ter­
reno e, não obstante, somente essas palavras, que nos chegam com
p fragor dos tumultos, são hecessárias. O audacioso abuso qüe
delas se fez, e ainda se faz, não nos deve impedir de proclama^
as idéias que encerram, essenciaknente suas, como as mais ele­
vadas e nobres que o direito reinvindica. Para consegui-lo, é
necessário entender o último sentido, sob o qual devem preo­
cupar-nos, aproveitando, assim, com o devido carinho, a oca­
sião de aprender do povo romano, como uma nação cheia de ca-
rater e sensatês política soube compreender essas idéias, e que
proveito delas tirou.
A natureza, no mundo físico, e a história, no mundo moral,
produzem diàriam ente desigualdades, correspondendo mais va­
riantes das prim eiras ao maior desenvolvimento da força. Tal
O ESPÍRITO, DO DIREITO ROMA'NO 63

é a intensidade da vida em a natureza e na historia, que, com


pequeno número de elementos primordiais, produzem as mais
diversas e abundantes criações de imágens. Se esta diversidade
e desigualdade pudessem desaparecer, a natureza e a história fi­
cariam condenadas à imobilidade e à m orte. Relativamente
à natureza, esta não manifesta èsse desejo; mas o exprime a
jniude e o exprim irá sempre no mundo m oral. Vêm-se verda­
deiras contradições com a liberdade e com a verdadeira justiça,
em tpdas essas desigualdades de classe, de estado e de fortuna,
etc., sobre.as condições dos indivíduos, resultado inevitável da
história. Desejou-se que desaparecessem ante a idéia da igual­
dade abstrata, sendo a prim eira tentativa conhecida na história,
para realizar um a idéia semelhànte, a da legislação de Licurgo,
que queria a igualdade efetiva dos cidadãos de E sparta: não
somente a igualdade jurídica, senão, também, a pessoal e social;
a igualdade na educação, no mòdo de viver e n a ‘fortuna. Mas
uma igualdade assim, legalmente imposta, não podia ser reali­
zada senão sobre o próprio túmulo da liberdade. Era um manto
republicano que cobria a mais extrema tirania; a mais amarga
sátira da verdadeira liberdade, porque desconhecia e inutiliza­
va o mais rudim entar direito do indivíduo, ou seja a do livre
desenvolvimento de sua individüalidade.
O mêsmo sucedia com a idéia da liberdade, concepção que
na história m oderna esplodiu, sob uma fórm a espantosa, na
guerra do livre exame, e que, mais tarde, na Revolução ^france­
sa, deu início ao seu dram a sangrento.
Depois de tão dolorosas experiências, poderemos ainda re~
conhecer o princípio da igualdade? Não será preciso abando­
ná-lo, dêsde lógo, como um isonho proclamado pela história como
irrealisável? O povo romano fornecerá a resposta. A igual­
dade que queriam os romanos, nada tinha de comum com a de
Licurgo, e os modernos apóstolos dá igualdade se veriam tão
desenganados e descontentes, na antiga Roma, como o estão atual­
m ente na Inglaterra e na livre América.
A igualdade rom ana vai de mãos dadas com a verdadeira
liberdade, e, conseguintemente, com o movimento fecundo das
desigualdades da história, podendo ser considerada como ema­
nação da própria liberdade. Em Roma, tudo o que é dotado de
força viva, deve desenvolver-se livremente, porque a igualdade
rom ana nãç queria que um a lei favorecesse "artificialmente um a
força em detrimento de outras. A desigualdade do resultado,
derivação natural da diferença de forças, e, como conseqüência,
o fim-do Estado, não tem para os romanos itada de ofensivo. A
desigualdade na posição social, na ciasse, no estado, na honra,
na influência política, etc., não pareciam ao rom ano uma trans­
gressão ao princípio republicano, mas, de bom grado, acolhiam
com respeito todas essas vantagens. Não existe, na história ro ­
m ana, nenhum vestígio dêsse ódio violento contra os ricos, que
soroca ña época ^m^epixä^ p ö r^ e,
^ ^ ^ ^ |^ |^ 4 i |é í É f e ¿ s éram a produto uaturál
íá’c . n í » r a t P r T niáH íi f p w i íí> n H i f i s a s ;' 5sÕ.'W ó c

pode transform àr-se em odió, é xáôcõf copi^á¿bs;


rxKoà^;-e)-o: fan tasm a“ dé urna falsa e paradoxal igualdade pode
èiícpÂterár açésso ñas m assas. Ura povo verdàdçiram énte livre,,
nada tém a tem er. ^
i A igualdade perante a lei é a emanação da idéia da justiça:
tudo o cfue¿ ’p or_sita natureza, é igual, deve ser tratado igualmen­
te pela lei:* Mas, que é igualdade? O Direito romano antigo,
tai cómo o m oderno, se esforça por estabelecer a igualdade
(tequTfi jus, ^quitas) (12d), mas existe um abismo éntre a igual-
dadé^ 310‘eoncéito do direito novo é á tequilas-jio direito antigo.
Mgsíe / senti do é que T atito (*122> cham a a legislação das XII tá-
^^a ^fim ¿ ¡te q ú i júris, igualdade extrem ada no; direito, e x p re s s ^
q u e 2ò direito posterior se apropriou exclusivamente, sérvindo-se^
déla, para con trapo-la, como direito equitativo, à do direitof^H
trito {strictlím jüsy d a época antiga. ~À idéia que a épocá"pos­
terior tinha desse direito^ estrito, exprime-p a célebre ,m áxim a:
Sum m um jus' sum m a injúria (123) , que form ula contra a tendêh-:
j3ia igúalitáf ia do velho d jre ito a censura de ter, como consequent
')âá^ a;;mais p t r e r M : desigualdade. Mas a equidade/ tal como
JaJJçíiténdeu o direito posterior, também, apreciava, em sentido
inverso, h á época antiga, como um desvio d a verdadeira igual­
dade, p o r ser procedente de um a benignidade exagerada, e, nò
entanto, àquela, por sua vez, poderia aparecer ainda muffo .se­
rena à outro qualquer sentimento de-equidade pueril (124) .
'rív-@íi.6 é,cno'entanto, essa igualdade? Donde vem esse feno-
'miepó apezar da tendência constante de todos os tempos p ara
éstabelècer a igualdade no •direito, nele existem diferenças -tão
/lidfávèis,, nos resultados :oí)tidos? De um a dupla causa: um a
m aterial e outra individual. Dêsde logo, as. cousas se níodifi-
cain, por' si m esm as/ no correr dos tempos. E n r vês da cònfor-
m idade^originária das relações da vida do povo, quanto à for-
tuna,.à educação, àtposição pessoal, ao domicílio, à ausência, qu

(%2iy\ \jEquitas, qp.se. 'paribus in causis paria jura desiderai. Cíe. Top., c. 4.
(122) Annal. Ill, 27. No mesmo sentido, segundo Trro L ivio , III, 84, os decen-
viros apiicavam a, lei das XII tábuas: se omnibus summis infimisque jura. ÊXAEQUASSE-
' (Ì23) Cfic. de off. I, 10, 32-: ...E x quo ilu di summum jús ' summa injuria jam
triium sermone proverbium , ou como diz Colu&ela, I, 7: summum*jus antiqui sum­
mum putabant crucem . ‘ /
■'(124) Sobre 6 caxater relativo da noção de equidade, veja-se ThoL, Einleitung.. r
¡Introdução ao direito privado alemão), § 18).
O'ESPIRITO D Ò DIREITO JROMÄNO 65
■í-

à presença, etc?; se produzem entre essasrélações, com o pro­


gresso dá civilização, um a diferença mais e mais clara, çontra
a qual a estabilidade das disposições ^ A n itiy a s , previstas na
sua igualdade de origem, se torba cada vês menos possível. As
disposições jg^uniárilfs,. fixadas pelo antigo direito jem 25, 5¡|X)
e 1-0Q0 asses; chegaram a ser, na época posíferior, de uma im­
possibilidade absoluta. Ó mesmo ocorreu com a igualdade ori­
ginária, cóm relação ao trato com os ausentes e os presentes,
quando o território^ de Roma e o^domínio de seu comércio se
fizeram; cem oií mil^vêses maior. O sentimenito qué produzem
as desigualdades* cresce mais e m ais; e p ara o povo que se aper­
cebe melhor delas, a idéia da justiça vem a ser mais perceptível.
A contradição que o sentiménto jurídico grosseiro apenas no-
tára, aparece para a época adiantada com um sentido mais puro
e decisivo, ainda naquelas relações que, de facto, não se haviam
provido pela m udança das cousas. Tal é ò que" sucede*com a
culpa e a-im putàbilidade.
O caminho, pelo quäl o direito segue e deve seguiri a i g u a l ­
dade, é a generalização O*5), isto é, a form ação de classes e o
èÉ&âbelecimento de regras pelas quais se hao d<? dirigir. Mas
apim enta um perigo que é impossível évitar por completo: o de
tratar igualmente o que realmente é desigual. O direito, nesta
generalização, ao traçar círculos cada vês m ais estreitos, desce
a particularidades, e o périgo sem pre subsiste. Elêsde o momen­
to que a generalização é mais ampla, prodús-se o conflito da
idéia de igualdade em si mêsmà, ou o da injustiçjà,, isto é, que ó
que realm ente é desigual se considera comò iguál, porque a mí­
nima diferença que resulta dó facto da desigualdáde, nãò foi ob­
servada pela lei. Esta diferença sé m anifesta, ordináriám énté,
num caso isolado, ém -que a distinção chega a ser m ais sensível.
Mas* supondo mêsmo que êstè caso dê motivo p a ra estabelecer
um a nova régra, de futuro, èsse mesmo caso será sacrificado à
régra antiga, sé o direito não possuir um meio de reform ar à
sua própria disposição, iuna, correção espontânea do direito, no
caminho dá indi vidualização. Dê-se um direito com o fim de não
suportar èsse conflito da idéia da igualdade consigo mêsma, e a
impossibilidade de um a iniqüidade fica àssègurada por outro
meio, porque a aplicação daquele pode ser calculada de diver­
sas m aneiras : ou melhor, a própria régra revestir-se-á, de an­
temão, de umà elasticidade tal, a poroto de se conform ar com­
pletamente com a iridividualisação do caso concreto (por exem­
plo, a actio injuriarum aeestimatoria, o máximo ou o mínimo
das penas) ; ou diante de um a régra, esguer-se-aFuma outra, des­
tinada a dim inuir a rigides da aplicação da prim eira (restitutio
in integrum do Direito romano, circunstâncias atenuantes) ; ou.*8

(125) T h öl. 1. i} § 37, diz classificação. Tomamos a palavra empregada dá lei


8 de lege. (1. 3): jura non in singulas, sed GENERALITER constitúu'ntur.
66 RUDOLF VON J HERING
% . *, , *
finalmente, um pojäer superior ao do juiz encarregar-se-á da cor­
reção dp direito, s e m règras previamente fixadas. Tal é a c q ie l -
binaçao do poder LegíslWivo e judiciário, criada por um caso es­
pecial, semelharite àv acumulação de ponderes que mais tarde,
exerceu o Eretot e&o Im perador (126), e, J^ualm en^, só em m a­
teria de justiça penal, o soberano (direito de indulto). Mas êste
meio será sepipre m uito arriscado e perigoso. À apreciação ju ­
rídica abandona aquí o terreno sólido da régra jurídica para se
confiar ao elemento instável^das impressões, pessoais; elemento
que, para dizer a* verdade, é o da arbitrariedade, conciente ou
inconciente (m ) .- No direito privado de Roma, (12a), esta ten­
dência para a individüalização se manifesta, pela prim eira vez,
no tercêircT sis tem^a e em completa contradição com o espírito do
direito antigo que lhe interdita, por toda parte, o acesso. O le­
gislador não ppde, jxaja um só caso especial, fazer exceções da
lei, nem fundar nêlè um a régra especial (120), nem o juiz (o Pre­
tor, comedo judex) deve, em um caso isolado, colocar-se fora da
le i. .Tollo o sistema do direito antigo opunha-se a que se dei­
xasse um a amplitude, qualquer que fosse, à interpretação pes­
soal do juiz. A arbitrariedade e a parcialidade pudéram abftr
caminho, acobertadas com o manto da equidade; mas o dkjdto
antigo prefere sacrificar a equidade (expondo-se ás contingên­
cias a que sua igualdade coifduz, unia espécie particular de pro­
duzir uma desigualdade extrema), a não deixar subsistir o pe­
rigo que procurava evitar. Os antigos romanos consideravam
esta eventualidade de mòdo distinto ao nosso. A lógica rígida
que se destaca em sua igualdade, tinha, para êles, alguma cousa
de grandioso; fazia-lhes suportar os resultados que acarreta^
va. O indivíduo á que ela atingia, conformava-se com a supos­
ta iniqüidade da decisão, pelo simples motivo de que a justiça
assim o exigia. Ha, também, no sentimento jurídico, lugar para
o heroísmo e p a ra a covardia. Os romanos não estavam habi­
tuados a sacrificar fins grandiosos às condições do bem-estar in­
dividual. A relação incessante do, direito; a exclusão de toda
parcialidade, de toda arbitráriedade, exerciam tal império sobre
__________ <4?
(126) » Co n st a n t in o , I, Cod. de leg. (1. 4); Inter eequitatem jusque interpositam
nobis et oportet et licet inspicere.
(127) Carater que a jurisprudência romana não dissimula, nem se lhe podia ocul­
tar. Veja-se P aulo na lei 91, § 3 de V. 0 . (45, 1) queestionem de vono et oequo, in
in quo genere perumque SUB JURIS AUTORITATE PERNICIOSE arratur.
(128) Sobre o d|peito criminal, veja-se mais acima.
(129) Assim é, pelo mênos, como Cícero (pro domo, c. 17) entende a célebre
proibição da lei das XII tábuas: uetant XII tabules leges priuis hominibus irrogari, pro
S ex tio , c . 30, de leg., IH, e-. 19; privilegia to llit • No entanto, élè mesmo (de leg. Ill,
23, 58) dá um exemplo contrário. Não trata, é verdade, mais que de uma lei admi­
nistrativa (inhumação no centro da cidade): C. Fabricius virtutis causa solutus legibus.
Veja-se T itò L ivio , XXXIX, 19, outro exemplo, no qual se tratava igualmente do pa­
gamento de uma divida de reconhecimento público.
O ESPÍRITO DO DÍREITO ROMANO 67

% • */
o seu espírito, e o período de justiça arbitrária patriarcal (nota
29), que havia precedido à lei das XII tábuas, lh£s imbuirá tão
profundam ente essas idéias, que as desvantágens ineludíveis ao
sistema foram valorosamente suportadas.
Daí, pois, — e eáfa é um a parte característica do direito an­
tigo, comparado ao direito novo*— o d o m in ic i atai da régra ábs-
trata, a repulsa decidida à toda indiuidualização em direito.
igualdade perante a lei teria ficado, por esta razão, asse-
guracfa? Certamente, que não. vAinda que se opuzéssem obs­
táculos a que, em ^um caso particular, um a desigualdade; uma
exceção à régra pudésse produzir-se, a introdução de uma desi­
gualdade geral perante a lei, como, por exemplo, em^favôr, ou
em detrimento legal de certas classes* não era impossível que
se realizasse. Daí resultou uma distinção importante": a das di­
ferenças e desigualdades jurídicas. E* evidente que a lei póde
e deve dar a conhecer às diferenças jurídicas de certas distin­
ções naturais, existentes éntre os homens e éntre as pousas. A
condição da m ulher reclam a outrás medidas de direito* que a do
homem; a creança, não póde, juridicamente, ser tratada dá mês-
m a m aneira que o adulto; a diferença natural* do objeto, por
exejnplo, sua movibilidade ou imovibilidade, nunca deixará de
ter influência no direito. O mêsmo sucede nas relações politic
cas, necessitando-se uma falta completa de discernim ento e de
conhecimentos históricos para desconhecê-lo. Mas é preciso es­
tabelecer a distinção éntre essas diferenças jurídicas e as. desi­
gualdades perante a lei. Estas últimas são desvios da régra de
direito, e nao de causas m ateriais, nascidas p ara bem do Estado,
ou de diferenças intrínsecas. Só tendem a privilegiar (130) uma
classe de pessoas em prejuizo de outras, e sua razão suprem a
consiste, únicamente, na preponderância social que esta classe
soube exercer sôbre o poder legislativo e que explora no interes­
se egoístico.
Fácil é de vêr que essas irregularidades chocam-se contra a
idéia de justiça; e constituem uma parcialidade e um a tirania
perfeitamente idênticas às de que o juiz poderia tôrnar-se cul-
pável. Se éste não póde favorecer a ninguém, como o poderia
fazer o legislador? Êste, também, não poderia usar do poder
senão no interesse da justiça. Como a igualdade poderia ser
a régra mais elevada e o fim do poder judicial, se não fosse,
também, para o poder legislativo?
Esta distinção éntre as desigualdades e as diferenças jurídi­
cas não é m eram ente ideal; vive, de facto, no sentimento intimo
dos povos, que delas pódem fazer aplicações m uito diversas. A

(13.0) Para abreviar, não falaremos no texto, mas sóinente dos privilégios {privi­
legia favorabilia) por mais que se aplicasse igualmente aos direitos constituidos (pri­
vilegia odiosa).
68 RUDOLF y Ê i* 1J H B- R r N G*
# ,
lei posterior Verá desigualdades irritantes perantré a lei, na dife-
rènça jurídica qúe, em época anterior, parecia surgir de motivo^
internos e externos. A^razáo consiste na dupla, antítese, que
anteriormente assinalámos, já peta diferença m aterial do aspee-
toldas relações Mu vida, já pela irritabilidade e sensibilidade in­
dividuais do sen ta le n to jurídico. Sób este aspecto, nenhum -
povo foi tãd bem dotado de inteligência como os antigos rom a­
nos* onde exféte a m ais completa igualdade, em principo, no
direito privado, é sem distinção de cidade, ou de país, de riqUe-r
za, óu dé penúria, ¿de elevação, ou de hum ildade (131) . A régra
estabelecida não cedia a nenhum motivo ou consideração (assirh*
pôr exemplo, a execução pessoal continúa contra òs parentes*
com o mêsmo rigor que contra os extrânhos) ; as exceções às re­
gras são quasi de$Conhecidas ilo antigo direito. Todas as opi­
niões seguidas pelos romanos e chegadas até nos, são ecos desta
impressão de igualdade que ressalta do antigo direito e espe­
cialmente d a lei dás XII tálmas í 132) .
% O espírito de igualdade dêsse direito e éste é o segundo
elememo p a ra determ iná-lp — se m ánifesta aiiida m ais pela stia
tendência à generalização, nà mais am pla proporção, do mésmo
modo que p o r sua extrem áda repugnância em particularizará
Enquanto que outros direitos, por exemplo, o germânico, tem
mais em vista o elemento da particularidade e d a .especialidade^
descuidando-se do da generalização, o Direito *ròm aho antiga
age em sentido contrário..
Examinemos* no entanto, mais de perto e em seús detalhes,
a igualdade rom ana, prim eiro sób seu carater político é, depois,
em relaçao com o direito privàdo. Dê amboá os pontos de vista*,
a história da lu ta de-patrícios è plébéus contem im portantes en^
siham entos. Quasi não existe um a só página da história d a
direito antigo; onde esta luta não b a já deixado seus traços; acre­
ditamos haver descoberto a sua càusa. A reação foi necessà­
riam ente violenta contra á opressão qüe á preponderância pa­
tricia fez pesar, por muito tempo, sobre os pleheus. Amarga­
mente sentida, a desigualdade veio a dar força nova ao sentia

(131) O direito eclesiástico reclamava para a. v irg o v e s ta tis e o fla m e n djialis uma
modificação do direito privado, consistente na independência do poder, paterno seni.
c a p itis d e m in u tio . — A divindade não consentia impedimentos em seus servidores e,.
?pór isso, não podià tolerar que um poder extranho pesasse sobre êles.v 0 áí, dispen-
sar-se às vestais da tutela à que estayam sujeitas, as outras mulheres (expressamente
vista pela lei das X n tábuas. Gaio, I, 145), e a sua exclusão da sucessão ab in te s ta to ,
tanto ativa como passiva. G e li.., I, 12, 18; mas, ein troca, se lhes reconhecia o direito
dç outorgar testamento. G e l l . , I, 12, 9, è VI, 7. Silencia sobre os privilégios extra-
nhoS. ao direito privado. A situação dessas pessoas faz com que Sen., ad Aen.. XI,
206, diga: le g ib u s n o n té n e tu r .
(132) Remetemos aos textos, já citados, de Cicero^ T ito L ivio è T acito (epigrafe
déste parágrafo e nota 1 2 2 ),
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO

m ento de igualdade, que em sua dôr ßoube encontrar o5mais po­


deroso estim ulante.
Situação tao extrema poude, naturalm ente, produzir catás­
trofes, pois as aspirações mais legítimas podiam degenerar nuína
Vertigem selvágém de igualdade, numa sede fanática de nivela­
mento, como sucedeu depois, na época da Revolução francêsa.
JVlas., de outro mòdo ocorreu em Roma. 0 que a plebe guér e
obtem»é uma assimilação jurídica com os patrícios, a bolição
dos privilégios de castas. ■*Desconhecida era para os romanos a
idéia de que no Estado não deve haver, do pònto de vista ju rí­
dico, nein alto nem baixo, nem divisão, de poder, nem superio­
ridade, nem subordinação. Depois, como antes do acesso dos
pleb ey ^ á m agistratura, aquele que estava revestido desta digni­
dade, se eleva acima do simples cidadão, ‘tanto pela extensão de
seu poder (que muitos de nossos soberanos constitucionais lhe
invejariam ), como pelo respeito de que estava cercado e as hon­
ras dé que gosava. O próprio povo que acabava de escolher,
éntre os seus. Uni magistrado, logo que era eleito, passivgçiente
lhe rendia homenágena e submissão. Por outro lado, a mfagesta-
<te e a dignidade verdaderam ente reais, em que muitos funcio­
nários sabiam colocar-se, por sua conduta, perante o povo, de­
m onstram claram ente o momento, segundo o qual acreditavam
dever opôr-se ao povo. Senhores de um trono e nêle nascidos,
não podiam ter independência mais soberana.
O respeito à Constituição Serviana, durante o período de
que nos ocupamos, deu uma noção ainda mais exata do amor
à igualdade, política, que animava os romanos . Esta Constitui­
ção, como é sabido» fundou a tiinocracia. Nela, a idéia de igual­
dade se realizava de tal fórma, que cada um exercia seus direi­
tos políticos n a medida que participava dos encargos do Estado.
TÈste princípio tinha, naturalm ente, por conseqüência, um a gran­
de desigualdade nos direitos políticos. Ao lado dos comícios
p o r centúrias, e apoiando-se na Constituição, se achavam, tam ­
bém, os comícios por tribus, estabelecidos sob o principio da
çapitação, sé bem que a influência política e o poder realmente
decisivo estàvam, no entanto, reservados, anteriormente, aos pri­
m eiros. Com efeito, fora do poder legislativo, comum, a am ­
bos, e da preponderância da jurisdição criminal, os comícios por
centúrias estavam, exclusivamente, de pòsse do direito de esco­
lh er òs magistrados curules e de decidir sobre a paz e a guerra.
Existia outra m anifestação clãra da conquista da igualdade*
política para os plebeus. Depois da assimilação de castas, o
mais humilde dêstes não tornou a encontrar, juridicamente, ne­
nhum obstáculo que lhe impédisse de se elevar aos postos mais
altos da administração do Estado, e de enobrecer-se e sua fam í­
lia, em conseqüência de seu próprio m érito. O aumento da
fortuna* realizado pela economia e atividade, fazia-lhe desfrutar
Üos benefícios do censo e aumentava-lhe a influência política.
70 RUDOLF VON JHERI NG

Podia, no campo de batalha, ou na cidade, chamar sobre si a


atenção do povò, conquistar a simpatia e ser elevado às mais
insignes honras. Em Roma, como em toda parte, não era só a
capacidade pessoal, mas a oportunidade e a ambição, que aju­
davam a obter o sucesso. Também, em Roma, o passado, isto
é, a familia, a posição oficial, a riqueza, as alianças, etc., em
suma, todas as vantágens do nascimento, exercem, de facto, uma
enorme, influência e fazem concorrência àquêles que de iftnhum
modo á* possuíam. Mas, de direito, a^concurrência era possível.
A honra, a energia, o mérito, vinham paralisar essa preponde­
rância que dava o nascimento; e longe de ser um -obstáculo à
verdadeira força, era o estímulo que duplicava os esforços (133) .
Se o fraco não encontrava nenhum obstáculo jurídico que o
detivesse em sua m archa, não havia nenhum princípio, nenhu­
m a instituição que assegurassem ao poderoso a sua elevada po­
sição. Sómente a êle. competia defender-se. Não havia, em
Roma, essas instituições, fidecomissos de família, feudos, etc.,
com 3ôs quais o direito mais moderno procurou prevenir suas
quédas. Não existiam nenhuma só dessas barreiras que impe­
dem o acesso às culminâncias da sociedade. Em Roma, Gada
cidadão, por si mesmo e sem obstáculos, podia adquirir, ou pèr­
der a nobreza.
Passêmos ao direito privado. Havia em Roma, um direita
geral para todos, sem distinção de casta, de profissão, ou de re­
sidência. Existiam diferenças jurídicas, mas quase todas se
referiam à distinção natural do sexo, da idade, da família, da
movibilidade das coisas, sendo, por assim dizer, quase nula a
influência que exercia o cargo, ou a posição social (134) .
Qual era o motivo? Seria um êrro crêr que o Direito ro­
mano fôra tão defeituosq que não reconhecesse a tendência para
a particularização da^vidá. Toda necessidade jurídica podia

(133) T ito L ivio, XXXIX, 40: omites patricios plebeios que n obilissim arum fa m i -
liaram , M. Porcius longé an tiebat. In hoc viró tanta v is anim i ingeniiqne, ut quocun-
que loco natus esset, fortunam sib i ipse fucturus, fuisse videretur. Quanto às resis­
tencias que encontrava um homo noviis, veja-se, por exemplo, T ito L ivio, IX, 4f>;
XXXII, 57. i. .
(134) A Única exceção que déste ponto oferecem as pessòas eclesiásticas, foi, mais
acima, reconhecido (nota 131). O estado m ilita r, mais tarde, tão ricamente dotado de
privilégios, não .existia como tal nesta época, porque cada cidadão era soldado e o
^ d ireito não tinha-motivo para tratá-los mais favoravelmente, quando estavam cm ar­
mas, que em tempo de paz. O teslam entum in procincto não foi um privilégio, mas um
testamento perante o povo (sob as bandeiras) ; o privilégio da pignoris cap io, reconhe­
cido no interesse do serviço aos ees m ilitare, equestre, hordearium, existia, além disso,
com outros fins. As particularidades do direito comercial romano nascem cm sua
maior parte de uma época posterior. (Por exemplo, o agerc cam com pen saton e do
argentarius. Gaio, IV, § 04 ; o act. rceeptitia dada contra êle, T h op hii.u s, IV, 0, § 3;
a actio contra o socius do argentárius, Auct. ad Heren., II, c. 13; o direito particular
das sociedades de publícanos, L. 59, pr. L. C3, § 3 pro cocio, 17, 2; a actio etcerci-
loria e insti tutoria).
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO W 71
:W-
ser satisfeita; cada classe, cada profissão estava apta a orga­
nizar livremente e segundo as suas necessidades, um a esfera
jurídica, na qual tinha plena liberdade de movim ento. Era
uma conseqüência do princípio de autonomia, reconhecido, em
Roma, em sua mais am pla extensão. O interesse das famílias
nobres exigia, por exemplo, vantagens hereditárias em proveito
dos filhos sôbre as filhas, do primogênito sobre os filhos ime-
diatos;_um testamento feito em cada geração, pelo pai "de fam í­
lia, bastava para assegurar aquêlq interesse. Necessjtava-se,
para as relações comerciais, um vinculo obrigatório muito mais
rigido,» pois os contratántes proviam, por si sós, esta necessidade,
fazendo dela a sua convenção. As corporações que julgavam
dever, se reger pelas régras especiais, eram livres para estabe­
lecê-las apelos seus estatutos (133). Se os esposos, ou outros pa­
rentes próximos, opinavam que á comunhão de bens era o regi­
me que melhor convinha ao estreitamento de seus laços, não en­
contravam nenhum obstáculo em traduzir seu desejo sob a fôr­
ma de uma societas om nium bonorum (135136137) . Póde-se, pois, ad­
m itir que, na antiga Roma, os diversos interesses dè hierarquia,
classe, profissão, etc., procuravam e obtinham, cada um pòr.seu
lado, a respectiva satisfação jurídica; de sorte que o direito,
igual para todos em tese geral, tomava nas relações um aspec­
to típico distinto, segundo a m edida dessas diferentes situações.
Mas esta fecundidade de autonomia, que se lim itava somente às
relações jurídicas concretas e necessárias, apezar da uniformi^
dade de sua reprodução, não produzia régras jurídicas abstra­
tas. Os romanos estabeleciam distinção claríssim a éntre o di­
reito e o uso, éntre o direito, no sentido objeto e o direito, em
sentido subjetivo, ao adm itir um direito de tal classe, ou de tal
profissão, etc.
Foi preciso, entre êles, um a lei,-dürante a época antiga (m ),
para erigir em direito próprio de uma classe os seus usos e cos­
tumes jurídicos. Mas as tendências igualitárias, o próprio es­
pírito do direito antigo, eram contrários à aplicação dêsse meio.
Por que a legislação não se imiscue nos interesses momentâneos
das corporações, ou dos particulares? Por que, por sua própria
força, êsses interesses chegavam a realizar-se em sua fórm a ne­
cessária?
As diferenças jurídicas das pessoas, que se encontram no
direito antigo, têm, sôbre tudo, por fim, como já o dissemos, as

(135) Veja-se nota 6 8 .


(136) Comunhão de bens vitalicios éntre esposos, L. 16, § 3 de alien. (34, 1 );
entre mãe e filha, L. 3, L. 31, § 4 de excus. (27, 1). V a l . Max. 4, § 8 ; PHILARHY-
RIUS ad Virg. Bucol. 3, 90. omnia communio, unanimi frates sicut habere solent.
(137) De outra fórma sucedeu no terceiro sistèma. Póde-se demonstrai* que, ape-
zar da regra de direito, ela só continha o aspecto autonómico constante das relaçõe»
concretas. Veja-sc § 41, nota 493.
72 R .U D 0 LrP V ON J H E R I N G

dÂ^rênçás naturais; são pouco, numerosas e, não têm nçnhuma


iinpuFtancia. Ö princípio da igualdade abstraia parece haver
ähpedido o seu livre e ampió desenvolvimento.
A antítese existente éntre os homens livres e os escravos
déye, desde' logo* sér áfastada. 0 escravo não é, jurídicam en­
te, -tima: pessôá*mem pó de hay er outra distinção de pessôás senão
entre os homens livrea (138) . A circunstância de que ura indi­
víduo dstá, ou não, submetido ao poder d é'o u tro (alieni, ou sui
júris)-:cria a distinção mais im portante na m atéria. O poder
doméstico tinha, no antigo direito, a mesma extensão para to­
das as pessoas a êle subm etidas: m ulher, filhos ou escravos. A
desigualdade natural e norm al que existe na. posição destas pes-
áôas, desaparece, juridicam ente, diante do prestígio dó poder
doméstico. Eram a vida e os usos que m odelavam as^diferen-
ças de seu carater m oral.
Segundo o direito antigo, o sexo não criava nenhum a dife­
rença apreciável, quanto aos filhos submetidos ao pátrio poder.
Os filhos e as filhas herdavam em partes iguais; estavam, em
sua origem, na m esm a lin h a , até naquilo que concernia à des-
herdação ou à preterição (139J . A influência do sexo sobre a
adoção e sobre a em ancipação resultava, não tanto da lei das XII\
tábuas, cómo do sentido dado a um a expressão acidental desta
l e f ( 140) .
Mas onde á posição dos filhos parece ter chegado a ser di­
ferente, foi ao contraírem matrim ônio, porque a filha obtinha,
sob à fórm a dè dos, um a parte da fortuna paterna, enquanto
que o filho nao gosava desta vantágem . Não era; no entanto,
mais do que o princípio da igualdade, que se lhes aplicava. O
matrimônio* no antigo direito, tinha cómo conseqüência a en- '
trada da filha p a ra o poder do m arido e süa saida do poder do
pai, perdendo* assim, ó direlto^à herança déste, enquanto que o
filho a conservava. O dos indenisava a filha d a pèrda dêsse
direito, não sendo m ais do que uma antecipação. Havia, pois,
igualdade entre os dois sexos, no que dependia inteiram ente da
vontade do pai de conservar sèus filhos sob o podèr, ou m a­
num itidos .
Á diferença de sexo fazia^se sentir mais vivamente nó que
dizia respeito às pessoas livres de qualquer poder. Enquanto
que o homem se em ancipava da tutela,- pela sua maioridade* á

(138) In servo tu m c o n d ii ione n ulla est differen do. , § 5 , I, de jure pers. (1, 5).
Veja-se S c h iù d e r , sobre Inst, de exh. lib . ( 2 , 1 3 ) , especialmente: 1.® 4Des-
(1 3 9 )
herdação: L. 4. Cod. dè lib . (6 , 2 8 ) . Scim ùs ANTÈA. om nes interexheeredatos scribere
esse concessum . 2.® Preterição: Seu efeito não estava claramente decretado, diferindo,
na época de C i c e r o . C ic, de orat., I, 3 8 . ^
(140) “ T i l i n s U l p i a n . , X, 1 . . . id enim lex XII ta b . ju b e t patre liber esto.
Como a lei só menciona o f iliu s r entendia-se para as filhas e os. netos sómente uma
venda. Veja-se, além disso, § 49.
■5* O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO /73

m ulher, com excecão da vestal (nota ^1^1), perm anecia nela a


vi dá inteira, e ain3a em caso de viuves, continuava sob a tute­
la de seüs próprios filhos. Não podia nüncá chegar a ser tutp-
ra, não tinha nenhuma potestas sobre seus filhos e era incapáf*
de testemunho solene. £3
Em direito público, a influência do sexo se ^compreende |@fr
si mesma. Á medida que o direito privado ésteve, em súas
origens, intimamente ligado áo direito público, a incapacidade
dó adirei to privado das mulheres foi màis extensa. As4sim se
evidência, notadainente, no que diz respeito aos âtos que pri­
mitivam ente se efetuaram p eran te'as ássembléas do poyo-(1’41).
Mas á capacidade dás mulheres se arhpliou à m edida que se
romperam* os laços que üniam p direito privado ao público, rom ­
pimento que já, no fundo, fora uni facto consumadb no princí­
pio déste período. Sob o império do sistema, dé que ños ocupa­
mos atualmente, não existe apenas um ato fófa da arrogação e,
em parte, do testamento (H2), que as mulheres pudessem em­
preender sem a assistência de seus. tutores .
A influência da idade foi rélativamenté insignificante no
antigo direito. A cura minorum era então desconhecida, sua
influência se limitava à tutela im puberum ; instituição que, mes­
mo muito perfeita, satisfazia a necessidade natural de proteger
os menorès. Fora déste meio de proteção* os princípios gerais
do direito civil sé aplicavam intéiramentè aos pupilos, parti­
cularm ente os princípios sobre a ijiadimissibilidade da represen­
tação. JEsta conseqüência era de um a grande severidade.; O
.pupilo devia agir por si mêsmo; o tutor só lhe dava a aucto-
ritas. Se o pupilo ainda não era capaz de agir por sí, o assunto
ficava sem resolução, porque o tutor não podia representá-lo 142

(141) C é i x i u s , V, 19 ñeque mulier arrogari potest, quonian ET CUM FEMINtS


NULLA COMITIORUM COMMUNIO EST. "
(142) A fórma do testamento com it. cal. se opunha à capacidade de testar, das
mulheres, obstáculo que cessou com o test, per ees et libram , em virtude de que eram
»capazes de mancipatio. Não obstante, conserypu-se a antiga .régra, que só se justifica,
por causas matriais, qué pódem encontrar-se na tendência romana para conservar o
ptrimónio das familias. A sáida da mulhér da familia, à qual pertencia pelo nasci­
mento, e que tinha logar em conseqüência do matrimonio com maims, anula esta con­
sideração. Por outro lado, quando a mulher chegava a ser sui ju ris pela morte de
.seu marido, o testamento podia servir para que recuperasse a fortuna dela a .fa­
milia natural; enquanto que, segundo o direito hereditário ab intestato, aquela hefânça
tinha que recair nos agnados,. seus aliados e nos gentis. 0 testamento podia, pois, na
realidade, prestar á familia èsse serviço que foi, como já vimos (§ 1.7)* causa ori­
ginária do testaménto romano. Assim se explica a disposição mencionada por Cie.
Topic., c. 4, e Gaio, I, § 115, a respeito da mulher que sofreu uma capitis diminutio
(Cic.), ou que contraiu uma cocmptio (Gaio) que só tem testamenti factio. Mais
adiante se encontrou meio de extender a todas as mulheres o testamenti factio, Veja-se,
sobre êste caso, t: IV, § 6 8 .
74 R U D. 0 L F VON J H E R I N; G #

(143) . Qualquer que fosse a urgência das necessidades, nêste


pònto, jám ais o direito romano se determinou em criar urna
execução. Os privilégios, em razão da idade, em m atéria de di­
reito hereditário e o direito de primogenitura, foram sempre des­
conhecidos para o Direito rom ano.-
A diferença das cousas, também, exerceu seujnatural influ­
xo, no Direito Ffomano antigo; mas não é, de mòdo algum, com-
pará vej^ ao que se ^eu ein *oc*a Parte’ Por exemplo, ncK antigo
direito germànico e no direito inglês (143144) . Não há dúvida, dir-
se-á, a respeito das diferenças jurídicas que se tornam necessá­
rias à natureza distinta do objeto; por exemplo, que as servi­
dões prediais não se podem exercer senão sobre cousas imóveis,
que as ações noxais não se aplicam senão aos homens e aos ani­
mais, que um empréstimo não seja possível senão em cousas
fungíveis, que não existe usufruto nas cousas que se consomem.
Sob outro aspecto,' o destino econômico diferente do prxdium
ürbanum e rusticum se m ostra fecundo em resultados, no tercei­
ro período, mas, no que tratamos, não se manifesta com tanta
certeza como nas servidões prediais e na actio aquae pluvae' ar-
cerne, Existe a mêsma antítese éntre a res mancipi e a res nec
mancipi, enigma histórico de que anteriorm ente falámos (§ 10) ;
assim como entre a distinção das cousas em razão do jus ppstli-
m inii, única m aneira em que o Direito romano concede certa
importância aos pe trechos militares (145) . A distinção das cou­
sas móveis não tinhá, no direito antigo, a influência .que se po­
deria crêr à prim eira vista. Se bem que existissem variantes
isoladas, por exemplo, a diferença do tempo exigia pára o usu-

(143) Assim se conciúe da expressão sexagenarias e (da lenda dos senes depontani ,
que a ela se junta (B e c k e r , Handbuch der r o m ., alterh 1 1 , pag. 216). Nessa, idade
cessava, na antiguidade, a obrigação do esrviço miliatr. Veja-se B e c k e r , ib id ; D ireita
novo; 50 anos, veja-se S en eca de brevit vitae, c. 20) ; pelo direito novo, o tempo de
serviço dos senadores. (B e c k e r , 1 1 , 2, pag. 407), a obrigação de casar-se, para os ho­
mens, segundo a lei Papin Poppéa (50 anos para as mulheres) e o pessoal de atender
a conservação dos caminhos e asseio das ruas, segundo a lei Col. Jul. Genet., c. 98
Nesta idade, segundo V arrão (frag, do Nonius et Mere , 523, -ed Gerlach e Rotch, pag:
358), cessava a obrigação de todo serviço público e se obtinha, segundo Anet. ad ,Ibe-
renn, 11, 13, 20, a faculdade de se fazer representar na justiça por um cognitor. A
fixação da idade de setenta anos parece pertencer ao direito novo, e os privilégios que
concedia eram: a dispensa da tutela (L. 2, pr. de exens , 27-1), a imunidade dos en­
cargos comunais pessoais (muñera personalia, L. 2, § 1, de vocat . 50, 5 e L. 5 pr.
de ju re sum m um , 50-6; L. ib id ., L. 2, § 1 de v o ca t ; L. 2, § ult. de decur, 50-2>,.
com exceção do decuriato, de que se eximem na idade de 55 anos, L. 2, § ult. e
L. 11, ib id .
(144) Assim é como se precisa entender Keller, C ivilp ro zess, § 54, a representação
pro tutela das In stitutos (pr. Inst. de iis per quo, 4,10). Omitimos a opinião contrária,
que anteriormente indicámos. Mas se não há necessidade dc admitir a representação
para a infancia m ajor, será isso admissível? Duvidamos, porque no direito antigo não
há nada que seja inútil.
(145) Tal era a idéia da bonorum possessio mencionada nas Pandectas, 35,3, de
bonarum possessione ju rioso, enfanti sunto surdo cteco com petente.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 75

capião (um ou dois anos), esta distinção não ficava despida de


toda im portância. A pòsse (146), a propriedade, o direito hipo­
tecário, o direito hereditário, a obligatio, tam bém são, no fundo,
completamente independentes relativam ente às fôrmas sob as
quais êsses direitos estavam estabelecidos e exercitados, assim
como com relação a sua eficácia m aterial. P ara compreender o
alcance déste assèrto, é preciso lem brar o papel im portante que
os bens de raiz representam no antigo direito germânico; seu va­
lor é tal, que não se póde falar de um direito real diferente para
os imóveis e_para os moveis (147) . A com paração com o D ireita
romano posterior oferece sua utilidade (I48) ; vendo-se novamen­
te, neste exemplo, a natureza do espírito de abstração rom ana
que se eleva acima das distinções naturais das colisas, para apo­
derar-se* da noção abstrata e só se servir dela, repudiando a in ­
fluência do elemento natural. Repiignava à natureza do Direi­
to romano prescindir de uma noção fundam ental, como a pra­
tica o direito germânico, em que as definições se decompõem e
se subdividem’ para se agruparem em torno das distinções n a­
turais, estabelecidas entre as pessôas e as cousas. Podemos;
pois, afirm ar que a tendência da igualdade e da generalização se
assinala, tanto para as pessôas como para as cousas.
Seguiremos, agora, esta idéia num terreno muito im portan­
te, para exam inar a influência que exerceu sobre o juiz (com­
preendendo nela o Pretor). Comparámos, m ais acima, a antiga
administração da justiça civil, a uma máquina jurídica, destinada
*a produzir a transform ação da regra abstrata, em direito con­
creto, com toda precisão, uniformidade e segurança possíveis.
De mòdo que podçr-se-ia chamar ao antigo processo o movimen­
to automático da lei, a legis actio no sentido subjetivo. A ação
do juiz estava estritam ente contida, ou lim itada, não somente*
sob a relação dó processo propriam ente dito (modus proceden-
di)y mas, também, sob o ponto de vista do fundo do direito; de

(146) Nesse direito, mais do que em nenhum outro, o direito ¡mobil se erige em.
sistema. Gu n d e r m a n n , Engl. Privatrecht, voi. I, introdução, XVI e XVII.
(147)- Veja-se, por exemplo, Gerber, deutsches Privatrecht (Direito privarlo-
alemão), § 74. A propriedade romana, ao contrário do usocapião, da hipoteca, etc.
aprelenta, exatamente, as mesmas idéias, tanto para os móvies como para os im óveis.
O que há de mais significativo é que o direito hereditário não fica inteiramente iscntn
de influência desta distinção.
(148) Veja-se c terceiro sistema. Não queremos indicar senão alguns detalhes r
1.® A apreensão clandestina dava, primitivamente, a posse das coisas móveis como das
coisas imóveis; mais tarde, não se deu senão a das coisas móveis, L. 7,47, de poss.
(4í,2). S av ig ny , Possession, § 31,2. 2.°. Um furtum também era possível, primitiva­
mente, para as coisas imóveis (G aio, II, § 51). Geijlius , XI, 18, § 13, &gundo uma
referência de S a b in u s , de furtis: sed fundi quoque et sedium fieri furtum ); no direito
posterior, não o foi. 3.® Proibição de alienar: FUNDUS dotalis, PR/EDIA rustica e
suburbana de pessoa sob tutela. 4.® Necessidade da presença da coisa na imancipação.
abolida mais tarde nas coisas imóveis (G aio, I, § 1 2 1 ... preedia vero abstentia SOLENT'
mancipari) . Voltaremos sobre este ponto, quando tratarmos dos atos jurídicos.
EÜD^OL F V ON JH HR I N G

sorte que toda influência subjetiva ficay^v ^ p a r a d a , nò limite


do possiveí. O processò antigo nãò era sómeiíte a form ula legal
*das disposições do direito, de que faíámõSj iridia aèima, quando
nos referimos à espontaneidade do dirèitò, mas, também, a fixa­
ção das próprias disposições,: :suscetíveis dè dpáa ¿aplicação¿pu­
ram ente mecânica, poupando e, ào mêsmó tefepo,;fproibínà0 ao
juiz o exame daquilo que é puram ente individual, no eáso^sub?
metido^á julgam ento.
Éste ponto de vista, na verdade, decidiu a configuração com­
pleta do d ireito. antigo. Abstração feita da questão da pròva,
onde teve, em todo tempo, grande extensão, o jüiiz romano tinha
sempre, e para tudo, as mãos atadas. Teremos, mais tarde; oca­
sião de nos convencer disso, quanto ao processo, propriam ente
dito. Quanto ao fundó do direito, citaremos alguns exemplos,
que provam èste asserto e que estabelecem claram ente a grande,
diferença que separa, sob esta relação, o direito antigo do direi-
lo novo.
Falêmos, dêsde já, da m aneira de sconsiderar t? lempo¿ sob o
ponto de vista jurídico. Ö direito antigo calculava os termos
contínuos, isto é, os estabelecia arbitràriam ente iguais para to­
d a s'a s pessoas e em tòdas as circunstâncias.
Não tinha em conta as dificuldades qiie podia encontrar o
titular do direito; nem a imopssibiiidade dè observar ós prasos
livrava das conseqüências prejudiciais d a omissão. De outro
mòdo ocorreu com os prasos introduzidos pelo i P retor em suas
instituições, que se contavam utiliter, isto é, dè um mòdo fran­
cam ente individual. O tempo, durante o cpial Um ato não se
podia verificar, não entrava em conta (M®)-. A m udánça de
idéias, que atesta a diferença nó cálculo dos prasos, exerceu
um a influência salutar no direito civil antigo; Umas vêses o
Pretor as corrigia, nos casos de omissão èxcusável, por exémplp,
p o r motivo de ausência necessária, pela restituição integral; ou­
tras, inspirandò-se no espírito novo dà legislação, dilatavam , ou
restrigiam , antecipadam ente, segundo as circunstâncias, os ter­
mos antigós*(15<>) .
Mas isto pertence ao sistema de perdas e danos (litis sesti-
m atío judicial) que, ém nossa opinião,, m anifesta, de um mòdo
jrnais claro, a diferença entre o direito antigo e o direito novo.149

(149) Nas ações pretoriánas: restitutio in integrum e bon. possessio. E*; bem
certo que èsse procedimento favoráyel já existiá. na vida, especialmente na cretio viil-
.garis (Ulp. 22, 31, 32). Mais tarde também passim às leis; veja-se, por exempio, a
Tab.e Salpensana, c. 27, triduo prozum o, quam appéllatio facta erit POTERITQUE
intercedi'. ^
Q56) Por ( xemplo, com relação à* execução; direito da lèi das XII tahuas:
G e l l u j s , N. A ., 20, c ., 1 (30 e 60 d ia s). Direito novo: U l p i a n o , L. 2, de re jud.
24,1) : qui pro Tribunali cognoscit, non semper tempus judicati seruat, sed nonnunquam
■arctat nonnunquam prorogai PRO CAUSAE QUALITATE ET QUANTITATE \E L PER­
SON ARUM OBSEQUIO VEL CONTUMACIA.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 77“

Naquele, as düas idéias opostas, de tendência igualitária abstra­


ta e tendência à individualização, se traduzem pela antítese que
ha entré a zrstimatio objetiva, ou absoluta, e a aestimatilo subje­
tivai pü relativa. Expliquêm o-nos: uma dívida, um dàno, po­
dem ser taxados, simplesmente, segundo ó valor pecuniário çib-
jètiyô ..da €óüsà devida, danificada, ou destruida f 1?1), sem
.ps elementos puram ente individuais dessa relação obrigatórip^
’èhtrein em linha de conta. Ma§ póde, também, ser qife êssel '
eìemeìitps individuais cheguem a ter valor relativo de üm a pres­
tação dàda por determinado demandado a certo demandante, e
de calcular, o prejuízo que resulta para iim patrim ônio determi-:
nado, coni a inêxecução da prestação ou pelo delito- com etido.
A avaliação objetiva levava sempre áo mêsmo resultado qual­
quer que fosse o credor, só tendendo ao objeto imediato deseja­
do. A reação dêsse prejuizo sobre o resto do patrimônio, —
circunstância que, precisamente, em casos particulares, poderia
trazer a modificação na avaliação, —^lhe^ é completamente indi­
ferente. A avaliação relativa, ao contrário, yaria segundo as
circunstâncias* òu modalidades, do facto litigioso, quando tem
pôr objeto tim patrim ônio determinado e aum enta ou dim inuí
.no limite das conseqüências déste facto.
Essa oposição, fundada em a natureza das pousas, èstá igúal-
meftte reconhecida no direito romano. Gértas relações se re­
solvem num cerium (expressão característica da avaliação obje­
tiva), e outras num incertum (avaliação relativa) . Em nossa
firm e convicção, esta oposição ainda não existia no direito anti­
go, qüè só conheceu a avaliação objetiva, tèndo a avaliação re­
lativa nascido no terceiro sistema, Esta afirmação é dé natu­
reza ã ser empiici tarnen te negáda; mas cómo: tém^ ao nossa vêr,
grande importância p a ra a Característica d o direito antigo, so-,
nibs obrigadas a justificá-lá circunstânciadam ente. Qualquer
-que seja, além disso, o resultado déste ensaio de justificação, fa­
remos notar certos tjpaços salientes, e ainda qiie não provemosvó
que pretendemos, não deixará, por isso, de ter utilidade.
Não há duvida que a avaliação absoluta corresponde exata-
m ente à tendência do direito antigo e a ayàliação l'elativa à do
direito novo, e que esta última, transferida ao direito antigo,
seria um fenômeno extranho e completamente isolado que se ^
chocaria com'grande núm ero de contradições. Um juiz rom ano
do tempo antigo, condenado à aplicação mecânica do direito,
sem hábito nem capacidade para exam inar o elemento indivi­
dual, nas relações jurídicas, perder-se-ia no labirinto das .rela­
ções inäteriais puram ente pessoais, ao fazer uso da autoridade
que lhe era proibida em principio. Semelhante hipótesi, é ne-
______ __ **
(151) Nas perdas é danos .segundo a importância objetiva, istó é, segundóla di­
ferença do. preço da coisa, antes e depois do facto. No act. quanti m iporis se encontra
ulna diferença dêsse gènéro.
78 RUDOLF VON JHBRING

cessário confessá-lo, não se póde conciliar com o conceito que


«atribuimos ao direito antigo. O juiz calcula os prazos, servin­
do-se de um a medida igual abstrata, sem que lhe interesse o ele­
mento puram ente individual. Póde admitir-se que, para ava­
liar o equivalente da prestação devida, êle devesse rejeitar essa
m edida e determ inar esse equivalente da prestação, tendo em
conta o interesse de determinado m andante? Já sabemos, no
que diz respeito à oposição éntre o tempus continuum e tempus
utile, que um pertence à época antiga e o outro à época posterior;
dê outro mòdo, em que se dii Prenci aria a avaliação objetiva e
a subjetiva, quando a avaliação era idêntica?
Que outra explicação, além dessa, se póde dar dêsse facto?
E, no entanto, é necessário uma explicação, porque a diferença
para aplicá-las, por compreensível que seja, póde conduzir, como
sucede no direito germânico, a um conflito de opiniões, criado
pela diversidade das épocas, que, fóra disto, é um facto sur­
preendente. A diferença d e situações, dir-se-á, tornou necessà­
ria a diferença de meios; do ponto de vista do comércio ju ríd i­
co, a medida absoluta poude parecer suficiente para certas rela­
ções, dado o fim e suas necessidades; enquanto que nas relações
de outra natureza, que têm outro fim, a necessidade do 'comér­
cio jurídico exigiu a m edida relativa. Um fenômeno" do antigo
-direito, que chamaremos sistema da satisfação indireta dos in­
teresses, demonstra ,a inutilidade de semelhante explicação.
Eis os fundamentos dêsse sistema. A questão de pêrdas e
danos póde résolver-se p o r um meio muito comum. O credor
aceita a promessa do devedor de um a soma determinada para
o caso de que a prestação não seja cum prida em tempo oportu­
no, ou não**o seja totalmente. O objeto déste pacto póde ser o
de obrigar o devedor a executar a obrigação no tempo devido,
ante a perspectiva de uma pena (pena convencional). As p a r­
ates pódem, também, desejar que o acordo anterior sobre'a quan-
Íiá do juro, liberte o credor da prova sôbre êste ponto (152), pro­
va um tanto difícil de fazer. Q creder defenderá, assim, seu
interesse (incertum ), mas a fórm a jurídica, com que atinge èsse
fim, é a do certum. O julgamento do juiz não deve abandonar o
terreno da avaliação objetiva. O comércio jurídico de Roma,
tbem còrno a legislação, seguiam esse caminho. Nà cque diz res­
peito ao prim eiro (153), a época posterior mostra muito am plia­
do o uso da avaliação convencional m ediante prévio lucro.

(152) Os jurisconsultos romanos reconheceram a possibilidade dessas duas h i­


póteses diferentes. Veja-se 4, § 7 de damn, inf.- (39,6). F. Mommsem, Zar Leher
vom Interesse (Teoria das pérdas e danos), pagina 19.
* (153) Existem d isso exemplos em cada pagina d as Pandectas de J u st in l a n o .
Por exemplo, a stipulatio dupla pela depreciação ou evicção da coisa era tão comum
A?ue_.mesmo omitida se supunha existente. L. 31, § 20 de aed. ed. (21-1). L. 37, § 1
.de evict. (21,2). A prática assegurou de antemão a avaliação objetiva das coisas, mc-
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 79

O mêsmo processo recorre a ele com êxito (*154), e o costume


póde ainda mais fácilmente ser admitido p a ra a época antiga,
sendo, além disso* evidente que por este meio a prática soube au­
xiliar, sem inconvenientes especiais, o sistema de avaliação ob­
jetiva. Mas êste meio não podia bastar, quando, segundo a na­
tureza da relação, não erst possível adm itir-se a estipulação pré­
via, por exemplo, em caso de delito, nas reclamações do pupilo
contra o seu tutor, etc. O auxílio da legislaçãq tornou-se. então
necessário. Os princípios estfeitos da avaliação absoliç^ não
puderam, sem a intervenção <ja leb satisfazer o direito nSSural
do interessado. Êste não obtivera senão o valôr objetivo da le­
são e não a reparação das conseqüências prejudiciais desta so­
bre sua pessoa e patrimônio. A legislação, pois, providenciou
pela fórm a acima indicada, garantido um sucedâneo do lucro
para determ inar a base da avaliação objetiva, em regra geral,
mais que suficiente. Os exemplos ditso não são todos conheci­
dos, mas os que chegaram até nós, "bastam para nos convencer
de que não se trata de dispqsições isoladas, mas de um sistema
logicamente seguido
Êste sistema (155) chegou ao seu ponto extremo, com a ta­
rifa pecuniária de certos delitos, por exemplo, as injurias (156),
o corte das árvores alheias (157) . . Èsse meio, no entanto, só era
aplicável em pequeño número de casos. A regra exigia frequèn­
temente que a pena consistisse, em certo núm ero de vêses, no

-diante um pacto sobre o valor taxativo da coisa que devia servir^m ais adiante, a
base, por exemplo, no dos (aestimatió taxationis causa), c, também, ainda quet ra­
ramente, na socie tas, no commodatum, deposition, etc. L. 52, § 3, pro socio (17,3).
L. 7, § 5. L. 52 de don. V. e U. (24,1).
(154) Por exemplo, na fnictus Ucitatio dos interdicta retinendae possesiorìfs
•(Puchta, ínstit. T. 2, § 169); nas estipulações pretoriana«, que os juristas recomendam
muito, se redigem, fixando somas determinadas, L. ult. de praet. stip. (4C,5) :
Quoniam dífficitis ptobatio est, quanti cujiisqiie in tersit.
(155) Encontram-se, no antigo direito, somas fixadas de antemão e iguais para
todas as pessoas* e coisas. Por exemplo, na legis actio sacramento, 50 e 100 asses; na
Lex Furia, 1.000 asses. Não há necessidade de fazer notar que a aparente igualdade/
que se vè nisto, conduzia, de facto, à mais extrema dosdguaIdade. Nada indica: tanto
essa tendência à igualdade abstrata c mecânica do antigo direito, como a circunstância
<le que assim <v*mais ricot como o mais pobre havam de pagar ou receber 25 asses por
uma injúria, sem que a maior ou menor importância das fortunas não exercesse in­
fluência no máximo dos legados, limitado pela lei Furia.
(156) Segundo a lei das XII tábuas, 25 asses pelas lesões corporais graves, 300
asses, se se tratava de um homem livre e 150 asses, se de um escravo.
(157) Vinte e cinco asses, segundo a mesma lei. P l í n i o , H. N . , c . 1. — O di­
reito novo serve-se, igualmente, em muitos casos, dêsse oportuno meio de tarifa, por
-exemplo, L. 42 de aed. act (21,1); L. 3, pr. de term, moto (47,21), etc.
80 äru D O DÊ V ON J H E R I N G

yálôr da colisa lesada (**8) ? oli acrescentava a este valor o de


jostra quantidade objetivam ente determinável (158159) .
Mas este sistema näo sé limitjva àómente^aos delitos; com-
apreendia, ao contrário, relações de toda espécie. Muitas ações
réèperseçutórias ten,di€ini, à prim eira vista, a obter o dobro (160*1623),
por exemplo, a actio :rationibús dislmheñdU, do m enor contra
o tutor (Vfl), a^açãçrde emancipação por falta das dicta promis-
sar ou evicção (182), a actio de tigno juncto contra quem çoncien-
teinente hagria construido com m ateriais alheios. Êm todas ás
actiònes in rem (133), o réu era condenado a pagar o dobro dos
frutos. Outras ações só tendiam ao dobro, quando o réii não
confessava (164), m erecendo atenção especial a- conditio certi pa­
ra a moeda corrente. O credor que tinha interesse em receber,
em tempo oportuno,, a restituição de seu capital, reconhecia o

(158)
O d u plu m , trip lu m , quajdruplum . Por exemplo, na actio fu r ti nec m an ifesti ,
concenti et o b la ti, f u r ti m a n ifesti, e nas ações contra usurarios (Cato
fu r ti
de rè rust. Proacm.), nà D edican o re i religiöses. L . 3, de lintig. (4 4 ,6 ) . (G aio, l i v .
-6 ad Leg.. XIr tab ö l.), etc.
(159) Por exemplo.: na a c tio ■ le g is . A q u ilia n ee, que, em sua origem, não procura
obter perdas e danos senão ao vaÍÕr o b je tiv o do último ánoi, ou no vencimento dò
último mês, § 16, J. ad. leg. Aq. (4,3) . ì l l i i d n o n e x v e r b is le g is , s e d EX INTER­
PRETATIONS PLACO IT, etc., que poderia, independentemente, concluir por outros
motivos dos indicados. As usuree r e i ju d icà tse , aoexpirar o prazo dé 4_mêses, subiam,
antes d e J u s t i ñ ía n o , a 24 por cento. L. 2, Cod. de usur. rei jud, (1,54).
(160) 0 dôbró dó valor das coisas parecia aos romanos ser um, equivalente com­
pleto das perdas e danos, tanto na época antiga como na época posterior. Lembra«
remos, por exemplo, a . cautio duplas alterum tàntúm , c as. disposições tã'ó conhecidas
do patrimônio sobre o d u p lu m , na venda e na disposição da tex JiiHa de adu lt., na
L. 27, pr. ad leg. Jul. (48,5). Isto nos explica-a defesa das usureé su p ra alteru m
tantum , e a disposição bém conhecida de J u s t in ia n o sobre o duplum; cm matéria de
pêrflas e danos (L. un. Cod. de sent, quie co, (7,47),
J161) Não era. uma ação penala mas reipersecutória. L.- 55, § 1, de admin, tut..
(26,7), S a v íg n y , O bligations, I, pag. 207. A ação contra os publícanos para a cobrança
^de censos indevidos, tinhà q rrìesmo caraterà L. 5, 6 , de public. (39,4). A actio d e ­
p o sit, da qual P a u lo (Ree, Sent. II, 12, § 11) diz que, segundo a lei d a s-XII tábuas,
dava o dobro, tinha um çarater especial. V. J h e r in g , Schuldm om enf, G ie s se n ,
pagina 32.
(162) VArrão, "dé re ru st., c. -10; Paul, Sent, ree., II, 17, § 3: s i eòineatuf,
àu cìprìtaiìs ven d itó r dupUótenus o b lig a iu r. Cicero de offic.. Ill, 16. Nam çum ex
XII tabules sa tis esset ea preestapi, q iix es sent lingua nüncupata ., guee qui esset in fi-
~ tiatu s d u p li pcenam su b irei: Assim; também, não só ao que nega, mas ao que na
nuncupatio falou falsamente, ou afirmou falsamente. R ú d o r f f , Z eitsch , fü r gesch.
R esch tsw . (R evista de ju risp ru d ên cia histórica,) , T. 14, pags. 423-455, afirma, com
evidência, que esta lei não se refere, de nenhum modo, ao caso de^condenação por
perdas e danos da ’ denegação.
(163) Assim na detio ad exhibendum , veja-se B a c h o fe n , P fan drech t , t. I, pag..
214, nota 6 - Na antiga pign oris copio, a quantia pela qual se devia resgatar o penhor
- foi mais elevada que a importância originária da dívida. Assim, ao menos, parece
se concluir de Gaio , IV, 32.
(164) Déste riúmero são, por exemplo, a actio depensi da caução contra o deve­
dor, a act. ju,dicati, o nexum , o legado p e r dam nationem , o dam núm in ju ria datu m ¿
G aio, VI, § 171. .J á procuramos explicar, mais acima,, esta condenação no dobro.
O ESPIRITO DO DIREITO ROMANO 81

m éio ordinàrio dà pena convencional. Esta, com éfeito, désde


que se tratava de dinheiro, devia contentar-se com às lim itações
dos juros permitidos (165) . Sua eficácia se encontra^ por isso*
dim inuida, e para o caso comum em que os juros fossem pròme^
tidos até o máximo dos juros legais, o efeito era n u lo . A "le­
gislação teve, pois, que intervir. Mas só previa o caso èm <juè
a recusa do réu acarretasse um litígio, na fórm a da sp o n sio ier-
Ü2ò partis (1661678) (pelo qual quem pedia a dívida principal, ' devia
obter um terço á m a is). Éste aumento não se apfteava ao de­
vedor confesso; parece, no entanto, haver casos em que dito de­
vedor confesso, mas tardio, tinha que pagar esse excesso, como
pena de retardam ente, e a lex Julia municipalis oferece dissa
um exemplo (m ) .
Tratar-se-á, em todos esses casos, de um sucedâneo das per­
das e danos? Absurdo seria opor os dois ponl&^ide vista da
qüe dois tèrmos diferentes de um a só e mêsma rèragpài. . Assim,
pena e perdas e danos, porque, em muitos casos, não são m ais
a prestação do^réu é um a pena. Para o autor, é um a satisfação,
no sentido mais amplo, isto é, um a satisfação que se lhe con­
cède pela lesão pessoal, resultante da violação de seu dir,eitó,
mais de que pela pèrda m aterial que sofreu. Dêsse mòdo, um
ponto. de vista não exclue o. outro. Disto resplta, à evidência,
que os romanos dão. valôr à idéia da pena, até nas ações
que tèm ùnicamente por objeto obter a simples reparação do
dáno (*68) . O objeto declarado da ação é obter pára o autor os

(165) No direito novo, está f ó r a d e duvida, não só para o caso d o . empréstimo,


X.. 44, de usur. (22,1). Pceiuzm p r o u su ris stip u la ri nem o , su pra m odtim usurarum
iic iíu m potest, senão, também, pelo preço da Venda. Veja-se a L. 13, § 26 dê act.
emti-. (19,1), onde se encontram as expressões de P a p ín ia n o nos Vãt. fragm ., § í l r
S i con ven erit, ut ad diem p retio non soluto VENDITORI duplam preestaretur, in
fra u d em constitutionem vid e ri ad jectu m , quod usuram legitim am .
e x è e d it Comò
acontecia o mesmo nos tempos antigos, resulta que todas- as restrições da taxa de
juros teriam sido ilusórias sem essa diposição: o credor fazia-se. prometer a. impor--
tância dos juros legais, e estipulava, além disso, tudo qué quisesse, ã titulo dé pena
convencional.
(166) Gaio, IV, § 13, 171. Ciç. pro Rose., c. 4, 5.
(167) Lcx Jal. mu nie., vers. 4Ó-44. Quando alguém não fazia a inspeção a que
se obrigara, a reparação sc fazia a sua custa. Si is, que a d trib u tu s erit, earn pecuniam
d i e t a s XXX proxum is, quibus ipse aut procurator ejus seiet adtributionem fac'ta m esse ,
ei etti, adtrib u tu s erit, non s o lv e n t ñeque sqtisfecerit, is quantee pecuniae a d trib u tu s
e r it, tantam pecuniam ET EJ.US DIMIDIUM ei cui a d trib u tu s e rit d a re debeto inque earn
r e s is quocum que de ea re aditu m erit, ju diccm judicium que ita .dato, UTI DE PECUNIA
(.
CREDITA JUDIÇEM) JUDICIUMQUE DARI OPORTERIT. A lex Kubria, c. 21, men­
ciona a Sponsio do devedor confesso. Distinguem-se eia doisvcasos: l.°. S i is earn pe-
eu in am in ju re debere se confessùs. erit neqùe id, quod confessùs e rit (a) so .v et sa tis-
n efaciet aut (b ) se SPONSIONE ju d icio q u e liti o portebit noti d efen den t ; 2 .°, S ive is
jure, non re sp o n d en t ñeque sponsionem fdeiet ñeque j u d i c i o etc.
(168) SvvviGNY chama a estas ações, ações penais unilaterdts, inspirando-se, para
, no espírito da idéia domana.; Não podiam ser dirigidas contra os herdeiros, senão
82 RUDOLÍ VON JH BRING

juros, designando-se, a respeito do réu, como ação penal. T am ­


bém participa da peña convencional, ainda que não tenha ou­
tro fim senão o de assegurar ao autor o equivalente de seus
juros, e sendo taxada como poena coni relação ao réu. Sem dú­
vida, em alguns casos citados mais acima, predomina a idéia da
pena, m as nem por isso se procura megos restringir ao autor em
seü prejuizo (169) . ß m muitos outros casos, ao contrário, o pre­
juízo era o ponto principal (17°), e a aplicação da penà, de or­
dem secundária. Daí, pois, perguntarm os: de que m aneira o
direito antigo satisfazia o desejo natural das pessoas prejudica­
das, a serem indenisadas pelos prejuízos sofridos? A resposta
não póde ser outra, senão aprovando, de um mòdo indireto, o
quantum fixado de antemão e acordado indiretamente na liqui­
dação do dano.
Isto era o que se tratava.de provar. Deduzimos daí, que essa
satisfação indireta, dada à pretensão natural do prejudicado, pro­
va que o direito antigo reconhecia que semelhante pretensão era
fundada. A m aneira indireta de como o direito antigo satisfa­
zia esta pretensão, prova, depois, quanto lhe repugnava ã via
direta da liquidação do prejuizo, repugnância que está em in­
teira harm onia com o espírito do direito antigo.
Não é possível, pois, sustentàr que o fim e as necessidades
diversas das relações jurídicas póssam explicar esse duplo as­
pecto da avaliação judicial. A natureza íntima das obrigações,
que tendiam a obter um certiim, não se opunha, de mòdo algum,
ter-se ém conta q prejudicado, porque, indiretamente, satisfazia
a dem anda. Poder-se-ia dizer, contràriamente, que a circuns­
tância, em que, nestas obrigações, era êle garantido, para cada
caso especial, demonstra, aos olhos dos romanos, que essas obri­
gações davam o direito de èxigir os danos. Por que ö lesado não
podia servir-se, do mesmo modo, da viá direta, quando já esta­
va a ação iniciada? (171) .

in quantum ad eos peruen.it, o que manifesta singularmente sua iiAtureza penal. Em


todos os manuais de Pandectas se encontram /exemj>los desta hiatcria na transmissão
de ações. Veja-se,"^por exemplo, P u c h t a , § 8 8 , nota g.
(169) G a io , L. 3 de litig. (H , 6 ), motiva da seguinte » maneira, a pçena d u p li
(verdadeira poena) estabelecida contra a dedicatio de uma res alienà in sacrum : ut id
» velu ti SOLATIUM habeat pro eo, quod p oten tiori m luersario tradii us est.
(170) Por exemplq, na act. rationibus distraJiendis, na ação contrsf publícanos
nota 16.
(171) Quando se entrou na via direta, conservóu-se, para muitas relações, a ma-
ncida de ser do direito antigo, caso muito conforme com ‘o espirito de conservação dos
romanos. No m utuum , até o direito novo, não se liquidava o prejuizo, enquanto que
. isto era possível num depositum irrequalar de preços de moeda (Veja-se L. 3 dè in
lit. jur., Í2.3). — Em muitas relações, passou-se ¡da avaliação objetiva à avaliação
relativa, por exemplo, na act. injuriarum , e stim a to ria , isto é, avaliação das rleações
individuais, em lugar dos 25 asses, fixados de antemão pelo antigo direito, que se
fez pelo Pretor Citaremos a act. legis A q u ile (veja-sé nota 159), onde a jurispru­
dência favoreceu o progresso, por meio do uma interpretação mais livre. Podíamos.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 83

Sómente encontramos esta resposta: é que a via direta ainda


não existia. Somos, portanto, levados, lógicàmente, a concluir
q ue as relações, pelas quais a avaliação relativa existe, no direi­
to novo, ou não davam direito à ação, no direito antigo, ou da­
vam lugar à avaliação objetiva. A terceira parte déste livro pro-
porcionar-nos-á oportunidade de voltar à este ponto.

«esclarecer, com exatidão, tal sucessão com a act. fu rti, especialmente sobre o conflito
<juc se nota entre a avaliação objetiva e relativa (ef. L. 50, pr. de furti» (4 7 ,2 ) e
I,. 27, L. G7, § 1, 80, § 1, ibid.), mas deixaremos de explicar agora èsse ponto aces­
sório. C'itaremõs, além disso, o interd. uti possidentis, no qual S k r v iu s toma o quanti
■ea res est no sentido objetivo, enquanto que os juristas posteriores atribuiram-no ao
•prejudicado. C . 3 , § 11 uti poss. ('#3,16). T M o m m s e n . í .c ., pag. 4 8 . Citaremos,
finalmente, a act. de servo corrupto (comp. L. 9, § de Serv corr Ut.?,) e L. 14, § 7
id .). Èstes exemplos de passágem da avaliação objetiva à relativa dão mais força à
«opinião defendida, no texto», sçm que tenhamos necessiddac de justificá-la.
CAPÍTULO III

AMOR AD PODER E À LIBERDADE

SBCÇÃ PRIM EIRA. — Sistema de liberdade e de tirania em


geral.

34. — E’ necessário, na questão que vamos tratar, mais que


em nenhum a outra, fazer preceder, ao exame do direito antigo,
a justificação do ponto de vista quç nos colocamos, para a ju l­
g a r. Por m ais que a liberdade seja um a dessas palavras que
andam n a ~boca de toda gente, não podemos, no entanto, fo rra r
ao leitor o trabalho*de um a explicação sobre á significação dês-
se tèrm o. E* indispensável, com efeito, que a essência da liber­
dade seja, de .um modo geral, com preendida pela ciência. Ã
tarefa m ais importante, que. devemos acometer logo, será a d e
destruir a falsa noção que da liberdade se tem dado, e que tem
como conseqüência, no direito rom ano, as apreciações mais er­
rôneas e mais absurdas. Tal é a idéia que tratam os de subme­
ter à crítica, acreditando poderm os conseguir o nosso objetivo*
abstraindo-nos, por um moménto, do direito rom ano.
O modo pelo qual a legislação coopera nò objetivo e m issão
da sociedade, constitúe um a das controvérsias mais graves só=*
b re o fundam ento dos direitos privados. A legislação pódè cin-
gir-se, essêncialmente, a estabelecer e assegurar ás condições ne­
cessárias à realização dêsse objetivo e dessa missão, não inter-
viñdo senão de um modo indireto e deixando à livre ação d o
povo (particulares, corporações, comunidades, etc.) que perm a­
neça na verdadeira vis agens de todo sistema.' Chamamos a
êste sistema o da liberdade, que, sob certos aspectos, é o m esm o
que, em nossos dias, se conhece com o nome de self-government r
e que tem por antítese o regime, da tirania. Sob o império déste,
último, a legislação e o govèrno executam por si o labor, pro­
curando, por meio da lei e da tirânia, alcançar os fins de q u e
se trata (172) . A antítese, dir-nos-ão, não é absoluta. Nunca*

(172) Entre os povos. modernos, o inglês representa o primeiro sistema e o


francês, o segundo. Êsses dois .sistemas são, além disso, independentes da fórma d o
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 85

«existiu um Estado que abandonasse tudo à livre ação do povo,


como nenhum outro que não lhe tenha deixado alguma liberda­
d e . lím abismo, no entanto, separa os dois sistemas, e p a ra
caracterizá-los melhor,- tomemos os dois comò extremos opostos?
isso permitir-nos-á detérm inar a diferença que existe entre anir
lio s,
P a ra determinada facção, à que, desde já, aludimos, o siste­
m a da tirania deve ser preferido, sem vacilaçãò e sem reserva.
!Essa opinião, aparentemente sedutora, parece inspirar-se no m ais
profundo respeito ao direito. A p artir da idéia exata em si,
d a missão moral dó Estado, desrobre, no sistema da liberdade,
-o reinado da pura subjetividade; no dà tirania ao contrário, a
-vitória dos princípios objetivos e m orais. Aquêle é o indiferen­
tism o do Estado para seu fim mais elevado, e a sua missão en­
tregue ao capricho dos indivíduos e, portanto, ao azar. Êste, ao
contrário, .é a aplicáção do Estado à sua verdadeira mfssão;
reconhecim ento prático e a realização desses princípios da m o­
r a l . Se o Estado, poder-se-ia dizer em apôio. desta opinião, tem
p o r fim realizar êsses grandes ideais do bem, da verdade, do
bèlo, dp útil, etc., para que pô-los em discussão, abandonando
a sua realização à liberdade v o lú ^ ^ g a do individuo, ou do povo,
isto é, ao acaso? Para que tanta cakfcfeira e tanto esperar, quan-,
«dó o Estado encontra na lei um meio rápido de, inevitavelmente,
conseguir esse fim? Onde estaria o obstáculo? Na consideração
jao indivíduo? Mas o indivíduo deve reconhecer, necessàriamen­
te, esses princípios como obrigatórios ! O próprio bem è a paz de
s u a existência dependem de realização. Éste sistema entrega
verdadeiram ente a órdem e a prosperidade do mundo m oral aos
azares do capricho individual, proclama-os como uma necessida­
d e social, e eleva-es à altura de princípios de órdem física no
universo; mas, graças a ele, as qualidades do mundo físico* segu-
TâiX-ea, visibilidade, se traduzem, ¿também* n*> m undo m oral.
Ainda não vai muito longe o tempo èm que esta m aneira de
Vêr dominava, completamente, na legislação e na ciência, èm"
que parecia grande e nobre sufocar o livre movimento da cria-
cão m oral e, se assim nos podemos exprimir, as forças morais
naturais, pára substitui-lás pelo mecanismo de úm relógio. Acre­
ditou-se que era independente de todas as forças e de todas as
influências que a lei autorizasse, ou se comprazesse em deixar de
m ão seu movimento, para podê-lo regular m elhor. E’ certo que

Éstado, monarquia ou república. Ò sistema da opresão é tão possível em uma re­


pública (atesta Esparta, nos tempos antigos e a França, e ninossos dias) como o da
liberdade em unia monarquia (por exemplo, na Inglaterra). Ai, onde, ao mesmo tempo,
se pódem exaltar, os ânimos pela. república © acomodar-se ao sistema da oposição, não
póde o sentimento de liberdade ser sincero nem. ardente. Ocupãr-se-ião muito menos
■úsí forma da constituição política, se se tivesse diante do sentimento da verdadeira
^iberdade.
86 RUDOLF YON JHBRING

um a nova transformação se prepara, porém não passa de uma*


aurora que se inicia. Muito tempo correrá antes que a evolução
áe complete, porque aquela m aneira de apreciar não está somen­
te traduzida em nossas instituições e em nossas leis, etc., mas
fenraigada no*espírito do povo, e no dos governos. Provém de
um a transformação, não tanto a opinião, mas do carater, da
sentim ento jurídico do |povo, e semelhantes revoluções, é sa­
bido, operam-se com éxltrema lentidão.
Tratemos de despojar èsse sistema de sua enganosa aparên­
cia, para considerá-lo sob o seu verdadeiro aspecto.
Impugnemos, desde já, sem vacilar, a comparação que se
faz entre a órdem moral e a órdem física do mundo, por ser hu­
m ilhante para a prim eira. A liberdade, com efeito, é o essen­
cial do mundo moral, e a necessidade, a do mundo físico. A
missão daquela não póde ser a de renunciar esta vantágem espe­
cífica que lhe é própria, para adquirir regularidade, segurança,
êtc. O Estado, órgão da Liberdade, nao póde, sem dúvida, em
virtude de sua função, ser privado do elemento de necessidade r
nela está o seu gráu de parentesco com a natureza. Deve ter,
como recurso, as leis, e deve usar da tirania mecânica exterior.
Mas, ~à medida que mais penetra nêsse caminho, mais limita, ou
i'estringe, o elemento de liberdade, e mais desce das alturas de
sua missão, que o elevam acima do mundo natural, pára, depois,
rebaixá-lo ao nível inferior do mesmo m undo. A uniform idade,
ã fixidês de órdem exterior, obtidas pela tirania, são para o Es­
tado o que o CQrpo é para o hom em . Tanto para um como p a ra
outro, o corpo não é um fim : é o meio, o ponto de apôio, o ins­
trum ento da liberdade do espírito.
Sob o ponto de vista utilitário, a tirania poderia, sem dú­
vida, ir de mãos dadas com a liberdade. O bem-estar do povo,
a órdem exterior e a m oralidade poderiam prosperar sob um
ou outro regime. A experiência, no entanto, nos ensina, ao con­
trá rio , que a operação não póde jam ais produzir o vôo m oral e
intelectual que a liberdade póde enfrentar. Os limites que se
lhe dão, mais dificultam que facilitam os seus movimentos. Mas,
mêsmo que tenham resultados exteriores mais brilhantes que a
liberdade, essas vantágens seriam excessivamente pagas à custa
de inapreciáveis riquezas morais e intelectuais? Suponham os
um povo que vivêra, até agora, sob o sistema da liberdade, se
encontre reduzido, pela »violência exterior, a cuívar-se sob o jugo
da tirania. A influência nefasta daquela agirá logo, visivelmen­
te, sobre o seu carater. A confiança em si mesma, o seu espí­
rito empreendedor, a energia, debilitar-se-ão, fatalmente, porque
toda condição elevada se estiola, quando não póde ser exercida.
Essas virtudes só pódem, realmente, prosperar sobre o sólo da li­
berdade; somente aí são possíveis e mesmo indispensáveis.
Mas o valor da liberdade jurídica não está somente na sua
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 87

utilidade' m aterial; consiste, sobre tudo, cm seu destino m oral.


Como pura negação, como simples ^estado, não tem nenhum a le­
gitim idade moral, mas adquire-a no momento que se torna ne­
cessária, como forca criadora positiva da vontade. A vontade
é o órgãp criador da personalidades No exercício desta força
criadora é onde a personalidade sè m ostra à semelhança de Deus.
Sentir-se criador de um mundo, por pequeno que seja, contem ­
plar um a cousa que não existia anteriormente e que só pela von­
tade do homem existiu, eis o que-lhe dá o sentimento de força e
de que foi feito à imagem de Deus. A ciência não tem a facul­
dade de transportá-lo até aí: a vitória da ciência é a de um es­
pelho, que reflete fielmente as cousas; a vitória da vontade é a
do facto, da força, aperfeiçoando por si mêsma as cousas e con­
tinuando a criação do m undo. Não é, portanto, senão a ciência,
que, encarnando-se na vontade, chega a penetrar no facto e se
eleva, com Deus, à esfera do facto m o ra l.
Desdobrar essa atividade criadora é o direito mais elevado
do homem, e o meio indispensável p ara a sua própria educação
m oral. Ela supõe a liberdade e, conseguinteménte, o abuso da
liberdade, ou seja a escolha do m al, do falso, do absurdo, etc.,
porque -não se póde considerar como nossa criação, senão o que
nasce livremente da nossa personalidade. Constranger o homem
ao bem, à razão, é um êrro contra o seu destino, não porque,
assim, sè lhe impeça de escolher o contrário, mas porque não se
lhe proporciona a possibilidade de fazer o bem pelo seu próprio
esforço (173) .
0 Estado só permitè^Çlalizar a vontade com segurança. Para
ele é um dever reconhecer e am parar a missão criadora da von­
tade, como poder e liberdade Jurídicos. Mas, até onde se exten-
de èsse dever do Estado? A experiência demonstra, constante­
mente, que existem restrições legais da liberdade, que se não
deduzeni do ponto de vista do individuo, e que o Estado, conse-
guinTemente, não estaria autorizado a estabelecer, se unicam en­
te tivesse a missão de deixar a liberdade subjetiva realizar-se.
Seria perder tempo, dem onstrar que não se póde contestar ao
Estado o direito de invadir a esfera da liberdade individual, por
meio de certas restrições. Agora somente se trata de saber
qual seja a extensão desse direito. O Estado póde erigir em lei
tudo o que lhe pareça bom, m oral e oportuno? Assim, èsse di­
reito não tem limiles, e o direito de personalidade, que reivindi­
camos, mais acima, não se póde ter em cónta. A liberdade que
o>Estado lhe reconhece só tem então, o carater de uma concessão,
de um a dádiva. Apezar da fórm a pomposa com que procura
se revestir, è de suas exageradas palavras sobre o bem do povo,
perssecução dos princípios objetivos, lei moral, etc., a noção de

(173) S eneca., de benef., III, desinit res esse honesta, si necessaria est.
88 RtJDOLF VON J H E RING
$
onipotência do Estado, tudo absorvendo e criando tudo p ara si
mesmo, não é nem póde ser outra cousa senão ó produto ver­
dadeiro da arbitrariedade e dá teoria do despotismo, pouco im ­
portando que esta seja aplicada p o r um a assemblèa, ou pôr um
m onarca absoluto.
A dm itir ^semelhante teoria, é, p a ra o indivíduo, um a perfí­
dia que se volta contra seu destino, e um suicídio m oral! A
personalidade, como seu direito à ,liv r e atividadè criadora, se
realiza tanto pela graça de Deas, como pelo Estado. Não é so­
m ente um direito, é um dever sagrado para o indivíduo, reivin­
dicar e exercer essà atividade. Mas a personalidade não existe
por si só . Provem de um organismo m oral mais elevado, o qual
repousa, nem mais nem menos que o seu, na instituição divina,
tendo igualmente recebido a sua missão de Deus: o Estado. Am­
bos se lim itam, mas não se excluem. Não recebem os seus di^
reitos um do outro; nem o Estado os tom a do indivíduo, como
■ensinava antigam eníe a teoria do direito natural, nem o iiídiví-
duo os recebe do Estado.
A missão m oral do Estado ! Esta palavra elástica não re ­
conhece ao Estado a guarda, a vigilância da religião, da m oral,
do bem-estar, da educação artística e cientifica, etc., em suina,
de tudo aquilo que o povo é apaz de ser ,ou cfhegar a aleánçar, ou
perder? Certam ente; mas tudo, depende da m aneira por que o
Estado procura cum prir essa missão, o qüe nos condús áo ponto
que já abordam os. O Estado póde compreender a súa m issão
de tal modo, que acredita dever seguir à força e como poder
público èsse fini supremo da vida social, ou por meio de dispo­
sições positivas. E’ contra isto que protesta o princípio da liber­
dade pessoal, porque se vê assim constrangido a cumprir, pela
força, um trabalho em cuja execução liare consiste, precisam ente,
o dever e a honra. Tal é o sistema, que se opôs ao da liber­
dade, que anteriorm ente se definiu. Nêste, o Estado se lim ita
a tornar possível e a facilitar êsses fins, deixando-o seguir o li­
vre movimento do espírito m oral e a própria atividade d a 'in te ­
ligência nacional e individual. Nêsse sistema, a idéia do Esta­
do e dã liberdade, são concordes. Realiza o ideal absoluto, que
qualquer povo deve procurar atiñgir.
As explicações, que antecedem, tiveram por fim demons­
tra r a im perfeição do regime da tirania. Mas aquilo que não
é perfeito, póde ser relativam ente legítimo; como por exemplo,
um povo ainda não educado p a ra a liberdade, porque sem a
perfeição necessária, o sistema da liberdade não tem nenhum a
legitim idade m oral. Nêsse sentido, tanto se dá com os povos,
como com os indivíduos; necessitam, também, ser disciplinados
na sua m aioria. Essa disciplina consiste, precisamente, na opres­
são. Graças ao sentimento intuitivo de sua fraqueza e de suas
necessidades, certos povos, longe de considerar èsse sistema um
encargo, acham-no natural e necessário. O sentimento jurídico
O ESPÍRITO í) 0 DIREITO ROMANO 89

sião uai além do limite de suas forças, não lhe sendo possível
com preender a legitimidade do sistema oposto. Os povos Orien­
tais-se acham nêsse caso, porque a noção da liberdade pessoal,
que toma suá origem do próprio indivíduo, nunca se lhes reve­
lou; parecia-lhes mesmo abominável em muitas de suas aplica­
ções, por exemplo, em m atéria religiosa.
Criticando e* repelindo o sistema da opressão, temos justi­
ficado o sistem a oposto. E’ preciso, nò entanto, acrescentar um a
obsérvaçãp.
Ao estabelecermos que, precisamente, a m oral verdadeira
é a que reclam a a m aior liberdade, não; significa isto, de mòdo
algum, que por onde quer que èsse sistema se mostre, na histó­
ria, procede sempre de um respeitável conceito m oral. Póde,
ao contrário, ser o resultado de um a apreciação inteiramente
oposta, e não ser mais do que a expressão da grosseria, da hum i­
lhação, da impudência m oral. 0 homem m oral deseja a liber­
dade, porque deseja fazer .o bem por si m esm o; o perverso, por­
que quer poder entregar-se livremente aos máus pensamentos.
Éste odeia à opressão, porque o compele à ordem e ào bem;
aquêle, porque a isso é forçado. Assim, pois, o sistema da liber­
dade se encontra, tanto na fase menos avançada da civilização
c da m oralidade, como no período m ais brilhante, oférecendo
um a sucessiva série de matizes em que se póde vêr o quadro
mais variado: o da grosseria moral,: da ignorância política, da
indiferença econômica e o de um adm irável desenvolvimento
completo na órdem moral, política e econômica. Num e nou­
tro caso, os princípios morais e as idéias elevadas não são vi­
síveis nas leis: no primeiro, porque o povo delas carece; no
outro, porque não têm necessidade de auxílio da lei. No p ri­
m eiro caso, o regime da liberdade é inferior ao da opressão,
enquanto que, no segundo, é grande a sua superioridade sòbre o
otitro sistem a. E’ um a escada, na qual, o primeiro degráu é
a arbitrariedade e a barbárie, o do centro, a disciplina e a opres­
são, e. a verdadeira liberdade fórm a os últimos degráus.
O desenvolvimento do gráu de m oralidade póde variar m ui­
to, no sistema da liberdade, cabendo à história descobri-lo em
cada caso concreto. Para chegar a isso, dever-se-á tomar em
onsideràção o carater, a civilização, as idéias religiosas e m o­
rais do povo, e especialmente os seus usos (174), porque êstes têm
im portância infinitamente m aior que o sistema da tirania, como
tivemos oportunidade de vêr, no antigo direito rom ano. Os

(174) Depreende-se disto como é falso deduzir que, não não terem tomado êsses
principios a fórma de leis ou de regras de direito, fôram desconhecidos e extranhos
ao povo, ou, pelo menos^ que não os reconheceu como necessários para êle. Sêbre
esta conclusão defeituosa se apoiam tantas opiniões errôneas que se imitaram acêrca do
pretendido caráter imoral do Direito, romanó antigo.
2 ÍL RUDOLF VON JHBRING

usos da antiga Roma nos servirão de comentário para o direito*


rom ano antigo, dando-nos a convicção que não é o atraso* a bar­
bárie, ou o indiferentismo moral, mas o sentimento de liberda­
de, vivo, enérgicamente desenvolvido, tendo plena conciência da
responsabilidade moral, que busca a sua satisfação nas institui­
ções <lo antigo direito. £
&

SISTEMA ROMANO

A . — SITUAÇÃO DO INDIVÍDUO

PRIMEIRA SECÇÃO. — A vontade e o poder como fins da


' vontade subjetiva.

D e s e jo im o d e r a d o d e d o m in a ç ã o d o s r o m a n o s . — L ib e r d a d e p o lít ic a
e p e s s o a l. — L ib erd a d e j u r íd ic a a b s t r a t a d o in d iv íd u o e s u a d e p e n d ê n c ia
e f e t i v a . — O s u s o s e o p o d er d a o p in iã o p ú b lic a e m R o m a . — S i s t e m a
d e a u t o n o m ia ju r d ic a p r iv a d a e m s u a s d iv e r s a s p a r t e s .

Tu reg ere im p e rio pop u lo s R o m a n o


m e m e n to .

35. — A idéia do poder e da liberdade fórm a a prim itiva


fonte psicológica do carater rom ano. Esta idéia m antem a ener­
gia dos indivíduos, como a do Estado, num a tensão constante,
e a desenvolve até o mais alto gráu. Sua realização constúi o
facto mais im portante da história rom ana.
Por seu aspecto exterior, a sede de dominação dos rom a­
nos nada tem de sedutora. Restos ensangüentados, ruinas e ca­
dáveres assinalam o caminho que percorreu, calcando povos ilus­
tres sob o carro triunfal da grandeza rom ana. Não é dado, cer­
tam ente, ocultar-se esta sombria perspectiva, mas póde conse­
guir-se não se deixar desnortear por um julgamento injusto, es­
quecendo o lado moral da sède de denominação dos rom anos.
O desejo imoderado do poder, que não é absolutamente ilegíti­
mo em m oral, o é, quando não procede de um a missão interna,
quando anim a almas baixas, a quem falta força moral que èie
supõe, ou quando, com o desejo de dom inar, não se procura um
fim nobre, mas* o meio de satisfazer a vareza, a vaidade, o ca­
pricho, etc. Existe também a ânsia legitima de dom inar m oral­
mente, am or pelo próprio poder, am or capaz de todos os sacri­
fícios e de todos os esforços, e que procedendo do sentimento in­
terno, estimula ao cumprimento da missão do poder. Quem se
sente anim ado de extraordinária força moral, trata de exercê-la,
não sendo a sède de domínio outra cousa senão a voz interior que
o chama ao cumprimento da missão que deve realizar.
92 RUDOLF VON JHÈRING

Tal era a ânsia do poder dos romanos, antes que degeneras­


sem . Não era a ambição que lhes fazia, nessa béla época, esti-
máyel-'o poder. Uma posição ocupada, sem sacrifício, não lhes
satisfaría nunca. A esse resjfeito, verifica-se o que L e s s in g diz
da investigação da verdade: “O encanto não está no fim, na
pòsse assegurada, mas no meio pelo qual se há. Be chegar a cum­
prir, na investigação e esforço com que se h á -de alcançar” . A
tehsão extrem ada de forças, a resistência dos obstáculos exterio­
res, o perigo, a própria luta, a poderosa energia que entre eles
eferveciam à cata de êxito, era, p a ra os romanos, pódé-se dizer,
uma necessidade natural. Os próprios jogos deveriam servir
pára éste fim ; a excitação e a turbação que o perigo prodús,
mesmo no simples espectador, constituíam o principal encanto.
Mas esta disposição de energia não era um a expansão selvágem,
parecida à im prudente ação das forças naturais; as forças rom a­
nas seguiam caminhos já traçados. Seguiam com igual energia
um fim determ inado: o de dar ao Estado romano a dominação
do m undò. Os rom anos faziam deste predom ínio, não um a usur-
pàçao, mas um direito fundado na superioridade moral, e a m is­
são especial de Roma, p a ra cuja pretensão estavam certos do
consentimento e da ajuda dos deuses. A história rom ana assi­
mila, com ' numerosos e grandes exemplos, como éste amor ao
poder elevou o egoismo romano acim a das baixas e vulgares
preocupações do egoismo individual; como se desprendeu dos
gozos da vida puram ente m aterial p a ra levá-lò às mais nobres
aspirações, e que soma de virtudes, de abnegação, de am or à
pátria,- de constância, de bravura e de nobreza máscula produ­
ziu; em sum a, que rápido vôo deu à própria m oralidade dos
romanos. Se a sua sède de dominio deve ser considerada como
úm defeito, jám ais existiu outro que chegasse a ser fonte tão fe-^
cunda de virtudes cívicas e de ações brilhantes (175) .
O direito propõrciona-nos ocasiões de observar o amor ao
poder, germ inado em seu verdadeiro terreno. Nao existe do­
mínio, com efeito, que seja como este, tão ampiamente seu, e
em que m elhor pòssa, sem efusão de sangue, celebrar os seus
triunfos. As manifestações do am or dos romanos, pelo poder
e a liberdade, são bem conhecidos, e não insistiremos mais sòbre
este ponto. Conhece-se, por exemplo, a parte que a constitui­
ção rom ana outorgava ao cidadão na adm inistração •do Estado,
no poder legislativo, na jurisdição crim inal, na escolha de fun­
cionários (176), e até na adm inistração da polícia por meio de

(175) Chamamos a atenção sobre o conceito dado por Santo Agostinho do orgulho
e da ambição dos romanos (I, 357: pro isto uno v itio — multa alia vitia comprimentes.
(176) Temos plena convicção de que é exata a opinião antiga, quando afirma que
era o povo que escolhia os funcionários »enquanto que a opinião nova, atribuia a pre­
ponderância ao funcionário que dirigia os comácios eleitorais, o qual» depois de ter
consultado o povo, nomeava os novos funcionários. O apoio que encontrava esta opi-
O ♦ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 93

ações populares; conhece-se, em suma, todo o self-governement


republicano de R om a. Sabe-se,- também, a enorm e extensão que
se dava aó princípio da liberdade pessoal. Não falaremos das
conseqüências dêsse princípio, do qual nem os próprios romanos
tinham coneiêiicia, e no qual a restrição sobre quaisquer dessas
idéias, por exein^lo, na liberdade de escolher um, prpofissionàl,
lhes pareceria impossível' e absurdo. Não enumeraremos o que
os próprios rom ane^ consideravam como garantias preciosas da
liberdade-pessoal, potadam ente a liberdade que, no fim da Re­
pública, se deixava ao réu até ö momento de ser ju lg ad o 177),
enquanto que, n a época antiga^ não se vacilava em deter um a pes­
soa por meio da prisão preventiva, ainda que oferecesse prestar
a caução necessária (?7$) ; a proteção contra a arbitráriedade dos
funcionários públicos, que estava assegurada pela mais ampla
fórm a do direito de queixa, perante a assemblèa do povo (179),
pelo recurso aos tribunais e aos magistrados superiores, e pela
responsabilidade form alm ente conhecida de todos os funcioná­
rios. Vem, em seguida, a influência determ inante que a idéia
d a dignidade do cidadão rom ano exerceu sobre o direito crimi­
nal, por exemplo, a abolição da tortura i18018) , das penas corpo­
rais, das deshumanas penas capitais (1?1K e outra série de ins­
tituições não menos importantes (182) . De resto, êste princípio

nião na expressão empregada pelo magistrado presidente, creare (cuja correlativa é„


como se sabe, renunciare ), é muito fraca. Sabe-se que os romanos empregavam,
igualmente, para quem levava a bom termo sua demanda, a expressão dam nare,
( B r i s s o n , dè voc. ác form .: Damnare, § 3), e para o cônsul que havia apresentado um
senatuSconsulto, o de. sctuzrí. f acere; veja-se, por exemplo, T i t o L iv io , XL!!, 9.
(177) Cia,, pro B ald o , c . 13. Veja-se nota 6 8 .
(178) Veja-se, contra a opinião de diversos autores, H e i n z e , G erichtssaal , 1871,
liy . 2, pags. 138-148. A detenção preventiva era possivel no direito antigo, se beni
que não fòsse prescrita.. Se fòsse ordenada, podia ser levada a efeito pela intervenção
de um tribuno, ou trocàr-se quando ò funcionário consentia em pôr o detento em li­
berdade, sob caução. A detenção não se concilia com o direito de expatriação vo-
lutária ou forçada ( S a lu s tio , Catil. 51). Esta foi uma inovação da época posterior
e, por conseguinte, fácil é de compreender que, mesmo ilegalmente, a prisão preventiva
ae pôs em prática, ainda que. raramente. Geib, Gesch. (:H istória do p ro te sso crim inar
em R om a ), pags. 119-129.
(179) Cíe. de orat., II, 4 8 ... patronam illam civ ita tis ac oindieem lib e rta tis .
Trro Livio, IH, 55: unicum praesidium, lib e rta tis . Recordaremos ainda o máximo da-
m u lta fixada pelos funcionários. G e l l . , XI, 1 .
(180) G e ib , pag. 138 e seguintes.
(181) Trro Livio, X, 9. Cíe. in Vçrr., II. V. c. 54-57, pro Rabirio, c. carnifex
vero et obduetio ca p tis et nomen ipsum crucis a b sit non m odo a corpore civium Rom.,
,
sed etiam a cogitatione òculis, a u rib u s. Harum eniem om nium rerum non solum,
eventus atque p erp essio , SED ETIAM CONDITIO, EXSPECTATIO MENTIS IPSA DE~
ÑIQUE INDIGNA GIVE ROMANO ATQUE HOMINE LIBERO EST.
(182) Por exenífc>lo, o principio da quarta accusatio (G e ib , pag. 116 s. e L a n g e ,
D ie osldsche l o s c h ... (A iscrição osca da- Tabua Batina e os tribu n ais populares de-
•Wiomay, pag. 65-86, enquanto dá, por outro lado, ao acusado oportunidade de obter o
favor da opinião pública, e, por outro ladoj deixa òr paixão momentânea excitada do
povo o tempo de acalmar, e além disso, o princípio de que as declarações dös es*
<94 RUDOLF VON J H ETr I N G

da liberdade individual, só com o decorrer do tempo, adquire


á extensão que teve, no firn da República e que quasi se excedia
do justo limite. À época posterior, com as suas idéias abstra­
tas de liberdade e de igualdade, lembra os tempos modernos; a
época antiga é muito mais moderada, mais comedida e mais p rá­
tica. Sua liberdade foi o p ro d ií^ verdaderam ente histórico,
nascido de motivos práticos, coJspSistados laboriosamente por
fragmentos. Não a fez florecer Jmoção escolástica da liberdade,
mas a pressão das circunstâncias; por isso, gPidéia de liberdade,
m ais que uma noção, constitui uma soma de direitos isolados
éntre si, todos êles importantes, e que oferecem lacunas e inconr
seqüências aparentes. Èsse carater prático da liberdade m ani­
festa-se na facilidade de amoldar-se às circunstâncias. Em caso
de necessidade, a liberdade podia ser momentáneamente suspen­
sa (183) ; o que é muito significativo para a organisação própria
do sentimento da liberdade antiga, de conformidade com a cen­
sura, instituição que nos seria atualmente insuportável, em vir­
tude das idéias que temos sobre a liberdade individual (184185) . O
que acabams dé dizer, revela-se também, numa livre m anifesta­
l o , que na história m oderna desempenha papel saliente: a li­
berdade religiosa. Tolerante ou indiferente que fosse a polí­
tica romana para o culto dos póvos sob seu jugo, mesma que os
romanos, condescèndentemente, tenham dado um lugar, no Ca­
pitólio, a todos os deuses do império, não ignoravam absoluta­
m ente a idéia da liberdade religiosa abstrata, em virtude do ca­
rater de sua religião, como religião do Estado. Não encaravam,
■como nós, a conversão à outra religião, como um ato e um di­
reito de necessidade religiosa: a conversão acarretava a deca­
dência do carater rom ano. Sem constituir um delito especial,
sem se ocupar de casos isolados, interveio em nome do Estado,
quando os casos se reproduziam, e o mal tomou proporções ge­
rais (183) . Esta intervenção não choca os romanos. Ninguém,

cravos não eram válidas contra os seus senhores (Geib, pag. 142) A tendência de­
cidida da época posterior (não se p ó d e dizer a mesmo da lei das XII tábuas) à sua­
vidade das pepas ( P i . a t n e r , qiuest. de jure crim. Ròm., pag. 75-82), foi assinalada
jpelos próprios romanos; por exemplo, por T i t o L iv io , I, 28: nulli gentium m itiores
placuisse paenas ; Cic. pro Rabir., c. 3. . . vestram libertatem non acerbitate su plicioru m
infestam , sed lenitale legiim mu nit am esse voluerunt.
(183) Denominação de um ditador, S etu m : videant cônsules, ne quid detrim en ti
-capiat republica.
(184) Rccordc-se que o censor podia pedir conta, por exemplo, pela negligência
da cultura, por abusos económicos, por luxo e gastos exagerados, faltas contra as
quais, no fim do século VI, quando o poder do censor não era suficiente, a legislação
viu-se forçada a coibir por meio das célebres leges sumtuariee.
(185) Era das atribuições do Senado, que as delegava, em caso de necessidade,
aos funcionários. Valer. Max. I. 3., de peregrina religione rcjccta. T ino Livio, IV,
30: datum inde negotium ted il ib us, ut anim udoerterent, ne qui nisi rom ani d ii neu quo
3alio more quam patrio colerentur, XXV, 1; XXXIX, 13 s.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 95

em Roma, via nisso um atentado à liberdade religiosa, nem te­


ria podido compreender que se désse ao princípio da liberdade,
tanto em m atéria religiosa^. como em qualquer outra, mais ex­
tensão que a que reclam ava o interesse do Estado. Cremos que
a razão pela qual os romanos poucô se incomodavam por esta es­
pécie de liberdade era porque ela se revelava à conciência pela
opressão, e como esta não cabia nas instituições religiosas dos ro­
manos, era problemático p ara êles que existisse a opressão mais
cri|;el do que todas levadas a efeito em m atéria de fé, de inquisi-
çãô, de tribunais inquisitoriais (cujos vestígios se encontraram na
antiguidade), sendo nisso a livre / é e a prática dos cultos, os sa­
cra mais um encargo de interesse patrim onial de que um a neces­
sidade religiosa. Nãç^deixa de ser surpreendente que os rom a­
nos se contentassem, durante tantos séculos/ com essa lim itada
liberdade religiosa, e que a impiedade dos tempos posteriores
tivesse que se acomodar a ela. * O cristianismo produziu a qué-
da do sistema antigo. Ocupemô-nos agora do direito privado.
A idéia de autoridade é o prism a através do qual o direito
antigo considerava a vida individual, sob todas as suas fases.
O direito antigo não possuia outro mòdo de ver; aplicava-o a
tôdas as manifestações da vida individual, por pouco que a ela
pudessem referir-se, atendendo à verdadeira significação e ob­
jetivo da vida, em geral; por exemplo, ao m atrim ônio, com re­
lação ao pai e respeito aos filhos. Seria, no entanto, um êrro
disso deduzir que os rom anos vissem êsses atos da vida, como
puram ente jurídicos, que não reconhecessem um destino supe­
rior, acima do direito, e o que não tivesse aquele objetivo era
considerado como inútil, ou supèrfluo. A autoridade era o
elemento jurídico específico em que somente a descoberta e a
determ inação atraiam a atenção da análise jurídica. O quími­
co, em suas investigações, tende a descobrir elementos perfeita-
m ente determinados de um corpo, sem se preocupar com a sua
utilidade, ou seu destino; o jurisconsulto, não póde, como não
deve entregar-se a semelhantes digressões na persecução de sua
tarefa. Cinge-se, se nos é assim perm itido exprim ir, a deter­
m inar que tanto por cento da m atéria jurídica, se acha contido
em certas relações isoladas. Outros elementos estão m istura­
dos ém proporções m uito diversas com esta m atéria jurídica,
que fórm a um elemento, algumas vêses, insignificante, outras
preponderante, e, ainda, outras, só de relações (18° ) . A inves­
tigação jurídica deve-se lim itar, únicamente, à descoberta desta
m atéria. À m edida que a encontra mais pura, menos tem que
separar dela os elementos não jurídicos, e preenche perfeita-
m ente a 's u a tarefa. Seria incorrer em êrro achar a parciali­
dade nesta reserva imposta pela natureza das cousas. Isto não *

(18f>) < 'o m p a r c - s e , o r e x e m p lo , o c a s a m e n to e a o b r ig a ç ã o , o, n o q u e d iz re s p e ito


às p e s s ò o 'a ju ríd ic a s , a sso c ia ç ã o de m is s io n á r io s c um a s o c ie d a d e c o m e r c ia l, e tc .
96 RUDOLF VON J HERING

é negar a im portância dos. elementos não jurídicos (elemento


moral, econômico, político, e tc .), que aqùi não podem ser tra­
tados, ppr não haver lugar para analisá-los. Pódense e deve-se
analisá-los em seu verdadeiro lugar, e esta é um a das tarefas ’ca­
pitais de tèda a exposição histórica do direito, a de aprpfundar
hem êsses elementos, para obter o conhecimento perfíéito do
direito. ? - ; *
Quaiido o direito" antigo coloca o critério jurídico especí­
fico das relações jurídicas na idéia de autoridade, está, pen­
samos nós, inteiram ente com a verdade. Força de 3lôntade.~e.
autoridade, eis o oh jeto de toda relação jurídica despida de"
suas partes áccessórias e só considerada em seu meio jurídico.
As diferenças das relações jurídicas são diferenças de autorida­
de. O ponto característico das relações do direito antigo não
póde, pois, ser procurado na consideração de que são puras re­
lações de autoridade, porque eqüivaleria a dizer que so romanos
as tinhàm juridicam ente concebido. Sua característica gira me­
lhor na soma de -autoridade que concediam e na circunstância
de que essa autoridade é um poder absoluto, quasi ilim itado.
Sob éste ponto de vista, todas elas se parecem, qualquer que
pòssa ser, por outro lado, a diferença que ofereçam, podendo-se,
no fundo, designar essas relações jurídicas como fôrmas ocas,
abstratas, que esperam o conteúdo da vontade subjetiva. Tom a­
riam , então,^em cada caso especial de sua criação, um aspecto
diferente, algum as vêses grosseiro, repugnante sob o ponto de
vista m oral, outras atraente e satisfazendo todas as exigências
da m oral. Tudo depende, por tanto, do fim que a vida rom ana
lhes assinalou; sem a solução desta questão, é impossível julgar
essas relações.
Acredita-se, frequentem ente, inútil êste estudo, lança-se
a condenação m oral contra^todo o sistem a rom ano. - Deixa-se
dom inar pela idéia fixa de que o abuso desta autoridade era
juridicam ente possível, e que sem elhante abuso não era incô­
modo aos rom anos, deduzindo-sé, involuntariam ente da possibi­
lidade jurídica do abuso, a sua possibilidade real, sem refletir
que limitas cousas que, segundo o direito, podiam ocorrer, hão
eram realizáveis de facto Ç187) . Daí que os romanos e a m ora­
lidade rom ana acabavam por áparecer com o carater muito dis­
tinto do que tinham . Permi ti r-nos-á o leitor tornar êste êrr &
mais patente por meio de um a com paração. Essas formas abs­
tratas do direito não dão a imágem das suas instituições, tais
como realm ente existem na vida; apenas éram representadas por
simples silhiiêtas. A abstração jurídica nada mais traça que

(187) Quanto tempo não decorreria antes que a lex Canuleia, que permitiu os ma­
trimonios entre patrícios e plebeus, fôra uma verdade! Nenhum patrício dava a mão-
a um plebeu, c quando isso sucedia» os nobres de sua fam ília o excluiam das sacra..
T ito Livio, X, 23.
0 . ESPÍRITO- DO D IG IT O ROMANO Q7

os contornos jurídicos das diversas relações da vida; não deve


ném pódè fazer mais, como já o dissemos acim a. Assim como-a
silhueta difere do retrato, também a sombra jurídica difere d a
fíãágem verdadeira dá vida romana, porque nao da nem gqr,
nem luz, nem sombra; toda expressão da fisionom ia das institui-
«ções ^defeituosa; se se as representasse, tais cómo na realida­
de, dèáprovidas de alma, de,expressão, sem vida, certaniehte nos-
s ã repugnância por semelhante sistema .seria perfeitam ente fun­
dada. Mas semelhante apreciação pareceria ridículo á um ro ­
mano, para quem essa silhuêta apresentaria um sentido comple­
to. O quadro, tjue faria das instituições, e que dava o aspecto
da- vida real, era completamente qutró e oferecia muitos m a­
tizes e traços característicos, que temos por hábito descurar. Ñós*
não observamos, na teoria jurídica, numerosas restrições dò po­
d er subjetivo, as condições especiais de que dependiam certos
direitos, não de ju re, mas de facto; o romano, ao contrário, ti­
nha dela a percepção clara e nítida. ~~Esta liberdade abstrata do
direito encontrava, de facto, na vida rom ana, a m edida exaia e
seu tèrmo de comparação, e por m uito tempo se m anteve no
justo caminho; enquanto servia pára um uso mzoüael, não se
chocava contra nenhuma resistência; desde que abandonou esta
senda e degenerou em abuso, encontrou resistência pojr toda
parte, e surgiram obstáculos, considerações, influências, extra-
nhos ao direito* mas nem por isso dotados de menos força. Pou­
co importa, sob o ponto de vista do resultado, que a opressão
nasça de um a disposição legal, ou de qualquer outra força que
não se deve despresar, por exemplo, a opinião pública e as idéias
dominantes da honra. Não é necessário que tudo aquilo que
se não deve fazer esteja expressamente proibido pela lei, por­
que os usos pódêm produzir ó mesmo efeito que esta, e até
existem épocas è relações em que exercem um poder m aior do
que ela (ljB8) . Assim ocorria na época de que nos estamos
ocupando. Precisamente, no sistema da liberdade é que òs usos
parecem ter m aior ip ^ f^ io , ou p a ra ’falar com mais* exatidão, o
sistèma da liberdad^So é viável no decurso do tempo, quando
oã usos são bastante vigorosos para substituir o preceito legal.;
Principalmente, nos povos entre os quais êste sistema rècebeu o
seu completo desenvolvimento, os usos form aram um contra­
peso rigoroso, e constituem uma condição e um a autoridade, de
ordinário, despótica (188189) . Os usos são o corretivo espontâneo
da liberdade. Onde não estão solidamente desenvolvidos e bem
organisados, onÉe a opinião pública não exigir como ponto de

(188) T acito disse: Plusque vaJgnt ibi boni mores, quam a libi bonee leges.
(189) Por exemplo, na Inglaterra, na América do Norte, onde foi preconizada
quasi sempre pelos apóstolos da liberdade abstrata com uma simplicidade e com­
placência assombrosas.
98 RUDOLF VON J HERING

honra o uso digno da liberdade^e o mòdo de impô-là,-a liberdade


não prospera.
Os meios de que dispunham os costumes, em Roma, eram
sumamente eficazes. Falámos anteriorm ente da censura. Ago­
l a é preciso acrescentar a infâmia, a condenação moral pela opi­
nião pública, agravada com a pèrda de todos os direitos^çolítU
cos (19019) , e, também, o direito que tinha o povo de escolher os
seus funcionários. Entre nós, quem diverge da opinião pública,
póde alcançar o poder e a influência; em Roma, na época anti­
ga, isto era impossível. Quem, em sua vida privada, ou pública,
se colocava fora do respeito à opinião pública, estava perdido.
Diante da publicidade, que penetrava em toda a vida romana,
da atividade dos adversários e dos concorrentes, qualquer indi­
víduo, que, em Roma, desejava um emprego público, devia obter
sobretudo, o veredictum, submetendo-se à crítica do povo. Que
esperança podia alim entar quem se tornava indigno do favor
público? A brutalidade e á crueldade com a mulher, os filhos e
os escravos; a aspereza para com os devedores que se tornaram
insolventes em conseqüência de seus infortúnios (lftl) ; em suma;
as ações que, em direito, eram absolutamente permitidas, mas
que a conciência do povo condenava e os costumes proibiam, su-
blevavam-se enérgicamente contra o pretendente. Que dizer dos
tribunais populares! Recorde-se ò que referimos acêrca da in­
fluência que exercem sobre a personalidade do acusado as pre­
disposições do povo. Não era necessàrio que êle cometesse um
crime, propriam ente dito, para responder perante o juiz; a mês-
m a sorte podia ter quem, sob o ponto de vista do direito fórmal,
agia, por exemplo, quem de sua patria poiestas fizesse uso in­
justificável (192) . De que lhe servia escudar-se no seu direito
abstrato, quando ò povo, conciência- viva da idéia jurídica, jul­
gava que se havia servido dêsse direito de um mòdo que repug­
nava o espírito èsse mêsmo direito? Sua sem razão, sua culpa­
bilidade consistem em se colocar fóra dos costumes e do julga­
mento moral, ficando isolado em seu direito pessoal, por se es­
quecer dás considerações devidas à comunidade, que lhe acon­
selhava a proteção dêsse direito.
Estas considerações restringiam, de uma fórm a singular, a

(190) Por éste motivo, Cicero, pro Roscio Com. e . 6 . . . chamou a questão da
infâmia, uma questão de existência: Summee existimationis et poene dica al capitis
causa, pro Quint., cl r , de capitis causa.
(191) A agitação e a cólera, por éstos motivos» no povo, levou-o até a amotinar-se.
T ito L ivio , II, 23, 27, V ili, 28. Gellius , XXI, §25, diz, falando da antiga execução
pessoal: Swuitia isia poente contemni quita nón est.
(192) Casos flagrantes desta espécie podiam ¿exasperar o povo a tal' ponto que não
esperava mah que o dia do julgamento para dar curso a seus sentimentos. Veja-se,
por exemplo, S eneca de dementia, I, c. 14: Erixonem equitem Homanum memoria
nostra, quia filium suiim ftagellis acciderat, populus in foro graphiis confodit. Vix
ilium Augusti Ceesaris auctoritas infestis tam patrum, quam filiorum manibus eripuit.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 99

liberdade abstrata do direito privado, ou p a ra falar com mais


precisão, tirava-lhe o carater anti-natural. Mil barreiras, mil
condições, mil reservas, tão eficazes como se a lei as tivesse es­
tabelecido, vêm assim agrupar-se no quadro vasio da liberdade
abstraia. A forçar dos usos, o censor, os comícios eleitorais, os
trib u n ais populares, toda a vida romana, que, de facto, lhe dão
força, formam os núm eros subtraídos que geralmente* se perdem
de vista pára o direito abstrato. Não temos, pois, mais que fa­
zer com êles o cálculo para obter um rebultado prático satisfa­
tório: o poder absoluto não está confiado ao indivíduo senão
para que faça dêle um uso justo e não puram ente arbitrário. 0
Estado não proíbe o abuso senão quando é absolutam ente conde­
nável, nem reprim e senão as manifestações do poder subjetivo,
que não podiam ser toleradas sob nenhum ponto de vista, quais­
quer que fôssem as condições em que se produziram (193) . Pas­
sam em silêncio aquelas que não pódem ser qualificadas de abu­
so senão de um mòdo hipotético (194) Para proibi-las, a lei ti­
nha que entrar èm conjecturas e possibilidades que se perdem
de vista, e, apezar disto, correria sempre o perigo de exceder o
fim, ou de não chegar a 'ê le . Um julgamento exato sobre êste
ponto só póde ser cum prido num caso concreto, e fica sujeito
à apreciação individual-. O abuso de confiança do indivíduo não
póde ser, em verdade, impedido nem castigado pela le i. Mas,
abrange inteiram ente a espécie concreta, isto é, o censor, o povo,
em vês de sua letra m orta se coloca, em Roma, a lei viva que
abrange internam ente a espécie concreta, isto é, o censor, o povo,
<e, como veremos m ais adiante, a fam ilia.
Convenhamos em que a liberdade individual não tivesse
esse aspecto, dêsdé a sua origem, mas sempre o teve na época
florescente da república, em que revestiu èsse caráter de mode­
ração e de justiça m oral. Tratando-se do poder doméstico, uma
de suas emanações principais, teremos ocasião de dem onstrar
como o seu aspecto prático se afasta da fórm ula jurídica abs­
trata. Tomemos um exemplo, que vem em apôio da afirmação
anteriorm ente em itida: a patria potestasf para os romanos, não
era o direito estrito, imóvel em seu rigor, de vender os filhos,
de desherdá-los, de matá-los* etc., mas o poder de educaçm , o
meio social em que a vida se desenvolve, lim itada e m oderada
pela autoridade suprem a do pai. Há m ais: do ponto de vista

(193) Como exemplos dc semelhantes restrições, há a destituição da administração


<ie bens cominada aos dissipadores, a proibição aos pais de vender mais de 3 vêscs
seus filhos, o máximo da taxa de juros, etc.
(194) Por exemplo, as ameaças de morte contra os filhos por parte do pai, a
dissolução do casamento feito pelo marido. Êstes factos podiam ser absolutamente
justificados, ou absolutamente injustificáveis: em primeiro logar, quando o filho comete
nm crime capital, ou quando a mulher rompe o laço conjugal; em segundo logar,
quando não são justificados por nenhuma razão, ou pelas razões insuficientes.
tÓÓ Çü D Ö LP VON J H ¿ R I N Q

-•da apreciação comum das colisas, ó elemento jurídico e o ele­


mento m oral se confundem inteiram ente. No curso ordinàrio
da Adda não se fazia distinção rigorosa entre esses .elementos, e
q homem extranho ao direito podia, em virtude de Certas dispo­
sições particulares, perguntar quem òs havia prèscrito, — ö di­
reito, ou os eos tupies? Isto é o que p ro v a rá toda evidenzia, á
instituição dó tribunal de fam ilia. A nátureza m ixta desta cria­
ção é incontestável. E la tem obstado a muitos historiadores,, em
suas- sempre abortadas tentativas, de querer tra ta r é resolver;
juridicamente, isto é, como questão de direito, tudo o que se re­
fere a esta instituição.
0 car a ter distintivo das relações do antigo direito privado
não se estriba em que as considerassem como nascidas dó prin­
cípio de autoridade, porque também a ciência atual funda á
essência prática do direito na idéia de autoridade (195)¿ se bem
que às relações daquêle se" distinguem quasi sem pre pela soma
de seu conteúdo de autoridade.
O antigo direito se baseia no princípio dà vontade subjetiva
(§ 10-15). Dê acordo com êste principio, o individúo è por si
mèsmo o fundam ento e a fonte do direito: é o seu próprio legis­
lador ( «vTóç vójtoç ) . Seus atos de disposição tomam, dentro da
esfera de ação, o mêsmo carater que os do povo na sua. Tanto
de uma parte como de outra são leges: naquela, leges privates,
nesta, leges publicce, mas têm identidade completa no seu fun­
damento jurídico. P ara tudo o que concerne à casa e aos inte­
resses privados, o chefe de família, possúi o mêsmo poder legis­
lativo e judicial que o povo, no que interessa à generalidade dos
cidadãos. A idéia que fórm a à base do direito privado antigo
é a da autonom ia. A lex publica im punha restrições-à legislafcãõ
privada só quando o interesse de todos? o reclam ãvà bqipériosa-
m ente. Mas* com paradas essas limitações com as do itìr^ito pos­
terior, são do pouca im portâncià; foram precisos 'fe^hios para
destruir o antigo conceito‘e dissipar o tèmor que exis ^^f^ res­
tringir a liberdade privada.
A idéia da autoridade suprema domina em todas as
tuições de direito privado antigo. O poder do chefe de fas
lia sobre os entes que a compõem, m ulher, filhos e escravas, ò
do credor sobre o devedor, o do proprietário sobre a proprieda­
de, maximé quando dispõe dela por testamento, tudo isto im pri­
m e o mêsmo cafa ter de um poder -quasi ilim itado. O poder do­
méstico exige, pois, detida, explicação (§ 36-37), enquanto que
as outras somente darão logar a breves explicações.
A 'respeito do direito hereditário, reproduzimos acima (nota
67) a disposição da lei das XII tábuas, que reconhecia ao tes^
tador um a liberdade ilim itada: “ O qiie êle haja disposto* será

(195) Prová-lQ-emos mais adiante, no § 41.


O E S P ÍR IT O DO D IR EITO ROMANO lÒ l'

direito” Tão enérgica disposição, segundo o prova a história,


iião existiu em povo algum, nem antes, nem depois dé Roma.
Queih poderá negar que semelhante preceito não podia chegar a
ser, para a família, a causa da mais revoltante injustiça? Mas
ésta possibilidade abstrata estava muito longe de verificar-se.
Apezar da mais absoluta liberdade de testar, o espírito de fam í­
lia^ quando é puro e vigorosamente, desenvolvido, m antem a-feli­
cidade ém seu meio natural, que é o da fam ília. Os numerosos
testemunhos que se nos transmitiram , atestam como a tendên­
cia natural de conservai*' o patrimônio da familia, à descendên­
cia masculina era própria do espírito romano (196197) . A liber­
dade de dispor de seus bens como lhe aprouvesse, reconhecida*
ao detentor do patrimônio da fam ília ,era, em suma, mais favo­
ráv el que funesta; o pai desherdava o filho pródigo, ou dissoluto,
limitando-se a proporcionar-lhe os mêios de subsistência neces­
sários* enquanto que transm itia a totalidade do patrim ônio a ou­
tro filho, de quem podia esperar a conservação e o aumento do
bem-estar, d a honra e o esplendor da fam ília (m ) . Isto não
somente o permitia, como o exigiera moral rom ana. A fórm a
<jo tesamente) apresentava outro meio de garantir êsses interes­
ses. Depois do largo período em que o conteúdo do testamen­
t o escrito podia sei* revelado perante testemunhas, aquêles a
quem se devia supôr que seriam regularm ente seus sucessores,
por serem os parentes m ais próximos do testador, podiam, por
suas observações e conselhos, impedi-lo de tom ar disposições
desfavoráveis.
O proprietário tinha a mèsma liberdade de dispor de seus
bens, tanto por ato entre vivos, como por testamento (198) . Não
existe, absolutamente, m atéria, n a .q u a l a idéia do poder abso­
luto sobre arçdy%a seja tra d u z id à ^ interpretada com tahió rigor,
como n ^ ^ rq p ried àd e rom ana. É’ um poder absoluto, tanto no
que diz^M^peito aos meios de proteger a propriedade (rewindi-
ino no que concerne ao seu objeto. Cortamente, éste
quanto às cousas imóveis, amoldou-se a certas necessi-
práticas, comò acontece nas que o proprietário deve so-
rorer,’ ou das quais deve abster-se, em benefício de seus vizinhos.
'No in ta n to , se se considerar à propriedade (o que em súà es-

(196) Citaremos, como exemplo» a tutela das mulheres, a restrição da sucessão


testamentària e ab intestai das' mulheres, assim como a fixação da importância dos
legados, a cura prodigi, a intervenção dos censores. Expulsaram, por exemplo, a C.
Antonius do Senado, porque alienou seus beiis, em virtude de suas. dívidas. Ascon,
.ad orát. de toga cand. Orell., pag. 84. ^
(197) Val. Max., 3, 5, § 2: quem NIMIA PATRIS INDULGENTIA heredem rcli-
querat. Dolenter quim, acrescenta, homines ferebant, pecuniam, QUJE FJCBí JE GENTIS
SPLENDORI SERVIRE DEBEBAT, flagitiis dìsjici,
(198) R udobff , S ch riften ... (Escritos dos agrimensores romanos), II, 302
admite que na época mais antiga as cousas imóveis çram inalienáveis. Voltare;
.sobre éste ponto no voi. III.
toi RTÜDÒLF VON J HERING

sêiicia não é), comò uma cousa que não tem nenhuma correla­
ção com as propriedades vizinhas (tais são as cousas móveis),
haveria uma contradição entre esta situação do proprietário e a
idéiar^abs trata de seu poder. Mas isto não enfraquece em nada
o que dissemos (19920) . A* liberdade da propriedade privada* our
de ùm mòdo mais geral, o principio de autonomia ilimitada das
relações privadas, verifica-se com as aplicações seguintes:
1. — No direito absoluto de alienar a propriedade. 0 di­
reito antigo ignora, compleamente, a instituição híbrida que me-
deia entre a propriedade e o usufruto criado pelas interdições
legais de alienar, ou seja á paralisação de um a parte da proprie­
dade, que deixa ao proprietário o direito de gozar e de reivin­
dicar, mas que o impede o de dispor. Ninguém póde impugnar
uma alienação feita" pelo proprietário, nem os credores, nem os
herdeiros mais próximos. Ninguém póde proibi-la, ou dificul­
tá-la, nem mesmo a própria autoridade. Seria monstruoso aos
olhos dos romanos, reconhecer a quem quer que fosse como pro­
prietário, e declarar, âo mêsmo tempo, nulo o ato que praticasse
nessa qualidade. O único impedimento à faculdade de alienar*
conhecido no antigo direito, é a proibição de consagrar uma cau­
sa litigiosa ao templo (20°), que acarretava penas, mas não nuli-
dado. As únicas pessoas, às quais foi proibido alienar, eram as
que estavam sob tutela; mas, nesse caso, não era que a proprie­
dade estivesse limitada, eram as pessoas que se encontravam
diminuídas em seus direitos. A tutela dava, também, o m eia
jurídico de coibir o pródigo qúe não ouvia as advertências do
censor. Mas o direito antigo jam ais poderia conceber uma usur-
pação parcial da idéia da tutela sobre a liberdade da proprie­
dade, tal como contêm, por exemplo, a proibição de alienar c*
fundus dotalis, ou o fideicomisso da fam ília. Quem era pro­
prietário, o era completamente, sem obstáculo da lei. O abuso
do direito reprim ia-se por outros meios, mas não pela proibição;
assim, por exemplo, a alienatio ih fraudem creditorum podia
acarretar a execução pessoal; más não ocorreu senão quando
perdeu o carater terrível, e tornou necessária a actio Pauliàna*
2. — A divisibilidade ilimitada de bens de raiz é, também*
uma aplicação do princípio da liberdade absoluta de alienar as
cousas imóveis, que nunca esteve, que saibámos, limitada pelas
leis de Roma. Não seria, no entanto, impossível que a institui­
ção do registo do cênso excluísse o desmembramento de fundos
originàriamente inscritos como um todo; só assim se explicaria

<199) Ocupaino-nos várias vêses dessa diferença, que resulta da natureza das coisas
móveis ou imóveis. Jahrbücher. . . VI, pag. 83 s .; sobre a garantia da liberdade da
propriedade territorial contra o perigo dos imposto« exeessivos. Veja § 38.
(200) L. 3, de litig. U ,S) .
O ESPIRITO DO DIREITO ROMANO 103

que os antigos lotes de sete jugera se pudessem conservar na


época posterior (201) .
3. — Ao direito absoluto de alienar corresponde, por outro
lado, a faculdade lim itada de adquirir, e inútil é procurar,
em Roma, limites à capacidade pessoal, nêste sentido. O comér­
cio e a indústria desconheciam êsses monopólios e essas associa­
ções, que floreceram, em grande número, no nosso sólo nacional;
cada um exercia o ofício para o qual se sentia capaz, ou era de
sua vontade e agrado. A única exceção, que saibamos, na epo­
ca posterior, foi a proibição do comércio para os senadores.
Viu-se, muitas vêses, aos Estados preocuparem -se em asse­
gurar a cada profissão suas fontes de lucro, no desejo incessante
de extinguir as causas do pauperismo, e chegou-se a tirar ao indi­
víduo direitos que com êle nasceram, exigindo que antes de con­
trair matrimônio, ou de fundar domicílio, justificasse os meios
de existência. Mas, esta tutela do Estado, não se podia conciliar
com o sentimento rom ano da independência pessoal. O Estado ro­
mano, procurava, também, rem ediar a pobreza, m as por outros
meios, não pela restrição da liberdade pessoal (§ 39). Nada abso­
lutamente, de restrições artificiais, no que concerne às cousas. Ne­
nhum fideicoipisso de fam ilia destinado a conservar o bem de
fam ilia; isto se conseguia gela sua própria atividade e esforços.
Nenhuma organização feudal - monopolisando a posse do sólo
nas mãos de urna casta previlegiada; cada um podia adqui­
rir bens. E nada existia que fosse subtraído à posse privada, ou
aos deuses (res extra com m ercium ). Em duas circunstâncias*
somente, o antigo direito infringiu o princípio da liberdade ab­
soluta do comércio jurídico. Pela prim eira vez, fê-lo na lei
Licinia Sextia, do ano 387 de Roma, prom ulgada em benefício
do pequeno agricultor, para im pedir o aumento das grandes ex­
portações agrícolas (^02) , Esta lei continha três disposições res­
tritas: a prim eira estabelécia a medida de 500 jugera como o
máximo de terreno, tanto do ager privatus, como do ager pu­
blicas, cuja posse podia estar em uma só m ãó; mas, bem enten­
dido, sem privar de cafater jurídico, a posse de m aior quantida­
de, que era proibida, punida, mas não juridicam ente impossível.
Esta proibição era, em linguágem moderna, um a m edida de polícia,
deixando-intactos o princípio do direito e o da propriedade í 203).
A segunda e a terceira disposições eram relativas ao máximo do

(201) Segundo a explicação de R ossbach , U n ters... (Estudos sobre o matrimônio'


romano), pag. 429: "Depois da morte do pai de família, ocorre frequèntemente, que os
filhos permanecera unidos para cultivar cm comum o seu patrimônio” Mas esta ex­
plicação não basta. Uma relação de semelhante comunhão pódc manter-se quando
multo em duas ou tres gerações^, mas nunca durante séculos.
(202) H u s í b k e , sobre V arbão de I>. L. V 38. R udorkf, Hörn. Hcchtsg. (IUs­
toria do Direito romano), I, § 15.
(203) Na linguágem romana, esta era uma lex minus quam perfecta.
l if t R U D O L F VON J H ERIN G

gado que er^ perm itido ter* e ao nùmero de operários que se


poderiam empregar, independentem ente dos escravos.
-7; A segunda restrição'refere-se. ao comércio de dinheiro para
reprim ir à usura, problem a cuja solução procuraram , durante
dois séculos, a legislação e a administração rom anas, sem poder
iconsegúir o seu objetivó. A gravidade é im portância desta qúes-
tãó: social e política, já foi mais acima indicada. Carece de in ­
teresse, para nós, seguir a história das limitações das taxas de
juros, em Roma; im porta, porém, fazer notar que só tinham 0
carater de medidas de polícia, e não podiam alterar, legalmente,
o princípio da autonom ia. Assim, a promessa do juro, mesmo
acima da taxa legal, era juridicam ente válida e exigível em ju í­
zo, mas punido pela lei quem a aceitava (¿0* ).
Além disso, a idéia de autoridade e de forca privada se
desdobra, em m atéria de obrigações, especialmente na dívida
antiga, com o m ais extremado zèlo e a mais rigorosa severi­
dade .
Como conseqüência lógica da natureza pessoal da obriga­
ção, a faculdade dó credor atingia, únicámente, à pessoa do de­
vedor, cujo patrim ônio ficava a salvo, enquanto que a sua pes­
soa respondia pela d ív id a . A execução da dívida era o aniqui­
lam ento do devedor : de sua personalidade jurídica, quando só
havia um credor (venda -ao estrangeiro, como escravo); dè sua
personalidade física, quando havia vários (m partes secare, sé-
gundo a lei das XII tábúas, isto é, a dissecação do devedor). Am­
bos os meios de execüção davam, sem dúvida aos credores a pos­
sibilidade de exercer um a vingança terrível; m as tinham, no
entanto, por fim im ediato induzir o devedor e õs membros dá
fam ília a pagar a dívida. Se, graças a seu patrim ônio, o de^
vedor gozava de certa independência relativam ente ao seu cre­
dor, era necessário garantir o prim eiro contra as fraudes do se­
gundo. O crédor não podia violentar o devedor recalcitrante^
pára a cobrança d a-d ív id a; foi necessário procurar um meio
eficaz para determ inar.sua vontade. As pérfidas e fraudulentas
maquinações, praticadas em detrimento dós credores, que ainda
hoje dificilmente se podem evitar, recaiam sobre a pessôa do
devedor, que não podia, sehTd^consentimento de seú crédor, sub­
trair-se à pena em que incorrera.
E’ verdade que a mesma pena podia atingir ao inocente,
*a quem a infelicidade tornara insolvável. Mas, repetimô-lo, nãó
era preciso se temer essa possibilidade puram ente abstrata. As
cõusas não se passam na vida como se m astram no direito . Se-204

(204) Manus injectio tendendo ao quádruplo (volume IV, § 62) e acusação pública
por usura, Trro Livio, X, 23.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 105

gundo os próprios romanos, jám ais houve um só caso de seme­


lhante dissecação do devedor (205) Isto quereria dizer que o
precei-to fosse um simples espantalho? Não, absolutamente. O
devedor que insultasse os seus credores, evitando por todos os
meios pagar a dívida, na persuasão de que eles não o executa­
riam , aplicando-lhe penas deshumanas, teria de se convence/ do
contrário, por experiência própria. Os credores o esquartejavam
logo; mas, primeiramente, podiam vèr a impressão que lhe cau­
sava a secção de um dos membros, — orelhas, nariz, etc. : Si
plus minusve secuerit, sine fraude esto! Antes que se chegasse
aos bracos e às pernas, a obstinação do devedor estava certa­
m ente vencida, ou melhor, á compaixão de seus parentes e ami­
gos vinha em seu auxílio. Quando não se conseguia este resul­
tado ,era uma prova que nada havia de se esperar de seme­
lhante devedor, e então o mêdo da cólera popular podia ainda
im pedir os credores de exercer jurisdição criminal, como se po­
deria cham ar esta espécie de execução. O mêsmo sucedia com
a venda do devedor ao estrangeiro, que era bastante» eficaz, quan­
do se tratava de atemorizar ao devedor solvável, m as recalci­
trante, e não aplicável em caso de insolvência culpáuel. A pie­
dade do credor, a assistência dos parentes e dos amigos, etc.
ocorriam tão raramente, que só se produzia, regularmente, em
favor de um insolvável não culpado. Bor mais que se trate de
atenuar a sorte déste último com pretextos favoráveis, a pers­
pectiva do perigo, que o ameaçava e que o punha completamente
à disposição do seu credor, era certa, e ninguém, mesmo o mais
ardente admirador dos romanos, sustentará, sem refletir bem,
que' usassem de semelhante poder com atenção'e hum anidade.
Concebesse, ao contrário, que o credor arranque ao devedor o
pouco que possúi e ganhe (206), que o obrigue até a serviços pes-

(205) Ge ix l , XX, 1. Nihil profecto immitius, nihil immanius, nisì, ut re ipsa


àpparet, to consilio tanta immanitas poenee denunciata est, ne ad earn unquam pervè-
n iretu T ... dissectum esse antiquitus neminem equidem ñeque legi, neqúi audiui. (Pa­
lavras atribuidas a A fricano ) . Mas querer negar o alcance da dissecação do devedor,
estabelecido na pròpria lei, e dizer que . as palavras — inpartes secare, se referem à
divisão de seu patrimônio, é não sómente contradizer o ensinamento ministrado pelos
romanos, como todo o sistema da lei, de acordo com a demonstração filológica. E.
H o ff m a n , Das g esetz... (A lei das XII tábuas), Viena 1866, pag. 63LrG6; mas é só
para mostrar abertamente que esta lei não teve os motivos práticos e psicológicos que
levou o direito a aplicar, contra o devedor, tão extremado rigôr.
(206) Frequentemente, para T ito L ivio, semelhante apreensão era nula d e d ir e ito ,
mas eficaz de facto, para a fortuna do devedor, especialmente dos ausentes. Veja-se,
por exemplo, II, 2 4 ... ne quis m ilifiS', donee in c a s tr is esse t, b o n a p o s s id e r it au t
venderei.
106 RUDOLF VON JHERING

söais (207) . Isto não é uma das conseqüências da execução, m as


lratava-se de prevenir a execução, p ara não se chegar a efeti­
vá-la .

-------------------------------------
(207) Seja de serviços particulares momentâneos, que não afetam, de modo algum,
a sua liberdade, seja de um estado permanente de servidão, que sustava o exercício de
seus direitos políticos. V arrão, de re rut. I, 17, diz que nuuitos escravos se empre­
gavam na agricultura, sendo pagos por día, como pessoas livres, ou ii quôs abaratos
(al. obararios, sendo èstes os condenados adjudicados a seus devedores como pena, de
seu atrazo) nostri pocitaverunt et etiam nunc- sunt in Asia atque Egipto et in llìyrica
complures. V arrão, L. L. 7, 5, § 105; Liber1 qui suas o-peras IN SERVITUTE pro pecunia
quadam debebat dum- solveret, NEXUS vocatur ut ab aere abeeratus. Também tomavam-se
os filhos dos devedores, T ito L ivio, II, 2 4 ... neue liberos nepotesve m oraretur; VIII, 28r
cum ob ees d ’.ienum paternum se nexum dedisset e liberumque suorum respectó.
Existe certa analogia exterior entre èsse estado 'permanente de servidão, fundado
sobre um pacto feito para prevenir a ekecução (pacto "que é preciso não con­
fundir com a verdadeira mancipação), e a qualidade passageira do devedor, sem obri­
gação de servir, que sc encontra no antigo processo executório. Vê-se nêle o cativeiro
da lei das XII tábuas, mas, ' no fundo, existe a diferença radical de qué o pacto que
tratamos se apoia no jus pacisccndi legalmente reconhecido. A lex Peetelia Papiria
(T ito LiviOb VIII, 28).aboliu o nexum néste sentido (mas conservou-o para p caso dê
divida líquida). Os tèrmos bona debitoris, non corpus abnoxium esset, de T ito L ivio ,
não se devem referir à execução, mas ao jus paciscendi, que podia ter por objeto a
fortuna do devedor, mas não a sua pessôa. Quando, depois desta lei, os devedores pa­
gavam suas dívidas com serviços feitos ao credor, coisa que ninguém lhes podia im­
pedir de fazer, tomavam-se livres, conservando o gozo de seus direitos políticos,
podendo, se o credor os tratava mal, deixar em qualquer momento de prestar os seus
serviços. B urchatdi, Lehrbuch des rõm Rechts (Curso de direito romano), 2.» parte,
i 129, é da mesma opinião.
11 SECÇÃO. — O Poder Doméstico

A casa é um asilo. — Refugio e concentração da familia na casa-


romana. — Os três poderes domésticos (sôbre os escravos, os filhos e as
mulheres) — Seu conteúdo jurídico abstrato. — Aspecto exterior da*
escravidão na vida romana.

Q uid e s t s a n c tiu s , orniti re lig io n e *


m u n itiu s q u a m d o m u s u n iu s cu ju squ e
civiu m ? H ie h a ra e s u n t, h ic fo c i, h ic d ii'
p e n a te s , h ic sa c ra , Religiones, c e re m o n ia e *
c o n tin e n tu r .

Cíe. pro domo, c. 4.

36. — O lar doméstico, sob o ponto de vista do direito priva­


do* representa, na vida rom ana, papél milito im portante. Cons-
titúi o centro prim itivo, seu prim eiro territorio, e, por èsse mo­
tivo, o costume rom ano exigiu que, na celebração do casamento,
a m ulher fosse conduzida ao domicílio do m arido (deduetio in
domum) (208), conservando sempre, mesmo quando o poder do­
méstico se extende além dos estreitos limites da habitação, unv
carater especial, sôbre tudo quando se relaciona com o patrim ô­
nio que êle guarda. Nessa comunhão de pessôas e de cousas,,
encerradas no mesmo espaço, as próprias cousas, afetando a
existência pessoal im ediata e a vida da fam ilia, adquirem uma
significação m oral, que tornaria completamente imperfeito o pa­
trimônio, destacado desse quadro (209) .

(208) . L. 5 i. f. de R. N. (23,2).. deduetione enim opus esse in mariti,


uxoris domum, quasi in DOMICILWM matrimonii.
(209) Não poderia, talvez, vêr-se nossa idéia a base da antítese de uas expressão«,
familia e pecunia, com as quais o antigo direito designava o patrimônio? A origem
etimológica da família é a casa (nota 221); pecunia vem de pccus, ou seja o valor
móvel mais antigo; daí peculatus, isto é, aquisição do nebanho dado como multa, o
peculium, origiáriameiite o pequeno rebanho dado aos escravos, mais tarde o patrimônio
formado por pessôas submetidas ao poder doméstico que só podia ser caracterizado
pelo valôr pecunia, e como base da existência doméstica, isto é, a fam ilia. A palavra
pecunia e não familia, se emprega igualmente para designar o patrimônio do povo, que
nada tem de comum com a casa e o poder doméstico, e, no entanto, é também um
valôr. Também**, no direito inglês, um animal doméstico; constitui o ponto de partida-
estimológico de uma classe especial do patrimônio (cattels real e pessoal, de catalla.
H)8 < I ^ J DQLP yON JHBRING

Entre todos os bens, o lar ocupa um lugar proem inente; um


sentim ento natural une à idéia de lar à paz proverbial que nele
deve reinar, porque é o asilo_que protege ^quem o habita contra
o mundo exterior. Em parte algumá, como nele, a personali­
dade sente mais vivam ente as lesões de’ que é alvo, e quanto
m ais os seus ataques perturbam a paz que nele se encoiitrá* màis
cruelm ente sentida.é a ofensa que se causa i 210) . No lar é onde
os desejos de expontáneidadé e de independencia, que ó m undo
exterior tão a m iude se recusa cum prir, buscam e reclam am , im­
periosam ente, a sua satisfação. Nêsse „estado de isolamento;
quanto ao espaço, avivado pela conciencia natural de si mesmo,
é onde, especialmente, o sentimento da personalidade jurídica
vive despérto e alerta. Um dos perigos mais graves, que resul­
tam das circunstâncias sociais e econômicas, em que vivemos na
Alemanha, consiste em que ra ra vês se consegue, nas grandes
cidades^ a pòsse de unia casa própria e habitada por um a só
fam ília, não somente por operários, mas até classes abastadas;
e, no entanto, a easa própria é parte integrante do carater do
hom em .
A idéia da paz do lar encontrou expressão na reconhecida,
inviolabilidade do comício, qüe muitas legislações consagraram ,
em princípio, como sucedeu com ò antigo direito. Em Roma,
e ra , além disso, considerada sob outro ponto de vista, porque o
domicílio romano era um lugar santo, no sentido próprio, isto é,
religioso, e tinha o carater de asilo, amparado, pela religião. A
casa rom ana não era somente habitada pelos homens; os deuses
n ela residiam, era, também, o templo de Vesta e o altar dos
penates. A rrancar violentam ente de seu domicilio ap dono da
cãsa, seu sacerdote, fora um a ofensa aos deuses. O fas e õ jus,
deféndem -nó (211) . Ainda mais, até sem em pregar nenhum a

chattels; animais domésticos, efeitos móveis) em oposição à propriedade territorial ou


im óvel. Gu n d e r m a n n , Engl. Privatr. (Direito privado inglês). No antigo' direito
russò, as contribuições do Estado (Òbrok, literalmente, alimentos) começam pela pres­
tação natural de'gados, péles, etc., substituidos mais tarde por dinheiro, ainda qué
o nome fique c mêsnro. E w ers , Das ält. R e ch t... (O direito antigo russo), D orpat,
' 1826, pggs. 36 a 38. Quiz-se atribuir a idéia de familia aos fam uli- (Veja-se Be t h m a n n
ffoLi/wEG, Der Cvil process.. (Processo civil do direito comum), I, pag. 136). Mas-
■deve rebater-se, porque nessa dupla designação do patrimônio, o elemento precisamenté
mais importante, a casa, é o esquecido. Veja-se na disposição de Co n sta n tin o , D.
"22, Cod. de adm.. tut. (5,37), um reconhecimento prático óu legislativo dâ importância
ética do lar (da casa romana,, nela compreendendo os escravos). Esta d isposiçãó^véda'
ao tutor a venda da familia no sentido anteriormente indicado e o permite,. * Vde
pecunia.
(210) Daí as disposições do direito posterior, ao falarem da morte do cúmplice da
mulher adúltera, ibsistem no domicílio. Có l l o t . leg. Mos., 4, 12 § 1 .. domi suae vel
generi sui deprekensnm, § 6, ’ita de mum si eiim domi suee deprehendat.
(211) Fas; veja-se Cicero pro domo, c. 41: Hoc perfugium e s t'ita sanctum, ut
inde abripi neminem FAS sit. O ju s; veja-se L. 18 de in jus vicC^.(2,4). Plerique
pútaverunt •ntí&lum de domo sua in jus vócari licere quia domu.s' tútissim um caique
OSSfPíRITO DO 'MRÉJPO ROMANO 109

violência, havia dúvida em poder citár-se a qualquer pessoa*


judicialm ente,' dentro de sua casa.
As visitas domiciliares não parecem, no entañto* repugnar
qòs ropa anos ~ Não somente no processo das questiones perpe—
tiW i pertencentes ao terceiro período, em que o acusador, públi­
co tinha o direito de penetrar em qualquer caso (212), quando
Vresumiã a existência de documentos que faziam fé em juizo e de
J ivros domésticos, cuja pòsse era precisa, como até na lei das -XII
táb u as se menciona o caso particular, o da busca dè objetos rou­
bados (213) À lèi não previa a oposição do dono à visita do­
m iciliar. Póde-se deduzir disto que a intenção" da lei estivesse
em que essa resistência deveria ser vencida com o emprego da
força? Semelhante invasão violenta no domicílio oferece sem­
pre algum a còusa dè extraordinário e odioso. 0 édito do Pre­
tor escusava-o* quando a negativa era considerada como um a
confissão e castigada com a pena capital (214) . E ’ provável^ no
entanto, que disto, como da teoria do fortum, em geral (21^), não
fizesse m ais que sè cingir a um a antiga prática. Não investi­
garemos se eram, tomadas medidas coercitivas no procedimento
crim inal, quando a acusação pública encontrava resistencia, oú
se a. pena cominada àquêle que resistia (216), era o meio único.

refugiuid atque receptaculum sit cumque, qui inde in /u s vocaret, vim inf erre videri.
L. 3?1 ib id . Sed etsi qui domi est interdum vocari in jus polest, tame de domo sua
nemo exirahi d eb et."
(212) Gf. ir , G esch ... ( História do processo criminal de Roma), p a g . .3 5 4 ; Os
e x e m p lo s s ã o d a èp oca de C icero, m as n ad a in d ic a q ue an tes e freq u en tem en te f o s s e m
d e o u tr o m o d o .
(213) Gaio , III, .186 s. A lei conhece duas formas: a forma moderna, ou não«
solene, pela qual o investigador vestia as suas roupas usuais e que acarretava a pena
do triplum quando a investigação descobria as. coisas roubadas dct. fu rti' concepii ;
veja-se GAWyrlf 186, 191) ; uma forma mais antiga ou incômoda para o investigador,
era a. que devia atuar nú, cingido por um avental de couro) e munido de uma escúdela
(III, § 53); (per- licium et lancem) e que acarretava«, a pena do quadruplum. Gaio , §
192, 193 forma que data provávelmente da època primitiva dos povos indogermánicos,
porque se encontra, não só entre os gregos, com o, também entre os povos dó Norte; J .
Gr im m , Revista histórica de S avigny , II, pag. 91; mas que deveu nascer sob a zona
tropical, porque fora impossível cumprí-la nà Groenlândia ou na Islândia. «Na Noruega
o avental era substituido por uma camisa (G r im m , I. c .)., indicação interessànte para
elucidar a questão do centro originário dos povos e da familia indogermànica. O
acusado' podia reclamar a forma antiga, mas podia-se di&suadi-lo disso, agregando à
.torma, moderna de urna pena mais branda, forma que era, por assilli dizer,, uma pro-
' postá de acôrdo que podia «substituir sem se expor ao act. furti prohibiti, enquanto
-que se expunha a èie quando se opunha ao que era para as duas partes o direito ri­
goroso. Nada, tinha de extranho, além disso, que Gaio , que não tinha diante de si
essa progressão histórica, encontrasse tota lege ridicula.
(214) ^G aio , ì l i , 192.
(215) Por exemplo. Gaio, III, «196, 191, loe. cit.
(216) P e n à ^ e p e n dente d o p len o p o d e r d o a cu sa d o r (G eib , l. - e ., p a g . 285).
IVO RUDOLF VON J. H E R I N G

anas certamente eficaz (217), de quebrar a sua resistência (218) .


'À intercepção exterior da casa, que assegurava a sua paz
-contra qualquer perturbação e violência, correspondia a sua com
centração interna; a independência do governo d á fam ília
obtinha pela exclusão de toda influência, ou de todo poder qüè;
tpor sua natureza, pudésse ameaçar a tranqüilidade e a paz do­
méstica. Não havia demandas judiciais na casa rom ana^219);
ai a justiça nada tinha que vêr, o chefe de família* por si mêsmo,
a exercia (22°j .
A casa romana, como tudo quanto continha, ou seja a fa m í­
lia (221), é um mundo à parte, no qual a linha de conduta e a
direção pertencem, exclusivamente, ao chefe supremo, e onde
us relações com o mundo exterior são prescritas somente pelo
paterfam ilias. Nenhum indivíduo submetido à sua autoridade,
póde comparecer perante a justiça, com autor ou réu. O pai
•é que faz valer os direitos adquiridos contra terceiros, é quem
dem anda as reparações das injustiças que lhes são feitas, e, tam ­
bém, por outro lado, quem responde pelos ataques que se lhes
dirigem. Diversas expressões, entre os romanos, designavam
éste poder. Assim, diziam, por exemplo, referindo-se à d o m u s:
dom inus, dominium (222) ; depois herus (223), expressões que de-

(217) Cic., In Vcrr., 4, 6 6 ... Ule contraxUcere. . . quid malta? nisi oehementius
ho mìni minatus' essem. nisi legis SA NCTIONEM P(ENAMQUE recitassem, tabularum
m ihi potestas facta nan esset.
(218) V. em Apuleo, Met., lib . 9, f. (ed. Bip., I, 222), um exemplo dos
•meios de contender, tirado da época posterior... obstinate denegantem. Immissis itaque
lictoribus ceterisque publicis m inisteriis.
(219) Intra domum inter te ac filius taos, si qtiee controversi* oriuntur, terminari,
L. 4, Cod. de pat. pot. (8-47).
(220) O Ôí^ta lov o íx v o u iv ó v dos grêgos. T r e n dei.kn b u r g _ Natar r . ( Direito natu­
ral), 2.« ed., pag. 301. x
.(221) Familia, no sentido geral, designava o lar doméstico, em ' seu conjunto, e,
num sentido mais limitado, .sómente o patrimônio (por exemplo, famlliee. eriscundx
judicium, ex família Cassia. Trro L ivio , II, 8, 15, 41), ou sómente família. Veja-se
R ossbach , Untersuch... (Investigações sobre o matrimônio romano, pag. 14), a eti­
mologia exata da palavra. (Sáncrito: dhá, assentar ;d/t aman, assento, morada,, casa,
mudando dh cm /„ corno em /era: <de ’Orjo) • Familia, pois, designaba sociedade do­
méstica, o estado da casa; familiaris e fámulos referem-se aos habitantes e aos amigos
»da casa. O grêgo ten\, também, as expressões oí%OÇ que significa a casa, e, em se­
gundo lugar, o patrimonio; oíxéxai» a mulher, os filhos e os escravos. Emprega-se
na mesmo sentido que familia*. domus res mea. T ito L ivio , XXII, 53, enumera essas
três expressões, referindo-se a uma formula imprecatoria, acompanhada de juramento.
(222) Os romanos conciliavam o sentido das palavras dominus e- domus. Ve­
ja-se, por exemplo, L. 195, § 2, de V S. (50,16), paterfamilias qui in domo d o m in iu m *
haber. E n n iu s em Cíe. de off. I, 39: O, domus antiqua, heu, quam dispari dominare
domino; nec domo dominus, sed domino domus honestanda; de finib.. L 18: nec in
discordia dominorum domus. Os filólogos clássicos modernos, que seguimos nas
■édições anteriores, fazem derivar .dominus de dom us; mas os recentes trabalhos da
linguistica comparada estabeleceram que essas palavras nada tem de comum entre si.
Dominus, derivado da raiz dam, õá^ôü) = domo; no alto alemão antigo zam — do-
uñado, domctticado; no sànstcrito dami tas = domitus, domare, domitor, dom inus.
O ESPIRITO DO DIREITO ROMANO m
signavam, de facto, a propriedade; potestas, empregada princi­
palmente para indicar ó carater pessóal, isto é, a Telação entre
o chefe supremo e seus subordinados (223224), particularm ente no
que concerne aos filhos (patria potestas) e aos escravos. Mas
eètè tèrmo compreendia, também, outras relações de poder so­
bre as pessoas e as cousas (225) . Temos, finalmente, a expres­
são inarms, e nesta palavra, ármenos que as aparências nos enga­
nem, encontra-se a expressão originária que designa o conjun­
to do poder do chefe da casa sobre a sua fam ília, pessoas e cou-
sas. Mais tarde, é certo, essa expressão, em seu uso técnico, fi­
cou lim itada a uma única parte do poder doméstico, ao poder
m arital (226) . Mas a sua significação geral prim itiva se reflete
ainda mais claram ente nos compostos que o novo uso lingüístico
conservou para designar as outras relações de seu> dominio:
emancipare, para os filhos, manum itiere, para os escravos e m an-
cipium . Esta unidade de expressão supõe a unidade originária
de idéias, não sendo nós os prim eiros em adm itir (227) que as
diversas fôrm as das relações absolutas de domínio, a proprieda­
de das cousas e dos escravos, o poder m arital e paternal não são
mais que desenvolvimentos de uma só e m esm a idéia prim itiva
que form aram outras distintas e independentes. Manus e fa m i­
lia eram correlativas. Familia designava o dominio do poder*
manus o símbolo e o instrumento do poder, ou seja o poder em
si mesmo; um a e outra abrangiam tudo aquilo que havia na casa,
pessoas e cousas, séres livres e escravos. As pessoas destas duas
categorias eram alieni juris; o chefe da fam ília não exercia so­
mente o direito sobre elas, mas tinha-as sob o seu poder,' como
tudo a que possuiam, produziam e ganhavam . Desta subordi-

Segundo F estu . , Vubcnus apud antiquos dicabatur, qui p une dominus. E* preciso
lê r 1dumenus, segundo L. L a n ge . Domus, pelo contrário, derivado da raiz dem, donde
òéfAiu* edifica, ÔÓM-OÇ» edificação. Veja-se G. C u r tiu s , Griechesche etimologie* 4.» ed.,
pags. 231-233.
(223) Ñ as o b ra s d e P lauto, o s escravos d ã o sem p r e ao seu sen h o r o n o m e d e
f ie r a s ; ta m b ém d é le se u sa n a lex Aquilia (L. 11, § 6, a d le g . Aq. 9,2), m a s ra ra ­
m en te se em p rega p ara d e sig n a r o m a rid o . Catulle , l. c ., p a g s . 281-283
(224) • Saucer patis, senhor, esposo. Grêgo jfocnç» esposos, Ô£0jtÓTT)> senhor;
Lat., potessum, possum, potior, potens. Esta palavra nada tem de comum, etimológi­
camente falanda, com potus, bebida (o que nutre, p o tis ) . Os últimos trabalhos da
ciência, não deixam dúvida sôbre isto. C axulle , LXXXI, 116.
(225) Por exemplo, a fortuna, empregada nêsse sentido na lex Atilia sobre o
usocapião de res fu r tiv a : in potestatém reverti. L. 4, § 6, de usurp. (44,3), a tutela
(vis ac patestas in capite libero, § 1, I, de-tutela, (í,13), o poder material (in potes-
latem viri cedit. Sw ad Aen., 4, 103). Veja-se R ossbach , i. c ., pag. 28.
(236) Para o uso ordinário da vida encontra-se tambéip cm sua generalidade ori­
ginària. Veja-se as pa&ságens citadas por R ossbach , c.
(227) O mérito de haver sido o primeiro que com energia sustenta essa opinião
cabe a J. C h r i s t i a n s e n , Vio W issenschaft.. . (A ciência da história do direito romano),
tomo I, pag. 136, R o s s b a c h , /. c ., pags. 10 e 41 ; defendeu a mesma opinião, se bem
que conhecesse a de seu predecessor.
naçaçT absoluta a sua vontade, originava-se á igüaldade: de tocMÉ
enfre si ; é preeisam.ente o que exprim e o vocábulo m anus. ;Se iíõM
fá s^ p ^ rm itid a - penetrar m ais profundam ente as nossas vistas nati
dà propriedade rom ana, p o derla^
' nio Sy p r ovay elm en te, não só atingir, -mas ainda resolver1afirma^
divam ente a questão. de se a m anus no processo (manujn cornea
r¿£¡¿), e as vrés; mancipi, bèm corne a m a n c ip a tio foram àpénas
fragm entos dq- antigo sistema da marnis i 228) ; Éste extenso po­
der do chèfe da fam ilia não lem, de resto, nada de especificamen-
lé rom ano; o que. nêle há de rom àno, é que se manteve* em Roma,
m ais tempo que em qualquer parte, na sua fórm a e vigor ori­
ginários. E 9 um a emanação de idéias patriarcais, que rem on­
tam à mais alta antiguidade. São reconrecidas em outras le^
gislações, especialmente no direito germânico antigo, onde têm*
com o poder doméstico rom ano, uma tão incontestável identi­
dade, que nêle se deve ver um resto da comunhão jurídica origi­
n ária dos povos indo-gérmânicos (229230) .
A identidade originária da idéia de poder não supõe, de
fórm a algumà, que se ignorassem as diferenças originadas, neces­
sàriam ente, da própria natureza dòs objetos. Podiám ter-se m ui­
tos filhos e muitos escravos, m as não muitas m ulheres; um es­
cravo podia ter muitos senhores, m as um filho só podia ter
um p ai; a propriedade dos escravos e a manus sobre a m ulher
nasciam pelo usus, m as o üsus jám ais poderia criar o pátrio po­
d er; legavam-se os escravos* m as não a mulhêr, nem o filho. O
conhecimento destas diferenças dá a convicção de que, além d a
id éia geral dò poder absoluto, segundo os diferentes ^objetos aos
quais êste se aplicava, podia apresentar-se sob aspectos diversos.
Assim sucede com os ram os que dêle nascem e que acabamos de
exam inar: a propriedade, o pátrio poder m arital^ O poder do
senhor sobre o escravo; se subordina à idéia da propriedade, m as a
analogia entre o escravo e a cousa, resultante dessa subordina-
cao, não se podia levar ao extremo rigôr (23° ) . À essaS três re­
lações dè poder sobre a m plher, filhos e escravos, jùntou-se a
riiáncipium, como relação de poder momentâneo e, por isso mês-
mó, lim itado de um mòdo especial.
Acreditou-se, muitaà; v êses, encontrar a expressão da re­
lação originário, de que acabámos de falar, dizendo que p di-

(228) Voltaremos sobré esta questão, quando nos ocuparmos da história da pro­
priedade (3.» parte).
(229) À manus romana corresponde, o facto, e,. segundo a etimologia da palavfca*
alemã mu/tf, m u n d iú m — mão;' às duas tiveram originàriamente a mesma significação;
e o nièsmo objeto. J. G r i m m , Deutsche'Recktsalth. . . (Antiguidade do direito romano*)*..
pag. 447 “O matrimônio, fundado no mundium do marido, tém todós os efeitos da
conventio in tnanum de., Roma” Pag. 450: “De seu~ mundium sobre a mulher de­
correm intuitos direitos; podia castigá-la, ven)dê-la, matá-la, tal como a seus domésticos
e - seus frlhos’*..
(230) Por ' exemplo, pelo statuliber. V. mais adiante.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 1)3

reito antigo considerou o poder do pai dé fam ilia sobre a m ulher


e os filhos, sob o ponto de vista da propriedade. Mas isto é um
êrro originado da idéia poucò clara que se fazia dessa relação.
N ada dem onstra que a idéia da propriedade provinha, histórica­
mente, da do poder doméstico e déste seja prototipo. A analo­
gía, que existe entre as duas idéias, não resulta de que um a seja
criada à imágem da outra, mas de que ambas procedam de urna
idéia fundam entalm ente comum. Se, para justificar aquele as­
serto, se invoca a lei das XII tábuas, na disposição uti legassit
super pecunia tutelaue su<b rei, compreendia sob as palavras su a
res, os filhos e a mulher, o mesmo poderia objetar-se hoje com­
as palavras que diàriamente empregamos de minha e meus, apli­
cadas à m ulher e aos filhos, etc.
E ntre as cousas, objeto de propriedade, é que se acham as
mais estreitas relações com a fam ília rom ana e em uma espécie
de serviço mais direto, visto que lhe asseguram base m aterial:
tais são a casa e a granja, ou as forças necessárias para o tra ­
balho, os escravos e os anim ais. Um destino fixo, uma necessi­
dade indispensável, são para a 'fa m ilia rom ana elementos co­
muns, tan to a êsses objetos como às pessoas livres da casa; sem
uns nem outros não existe fam ília bem organisada, nem econo­
m ia doméstica perfeita.
Mas existem outras cousas, ao contrário, que por muito ne­
cessárias que sejam, como por exemplo, as provisõès, o enxoval»
não são elementos constitutivos da casa, nem cooperam no traba­
lho, e, por conseqüência, também' não têm nela tanta significa­
ção. Esta antítese é conhecida entre as res mancipi e nec maii~_
d p i . Investigaremos quais fôram as conseqüências jurídicas que
surgiram nesta questão. Basta, por ora, indicar a relação das
Tès m ancipi com a fam ília rom ana.
Separêm os os escravos do conjunto dêsses objetos que for­
m am a fam ilia, e estudemô-los sob a relação da potestas, ou o
poder do chefe de fam ília. Nos escravos encontramos reunidas
diias idéias, a da propriedade e a do poder sobre seres dotados
de razão; nessa autoridade sobre os escravos, o poder dominical
conserva, com a maior purezaj o seu carater originário, com re ­
lação ao poder do chefe da família, e esta é a razão que nos
leva, dêsde já, a estudá-la. Depois, ocupar-nos-emos da autori­
dade sobre os filhos, où do pátrio poder, e, finalmente, do po­
d e r m arital, em que a manas, sob o ponto de vista estrito, se
afasta um pouco mais do ponto de partida originário.
T al é a ordem que devemos seguir. Falaremos, também, do
m ancipium , quando tratarmos do poder paterno, que, como-ins­
tituição prática, só se encontrará na época posterior, ainda que,
como ato aparente, teve sempre, como veremos depois, grande
im portância.
114 RUDOLF VON J HBRI NG-

1. Poder dominical sàbre os escravos

Em cada uma das manifestações do domínio, que acabam os


de citar, se distingue o lado pessoal e o interesse puram ente m a­
terial. Éste se reprodus por toda parte do mèsmo mòdo; a peis-
sôa sujeita ao podèr de outrem, tudo o que adquire é p a ra o
chefe de fam ília e nada possúi em comum, não sendo, de certo
modo, em direito, outra cousa senão um a máquina posta ao
serviço do senhot*. Êste efeito, completamente independente da
vontade do senhor, se prodús, necessariámente, pela fôrça lógica
que nasce de sua relação, de tal sorte, que não poderia ser con­
trariad a ainda que sé manifestasse contra a oposita vontade do
senhor. A cessão de um bem, ou qualquer fruto (peculium ),
em favor da pessoa submetida ao poder de outrem, qualquer que
fòsse o gráu de afeto que se lhe tivesse, era, em direito, ineficaz
e constituiria um ato, do qual o senhor podia, em qualquer tem­
po, arrepender-se. A inexistência jurídica do peculium, em fa ­
vor dos escravos, só foi desmentida no antigo direito, num a úni­
ca ocasião, da qual ocupar-nos-emos mais adiante (231) . Como
não era possível a existência de contratos, que fossem válidos,
juridicam ente, entre aquêle que exercia o poder e os que estavam
a êle submetidos, segue-se que dito poder não pudesse cessar com a
concesão de um pecúlio (232>.
Quando nos referimos ao lado pessoal dessas relações de do­
mínio, por êle entendemos a subordinação pessoal dos que ha­
bitam a casa do chefe de fam ília. Esta subordinação era abso­
luta para os escravos. Bastava p ara representá-la completam en­
te, revelar algumas disposições que ela autorizava, e que tinham
a sua origem na vontade absoluta do senhor. Assim, o senhor
tinha o direito de casar seus escravos, de acordo com os seus de­
sejos e aspirações; separá-los de sua mulher, de seus filhos, ven­
dê-los, emprestá-los, castigá-los, e até matá-los. Sem elhante
enumeração, que, por ora, nenhum interesse tem, significa, no
entanto, que o poder, exercido sobre seus escravos, era tão abso­
luto como o que podia exercer sobre um a cousa.
Dai resulta, e assim o compreenderam os romanos, que o po­
der sobre os escravos eqüivalia a um direito de propriedade^233) -
Na prática, entretanto, esta idéia produzia uma série de conse­
qüências que a tornava impossível, quando se tratava de outras
relações de domínio; por exemplo, possibilidade de coproprieda-
de, de bonce f idei possessio, distinção da propriedade quiritária

(231) O direito novo desmente, também, essa impossibilidade com a actt« de


peculio do édito do Pretor, concedida cm favôr dos creídores.
(232) Veremos, mais adiante, o que, de facto, era.
(233) Ulp. XIX, 20.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO IIS

<e bonitária, estabelecimento de um usufruto, ou de um direito


de penhor, sobre os escravos (234), dereliclio (23S236), etc.
A assimilação, entre o escravo e a cousa, tinha, no entanto,
seus lim ites. E apezar de obedecer a subordinação uniform e
de ambos à vontade ilimitada do senhor, nem por isso se des­
conhecia, jam ais, o homem no escravo (23e) . Assim, por exem­
plo, se extendia ao matrimônio dos escravos a proibição por
m otivo de parestesco, castigando-se, também, a injúria contra
éle dirigida (237) .
Mas a diferença, entre o escravo e a cousa, se m anifesta,
sobre tudo, na possibilidade da manumissão do prim eiro. O di­
reito de manumissão é um elemento bem característico do po­
d er dom inical. A livre resolução do senhor podia fazer de um
sér que, até então, apenas se distinguía da cousa, um a pessoa,
um cidadão romano, e até (tudo era possível) um membro da
p a g l i a rom ana (238) .
Êste poder se caracteriza, não somente pela humilhação que
pôde causar à pessoa submetida à escravidão; como também pela
brilhante rehabilitação com que consegue exalçá-la. Nenhum
•outro poder apresenta dois tèrmos tão contrários e distintos, nem
oxiste outro igual, em que o poder da vontade individual pòssa,
p o r si só, dispor de um privilégio m ais precioso do mundo ro­
m ano, o do direito da cidadania.
A transform ação de um a cousa em pessôa efetuava-se, na
m anum issão ordinária, rápidam ente. Mas no caso de um lega­
do de liberdade condicional, podia surgir um estado iritermediá-
t í o entre a pessôa e a cousa. Essa transição do estado de escra­
vo ao da liberdade, apresenta um fenômeno interessànte. Ne­
cessitando-se, para conseguir o fim, abandonar os princípios
ordinários, em m atéria de poder dominical, era impossível con-

(234) L. 24-27, coman, div. (Í0,3). L. 20 de susufr. (7,1) L. 9, in quib.


pigìi. (20,2)
(235) Havia então para isto um servus sine dom ino. I... ult. pro dci*ei (Ui,7 ).
Veja -se no L. 23 pr. de lib. causa (40,12) e ein U lpían o , I, 19, outros casos d o n d e
pode nascer essa relação.
(236) Se o escravo é, principalmente, chamado homo, o sentido dèssè termo tem
por fim, menos realçar em si o elemento humano, em oposição à qualidade de coisa,
■que indicar a falla do. capacidade jurídica que caracterisa o homem e 'de que d is p õ e
o cidadão. O escravo não era mais do que homo, isto é,, sem direito, segundo a c o n ­
cepção antiga, assim como o homem livre não era mais do que um cidadão. Ninguém
r.c manifesta em um ou outro caso, observação muito exata que se deve a H a n s n e r ,
P hilos.. (Filosofia do direito), 1851, § 215.
(237) I/. 1, § 3 dc injur. (47,10). Juridicamente, deveria ser considerada c o m o
injúria indireta dirigida contra o senhor; mas, sc bem que o escravo não fòsse consi­
derado aqui como um animal, não sc dava por exemplo, para as lesões corporais, a
■<icitio injnriurum, mas sim a actio ieqis Aquiline
(238) Gki.1.. 19: Alioquin si juris ista antiquita servetur (segundo o direito novo.
I s t o não se p r a t i a v a ) etiam servus a domino> per Praclorcm duri in adoptionem potest,
Jdqac uit (,\fasurius Sabinus) plclosque juris veteris auctores posse fieri scripsisse.
116 RUDOLF VON JHERING

ceder, sem restrições, essa faculdade ao herdeiro, sobretudo*


quando a condição imposta im plicava um a ação, que devia se r
cum prida pelo escravo (239), porque o herdeiro, para se opor à
liberdade do escravo, não teria m ais do que lhe proibir rea liz a r
ó ato em questão. Frequentem ente, a condição consistia no pa­
gamento do resgate, e, a menos que não fòsse estabelecido o con­
trário, o* escravo podia tirá-lo de seu pecúlio (24° ). Mas tom an­
do-lhe à força èsse pecúlio, o herdeiro podia impedir o cum pri­
m ento da condição. Era preciso, pois, para perm itir à realiza­
ção do negocio proposto, reconhecer ao escravo certa indepen-
dência de seu novo senhor. „Mas como, sem calcar aos pés to d a
a idéia jurídica, reconhecer um direito ao escravo? Os rom a­
nos resolveram èsse dilema, no que diz respeito ao herdeiro, assi­
m ilando sua oposição à do cum prim ento de uma condição, d e
m òdo que, definitivamente, o herdeiro se via obrigado a respei­
tar a disposição testam entària (24124) . Quanto ao escravo, sancio­
naram a disposição feita a seu favor, considerando o direito, que
dela se derivava, como um a qualidade inerente ao direito real
(242) Finalm ente, o escravo gozava da independência necessá­
ria p ara agir contra o herdeiro (243) . A crosta, isto é, a quali­
dade jurídica da com a, cobria e protegia o ámago, que era a pes­
soa (244) .
Nessas circunstâncias, fóra das quais o comércio do interes­
se m aterial entre o senhor e o escravo foi completamente igno-

(239) L. 3 ., § 3, de statuì. (40.7).


(240) 3, § 1, de statulib. (40,7): Et parvi refert, de peculio ei offerat an alr
alio accepta; receptum est enim, ut servus peculiares quoque nummos dando perveniat
ad libertatem .
(241) A antigo regra: Quotins per eum fit, cujus interest conditionem non im pleri,
quominus impléatur, perinde habendum est, ac si impleta conditio fuisset, L. 161, de­
ft. J. (50,17), parece hayer-se estabelecido, em sua origem, precisamente para èsse caso,
e não ter sido* aplicada senão mais tarde a outras relações jurídicas. Fest, sub voc..
Statuliber. Ulp. fr. II, § 5, 6. L. 24 de condii. (35,1).
(242) A. venda por parte do herdeiro, não lhe prejudicava, porque a coisa conser­
vava sua qualidade jurídica (isto é, a de poder chegar a .ser pessoa, sob condição)
ainda que -estivesse em mãos do comprador, ñeque enim conditio quA person^te ejus
cóh&sit, im m u ta ri... potest, como se exprime a L. 5 Cod. si mancipi. (4,57) a pro­
pósito dè um caso análogo; veja-se, com outras modificações, a L. 6, si ex nox. (2 , t ) ,
im plicttps ei casus libertatis. L. 9, § 1 de statuì. (40,7), causa im m utabilis. As
res publicas eram jurídicamente destinadas da mesma maneira ao uso comum. O
direito pertencente ao sujeito (a todos os cidadãos), mas que, como tal hão recebia ne­
nhuma consagração jurídica, se transferia à própria coisa., atingindo assim o objetivo,
e atribuindo à .coisa uma qualidade jurídica absoluta. V. J a h r b ü c h e r , T. 10,.
pags. 397-400.
(243) J e h r in g explicou o mecanismo jurídico aplicável a èsse caso e a outros-
semelhantes, na sua dissertação sobre os efeitos passivos dos direitos. V J a h r b ü c h e r ,-.
T. 10, p . 495 e s.
(244) A transformação de uma coisa em pessoa corresponde a de uma pessoa
em coisa, como acontece no direito hereditário. Nèste, a personalidade do hereditas,.
estabelecida pela jurisprudência *romana, é a crosta que cobre a sucessão, como m eia
de adquirir.
O ESPÍRITO DO DIRÈTTO ROMANO 'll?

Tado em direito eNsó existia como cousa puram ente de facto,


*essias relações tiveram que adquirir uma importância jurídica
perfettam ente determ inada. Em direito, entre senhores e es­
cravos, as dividas e os créditos não existiam, nem podiam ja ­
m ais ser exigíveis judicialm ente. Mas, quando, sob „pena d e
d estru ir completamente a intenção do testador (245), se reconhe­
ceu ao pecúlio do escravo inviolabilidade jurídica, as cousas
m udaram de aspecto 4 Viu-se, então, fenômeno curioso, cessa­
rem essas relações entre senhores e escravos e serem form alm ente
julgados segundo'as regras do direito civil (246) . Tratou-se (té
dissim ular êste desvio importante da lógica do poder dominical,
falando apenas das obrigações naturais entre senhores e escra­
vos (247) ; mas, no fundo, como pe^o direito novo na a c t. de
peculio, existia um verdâdeiro rec<mhecimento da dívida. Des­
de então, por exemplo, sempre que se tratava do pagamento dum
.resgate, imposto ao escravo, êste devia pôr em conta os gastos
que por ele fizera o herdeiro, e êste último, todos os emprésti­
mos feitos pelo escravo. Os testemunhos em que nos baseamos,
datam , é certo, da época do direito novo, mas idêntica relação
já existia no direito antigo. A própria lei das XII tábuas con­
tinha um a disposição pertinente a êste caso (248249) . E se é ver­
dade que o aperfeiçoamento completo da relação, sob o ponto d é
v ista do direito civil, pôde ser a obra de épocas posteriores, não
se pode reconhecê-lo na época antiga, em seus traços essenciais,
d e outra m aneira, senão como o descrevemos.
O que é de sumo interesse, p ara o nósso fim, na manum is-
•sao condicional, é a circunstância de que a escravidão se eleva,
de certo modo, acima de sua esfera, e que o poder absoluto do
senhor sobre a cousa vem, até um certo ponto, lutar contra a
-própria cousa (24d) .
Existe, pois, um direito abstrato na escravidão. Sem man­
ter esta simples proposição, ante a qual se detem a opinião ge­
l-ai, incorre-se, inevitavelmente, no perigo de fazer, desta insti-

(245) L,. 17 de statuì. (40,7).. htec mens fuit consíituentium, ut quasi EX PA-
■'TRIMOÑIO suo dandi eo nomine servo potestas esset.
(246) Por exemplo, pára saber se entre êles existia alguma dívida., L. 49, § 2
-de pee; (Í5 ,l). Ut .debitor vel servus domino vél dominus servo intelligatur, exr
cansa c ivili computandum e s t ... nuda ratio (a simples conta, isto é, o facto de levaxr
-a divida à sua conta, ou a manifesta vontade de se reconhecer devedor) eum non facit
'debitorem. Para adquirir as coisas que necessitam da tradição, segundo a L. 8 ibid
=e L. 21 p . de statuì. (40,7).
(247) Factum magis demonstramus, quam ad ju s civile referimus obrigationem~
L. 41 de pec. (41,1).
(248) Ulp. fr. II, § 4. emptori. dando pecuniam ad libertatem. perveniet idque
$ex X ll tab. ju bet. L. 25, L. 29, § 1 de statuì. (40,7).
(249) Oùtra relação, na qual se reconhecem direitos aos escravos, é a dos servi
jm b lici, que podiam dispor, por testamento, da metade de seus haveres, Ulp. fr. XX,
§ 16,'e até contrair matrimônio com mulheres livres. T h. Mo m m sen , Rom Staatsrecht,
J, 253). Mas difícil é admitir que essa capácidaed já existisse no direito antigo.
118 RUDOLF VON JHERI NG

tüição, uma apreciação^ completamente errònea. Assim é que


se comparou a sorte do escravo romano com a do escravo negro
de nossos dias (2Õ0), fazendo crêr que só a época posterior pôde
d ar um carater mais humano à escravidão, determinando-se que
só. sob o Império esse carater de humanidade se traduz na le­
gislação, quando, precisamente, ocorria justamente p contrário.
N ã época antiga, os usos asseguravam ao escravo um a sorte, q ue
a legislação jamais poderá garantir-lhe (250251), sendo preciso, ao
nosso ver, distinguir dois períodos na história da escravidão ro­
m ana, e referi-los, não ao ponto de vista completamente subsi­
diário, do mòdo pelo qual a legislação veio regular esta institui­
ção, mas ao carater que revestiu na vida, nas diversas épocas
de sua existência.
Esta diferença do carater real da escravidão, na época anti­
ga e na época posterior, funda-se, em parte, nas circunstâncias
próprias da escravidão, e, em parte, nas diferenças gerais, exis­
tentes entre as duas épocas, que procedem do carater do povo,
dos usos, etc.
Sabe-se que a circunstância, de facto, que influi largam ente
na fisionomia da escravidão, na América, é a diferença de raça,
entre senhores e escravos. Cava um abismo intransponível en­
tre eles. Essa diferença não existia no tempo da Roma antigar
onde o escravo pertencia, geralmente, a um povo visinho, que
tinha uma origem comum, e sob o ponto de vista de sua edu­
cação era igual ao senhor, e às vezes, superior; em um a palavra,
o lado jurídico, e não o lado puram ente humano de sua situação,
era que estabelecia grande distância entre êles. Mas, como a»
cousas depois se modificaram! À medida que as duas fontes
principais, que abasteciam Roma de escravos, a guerra e o trá­
fego, abandonaram a Itália para se transportarem à Ásia e Áfri­
ca (252), a separação natural entre senhores e escravos mais au­
m entou. Não estavam somente separados pela diversidade de
idiomas, de religião, de usos, etc. mas, írequentem éníe (253)*,

(250) Por exemplo, S c h w eppe , Röm. Rechtsg. (História do direito romano),


§ 343. Segundo èsse aulor, a situação do escrava é ainda mais suave do que a d o
6enhor. Z im m e u n , (ieschte des Röm. Priuatr. (Historia do direito privado moderno),
§ 180, faz também intervir, para isso, a influência cãda vês mais suave do tempo.
(251) Os exemplos de ignominosa crueldade e deshumanidade, que inclinaram o
julgamento de todos contra o carater da escravidão romana, provém, cm grande parte,,
da época antiga, segundo a lenda, é a cólera dos deuses. Sat., I, 11.
(252) Veja-se a dissertação de Rei?* sobre o Gallus de Beckkr, 2.* ed ., tomo II*
pag. 87.
(253) Sabe-se que para os escravos gregos, essa lei da escravidão se apresenta
frequentemente com aspecto distinto e contrário, porque a influência natural da edu­
cação se fazia sentir, igualmente, entre eles. E entre os oscravos grêgos, de unia educação-
esmerada, e que servia ao seu senhor de leitor, dc secretário e de preceptor de seus
lilhos e um bárbaro inculto que não sc podia empregar senão nos trabalhos servis,,
aão bavia diferença alguma em direito, mas sim em sua condição de facto, que neces­
sàriamente tiuha que ser mais vantajosa.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 119

existia entre êles o abismo profundo que separa ainda mais a


educação do atrazo e a civilização da barbárie. Éste estado de
cousas, não sómente devia tornar mais difíceis qualquer apro­
ximação entre senhores e escravos, mas devia desencadeiar e
provocar, por uma fatalidade psicológica, a rudeza e a arbitra­
riedade do carater do senhor. O domínio sobre os povos, como
sobre os indivíduos,, terá sempre carater distinto, um a vês que os
vencidos sejam, ou não, de outra raça que a dos vencedores. A
sorte do escravo americano seria outra se tivesse a mesma cor.
que a do senhor.
Em sua origem, os prisioneiros de guerra alimentavam p rin ­
cipalm ente as fontes da escravidão. Éste facto, que se perpre-
tou durante muito tempo, fornece um segundo elemento de im ­
portância capital, e cuja influência ressalta evidente. Desde
logo, em m atéria de prisioneiros de guerra, o direito interna­
cional consagrou o princípio da reciprocidade. Os romanos ad­
m itiam , mesmo contra êles, que a captura da guerra devia tra ­
zer consigo a escravidão. Quando a sorte da guerra, dessa fôr­
m a ,atingia o romano que ocupasse o mais alto posto, compreen-
de-se que a situação em que caíam e podiam cair milhões de ro­
manos, não foi considerada antigam ente pelo prism a que hoje
se encara a condição do negro. A opinião, na América, vê nês-
te a condição de uma espécie de homens inferiores, condenados
a servir. Por fundado que fosse, em diluito, considerar o es­
cravo como uma mercadoria, como um objeto de comércio, era,
de facto, quasi impossível levar o princípio até às suas últimas
conseqüências. 0 inimigo prisioneiro de guerra, talvez, em sua
pátria, ocupasse um lugar elevado; em tempos atrás, se o romano
o enfrentasse no campo de batalha, medir-se-ia com um homem
livre, como adversário digno de respeito; amanhã talvez fosse res­
gatado por seus parentes, para voltar ao completo gozo de seus di­
reitos, de suas dignidades, etc. E, assim sendo, o romano não
podia tratá-lo sem o devido respeito, nem considerá-lo com o
desprezo com que se via a escravidão na época atual (25425) . E’
preciso acrescentar que, com relação ao tratam ento dos escra­
vos, como prisioneiros de guerra, havia, sem dúvida, reciproci­
dade entre os povos; os romanos, conseguintemente, deviam es­
perar o tratam ento, se algum dia fôssem feitos prisioneiros, com o
mesmo rigor e crueldade de que êles usassem com seus inim i­
gos (25r>) . Assim é como se compreende que o Senado, movido
(254) E* significativo, para a posição social dos escravos da época antiga, que
Serv. Tullius, segundo a tradição, fòsse filho de escrava, e que o antigo direito per­
m itisse a adoção de um escravo.
(255) P l au to , Cap. 2, Gl s.
Tam mihi quam Uli liberlatcm hostilis eripuit mantis,
Hst profecía Deus, qui qute nos germinus auditque et videi.
Is uti tu me Iiic liabueris proinde ilium illic curaverit.
Macrob. Kat. 1, 11: tarn tu illitm videre liberum potes, quam ille et servum.
120 RUpÓLF VON J HERING

por considerações políticas (o censor fazia-o por motivos de hu­


m anidade) , nunca deixasse, no m omento oportuno, de se ocupar
da sorte dos escravos (256) . A deshum anidade de um só rom a­
no paira com seus èscravos, podia acarretar as mais cruéis con­
seqüências p ara todos os romanos que estavam em poder do ini­
migo, e até mesmo vir a ser a causa de que a condição do es­
cravo, em todos os povos visinhos, tomasse um carater mais se­
vero.
O pequeno núm ero de escravos (2®7), era um terceiro ele­
mento que influía am piamente sobre a sua sorte, na época anti­
ga. O senhor conhecia a cada um em particular, o que mais tar­
de foi impossível. Estava ao par de seus sucessos, de sua posi­
ção pessoal, e se estabelecia, facilm ente, entre senhores e escra­
vos, um sentim ento de interesse, um a relação de afeto mais ínti­
m a. Quando, no fim da -República, e sob o Império, o núm ero
de escravos possuidos por um só e mesmo seiihor cresceu consi­
deravelm ente (258), a relação éntre o senhor e seus escravos teve
necessàriam ente que m udar de aspecto. A influência benéfica
das relações pessoais cessou, ou, pelo mènos, só- veio aproveitar
aò núm ero relativam ente pequeno dos que atraiam a atenção do
senhor, ou que pelos seus serviços se achavam próximos dêle;
os outros lhe eram desconhecidos, vivendo apenas no pensamen­
to do senhor como sêres abstratos. Por isso, eram apenas es­
cravos .
Existe, porém, outra circunstância m uito mais im portante,
que sensivelmente modifica a situação dos escravos, — é a da
comunhão do trabalho e da vida dom éstica. Na época antiga,
os rom anos (259) tinham -na em grande consideração. O escra­
vo da época ^posterior era um servidor, o da época antiga, um
auxiliar do senhor. Essa diferença é m uito im portante. En­
quanto o rom ano cultivava o seu cam po em comum com os seus
escravos e seus filhos, aquêles não se achavam em situação tão
oposta a êstes. Cada dia os reunia, o trabalho comum ós apro­
xim ava e fazia nascer entre êles relações m ais familiares, m ais
íiitim as. O próprio trabalho ensinava ao senhor a não sobrecar­
regar o escravo, a estimá-lo e a ter êm conta a sua utilidade, e
capacidade. Iniciado no desenvolvimento íntimo da fam ília,
participando do culto dos deuses, dela com partilhando prazeres
e sofrimentos, fonte do carinho p ara as criânças desde o seu nas­
cimento é durante a sua vida, o escravo era realmente conside-

(256) D io n is io , 7, 73. P lutarco, Coriolano , 24, 2 5 .


(257)Vejam-se os textos que o apòiam, em B ek er , G aio, 2 .a ed., tomo II, p a g .
91 (Dissertação de R e i n ) .
(258) P l in io , História Naturai, 33,10, fa la d e u m rom an o d o tem p o d e A ugusto
q u e, a p esa r d e so fr e r g ran d es p êrd a s n a s g u err a s c i v is , m orreu d eix a n d o 4 .1 0 0 e s ­
cr a v o s. C asos c o m o ê ste eram freq u en tes, p o d e n d o c ita r -s e a lg u n s p ro p rie tá rio s q u e
ch eg a r a m a p o s s u ir 1 0 .0 0 0 ; B eker , i . c . , p a g s . 9 2 -9 3 .
(259) Plutarco, Cbriolano, c. 2 4 .
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 121

rado e tratado como um membro dessa fam ília (260) . Nêste es­
tado de cousas, não há necessidade de advertir, que o poder do­
minical não podia ter o cara-ter odioso (261), que se lhe atribúi
atualmente, apezar da repulsa da crítica sã.
Se tal era a verdadeira situação, e a história não deixa ne-
nhum£ dúvida a êste respeito, fácil é compreender como a opi­
nião pública receberia a crueldade e a deshumanidade, usadas
com os escravos. Com efeito, via nisso, não um ato indiferente,
um simples uso do poder dominical, mas um abuso dêsse poder,
tão condenável, sob o ponto de vista m oral, como no do interes­
se público. A instituição da censura dá-nos a prova mais con­
cludente disso, porque o censor exigia do senhor o motivo de seu
procedimento deshumanó tf262) . Uma série de influências, de
considerações e de circunstâncias, agiam p a ra conduzir, na rea­
lidade, à prática perfeitamente razoável. O temor à opinião pú­
blica, um a certa circunspeção ante os escravos, impediam, na
época antiga, muitos atòs, que o senhor desejasse poder fazer e
que até juridicam ente poderia praticar. O uso estabelecera cer­
tas regras das quais não se podia afastar, sem se expor ao vitu­
pèrio público, por exemplo, com . relação áos alimentos (263) e
ao vestuário dos escravos (264) . Os scriptores rei rusticce conti­
nham, sobre o tratam ento e a sorte dos escravos, empregados na
agricultura, muitos ensinamentos dignos de atenção. Por toda
parte se recom endava o tratam ento justo, conveniente e cheio de

(260) Nó primeira dia do ano, era servido na mesa pela mãe de família, e nas
saturnais* pelo senhor. Macrob., Sat., I, 12. Comiam com a família na própria mesa.
Beker, l. c ., pag. 117. Rossbach, l. c ., pag. 24, relata- outras provas, encontrando-se
:nã sua obra uina apreciação exata desta matéria, o que não se póde dizer de Be k e r .
Rossbach ocupa-se especialmente da situação do escravo na família romana, sob o
ponto de vista religioso. Por exemplo, o escravo podia oferecer sacrifícios, fazia a
¡usíratio do campo, e a villica (mulher do capataz dos ecravos) fazia, em determinados
dias, sua oração aos deuses; Diana era a protetora dos escravos, e a sepultura destes
chegava a ser, muitas vêses mohumentos darte. Vejam-se as inscrições de Ordii
(Corp. inscr. I, c . 9) eram locus religiosus, enquanto que a do inimigo nunca foi
.assim considrada. R. Elvers, de reb. relig. Gott., 1851. L. 2, p. de relig. {11,7 ).
V arrão de L. L. 6,24). O filho do escravo* não era considerado como fruetus, mas
bonae fidei 'possessor, e o usüfrutário devia restituí-lo conjuntamente com a mãe, afim
de não o separar dela (dura separatio), L. 12, § 1 de instr. leg. {33,7): L. 10, § 2
de J. D. (23,3). L. 17, § 1 R. V; (6,1), etc.
(261) Macrob., Saturn. 1,11. Majores nostri omnem dim inis invidiam, omnem
servis contumeliam detrahentes, dominum pairem fam ilias, servos familiares appella-’
-veruni. Os escravos, que voltavam à pátria, conservavam relações de correspondência
-e amisade com os que haviam sido seus senhores. T ito L ivio , II, 22.
(262) D io n isio ; 20,3.
(263) Por exemplo. Catão de re rustica, c. 57, sobre a ração do vinho. Val. Max.,
4,37, (relativamente à sua época) : a servis vix impetrari potest, ne earn supellectilem
fastidiala, qua tunc consul uti non erubuit. As rações eram bastante grandes, para
que um escravo pudesse fazer economáas, vendendo o supérfluo.
(264) Por exemplo, L. 15, § 2 de usufr. (7,1); suff identer aut em diere et vestire
■debet (usufructuarias secundum ordikem et dignitatem m a nc ipio rum .
122 RUDOLF VON JHBRI NG

considerações (26526) ; torna-se natural o dever que tem o senhor


ausente de designar rigorosamente, a vigilância dos escravos, e
de proporcionar-lhes reiteradas ocasiões de apresentarem as suas>
reclamações. Os escravos, pessoalmente, não careciam, pelo me­
nos em certas familias, de independência e bem-estar relativos.
Assim é que Catão (2(í6) diz que a mulher do guarda (villico)^
não póde ostentar muito luxo, nem m anter relações frequentes*
com os visinhos, nem ir comer fora de sua casa.
O pecúlio merece um estudo especial. A economia e o amor
ao lucro, próprios dos romanos, serviam para incentivar as m es­
mas qualidades entre os escravos. Mas era necessário, para isso,
que o escravo tivesse a convicção de conservar aquilo que havia,
ganho; e, por isso, tirar o pecúlio de um escravo, sem motivo jus­
to, era considerado, em Roma, como um ato infame (267) . Os
primeiros elementos do capital, para formar o pecúlio, forne­
cia-o o senhor, mediante presentes, ou antecipações (268), quer
pelas economias que o próprio escravo podia fazer em. sua ali­
mentação, ou vestuário (269), quer pelo Dos da m ulher (que
mesmo éntre os escravos, de facto, existia (27°) ; podendo, depois
o escravo aumentar livremente esse pecúlio, com a sua atividade
e economia, sendo, nêste ponto, a incúria do senhor considerada
como de má nota (271) . Quando o escravo conseguia aum entar
as suas economias, seu pecúlio lhe permitia alforriar-se (272)
(frequentemente o senhor fixava, de antemão, a soma necessá­
ria para isso), ou tornar a sua existência mais amena, por exem­
plo, com a aquisição de um vicarias, que ihe perm itia ocupar,
perante o senhor, a posição de um servidor estimável (273) . Su-

(265) V arrão s . 17. Col um ., 1,8. O senhor devia tratá-los familiarmente, diri­
gindo-lhes pilhérias, pedir-lhes conselhos e até convidar o administraidor para a refeição
nos dias de festa, etc., que para o escravo deveriam ser de descanso. Cic. de off.
1,13. Deve ser considerado como um diarista remunerado {meçcenarius). Podem
vêr-se as idéias da época posterior, em Señera, epístola 47, que as combate.
(266) De re rust.., c. 143.
(267) Assim é como se póde explicar que èie deixasse pecùli , quando era ven­
dido. V arrão, 2, c. 10, peculium solet accedere; tão habitual era isso nas manumissões,
que se erigira em presunção jurídica.
(268) Para a familia rústica, V arrão, 1, 17, acon selh a o sen h or p e r m itir a o escravo-
a p o ssa r -se de u m a cabeça d e g a d o .
(269) S eneca , e p ls t. 80; peculium suum quod comparauerunt ventre fraudato-
pro capite numerant; T erentio , Phormio, I, 1, 9-12, L. 39 «le pcc. {15,1 ) .
(270) L. 29, pr. de J. D. (23,3).
(2 7 1 )Veja-se, por exemplo, V i r g ii .i o , Egloga, 1 ,3 3 , nec spes lìbertatis erat nec
ao contràrio, era urna prova de capaoidade; P l a u t u s , Asm., 2 , 4 , 9 1 ; frugi tarnen surrr
cura peculii. Cic., in Ver., 3 ,2 8 . Plautus, Casin., 2 , 3 , 39, 4 0 ; uni grande pecùlio;,
nec potest peculium enumerari.
(272) D ai a relação d a spes libertatis c d o peculium cop io na p a ssa g em _ d a n o ta
p reced en te e no statuliber.
(273) Hor. Sat. 2, 7, 79. Vicarius est, qui servo paret. Vcja-sc B e k e r , l. c .r
pags. 94, 95. Havia escravos tão ricos, que tinham mais despezas que, na atualidader
qualquer fucionório público, por elevado que seja o cargo exercido no Estado. B ek k r ,.
p. 20.
O ESPÍRITO DQ DIREITO ROMANO \23>

cedia, também, que o senhor, m ediante juros determinados, ou


com um a parte dos lucros, dava ao escravo* plena liberdade de
exJercer a sua atividade (?74) . Certas concessões particulares»
por parte do senhor, eram especialmente ajustadas. Catão fez,
dèsse modo, pagar o seu consentimento, para o consorcio de um
escravo. Do que precede, resulta que, de facto, se concedia ao
escravo uma espécie de independência em seus atos e se lhe res­
peitava o pecúlio como seu patrim ônio. A pòsse déste patrim ô­
nio estava garantida ao escravo, como a dos adm inistradores do
agèr publicus, ou do solum provinciale, çom relação ao Estado.
O solum provinciale era, segundo o direito abstrato, propriedade
do Estado; os possuidores não podiam im pedir ao Estado, nem de
facto, nem de direito, a confiscação; mas esta m edida nunca foi
tom ada e ninguém a tem eria. O mesmo ocorria com a proprie­
dade do senhor sobre o pecúlio do escravo, pelo menos éntre ho­
m ens de honra. De outro modo não se compreenderia como um
senhor pudésse chegar a pedir empréstimos a seu escravo, em
vês de lhe tira r simplesmente o dinheiro, quando déle necessi­
tasse .
A posição dos escravos era, geralmente, a que hoje têm os
nossos criados (274275) . O característico era a grande confiança
que se lhes depositava, enviando-os além*-dos mares, a distân­
cias longínquas, com remessas de dinheiro e outros valores (276).
Se a sorte dos escravos fòsse penosa, certam ente que nenhum se­
nhor se aventuraria a correr èsse grande risco. A m esm a con­
clusão ressalta de diversos feitos, que conservamos, da comoven­
te afeição que os escravos demonstravam a seu senhor, quando,
na realidade, o seu poder sobre êles era completamente nulo, e
em cuja manifestação eram inteiram ente livres (277) .
A frequência das manumissões, também, caracteriza o sen­
tido pelo qual se exercia a escravidão entre os rom anos. Os
m ateriais sobre esa questão são muito abundantes para o perío­
do seguinte, mas escasos p ara o período presente. E ra tradi­
cional, na época posterior, dar a liberdade aos escravos em cer­
tas circunstâncias (278), e era mèsmò ponto de honra ter muitos
m anum itidos. A legislação chegou mesmo a reprim ir essa ma-

(274) Por exemplo, L. 14, pr. de statuì. (40, 7).


(275) Quantos criados desejariam ter hoje uma vida igual à que Columella
(1,18) pinta dos escravos romanos! Socors et somniculosum genus id mancipiorum ,
otiis campo, circo, theatris, alee, popinsc, lupanaribus consuetum. Cicero (ad. a tt.
7,7) anunciou sua clicgada para não surpreender os escravos em momento inoportuno.
(276) L. 4, § 1 de naut. foen (Í2,2) . L. 10 qui et a quib. (40,9). ^Assilli ',so
explica o que diz S uetonio (de grammaticis, c. 21) do gramático C u ju s Me l is s u s : per­
m ansa in statu svrvitutis pnzsenlemque conditionem vergi origini anteposuit. Nascera
livre, mas foi vendido por seus pais.
(277) Por exemplo, na época das guerras civis, os escravos dos proscritos. Val.
Max. Vili, 8, 8 de fide servorum. Macrob., Stat. 1, 11. — Visitas dos antigos es­
cravos que voltavam à pátria. T ito L ivio , II, 22.
(278) Compare-se, por exemplo, o que Calumella , 1,8, con ta de si próprio.
124' RUDOLF VON JHERING

nía de manumissões, que degenerára em verdadeiro contágio. Os


m anum itidos form avam um a parte im portante da população ro­
m ana, como esta resulta* na época posterior, de m uitas circuns­
tancias, entre as quais enumeraremos as séguintes: dos 21 gra^
máticos, que SueT ó^io cita em sua obra, d e g r a m m a tic is (c. 3-
24j, ha nada menos de 13 deles que são m anum itidos. Fala, na
m ésm a obra (c. 3), dum desses m anum itidos que, comprado pela
incrivel soma de 700.000 sestércios, im ediatam etrie foi posto em
liberdade por seu senhor. Já na época antiga, o número das m a­
numissões deveria ter sido considerável: a v ic é s im a m a n u m is -
sio n u m , introduzida no ano de 398, da fundação de Roma e que
foi, désde à sua criação, fonte considerável de créditos para o
rtra riiim (279), é disso prova convincente.
O nosso objetivo, no estudo que precede, não era tanto dar
verdadeiro valor ao aspecto da vida rom ana, em geral, falsam en­
te julgado, m as o de distinguir o verdadeiro sentido do poder
dom inical. Tencionám os demonstrar, notadam ente, que èsse po­
der não tendia a erigir em direito a aspereza e a arbitráriedade
do senhor contra, o escravo iñdefeso, m as procurava dar ao se­
nhor, sob o am paro de sua justiça, de seus sentimentos hum a­
nos, e com a inspeção^ do Estado, exercida pelo censor, um a a u ­
to r id a d e d o m é s tic a söbre seús agregados, autoridade suficiente,
m esm o'para os casos extraordinários. Esta consideração, certa­
mente, não nos reconciliará com o facto da e s c r a v id ã o ; mas, sim,
até certo ponto, com aquilo que, no direito antigo, foi mais com­
batido, — a ilim ita d a e x te n sã o do poder dominical.
2. O p á tr io p o d e r .

D urante séculos, o pátrio poder foi, quanto ao seu objeto


e quanto ao seu carater, aproxim adam ente semelhante ao poder
dominical (28° ) . A distinção que existe entre ós filhos e os es­
cravos (281), quanto à sua posição jurídica absoluta, não teve a

(279) Foi introduzida com essa previsão. Tito Livio, VII, 16: Patres, quia ea lege
HAUD PARVUM vectigal INOPI aerarium additum foisset, auctores fuerunt. Èsse
dinheiro (¿urum vicessim arium ) conserva-se no aerarium sançtius, para os casos ur­
gentes. No ano de 543, tira-m-se déle nada menos de que 4.000 libras de ouro. T ito
L ivio , XXVII, 10.
(280) Para os romanos, da época posterior, a patria potestas era uma instituição
especial, que somente entre éles existia (G aio, I, 54)¡, enquanto que o poder sobre os
escravos lhes parecia coisa comum em todos os povos. (G aio, /, 5 ). A restrição, que
mais tarde se impôs à escravidão, foi considerada, para éles, um' progresso muito
romano (G aio, I, 53).
.,(281) Quanto à liberdade. Dai o nome de liberi, livres, dado aos filhos, em opo­
sição aos escravos. Essa diferença só se manifestava, durante a vida do pai, relativa­
mente ao direito público, que considerava o filho independente^ podendo-se citar um
exemplo célebre, em C icero de invent., II, 17. A distinção aparecia no direito privado,
por morte do pater fam ilias, porque os escravos continuavam no seu mês mo estado;
O ESPIRITO DO DIREITO ROMANO 12S

menor derrogação. Qs laços que os ligavam ao detentor do po­


der, eram, no fundo,,os mesmos.
x Os filhos, não só não podiam ter nada próprio (282>, como
estavam submetidos ao ju s n ecis ac v ita e do pai; podiam, também*
ser por êles vendidos, manumitidos, ou tidos, durante toda a
sua vida, sob o seu poder. O pai podia casá-los, dissolver o m ar
írimônio, etc. Ño direito antigo, nãó existia, que saibamos, en^
tre o poder dominical e o poder paterno, senão um a única dife­
rença, digna de ser citada, — a do poder do senhor que era ili­
mitado, quanto à venda dos escravos, mas não quanto à dos fi­
lhos. Se o pai vendia o filho três vêzes* êste, segundo um a dis­
posição da lei das XII tábuas (283), tornava-se liberto pará sem­
pre (si p a te r filiu m te r v e n u m d u it, f ilm s a p a tr e lib e r esto ) Mas
como era possível uma tríplice venda? Não estava o filho, des­
de a prim eira venda, definitivamente fora do poder de seu pai?
Eis a explicação : o m a n c ip iu m , que atingia o filho desta m anei­
ra (diferente da que se estabelecia pelo noxosr’ d a tio , ou por fic-

enquanto qué os filhos, ao contrário, tomavam-se sui juris, e como tais, se o pai não
lhes havia desherdado, continuavam em familia, à qual, até então, pertenciam de ura
jtnódo positivo.
(282) Não somente não podiam ter nenhum patrimônio, como também nenhum poder
sobre as pessoas, o que não oferece dúvida quanto à patria potestà*, ainda que se negue
com relação à manus, perdendo de vista a afirmação de Gellius , 8, 6, 9: quee in m ariti
manu mancipioque AUT IN EJUS., in cujus maritus, manu mancipio.que esset, quoniam
nön in matrimonium tantum, sed in familiam quoque m ariti et in sui heredis locum:
venissct (passágem literalmente reproduzida em Servíus ad Aen. IX, 476, mutilado em
n o n de d iff. verb. 422, 9: in fam ilia mancipioque sit PATR1S, etsi in MARITI matri­
monio s it), e esquecendo que é impossível que quem está submetido ao pòder alheio,
tenha domínio sobre outras, pessôas. Quando se fala de manus do filho' família sobre
sua mulher, por exemplo, em Gaio , II,~ 148, IU, 3. Ülp. fragni. XXII, 46, deve en­
tender-se que o filho que temos sob o nosso poder, contratou matrimônio com manus,
mas não que possa, por isso, cònsiderar-se detentor da manus. O efeito principal da
manus, ou seja o da disposição dos bens, era impossível "sem o senhor que o exercesse.
W alter, R.R.G. (História do direito romano) 3.a ed., II, § 504, acha essa opinião.ex­
travagante, mas poucas palavras bastam para justificá-la. A proposição anterior:
aquele, que esta ^ob o poder alheio, .não pode ter outro sob o seu poder, não resulta
súmente da natureza do poder do chefe de família, m as'está expressamente enunciado
na L. 21 ad. L. Jul. de adult. (48,5) : in sua potèstaté videtur non h a b e r e qui non e st
suse potestatis. O marido, que se achava sob poder, tinha o ju s necis ac v ite sobre a
mulher? Não; arg. L. 21 ç i t .. Era o dono de sua fortuna? Não. Podia,,
judicialmente, reivindicar a manus? Também n.o. Que era, pois? Nada. Se
se quizer aplicar a êsscs casos insignificantes, a êsses pequenos nadas, o-
nome de manus> não nos oporíamos, absolutamente. Vejamos, no entanto, a situação
da mulher com rela'ção ao sogro.' Sabe-se que seu dos entrava para o patrimônio déle;,
ninguém porá em dúvjda que todá sucessão não lhe pertencia, nem também que tivesse
sua jurisdição doméstica sobre ela. Depois da morte do filho, se ela não estivesse sob
o poder do sogro, sua relação com êste cessaria. Era èsse o caso? Não. Ela era
herdeira. Gaio, II, 159). Veja-se tambeiri Gaio, III, 41), e êle podia nomear-lhe um
tutor em seu testamento (Gaio, I, 148). Voigt opõe-se igualmente (se bem que não nos
cite), a esta opinião: Die lex Meenia de dote. Leipzig, 1866, pags. 75-77.
(283) Segundo Dion ., 2, 27. Paut. num. 17, o filho casado não podia ser ven­
dido, na época antiga.
126 f i UDOLF VON JHERI NG

<?ão), podia, a seu pedido, ser suspenso em cada lustro (fim do


período de recenseamento) (284) . Ora, se o pai só podia ven­
der o filho durante o tèrmo de um lustro, a venda não podia ser
considerada como um a alienação definitiva do pátrio poder;
nada mais era do que a suspensão momentânea dêsse pátrio po­
der, — apenas a locação do filho. O pátrio poder ressurgeria,
logo que cessasse a m à n c f p iu m . Mas o proveito déste resultado
libertador do recenceamento se perdia completamente após a re­
petição de muitas vendas. Impossibilitado de vender o filho,
definitivamente, o pai vendia-o de cinco em cinco anos. A lei
das XII tábuas restringia o direito do pai, limitando-o a um
triplice exercício. Como a lei únicamente .fizéra menção do fi­
lho, a interpretação não aplicava o preceito às filhas, nem aos
netos, outorgando a estes o mesmo resultado com um a só venda.
Essa incursão da lei na p a tr ia p o te sta s é muito instrutiva.
Deve parecer extranho que a lèi acautelasse o filho contra um
mal relativamente passageiro e que o deixasse sem. proteção al­
gum a contra maiores perigos, por exemplo, contra um a aplica­
ção imposta pelo j a s n e c is a c v ita . Se a lei via, ná venda do
filho pelo pai, um abuso do pátrio poder, que julgava necessá­
rio punir, por que não çominava, igualmente, uma pena contra
um abuso mais grave? Evidentemente, porque não a tinha.
Os romanos, parece-nos, viam com desagrado a dissolução
do vínculo éntre pai e filho, pela venda, por mamumissão ou
pela transferência da p a tr ia p o te s ta s a outro (in a d o p tio n e m d>a~
t i o ) . A julgar por ela, a fórm a dês tes dois atos jurídicos, não
se form aram senão posteriormente à .le i das XII dábuas (285) .
Portanto, coni mais facilidade, se compreende como seria pouco
natural, para êles, a importância dada à constituição da fam í­
lia romana, na época antiga.

(284) Não cessava o domínio pleno, como admitimos nas edições precedentes.
Gaio , com efeito, diz (I, 140) : invito eo, cujus in mancipio sunt, censu libertatem
conseqiii POSSUNT. Sobre éste ponto, estamos de ac.ôrdo com A. S:\h id t : Das Hauskiad
im müncipacium). Leipzig, 1879, pag. 16), mas não podemos, nos pontos restantes,
participar dc sua opinião. Sc o pai pudésse vender, definitivamente, o filho, de que
serviria limitar a trêSj o número de vendas? W alter, Röm. R. G., II, § 50S, nota 58,
admite, como Gaio, no principio do § 140, que não é mancipado, mas sóinente dicis
cau$a,' enquanto que nós aplicamos esta« palavras — excepto co, quem pater ea lege
mancipio debit, ut sibi remanciperetur. Senão, qual scria o sentido dessas palavras e
que quereria dizer da verdadeira mancipatio? O direito mosaico continha um dispo­
sitivo análogo. O hebreu que era vendido como criado, tornava-se livre no fim de
sete anos, independente do efeito libertador, que para ele, igualmente, se realizava no
ano do jubiliu. Moisés, 5, 15, 12 s. S c h n e l l , Israel Rechf., pags. 29-8 0 . Veja-se na
L. 20, cod. de posti, revers. (8 ,5 ), de H onorio e T eodosio, uma nova aplicação deste
período de escravidão de cinco anos, o direito antigo: o prisioneiro resgatado (re-
aentus) tornava a ficar livre opere quinquennii, quando não podia pagar o preço da
venda. No direito saxão, o direito de vender foi limitado pela influência da Igreja.
(2 8 5 ) S e a n t e s j á t iv é s s e m o s c o n h e c i m e n t o d ê s te s ato«s e s e e n tã o p o s s u í s s e m o s m e io s
p a ra os e x e c u ta r, c o m o se p o d e ria c h e g a r ao s u til ro d e io d o s te rm o s d a le i d a s XII
tá b u a s , que, n ê s tc c a s o , a b s o lu ta m e n te n ã o sc a p l i c a m ? (G a io , I, («»a io , I, 1 3 2 ) .
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 127

A situação, que criava a m a n c ip a c iiim aos filhos, tinha, no


♦dizer dos romanos, certa analogia com a escravidão, m ais de
facto que de direito. Havia, efetivamente, éntre estas duas con­
dições, diferenças essenciais» em direüto, especialmente, a res­
ponsabilidade do senhor do filho in m a n e ip iu rn , quando o m al­
tratava (28e) e a inalienabilidade do m a n c ip iu m ( 286287) .
3. P o d e r m a r ita l

Existem, como é sabido, duas espécies de m atrim ônio: o m a­


trimônio com m a n u e o m atrim ônio sem m a n u . No prim eiro, a
condição da mulher, quanto aos bens, não se distinguía em nada
d a dos escravos e filhos fam ília (288) Ocupar-nos-emos, agora,
do lado pessoal da instituição.
Sob èsse aspecto, a m a n u s apresenta, essêncialmente, o mês-
mo carater da p a tr ia p o t e s t a s . Muitos autores, no entanto, o ne­
gam . Efetivamente, sustentou-se que não só o c o s tu m e , mas o
próprio d ir e ito , subordinava o antigo ju s n e c is ac v ita , à com­
petência do tribunal de fam ília. Cremos que nisto há um êrro.
Desenvolveremos èsse ponto, ao estudar a influência suavisante
do costume. O poder m arital era, quanto à sua d u r a ç ã o , lógico
com o seu princípio; somente o marido, e não a m ulher, punha
tèrmo à m a n u s. E’ possível que, em sua origem, a se p a r a ç ã o haja
oferecido dificuldades, no m atrim ônio p e r c o n fa r r e a tio (289) ;
(286) Responsabilidade posta em jògo pela actio injuriorum, G aio, I, 141. Não
«e diz quando, nem contra quem podia ser intentada. Não oferece nenhuma dúvida,
que o filho, por si só, não a podia intentar, senão quando sui ju r is ;■ somente o pai,
portanto, podia intentar essa ação. B ü c k in g , Instit., § 47.
(2 8 7 ) G a io só menciona, como dando in mancipio, aos parentes e coemptionatores .
O senhor do filho in mancipio, segundo o m ismo jurisconsulto, não podia torná-lo a
emancipar, senão o próprio pai, G a io , I, 115, 134, 140, o que dá a êste último a possi­
bilidade de tomar-se patronus de seu filho. G a io , epit., I, 6, § 3. Essa particula­
ridade se explica muito bem a quem saiba a importância que para o pai e o filho
tinha a personalidade do senhor déste último, porque, com a mudança de pessoas,
mudavam, também, os motivos, e a confiança que se tinha cm determinada pessoa, não
se teria em outra, etc. Sob o ponto de vista da constituição jurídica, existia uma
instituição a n á l o g a n a tutela cessitia ( U l p ia n o , f r a g n i . 9, 7 ) , na qual, veja-se S c h e u r l ,
Beitr., t. 2, diss. 1, nota coin razão uma substituição puramente pessoal; assim, em
sua incessabilidade, a semelhança das duas relações era indubitável, manifestando-se
mais ainda, quando desaparecia o direito do senhor, na expiração do prazo conven­
cionado, porque o direito do pai mancipante revivia então íntegro, como o do cedente
na tutela cessitia. Mas, até onde chega essa incessabilidade? Não sc podem estabe­
lecer senão presunções. Persistimos nessa opinião, apesar da contradita de S c h le s in g e r ,
no Zeitsch. fur fí. G.r VI, pags. 121, 122.
(288) O assèrto de que a mulher não podia ter pecúlio, carece de fundamento. P laut .,
T.'ns. Il, 2, 26: nam peculii probam nihil habere aildecet ciam virum . (Podia tê-lo com
o consentimento do marido) De resto, o caso era muito mais raro para, a mulher,
que pára o> filhos e escravos.
(289) Sabe-se que essa questão foi muito controvertida. K. W ä c h t e r , Uebcr
Ehescheid.. . (Do divórcio entre os romanos), pag. 63, s. H asse, Güterrecht der Ehegatten,
H)os bens dos esposos), pag. 133 s. e 475 s. Z im m e h n , Kechtsg. (Historia do direito)t
tomo II, p ag. 561.
128 RUDOLF VON JHERING I

más, no período presente, o direito absoluto de repúdio, por. par*


te do m arido, mesmo pelo m atrim onió p e r c o n fa r r e a tio , não po~
dia ser im pugnado.
A questão de saber se o m arido podia dar a m ulher em m ari -
ç ip iiim , quer p ara vendê-la, ou por twxcb datio,, é o único ponta
que poderia oferecer;.alguma^dúvidá, e não seremos nós quem a
resolva de pleno. Compreende-se qúe o feostume reprovará, este
faetô, como um ultrage à sáütidade do m atrim ônio, e assim se
deve entender a suposta proibição de RÓmulo, que não podia ter
outro sentido (290) . Mas a possibilidade ju r íd ic a do facto, é ou­
tra cousa. A circunstância de que a venda aparente da m ulher
*se admitiu na prática da época posterior, parece improcedente.
Mas, esta venda real perdurou até à época histórica? A êste
respeito não ousarem os em itir a nossa opinião.
Não encontram os ,até aqui, nas diversas relações do poder,
desvio do tipo fundam ental do poder dom éstico. Enquanto êste
subsistia, a m ulher, os filhos e os escravos, eram , pouco mais
ou menos, a êle submetidos da mèsrna m aneira. Mas a sorte
dessas pessoas diversas, quanto ao direito privado, se transfor­
m ava com pletam ente com a m orte civil, ou natural, do p a te r
fa m ilia s* Os escravos, e aquéles que s e •achavam in m a n c ip io ,
aeguiam, como dantes, membros passivos dà f a m ilia , mudando
únicamente de senhor; oséelos* e as netas ficavam sob a p o te s -
ta s de seu pai, e as outras pessôas passavam a ser s u i ju r is . Mas
entre êstes, há distinções a se estabelecer. Com efeito, os filhos
menores e a m ulher caiam sob a tutèla dos m ais próximos agna­
dos, isto é, de seus irmãos, ou filhos m aiores; e os filhos meno­
res, ao contrário, tornavam-se com pletam ente independentes.,
Esta dissolução da fam ília, somente nos interessa, por ora, p ara
determ inar a influência que o chefe da fam ília podia exercer,
mesmo depois de sua morte, sobre os destinos da f a m ilia , por
meio do testam ento. Esta influência se m anifestava por um
mòdo tríplice: prim eiro, no direito absoluto de dispor de seu
patrimônio, logo, na manumissão dos escravos e das pessôas in -
m a n c ip io , e, finalm ente, na nomeação de tutores para a m ulher,
as filhas e os filhos menores. Quanto aos filhos maiorès, ne­
nhum a disposição do pai podisp im pedir a sua independência
pessoal. A tu te la te s ta m e n tà r ia é, pois, a derradeira m anifesta­
ção do poder doméstico, no sentido jurídico, sobre as pessôas
livres »
A apreciação, que formulámos, do domínio doméstico, no
sentido jurídico, não diz respeito ao m atrim ônio sem m a n u s ;
mas merece, no entanto, que o examinemos como relação da fa­
m ília rom ana.

(290) P l a u t . , Rem. c. 22. R ossb ach , p a g . 134, n o ta 450, não quis aplicar os-
term os d essa defeza. à m a n c ip a tio , mas, ù n ica m en te, a o r e p ú d io .
O^ÉSPíáíTÔ DO DIREITO ROMÀNO IÍ9
4
*0 m atrim ônio com mantis era um áto im portante «para ä
ihúíher sui juris; im pottántèf não sómèDtê pafcà ela, coniç^tainT
bém, p a ta seus tutores legítimos. Cefo - efeito, -a capitis demi-
àutiõg qtie sofria a mulher, pela m am isf-tinha por fini dissôlvèr
a tutela; e traii$itíitia ao m arido o patrimônio da mulher; — pá*
trimônio que, pbr morte desta, passava aos tutores, é cuja cón-
séS^ac|[q era o íin i principal dá tu te la i291) . Quanto à mtílhèr*
ÍÔ i^ e /^ essa troca lhe e ra até, de certo m ó d o ,# ^
\D fa% ^5^rcjue, pela sua m orte, ou a de seu'm arido, transm itia
a sà s Mlfôs a fortuna, da qual, sem éste, se apoderariam òs
tutored na qualidade de agnados mais próxim os.' Êstes tenham*
pois, o m aior interesse em que a mulher não contraísse, de módoi
algum, m atrim ônio com m anus; como sua autoritas. e ra neces-
sária^para sancionar semelhante união (292293), e como não podiaift
ser obrigados a.^ dá-la C298), dependia déles, únicamente, im pedir
èsse matrimôiíiiíí (294) .
Nenhuma saída melhor para esse conflito dos interesses dos
agnados e de sua pupila, que o matrimônio sem m anus. Não
:ê^a^mitir um a hipótese ousada (295)> crêr que' a prim eira apa^
ricão désta fórm a de m átrim ônip teve lugar pela pDópíia fórca
dás , óonsasT e ênâ* circunstâncias de imprèscindível necessida­
de (296) . Onde se encontraria,, senão na origem desm atrim onio
sem j^flniis? Ònii timos a á sse rô ã ç ^ ^ %que a diferença entre o
matrimônip, çóihr pu sem manus, tinha um a origem ética» pór-
que-etfa ^ s p ro v |d a de provas (297) . Resta um a opinião, que
m érec^ ser examinada, ê a que o matrimônio sem manus, nas-
cêra da« asfdraçÕes do bèlo sexo, para um a independência mais

(291) Gaio, I, § -192:


(292) Cicero; pço F iacco, 34.
(293) Gaio, I, 192, diz que os tutores legais (de sua época), de conform idad com
o .fim interessado, qüe implica & tutela da mulher, não podiam ser compelidos, senão
excepcional mente, a dar a sua a uctoritqs. Duvidamos muito que O ^ntigo direito' co­
nhecesse semelhante exceção, mas qualquer que fosse o facto,. o caso de qúe aqjii se
tráta, não pódeífázèr parte dessa exceção. Imagine-se as conseqüências de semelhante
doutrina! Se tal opiniãb fôèse ^xata, ~a mulher não estaria sob a autoridade, de seus
tutores, cOmo cr atesta , direito antigo, mas õs tutòres estariam sob a dependência da
m ulher,, porque .esta,com a ameaça de casar-se, podia obter déles quanto quizesse e
podendo .fazer ilusório o fim completo da tutela, isto é, a conservação do patrimônio
ná- tramilla.
(294) '' De outró modo^oeoTrreu mais tarde. Veja-se, como da época poé-
^ètiÓr, -a L. •18 c. de^-núpt. (5,4). . . ne forte hi qui qradii. proximó^àd vfäSuarum suc-
cessionèm troceçiíCur, etiam. honestas nuptias impediant. . .
(295) . -Encontram o-la . indicada, em L a b o u l a y e , Investigações sobre a condição ciu li
pólítica da m u lh é r, Paris, 1842, pag. 34. Foi igualmente admitida por P. Gide, .
E studo sobre a condição p riva d a d a m u lh er , Paris, 1867, pág. 126 e s. Veja-se -eiu
sentido contrário. H o ld er, Röm. T h e .; Zurich, 1874, 26; mas não se vê que a mulher
tinha a livre disposição dös frutos' de seu .patrimônio. Vat. fràgm. § 1.
(296) -- Outro caso, tie menor' interesse, era quando o pai da mulher estava louco
ou .prisioneiro do inimigo. Neste caso, a trai^ferência da m a n u s era .impsosivél. v
(297) Veja-se, também, contra essa opinião, Rqssbach, I. c.„ pags. 162 e segs.
iäa H C D O LE- VON J - H B R I NG .

%ompl|ta, ö^que fãz supôr que essa fórm a de m atrim ônio intro.
J|qliu,,na situação da^mulher, maior* soma de liberdade. Mas
4stõ, que* é exalo para^af época em que .a tutela das mulheres
.perdera o seu antigo ttgôr, não se realizou antes, porém no ad-
«yento do sistema seguinte. Esta opinião, quando se refire à
ép^ca antiga; apô ia-se num erro. Tão dependente, no matri-
mônáo sem mànus, como no matrimônio com manüs, a mulher
^ ó ^ n ço n trav a nêste uma, diferença: a de que, ño primèvo,: não
élíavá, com çelação a seus bens, na dependência d ^ ^ ^ iíia a rid o ,
mas de outras pessoas, como seu pai, ou tutores. ^
0 gráu de independência, de facto, que gósava, obedecia* nos
dois,casos, à ascendência, que ela sabia ter sobre o seu senhor.
Os agnados, pela sua avidez, submetiam-se fácilmepte, a esta
influência, como o marido? A mulher, com plena liberdade de
escolha, podendo depender de seus tutores, ou de seu marido,
decidir-se-ia, pela autoridade déste, ou pela daqírête? Delinear
a questão é resolvê-la.
Para ir além do exame da situação da mulher casada sem
manus,ié necessário distinguir se ela se achava sob o poder do
pai, bu sob tutela. No primeiro caso, perm anecia^com o filia
familias; o poder paterno não sofria modificação nenhuma pelo
matrimônio, é. em caso de um conflito éntre o direito dò pai e
o do marido, triunfava ©<pVhrfèiro, porque tinha, por exemplo,
p direito de dissolver o matrimônio, contra a vóntadf^dos^ P o ­
sos (208) . As fontes, que possuímos, não nos dãô ihdícios exatos,
t l ? exercício do jus necis ac vitce sobre a m ulíier. ^ Podfam, o
pai e o m arido, conjuntamente, usar dêsse direito, ou Somente
"um. déles era investido dêsse poder? Ainda, nêsse caso, o poder
,do marido devia, logicamente, inclinar-se diante da patria po­
testad, Ä
Èsse direito incontestável do pai devia, certamente, tornar
difícil, ar posição de ambos, e repugnar às leis da època antiga
sobre á*soberania dom éstica. Era um poder extranho que vinha
aumentar a sua autoridade dentro da casa romana, contrarian­
do o poder do m arido, e póndo em dúvida a própria existência
do casamento. Por que esta anomalia? Tratava-se de garantir
o interesse do pai, quanto à fortuna da mulher. Isto não nos
merece a núnipia atenção. Ainda admitindo que tudo o que a
mulher adqum sse, como filia familias, chegasse a ser do pai, o
interesse em jogo era diminuto, porque as doações entre os es­
posos eram nulas, e as aquisições feitas, graças às liberdades de 298

(298) Os cômicos fazem frequentemente alusão a isso. Veja-se R ossb ach , L c .,


p. 43.' No direito posterior, o exercício da patria potestas foi proibido para uma bone
concordans matrimonium. P a u lo , S. R. V 6, § 15, L. 1, § 5. L. 2 de lib. exh.
(43,20).
r 9 ÊSPÍRITQ DO DIREITO ROW^fe) *' 131

certas «pessoas, constituíam, pelo menos, a^pxçeção (299) . Mas


existia outro interesse parafò ]p>ai, era o dè não confiar cegaraentè
a um homem, cujo carater intimo igpora, um poder .absoluto e
irreyogávfel sóbrela sua filha. Podia,-^ l o m atrim ônio "sem liui-«
nu^^submetê-lo a um a prova, por tempò determ inado, e se o en-
sáio realizasse o seu desejo, conceder-lhe-ia a m anus, ou deixava
jrâquirí-la pelo usus. Em todos esses casos, abstração feita* dá
experiência intentada pp)r rtieio do estado interm ediário, o m atri-
mônic^sem manus de um a filha sob o pátrio poder, foi êaúsa
pqitcpífffeluênte na época antiga.
■*De' modo diverso era, quando a m ulher se tornava sui juris.
Com efeito, por um lado, o, matrimonio sem m anus, devia preva-,
lecer por mbtivos im portantes, e, por outro, o principal obstáculo.,
tjue.contrariava sem elhante união, desaparecia. Comò os tutores
só tinham que guardar o patrim ônio da m ulher, que, sob^o pon­
to de vista pessoal, estava fora de sua dependência (300), não ha­
via que recetar, no lar romano, a ingerência da autoridade ex-
tranha, que se reconhecia no caso da patria potestçts\. À parte
do que se refere à fortuna, o m arido exerceu, provavelm ente, o^
poder sòbre a mulheç, do mesmo modo que sobre um a mulher*
in manu (301) . , Não havia motivo de inquietação, nêste caso,
pela intervenção* juridicam ente fundada pelos parentes da m u­
lher. Assim, pois, se explica que,, sob o ponto de vista posterior,
a mgnus aparecia como um a instituição que únicam ente tinha
p<Sf£objeto os bens e podia existir independentem ente do m atri­
monio (3<*2) . 0 fundam ento da relação de dependência pessoal
da* mulher, em conseqüência do m atrimônio com maniis, çnais
S£ apoiava no próprio m atrim onio que na m anus.
0 matrimônio sem manus apresentava, pois, ao nosso vêr,
dois aspectos: podia, em prim eiro lugar, ser o estado passageiro
de úma filia familias, à qual o usus (303) m inistrava o meio de

(299) A filia familias, não podia receber nada ab intestato em vida de seu pai.
-As disposições testamentària« de um terceiro eram muito raras (eram sempre feitas em
favôr do pai). Somente ficam, em absoluto, as duas fontes *de adquirir, mencionadas
por P lauto, Casin. III, 2, 2 S ... quia viro sub traba t ant stupro inverenit. A célebre
preesumptio Muciana, que impunha à mulher a. prova de.qualquer aquisição que pre­
tendesse ter durante o matrimônio, basea-se em que a mulher não mdquire igualmente
senão pelo e para o marido.
(30P) Assim st conclui de um texto de Gaio, I, 190 (que contém, ao par de. sua
•opinião, o ensinamento de que: mulieres, qux perfectae aetatis su ut, ipsx sibi negotia
iractant, et in qaibustìam causis dicis gratia tutor in terpon i autotitççtem) . T ito Livio, IV,
9, menciona um litigio perante a autoridade de uma mãe e o tutor *de uma filha sobre
a escolha do marido. Mas os factos passavam-se em Andréa, e não em Roma, e seria
temerário deduzir que o mesmo' houvesse sucedido em Roma. R o ssba ch , l. c ., pag. 400.
(301) Z im m er n , R. R. G. (História do Direito romano), t. 2, § 140.
(302) Coemptio fiduciae causa.
(303) Serv. ad Virg. Georg. 1, 31; usu, si mitlier anno uno cum viro LICET SINE
LEGIBUS fuisset (isto é, sem contrair matrimônio, segurfdo a moda antiga, por coemptio
ou confarreatio). O consentimento do pai era necessário. R ossbacii, l. c.,* pag. 147,
pensa afirmativamente.
pm . Ä Ö L F ' T O Ñ ::■&J H E R I Ñ G: r
-

em ségtmdo^

.ios ifpuáãvam ó.-*seü copsentimén|p &


tó d ja o s t u to r e s le g *
t o . Essa recusa assegurava, aos tuto-
a tr im ô n á p . c o i n m .
teiíp£ ÜereditSrigä ysÔ p patrimônio de sua pujuíau
i. a costümév íhe coú^rârigiá a constituir um dòte (^ |í
_ ípreende-se^ f^ qué, sem seu consentimento* o iísus
frjjaP seria possível (^ 5)*'porque este faria passar todo patri-
¿fnpriio de súa pupilp ao marido, submetendo-a aó seu peder.

k *3045

(304) Lembraremos ás idéias tão eonhecidas píelos romanos sobre as mulheres sent
dóte. Vejarse, por exempio, P l a u t ., Trinum, III, '2 , 6 4 ... i n f a m is ne s i m . . . in
c o n cu b ira tu m sic s in e ’ d o te d e d isse m agis quam in m a tr im o n iu m . Sucedia às vezes,,
quê o Senado constituía um dote, no tesouro público, em favoi; das filhas dos cidadãos
pobres* que s e haviam distinguido por Seus feitos, Val. Max., 4,10.
(305) Cícero, pro. F la ç c o , c . 34.
V
■M
%■
4L

&2.-&àT'
III SgCÇÃQ. Aspecto exterior das relações ,de fam ilia env
sua vida íntim a. * *
Fim e sentido da p a tr ia p o t i s t a s na f a m i l i a . A paznc>lar romano.
— Vida familiar. — Condição da mulher e dos filhos. — Tribunal dê
familia. 4?
.
Q u a n to la tiu s o fficio ru in ; qvqrrißiii-
ris p a te t re g u la . Quarrt? m u lta p i& ß £
h u m a n ita s, líb e ra lita s, ju s ti ti a , fid é s
e x ig u n t, quce o m n ia e x tr a p u b lica s t u -
b u la s s u n t.
# Séwteca de ira, n , 27.

37. — A cc^stituição da fam ilia é um problem a importante,


que se impõe áo legislador4 T rata d e relações de delicadeza
extrema, que receiatn as vistas do mundo e desejam desenvol-
v e ^ ^ n # tranquila doçura do isolamento. A fam ilia é o san-
tü a r ic ^ ö a m o rre súmente o amor, dando-lhe seus verdadeiros
ípred^ados, consagra-a^ O legislador, mésmo nao?*tèndo o i n ­
tuito d& diminuí-la, pode feríala com as suas rüdes determ ina­
ções \ Se o legislador procura dar-lhe fórnfa positiva, fruto de
urna preconcebida, se quer "eliminar a livre, e x p a n d o ?1do
éspíçitom ioral — (colocando o amor/sob^a inspeçio da polícia),
— então ser-nos-ia preciso r|peytir*fudo quanto dissemos, de :um
rmódo geral, no § 34, sòbre o sistema d a tirania; e acrescentaírpbs
que, em parte alguma, a réalização de semelhante sis ternas ou
seja a fiscalização do Estado e das sentenças dos jiiizes,, etè., se
chocam com as maiores dificuldades. Trata-se, com efeito», de
penetrar no segredo d a vida de família, e de éspreitá-la, de in­
quietá-la em seus mais íntimqs sentimentos. Quando a revol­
ta seria màis legítima, inevitável e difícil dé conter? Eni parte
algum a, a tentativa de semelhante regulamentação jurídica, se­
ria tão perniciosa, nem se exporia tanto a ferir ^profundamente
o sentimento moral, que degeneraria em im oralidade e em tor­
peza ( 396) . À medida que um sentimento se torna mais deli-

(306) Representa-se, por exemplo, o capitulo do debitum conjúgale, como objeto


de uma regulamentação jurídica (a literatura casuística dos talmudistas e dos jesuítas
produziu, a êste respeito, cousais .incríveis), ou como objeto de um processo perante
os tribunais matrimoniais. Imagine-se a disposição de um código moderno, impondo
à mãe ó dever de instruir sua filha na finalidade do sfexo da mulher, na época da
, mais nobre e purp na sq?a expansão real, mais fácilm ente
ge o fêrê com. semelhante* profénl^ão. E* prudente, pois, q ue
aviei intervènha, o menos? possível, em semelhante matèria*
¿y A intervenção da lei, no Direito rom ano antigo, era muito
O lar.rom ano era o templo do am or e da moralidade*
¿ ^ fe n ^ o se submetia as regras mortas do direito. Segundo ifs
Tfêíàs ro m a n à s^ iiv id a íntima da fam ilia devia desenvolver-se
J^Sr si mestíaá^sdfo que a'prosa árida do direito tivesse,-sob ne-
^qbtím conceito, açpsso na casa rom ana. direito não tem re­
gras para a, vida que nela se desdobra, nem para as relações
existentes^para qs litígios que nela se suscitam. O J a r é a cria-
ção\d®^chefe da fam ília: seu espírito, sua vontade, sua aiitoricià-
de, dirígém-na soberanamente e faz desaparecer a influênciá da
lei. Ö poder, reconhecido ao romano como necessário, de facto,
^a própria lei o atribui de direito.
Èsse poder não consistia em satisfazer os seus caprichos, ou
exercer arbitrariedades, porém era o meio de preencher, segun­
do #s suas aspirações e sob á sua responsabilidade, sem os en­
traves das regras embaraçosas de direito, a missão que a fam í­
lia lhe impunha e os deveres que um a voz intim a lh e ordenava.
Reconhecer a potestas do chefe de fam ília, é fazer do lar romano
o que realmenté deve ser, — o santuário inviolável do am or. A
r potestas dá ao pai de família o meio jurídico de reajjfcbpn* ê s |é
r‘destino do lar, afastando as discórdias externas e e v ita ti^ , €?h
se^t germe, aquelas ?fue nascem internam ente. Resume esta du­
pla proposição negativa: nenhum terceiro tem direito de inter­
vir nos negócos dòmèsteos; os dissentimenjps internos da fan a ­
li a ^não podem, juridicamente, debater-se fora do lar romano»,
tíüma ação entre os membros da fam ília, seja mesmo *30 chefe ?1
com outros membros, seja destes .contra o chefe, constitui uma
impossibilidade jurídica (307) . Pertence ao chefe de família
aplaísgtr essas dissenções, porque é o juiz do lar romano (do-
mesticus0íágistratu$) (308), e, se não restabelecer a concórdia, a
sí cteveratríbuir a culpa, porque, se desde o início soubésse man­
ter a disciplina na sua casa, não lhe faltaria a necessária autori­
dade. Esta autoridade è completamente independente da força
física (309) ; é inleàrámente m oral. A opinião do povo tinha-a
de antemão tão intimamente confundida com a posição do chefe
de família, qife, podia muito bem, num caso especial, ser des-

(307) L. 16 dc furt. (47,2). Ne cum flio familias patcf furti agere possit, non
juris constitute, sed natura rei impedimento est, quod NOV MAGIS CUM HIS, QVOS
IN POTESTATE HABEMUS, QUAM NOB1SCUM AGERE POSSUMUS.
(308) S eneca , -de benef., 3, 11.
^ (309) C íc e r o , de Senect. 11. Quatuor robustos filios, quinqué filias, tantam
domum, tantas clientelas Appius regebat et SENEX et CJECUS... Jenebat non modo
auctoriiatem, sed etiam imperium in suos, metuebant servi, verebantur liberi, carum
omnes habebant; vigebat-Ulla in domo patrius most et disciplina.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMÀNO 135

^mentida por motivo de notoriât" incapacidade, m as nuncà exigin*


*<ào, ùnicamente, para sua aquisição, senäci um esforço individual,
porque o chefe de fam ilia tem sua autoridade completamente
firm ada. Quando essa autoridade periclita, póde, se quizer, im-
pôr-se, valendo-se de sua autoridade; o Estado é que não o au-
£0 ia oe fórma algum a. O atentado do filho contra os pãis^erà
considerado comò um crime nefando e acarretava a pena dS
sacer (31° ) . . if
O c h e f de fam üia exerce essa autoridade, não sómenfe'
por interesse próprio, mas, também, no de seus subordinados
c no Estado. A autoridade não constitui somente um simpfes
dirféito, mas, também, um dever, uma função que deve ser cum-
pridd$ porque, tanto p poder paterno, como o poder m arital,
implicam, ao mesmo tempo, a tutela das pessoas a elas subme­
tidas, o dever de protegê-las contra as injustiças dos extranHos
e representá-las em juízo. A injustiça que sofrem de um ex-
tranho, dá somente direito à ação ao chefe de fam ília, porque
a parte lasada, em direito, é o próprio chefe. E’ contra êlè^
também, que se intenta a ação, quando as pessoas, sob seu pq<clei\
causarem dano a um* terceiro. Em ambos os casos, a ação so­
mente déle depende; contudo, no segundo caso, quando é revel,
deve ser entregue ao autor do dano, para satisfazer o seu adver­
sário {nogcw dedere) .
autoridade constúi, ao mesmo tempo, um a função, con­
fiad a'* ]^ Estado, que exige a sua responsabilidade. Tem po­
der lihiitado sobre as pessoas da família, afim de educá-las, m an­
tê-las ño caminho da disciplina e da órdem, p a ra que a sua
autoridade seja a de um juiz e não a de um tirano (310311) . As
faltas das pessôâs* dá fam ília recaem sobre êle, como graves
acusações, porque atestam que não soube m anter a disciplina?
doméstica (31?), e não póde isentàr-se da censura de cumplici­
dade senão m ediante o rigoroso castigo do culpado. Mas é pre­
ciso que seja um castigo exemplar, isto *é, um ato de justiça^arran­
cado, como o de B r u t o , do coração do pai ; os m áus tragos .exer­
cidos no auge da cólera, tornam o pai passível de péna, e o
colocam, perante o povo, em situação grave (313) .
Dêsse mòdo, o lar rom ano, graças ao poder do- chefe de
fam ília, chega a ser um domínio independente, isolado do m un­
do exterior; é um verdadeiro oásis cheio de frescura no deserto
árido do direito. Assim como a natureza circunda, espontánea­
mente, certas partes delicadas, ao abrigo de um a proteção vo­
luntária, do mesmo modo, a rude e dura certeza dêsse poder tem

(310) F e s tu s , s .V. plorare.


(311) DOMESTICI MAGISTRATUS, sub quorum custodia contincretur dom us.
S eneca , d e b e n e f. 3,11.
(312) Cic. d e r e p u b l., IV, 6: sit censor, qui uiros edoceat m ulieribus moderari.
(313) Notas 192, 351.
ir
js^ e n fe ^ p o r fjm prátfeger as çaais. m tirags d i v i d a mo-
centra todas as; f e ^ M è n e ^ . ^ tjcòjita&^
"ilod^o çQip p m undp ''^ k férip r^ :^ | Ì è ç q í ^ i ^ 'p i p s ^ '
;cq, ffàrá^tp rn ar .jK>ssiyd^•^ yiíja íntiraâ*
Èis o que qirizemós designar* mais .açim à,/ao fSliar dáv con-
$ep|^ã<> ihtçrà&r, dar ¡|a n Ä g ^ ^ a n ^ asg p ^g fjg ' p ^ s u ^ ^ f
GygégsvgL eia;! é ; I a 4 ?Ü ^ p ^ d gÄ a
pafy. Um à s i í p '^ ’
* Nêle ^ H B à l.ío m sedução, e. beleza extraordinários, essa or-
*ganisação do poder doméstico, que impéfÉg o d ire ilb d e se apro­
xim ar da fam ília Mas falta saber sé essas; form as mortas, por
si mesmâs,* estavam anim adas .de um verdadeiro espírito mqphl.
Seria! assim na antiga Roma? E’ isso o que vamos dem onstrar.
0 nosso d/r^ilo atual, e já o Direito rorfrano posterior, repelia
<^pode A dim èstico ilim itado, òú, o que vem a ser o mesmo, o
direito concluiu por dom inar no seio da fam ilia. Não desconhe-
çembs a legitiijiidade relativa dessa transform ação, eip-cujo uso
-teve grande parte a vaidade. Os nossos costumes atuais pai;e-
^feçriam inconvenientes g um ãntigo r ornano, *tanto como a nós)
rip u g n ar iam os postumes romanos. - Que o filho, dèsd.e p seu
nascimento, possua um patrimônio próprio; que seja rrèo, mes­
mo, que o pai seja pobre; que os filhos possam; livremente, in­
tentar um a ação contra seu pai, ou contra terceiros (*315) ; que
o pai não tenha à sua disposição nenhum meio ju tí^ g Q Íp arà
obter a disciplina doméstica, e para, cham ar sfc órdem ^ Í M o
que se tornou índêpendente, ou. esquecido de seus devores, e de
sua honra; qüe p ârá qbrigàr a m ulher a cum prir os seus deve­
le s , o juiz intervenha em auxílio de m arido: — são agora os
princípios,, nos quais, u m /o ih a n o na época a llig a , somenje ve-,
iria regras contra n a tu ra . ?
Estudar ö aspecto real, em que se apresentava o pai de fa^-
milia, na Vida rom ana, é o melhor nifeio de saber o seu sentido
perfeito e<^ sua verdadeira finalidade. Im porta agora noâ de­
sem baraçar das opiniões equívocas que se em itiram com rela­
ção à fam ília ^ m a n a , E* incrível que o direito abstrato tenha
feito coin que filósofos errassem (316), não menos que os juris-

<314) Totaque dojnus, quee espèctdt ih nos neqiie aliúd habere potest perfugium.
(315) Era possível*/em Roma, iima ação do filho em ancipado; á lógica' exigiu
conccdê-la- sem restrições, mas os sentimentos de piedade e de.conveniência fôram mais
fortes, em Roma, qué ia própria lógica. As ações contra os pais precisavam a autoria
zaçãò expressa do pretor, L. 4, § 1, L. 6-8, pr. de in jüs voc. (2,4) ; c ainda quando
os filhos tivessem algum motivo de queixa, ou de ressentimento, não tihham a cer­
teza de- serem atendidos, porque os romanos. prèferiam ver os filhos, sofrer uma-injus­
tiça, por parte dos pais, que a estes citados perante a justiça, a pã** ser por motivos
imperiosos.
(316) Por parte dos juristas, habituados a se aterem às abstrações do dircitó, não
é de'extranhar; m as. os filósofos e as filólogos deveriam antes* ver ?a verdade. Nada
mais errôneo, por exemplo, que se diga como H egel, P hilos. Çpltosrofia da História),
O ESPÍRITO DO -DIREITO R flA ^ ÍO 137
'- i r
S
consultos, nas apreciações.sobre a vida dá*família rom ana. A
p rió ri, negou-se que a sirríulação da patria potestas e dá manas
^ocultassem uma figura hum ana. Certamente, se se fundaste a
<^pinião únicamente, no carater e na conduta pública do povo ro­
m ana, sobre a. sua impiedade para com os inimigos e povos do-,
.-¿sobre;a su á fa lta de consideração nas relações civis, etc.,
^ispensár-se-ia de examinar a questão de saber se disso se podé
éoncluir,-razoavelmente, a existência dò direito de fam ília, a-de
um a suave pida doméstica. Mas, é um fenômeno frequentevbem
conhecido, qpü as naturezas fortes são as que sabem reunir dois
aspectos distintos: um, enérgico, áspero, rude, que m ostram ao
m úúdo exterior, e outro, terno e sentimental, que resfrvam para
as relações dé intimidade, ou, o que é o mesmo, uma rude, apa­
rência envolvendo umá intenção cheia de doçura! O^sentimen-
to se esconde por trás das recónditas dobras da vida^de^fami liá,
à m edida que encontra exteriorm ente menos oportuniàade dé se
m anifestar. Esta compreensão do sentimento é, precisam ènte,
que lhe dá, a miude, no pequeno espaço em que se encontra re­
fugiado, ,/uma intimidade, um a intensidade, um a surpreendente
delicadeza de expressão, que inútilm ente se ençontra entre esáas
naturezab em que o sentimento se manifeste.
O romano, exteriormente, isto é, na vida dos negócios e na
vida política, e o romano no recèsso do lar, são homens com­
piei amen te;>diferen tes • Exteriorm ente, não conhecia a piedade;
o seu,"egoismo seguia, sem consideração, o caminho que se tra-
çára. Mas, no lar, vê-lo-emos, sob um aspecto reconciliador,
restabelecendo, vitoriosameñte, o equilíbrio m oral com- outros
povos, por exemplo, com os grêgos.
Manter a união comum dos meínbros da fam ília, salva'-
'guardar èsse laço,de união, eis o que constituiu, na.antiguidade,
a ação fundamental do caráter romano (317) . Vimos,, na cons­
tituição da geiitilidade, descrita no volume precedente, que esta
idéia era um princípio essêncial do direito público^ Não se

2.a od., pag. 348: “Na vida dos grêgos, o amor e os laços de fam ilia tinham exigências.
A grosseria selvagem das origens da vida romana, exclunido os sentimentos de
naturaci moralidade, faz nascer a rudêsa que nelsL reina na<s relações de família, rudêsa
agoística, de futuro, o carater fundamental dos uso« e das leis de R o m a ...” E na
pagina 350: “assim são desnaturados e pervertidos os princípios fundamentais, da mo­
ralidade” Análogas observações se encontram nos filósofos. R úpperti , H a n d b u c h d e r
R õ m . A l t e r t h ü m e r , ( M a n u a l d e a n t i g u i d a d e s r o m a n a s ) i l .a parte, pag. 270, diz: “A vida
da família era impotente para despertar e reanimar a delicadesa dos sentimentos,
p o r q u e o la ç o d e l ic a d o do a m o r n ã o u n i á o s m e m b r o s d a f a m l l i a : { \ ) o pai era o
d o m i n u s ; o senhor de sua casa” Compreende-se esta opinião, conhecendo a incoe­
rência' deste autor. Mas quando um observador profundo e conhecedor exato da an­
tiguidade romana',como Re in (ná 2.a edição de Gaio , de B ecker, tomo II, pag. 47Ó),
não se pode desprender desse habitual prejuizo quanto à p a t r i a p o t e s t a s , prova quanto
èsse prejuizo está^ enraizado.
(317) A vida em cojnum,^ em uma só casa, mencionada por Val. Max., 4, 4, 8,
<e o mais belo exemplo ?■
138 S íP ÍS ô Ì, F VON J H E R I N G
£ *
póde conceber êrro mais grosseiro, qne o de falar, como já dis-
sfemos, da indiferença" dos romanos pela fam ilia, de sua as'piß-
reza, nas relações domésticas! E issò se dizia de Roma, onde à
fäiiiilia era, precisamente, considerada como a síntese de tpda
a' existência moral, e onde a saída do membro de urna familia,,
para^fazer parte de outra, implicava num a capitis deminutio?
ÌEèi Boma, onde os usos asseguravam aos pais uma influência da
qual nós, que com tanto agrado enaltecemos a satisfação de
nossa vida privada, nem ao menos delatem os um ajrem ota idéia f
Mas, diz-se, faltava, na família rom anàf'o elemento do amor!
Como se á organização, na época mais rem ota, não tivesse por
base o afeto, a felicidade, em uma palavra, o amor; como se,
depois de tudo isso, o amor se devesse demonstrar nas leis! Fi-
xando-nos nelas, é claro que não se póde encontrar traços de
atppr no sistema de que tratamos agora (quce omnia, como disse
SÉÑECA,‘na passágem que nos serviu de epigrafe, extra publica
tabula suntffy as leis não se atêm sómente à pessoa abstrata.
ainda que seja uma questão de direito, a continuidade das
r^ças e ä coesão da família, o principal objetivo dêsse direito
consiste em expór, em toda a sua pureza, a personalidade ato­
mistica, entregue exclusivamente a si mesma, não com ò fim de
povoar o m qndo romano de abstrações que lhe conduzisse, ime­
diatamente, a prejuízos, mas para entregar à livre ação do espí­
rito moral, o que a legislação, por si só, não podia' conseguir.
São, pois, aos, usos que se deve consultar. Ora, se se nos
perguntasse como era organizada a-fam ília, poderíamos respon-
sem recèio, com o que sabemos da época antiga, e mesmo
^quando aquelas fontes não pudéssem responder, bastaria a obser-
^vação de que se desenvolveu perfei tarnen te pura e ao abrigo da
c rític a / A fam ília é a escola moral do indivíduo, dos esposos e
dos filhos e, por isso mesmo, a fonte em que o espirito e a força
moral do povo vêm se retem perando. Se a fonte está envene­
nada, traiísmite, irremediavelmente, o virus a todo o organismo;
mas j^e esta é sã, póde-se deduzir que a família, também, será
sã e p u ra. E^ar correlação, entre a m oralidade nacional e a fa­
mília, é evidente na aiitiga Roma. A m aior parte de suas^
primitivas virtudes, — economia, simplicidade, amòr à órdem,.
castidade, fideldade —, têm precisamente, relação íntima com a
vida doméstica, e encontram, na família, a sua causa moral, 0 =
sep ponto de partida, ó seu meio revivecente.
Mas, não era possível, objetar-nos-ão, que, em vês de ser 318

(318) O escrito acima citado (nota 295), de L aboulaye, Investigações sobre a con­
dição civü e politica das mulheres, Paris, 1842, foi inspirado sob a influência da
Idéia jurídica abstrata, e comprás-nos poder provar que a opnião já acima desenvol­
vida, exerceu uma influência decisiva em outra nova obra francesa sobre a mesma
matéria, a de P aul G ide (nòta 295), que merece um lugar de destaque, ao lado de
L aboulaye .
O E S P Í R I T O DO- D IR E IT O ROJÈ^AggJÕ
•* # 1
um esposo leal e um b o m b a i, o chefe da fam ília rom ana fòsse
um tirano doméstico que inspirasse terror, e que, nêsse único
aspecto, a franqueza' e a alègria do lar se dèsvanecessem; que„
com mão de ferro, a opressão, por um lado, e a obediência céga
por, outro, dominassem sempre, afugentando o am or e tudo o quç^
corittitúi o encanto da fam ília, a confiança, a intim idade, á cal­
ma, a simplicidade e a doçura das relações privadas. Com efei­
to* a tristè experiência confirm a que essa imágem do tirano do­
méstico se apresenta a quem lê as exposições abstratas que d a
direito da fam ília rom ano se escreveram, tais como ainda estão
em voga (318) . Vejamos se à essa imágem podemos opor outra,-
que seja menos repugnante. Figuremos, desde logo,*"a situação
da m ulher romana, na fam ília e na sociedade. Se o homem
fosse o déspota que se nos pinta, a condição da m ulher seria,,
não a de um a esposa, mas, como no Oriente, a de um a escra^ja,.
ou, como na Grécia, a de uma criada, ou concubina. Oraf eh*
verdade, a m ulher rom ana era a companheira de seù marido, na
m ais ampla acepção da palavra. Nenhum povo do m undo anti­
go, sem excetuar o grêgo (319), deu à m ulher lugar tão honroso
na sociedade, como os rom anos. Duvidamos mesmo que, entre
os mais civilizados povos modernos, a m ulher goze de estima e*
rç^peito tão elevados, como na antiga Roma, em que estava sob<
a manus do marido e da tutela de seus parentes. A mulher, se­
gundo a cohcepção dös romanos, era somente igual ao homem,
-sob o ponto de vista social (320), em oposição ao que se verifica­
va éntre os outros povos anteriores aos romanos, mas gozava
mesmo de grande respeito e era considerada superior ao homem ^
O rigor que se tinha com o decorò, foi observado somente áji^
consideração às m ulheres (321)> porque foi por elas inspira­
do (322*K A suscetibilidade que se m ostrava sobre este última*

(319) Os romanos aperceberam-se dessa diferença com os grêgos. . . Veja-se, por


exemplo. Cornei. Nepos, Praef. : quem enìm Romanorum pud et uxorem ducere IN
CONVIVIVM, aut cújus non materfamilias PRIMUM LOCUM tenet cádium atque in ce-
lepritate uersatur? Quod multo fit aliter ini Gracia, nam ñeque inçjhonviviüm adhibetur
nisi propinquorum, ñeque sedet ni in interiore parte aediiim, quae yvcu ovttiç appellan­
ti^, quo nemo accedit nisi propinqua cognatione çonjunctus ;
(320) Becker , Gaio, t . 2 , p . 6 . .
(321) K. Wächter, über Ehescheidungen bei den Rön., (Do divórcio entre os ro­
manosb pag. 11 e seg., entre ojatros muitos exemplos, diz que se as deve evitar na:
rua; o lictor tinha a faculdade de mandar abrir caminho por entre a multidão, para
passar, mesmo que se achasse presente o pai do consul, mas nao entre as matronas, sendo*
severamente proibido dizer ou fazer qualquer coisa inconveniente na, sua presença.; na
in jus vocatio, não se podia tocá-las, etc.
(322) Val. Max., 6, 3, 9-12, apresenta nêste particular, uma soma consideráveT
de provas brilhantes, de extraordinário rigor, dos romanos. Em geral, os .romanos
eram, no que d i/ respeito às convenções exteriores e de bom tom, muito mais susce­
tíveis de que se ere e mais mesmo do que nós. Assim, por exemplo, é que um censor
expulsou do.i Senado um senador que havia abraçado sua mulher, em presença dc sua-
filha ^mais velha. Plaut?, Cato major, c. 17. Cic. de o ff., I, 35. Vil Ma\., i,
1 ,7 ... ncc pater cum filio pubere, nec socer cum genero lavabatùr.. . quia inter istcr
^fypaLF VOJN J « EJ EUNG
' i*. A
^brito, ä puresa m bral e a virtude imaejjlada (323)., que delas se
bxiigiä, a mflúênciá que se deu ap v principio da monogamia,
peculiar jatos róínánós desde remota- antiguidade* todos êssgs ^e
( ^ ^ ~ at^sfain, claram ente, o elevado conceito que
íáziamHda missão e d a dignidade da inülher, cuja situ a ç ã o ressal-
/ t a , des empenhar a^ na histori^^ A
^ e m o ii^ r^ ^ ^ o rífic ^ feçOF^açãp das mu­
lheres que déssem magníficos exemplos d e fid e lM a d e rd e casti­
dade e d eo u tras virtudes fem ininas. A lenda e ¿ fiistória róma-
Ifay por màis qùe procurassem , como as de qualquerv povo, oca­
sião de exàlçar as virtudes próprias dos homens, tratavam , no
entanto, com predilecção bem acentuada, de atribuir as m ulhe­
res, os jmais notáveis acontecimentos (*325) . A prim eira guerra
por elas provocada, ameaçou destruir Roma; mas as mulheres
raptadas, unidas a, seus m aridos pelo amor, salvaram Roma;
rebasando voltar à sua p átria. Segundo a lenda, foram recom­
pensadas, dándo-se ás cúrias o nome de m ulheres. Verdadeiro,
bu falso, este feito foi altam ente característico. A expulsão dos
Reis liga-se .à L u c r e c ia ; a quéda do decenvirato à V i r g in i a . Reis
e descenyiros fizeram desdobrar a indignação, qüe suas dispo^
lições provocaram, transform ando a cóleta em revolta, quando
ressa arbitrariedade era exercida contra um a m u lh e r.? G ór iola -
no, que tinha em suas mãos a salvação do povo, só depôs as
arm as, graças às súplicas de sua m ãe (326), e à das m atronas ro-

#tám saneia* vincula non minus q u a m 'in -aliqúo* sacrato loco nudare se n efa s'esse ere-
%d^bc^ir. V. ainda ibld. 6, 1 ,8 : promissorum ma tri fam ilias nummorum gratia (stru-
.jjTösa mente) diem ad populum dixit eumque hoc uno crimine daipnado..
(823) O orientai exigia tariibém a castidade de sua éSposa, não pelo interesse
-desta, mas. pelo seu pròprio- interesse. Exigia-se, em Roma, em favor da mulher, a
-castidade e a sua perda considerava-se ainda mais grave que a da vida. Por isso, c
que Virginius matou a sua filha e o seu exemplo foi imitado. Veja-se, por ^templo,
V al. Max., 6, 1. 3, 6. Neste sentido é qué S éneca designa (fragm. XIII; 70, ed. Haase,
v o i. Ill, pag;. 43) a época antiga como um sèculum, quo iiiipudicitia monstrum erat,
(324.) Estátuas elevadas às mulheres, "veja-se P in ., H. Ñ . 34, 11, 13,' 14. Á so-
Jemnis post^nortei^audaiio. Trro L ivio , V, 50. S uetonio , Caes. 6. JPresença das mulheres
nas festas, nota. 219f e T ito L ivio , V, 31; XLV, 2. Convocação e deliberação das mulheres.
(325) 'Os romanos tinham a perfeita conci ência dessa predileção. Catão, senior,
a quem não se póde censurar -de' ênCüsiasta do sexo feminino, assim o declara» em suas
Origens (T ito L ivio , XXXIV, 5), com apoio numa série de exemplos. Nos debates sobre
a abrogação da lei Oppia (T ito L ivio , ib. 2-7), foi condenadò. a empreender a luta com
-sejqjS adversários, com armas tiradas de seus própriós árgumenots. P aulo Gide , nota,
cilÉ razão: “que essas heroinas da antiga Roma não são, como na Grécia, cortezãs, mas
virgens' púras, esposas fieis e mães cheias de abnegação, que juntam à. sua inviolabi­
lidade a prática dos mais modestos ideveres e as mais humildes virtudes que cons­
tituent a sua grandesa”
(3 2 6 ) P e t e r , . G e s e ll. Rõms. (História de Roma), to m o I, 148, d iz , c o m razão , que
essa le n d a a t e s t a o a l t o c o n c e i t o q u e t in h a m , o s . r o m a n o s d a d i g n i d a d e d a ^ . m u l h e r , c,
s o b re tu d o , a g ran d e c o n s id e r a ç ã o e a - in f lu ê n c ia q u e g o z a v a a m ã e (dtáf f a m í l i a .
CoaioLANo n ã o p o d i a d a r m a i o r p r o v a d o c u l t o à sua m ã e , s e n ã o r e c o n h e c e n d o , a lé m
.d e l a , o a m o r à p á t r i a . * * "
O ESPIRITO DO DIREITO ROMANO 14?
i
, m anas, quando já todos- os outros meios, para apaziguá-lo, fô-
jTam inúteisv Um dos acontecimentos mais importantes da Re­
pública, ö acesso dos plebeus ao consulado, cujo cargo se ^dèii ã
’LìCÌnius Stola, teve por causa um motivo pessoal, õ dVorgullro
de suã jrnulher (327) . A memória dos dois Gracòs é inseparàvél
da de juta mãe, que os edücou. Outro exemplo ,curióso da in-
jiu eñ eia que exerceu o sexo feminino* foi a obrigação da lei
•Ö^jpia (sôbré *0 luxo das mülheres) ; a própria autoridade de
•Gatão se quebrou com esta influência (328) ; E’ impossível epie
urii poyo, qüe colocava em semelhante lugar a mUlheT, pudéss%
pelo casamento, como no Oriente, Tazer <dela uma escrava. Em
'p a rte alguma, à influência da m ulher se .exèrceü, còrno no reces­
so do lar. O respeito, que .se tinha pela mulhèr-, em considera­
ção a seu sexo, era mais profundo ainda para a^ e s p o s te p a ra
a m ãe. Roma não podia, como se nos quer fazer erér, desco­
nhecer o carater do matrimônio; mas, ao contrário, dêvia pêlte
ver um conceito mais digno e mais puro, que em nenhum outro
ip o v o . E assim era, efetivamente. Esqueçamos, por um^fristan-
*(e, o aspecto jurídico abstrato da relação; considçrémó-lo em sua
m anifestação exterior e ínátériàl, e evoquemos a idéia natural que
os próprios romanos lhe ligavam.. 0 çasánreníò cônstitüiá um a
relação sagrada; fundava uma comunhão religiosa éntre os dois
esposos* e, por êste, moitvo, recebia a consagração divina, logo
que era celebrado (329) . A èsse casamento antigo aplicava-se a

(327) T ito Livio, VI, 34. A tradição refere um facto análogo, de Xanaquilda, esr -
posa de Tarquinio, o velho. Tito Livio, I, 34. V. támbem a história de Tarqui*^,^*» :ü
Soberbo, Tito Livio, I, 46: initium turbándi omnia À F&MINA ortum est. Amte todos'*"
ésses factos,^ se se pensar que involuntariamente á questão chagou a ser proverbiai,
— onde está a mulher*
(328) Veja-se o alegre quadro da agitação idas mulheres, em Titó Livio, XXXIV,. 1.
Matronee nulla nee auctoritate nec verecundia. NEC IMPERIO VIRORVM contìneri .lim ine
poteranl; omnes vias urbis aditusque in forum obsidebant. . . etiam éxoppidis concilia-
bulisque conveniebant. Jam et cónsules preteeresque et alios magistratus adire et
rogare audébanU c. ^8__ aliquanto major frequentici mntierum ¡postero die sese in pii-
blioum effudit, uno que agmine omnes tribunorum januas; obsedèrunt, qui collegarum
rogationi intercedebant, nec ante abstiteruntf quam remissa intergessio ab, tribu n is-
essétt' Recomendamos a leitura da. passagem de. T ito Livio a tódos aquélés que se
compadecem da suposta opressão em que viveram, as mulheres de Róma. Bela/ pò-
der-se-ia tirar a consoladora convicção 'de que os rojnanps não podiam escapar; nó qüe
diz respeito ao poder material, do que nos ensina a disposição biblica: **e-êle será.
teu Senhor” . T ito L ivio, c . 3, diz, pela boca de C a tã o : recensete muliebria jura,
quibus omnibus constrictas vix tarnen continere potestis; c. 4 : ' simul lex rnodàyn
sum tibus uxoris tuse facere desierit, tu numquqm facies! Vejamrse também os con^
selhos aos homens casados e as indicações sobre a conduta com as mülheres, em P l a u to , "
Astir., I, 1, 73, 5, 2, 49; Ãulul., 3, 5, 14 a 62. Cie., Paraxf., 6, 2: Ule liber, cui tnulier
,imperat, cui leges imponit, preescribidit, jubet, vetat, e, sobré tudo, as palavras' atri­
buidas a Catão por Plutarco (Reg. Apoph. Cato. 3), segundo ás quais ein. toda parte
eram òs homens que governavam as mulheres; mas: em Róma, qué domiiiávã o mundo
inteiro, as^mulheres èram as -que governavam os homens.
(329) ' Èsse carater religioso não se limitava somente à cónfarréaiid. Veja-se
a êste respeito^ R ossbach , i.[ sect IV, pags. 254/328.
142

célebre definição d a m âtrimônio romano (zzoì, definição que, aos


olhos dum ignorante, poderia exprim irva idéia cristã do m atri­
mônio. Para a antiga época, era um a veídade; mas para a pos-<
.terior, qtte nòria transmitiu, nada mais foi que um a reminis-.-
fcência. Sabe-se o imenso contraste qué apresenta a vida con­
ju g al nessas duas épocas : numa, os costumes severqs (^ u n lig u i-
4 a d é ; noutra, a frivolidade, a horrível désmoràlisáçã^^^
:einica impudencia da' época anterior. Na época aivtiga, não?
.obstante a possível dissolução, no direito; do matrimônio, o di­
vórcio era raro (330331) ; -na posterior, apesar de todas as leis, o
adultério e o divorcio eram comuns. Èsse facto confirma a exa­
tidão da conhecida observação, de que o matrimonio era o baró­
metro da m oralidade dum povo.
A idéia natural, como predom inava na vida rom ana e tam-
.bém se refletia nas deduções jurídicas, fazia do patrimonio dos
^esposos um a cousa comum (33^) ; via, na mulher, a senhora e
doña da casa (333) . A natureza da relação dos bens, tal como
existia* para ò matrimônio com manus, segundo o rigor do di­
reito, era pouco real na vida comum. Como atualmente suce^y
de. a esposa rom ana considerava os bens dotais como pró­
prios (334), antes, como depois do casam ento; apesar de^entra-
rem p a ra a propriedade do marido, somente ela dispunha aèsses

(330) L. 1 de R. N. (23,2: consortium omnis vi tee, divini et Immani juris ¿


comunicatio. § 1. I. de patr. pot. ( í ,9) individuam viteee consuetud ineqi confines.
/ 'L. 4, Cod. de crim. exp. Ler. (9,32). Trro Livio, /, 9, faz dizcr a Rómulo que o
matrimònio é a societaès fortunaram omnium ciuUatisque. Veja-so tambem Dionisio
de Alieamaso, 2, 23„ ^oivcovía Ícqcov ^aí xpr^táTCOV» Cic. de off. I, 17, 54: prima
* socielas in ipso conjugio est, próxima in liberis, deinde una domus, communio omnia.
(331) E* isto, pelo menos, o que se depreende da conhecida lenda, de que o di­
vórcio de Sp. Carvilius (520 anos antes de J. C.) foi o primeiro. Gell., XVII, 21.
Val. Max., 2, 1, 4. .Um divórcio sem motivo era um delictum non modicum. L. 9,
■§ 31 de minor (4,4). "
(332) Columella de R. R. Praef. Nihil conspidebatur in domo dividuum, nihil
jquod aat maritus aut femina proprium esse juris sui diceret. L. 1, § 15 de Sc. Silan
(29,5), commixta familia et una domus. L, 1, rer' amot. (25,2)... quibusdum existi-
jnantibus, ne quidem furtum earn’ faeere, ut Nervo, Cassio, quia sacietas v ita quó-
dammono DOMI&AtN cam faceret. Os esposos, tafnbém, designavam seu patrimônio
como comum; *veja-se, por exemplo, a inscrição sepulcral de Türia, II, v. 37 (na-,
revista Zeitsch. für Rechtsgesch., to i. V, pag. 16©): Ñeque matrimonii, quod adirne1
fuerat commune, separationem,, facuturam, nihil sejunctum, nihil separatum te habi­
taram, e I, 38: officia ita partiti sumus, ut ego tutelam tux fortume gererem, f i f
meet custodiam iustineres. Veja-«e Bums, Fontes jurídicas de Roma, 4.a ed., pag.
^37. 'á^Por esta razão, talvés, se admitia, em vida, a sucessão do marido nos bens dá
mulher falecida, núm matrimônio com manus, enquanto que, por direito, a morte da
mulher não mudava nada a sorte dós bens. Serv. ád Aen. 7, 424, sibi invicém'
succed ebani.
(333) Macrob., Saturn. 1, 15. postridie autem nuplam in domo viri DOMINIUM„
tncipere oportet apisci et rem faeere divinam . Dionis. 2, 25. Plaut. Casina prol.,
,44: Aerar; Asin. 3, 1. 2, 6: maJtris IMPERIUM.
(334) PÍ¿mt., Asia. I, 1, 72: DOTALEM servam, adduxit uxor tua, cui ßhis in manu
,sit quam tib i. Miles glor., IV, 6, 26, ÌÌ3. Quivi tua causa.exigit vidim a s e — Quid?-
cT t e s p í r i t o do d ir e it o rom ano 143

objetos de valor (335) ; e ürn marido que quizesse pôr em prática


a 'teoria legal de sua propriedade ilim itada sobre os bens dotais
da mulher, criaria um a situação bem falsa* Relativam ente aos
imóveis dotais, a lex Julia de fundo dotali, converteu mesmo em
direito, a situação que, de facto, gosava a m ulher, p a ra cujo fim
ex m n ^ ê seu consentimento, na alienação dos imóveis. A im-
poMâffiia prática do sistema ropiano, quanto aos bens dos es­
posos, como a de todos os sistemas que tratam desta matéria»
reside, em geral, menos nas relações dos esposos éntre si (e por­
que estas relações são as que deviam ser, ha sem pre acordo entre
eles para disporem de seus bens, isto é, com unhão de disposi-
eõès) — que nas relações com os terceiros, especialm ente com os
credores, em caso de falência ou insolvência. Qualquer que
seja, além disso, o sistema estabelecido pela lei, na intimidade
do lar, não é a lei que governo, são os deveres dos esposos, éntre
si, os que regulam a sua respectiva situação. Mais adiante, quan­
do falarmos nos tribunais, indicaremos, com o jus necis ac vita,
os direitos do m arido sobre a m ulher.
Fica, pois, plenam ente demonstrado que o fundam ento do
poder m arital não assenta, de mòdo algum, na idéia que impli­
q u e i inferioridade m oral do m atrim ônio. Todas essas declara­
ções" sobre a aspereza dos romanos, ausência de am or (336), etc.,
atestam, mais um a vês, a ignorância completa que se tem do ca-
rater daquêle povo e de sua vida. Nem mesmo se encontra o
m enor traço de sem elhante apreciação, entre os rom anos da épo­
ca posterior, que não tivessem, no entanto, a delicadeza de senti­
mento, bastante desenvolvido, para emitir um julgam ento em
tal m atéria. Quando falam das supostas ou reais barbaridades
<lo antigo direito (337), jam ais se ocupam da manus, nem para
censurá-la, nem p ara justificá-la. E, no entanto, a época pos­
terior deixava atraz de si, coin a sua civilisação inferior, um
poder m aterial tão puro, cuja prática não voltaria a ser, de futu­
ro, mais do que um a ligeira emanação do que havia sido. Como
explicar que um a épioca tão requintadá em outros conceitos, con­
servasse èsse legado bárbaro de uma idade prim itiva? Verda­
de é que, nos últimos tempos da República, o poder m aterial de-

■tjui id facere poUiit? — Quia JEDES DOTALES HUJUS su n t. V. tambem a L. 30*


Cod,, de jure dot. (5 ,1 2 )... et naturaliter permanserunt in ejus dominio L. 3, § 5
<le minor. (4,4)' ipsus filiat proprium patrimonium. L. 71 de evict. (21,2/, L. 75 de
jure dot. (23,3), m alieris dos est. L. 4 de coli, bon (37,6), in m aritis familias bonis.
A fórmula do divórcio era: TUAS RES tibi hubeto. L. 2, § 1 de divort. (2*4,2).
(33ö) Assim, pór exemplo, as matronas dispunham por si sós do ouro que pos­
suíam. T ito L ivio. V, 25,50. F e st u s , v .? matronis.
(336) Traços sublimes do màis profundó amor não faltaram jamais no mundo ro­
mano, e ainda que não os reunamos, aqui,, citaremos, como exemplo, a Valerius Max.,
5-6„ 2; morte uxoria audita dolpris impotens pectus suum gladio percus^it, Sembrando
¿»o mesmo teinpo a bela manifestação do amor conjugal contida na inscrição funerária
<le Turia (nota 332).
(337) *Ve¿a-se na crítica do antigo direito por Favorirne, em Gellius, XX, 1.
^ I >OLF V%N

s apareceu. A Moda do casam ento sem mapiis Hornearse cad a


>^ês Mais generafpada. E mesmo nò cás amentó sèdi ^mahùéy
esse poder f icóu, de facto, reduzido á ümá simples ficção. -Longed
dec\:nisso áacõntràr um progresso, os ii^llm res .e s p írit^ someiite |
viram o sinal de desm oralisàçãô *qüé se ia dilatando f^?8)
Poucas palavras bastariam para desCrever ©"
poder paterno t i p h á ñ z a :ir^ a ^ d a 'ró m a ñ á ^
n á é a educação d o sfilh ó s éraiíi, indubitávelménte; tíiuiio mais"
severas que em nóssos tem pos... A rigorósa disciplina ¡que domiy :
nava na fam ilia, os hábitos de órdem evde obediencia a que se
sujeitavam , tudo redundava ein pröveitö do Estadö. A patria
potestas näo coiiferia o direito de tiranizar os filhos. O am or
devia ser o principio vivificante, e o pai tinha o dèuer de edu-
car seus filhos. Os próprios romanos não dissimulavam (339)
estas verdades. Se á patria potestas fòsse, na realidade, uipã re­
lação arbitrária, quem deixaria tie perfilhá-la? Quem, voluntó-
^ :r~=~ -, . .
(338) Por exemplo. Catão em seu discurso sotoe a l d Oppia, T ito Livio-; XXXx-
vs." 2 - 4 . \ ; ’%r
(339) Tito Livio. I, 9: nihil càrius humano generi. Acerca do espirilo comò deve
ser exercida, v. L. 5 de leg. Pomp, dé Parric. (4 8 ,9 )... pátria •potestas- ih spietate
debet, n o n jn atröditate consistere. Tarent. , . Adel., 1. p ic., ad. Aft., 10, ,4: ihdulgentia:•
nostra depravatus, 14,17. Para a- situação de facto «dos filhos sobre o. patrimônio, L..
11 de liber, et post. (28.2), ln su is here dibus evidentius apparet EON TINUA TIONEM
DOMINII ea rem. producerè, uh nulla& ideatur hereditas juisse, 'QUASI. OLIMELI DOMINT
ESSENT, qui etiam vivo paire quodamodo dòmini existimantuJ*.,.. Itaque~ post m örten t.
patris non hèreditatem percipere vidéntur, sed magi.s LIBERAM BONORUM ADMINIS­
TRA TIONEM consequiintur. L. 1, § 12 de succ. e d .. (30,9) : pcene ad PROPRIA honiç.
veniunt, L. 50, § 2 de bon. lib . (38,2). Capitol Marcus, cap.. 5: res sua. Tal é
iambèni o motivo da retentio propter liberos no. dot. Boeth. sobre Ç i ç . , Top.,: 4,
(Orelli, pag. 307), quare quoniam' quad ex dote cohquiri.lur, LIBERÓRUM ÈST, QUI*
IN PARTIA POTESTÀ TE SÜNT, at dpud virum necesse èst permanere, e d a‘ dispensa
dos direitos dé sucessão.., P lis ., Paneg. 37. Sobre a desherdação, veja-sè Seneca de
Giern, 1, 14. Por éste motivo, os filhos são chamados domini e heri, por exemplo, em
P lau to, Capt., Prolog.. 18: domo quem profugiens DOMINUM abstulerat, vendidit. As in,
IL 2, 63: herns m ajor. . . m inor hic est intus; Gápt. III. J>, 49: hem m servavi (o fi­
lho)^. . qui :me custodem addicferat herds major meus. Dat a cura prodigi contra o-;/.
pai, no interesse dos filhos, e o pecúlio dos filhes, comò o dos èricraVos, salvo o da­
queles que frequentemente era mais , considerável. Muitos /(¿it fam ilias já possuiani^o
cm 'vida do pai; uma importante, fortuna ; tinham; enxoval e casa própria e faziamy
grande aproyisiònamento, sem ..que, pára êles,- à incapacidade legal de possuir tivesse^
Cònsequénçia pratica. Poder-se-á supor qué utíi pai, por um capricho;.7 tirasse d ei
súbito a fortuna do filhò, que ocupava posição preponderante na. vida* que estava7"
investido das mais altas dignidades-'è que tinha família, etc.? Era^ .bom que assiri*^
«s^véss^.escrito, mas na vida real as còusas não se dão sempre do mesmo modo quej
nas lèi t^N a, época antiga se encontra-uma parte do mobiliário e" de casa, independentes*^
dé factò, que pertencem ao filho iríais velho. Alguns autores ò mencionam ; .entrée
êles, Sp. Çassius, autor da' primeira lèi agrária (ano 261 antes de J .-C .), um' peciilium¿áJ
Vai. Máx., 5, 8. 2. 6, 3. 1 - (dom iim ). Tiro L ivio , II, 41 ~ .signup*'inde factum e tj
inscrìptùm : ex cassia'FAMILIA datum ).' Dionisio, 8, 79, confunde, porque atribue äg
Cassius, de um modo legal, a propriedatìe que gozava; segundo a idéia da. vida ordini
nária e dêle laz um patér fam ilias. Ciç-, pro Rose. Am., c. 15, 43, que menciona^
o pecúlio de séir cliente (cer/is fundís patre uivo fruì solitun esse), acrescentando quéjg
esse era o costume (quod consuetudine patres facilini) .
ESÌPiRITO DO DIREITO ROMANO 145

riam ente, trocaria a su^ independência e a sua espontaneidade


p ela sorte dum escravo?
Reservamos, para finalizar, um facto decisivo, em que os
dois poderes, de que se trata, se m anifestam com plena evidên­
cia. Às influências- de factos, tão a.iiiiude mencionados, que
sDaoderavam ,e%determinavam, em todas as suas manifestações, a
dfao ilim itada do indivíduo, acresceiitava-se outra, infinitam ente
m ais im portante, para a vida de fam ília, a saber: a própria fa ­
m ília, isto é, o conjunto de todos os parentes. O costume, crian­
do os tribunais de família, restabeleceu a coesão natural e. m oral
do indivíduo com a fam ília que perdeu a sua fórm a jurídica
com o desaparecimento da gentilidade.
Vago e flexível (como aprendemos a conhecê-lo) (§ 20), o
costume im prim ia nessa instituição o cunho especial de seu
Característico, que se descobre, desde logo, na composição do
tribunal, formado, não só pela fam ília jurídica, ou dos agnados,
m as pela fam ília natural (340), ou sejam todos os parentes que
o compõem; círculo tão pouco cerrado, que ainda os p ro p io s
amigos podiam penetrá-lo (34^).. Poder-se7á vêr, nêsse círculo,
o campo em que a existência, tanto m oral como doméstica, se
fixava, o coro que, como na tragédia antiga, com a sua aprovação
ou censura, determ ina a ação, e que com a sua proteção ou de­
sagrado, assistência ou abandono, decide da paz e do encanto da
existência. Não havia regras, nos costumes; sobre a composição
dessa assem blèa. Não era estabelecido, em parte alguma, se
abrangia todos os parentes, ou somente os m ais próximos até um
certo gráu, ou se, aõ contrário, tam bém compreendia os ami­
gos, etc. ; cada um podia, dando-se o caso, determ inar quais se­
jam aquêles com quem conta, entre os propinqui, netfessarii,
am ici, etc. Uma nova circunstancia vem atestar o indeterm i­
nado, o pouco preciso desta instituição. Deixar de convocar es­
sas'pessoas, nos casos em que se tornassem necessárias, era um a
.negligência geralmente reprovada, ultrajava os costumes e acar­
retav a as m ais graves conseqüências p ara o negligente, ou não
provocava nenhum a reclamação. A m aioria dos casos (342), em

(340) Não somente o indicam as expressões propinqui amici, cognati, etc., mas
.é evidente com relação ao tribunal da família, convocado pela mulher in manu, no quäl
não se podia omitir os parentes da linha desta, como agnados.
(341) Algumas vezes intervinham. as pessoas de alta hierarquia e -os parentes afas­
tados; por exemplo. Augusto, no caso citado por Séneca- de ciem. 1, ,Í5. Val. Max.,
5, 9, mencionando um caso, em que até se chega a convocar uma grande parte do Se­
nado. Também se convocavam os manumitidos da familia, L. 22, de his quae ut (34,9),
libertis patris. instantibus. Segundo Klenze (na Revista Zeitschr. für gesch., R. W .
YI,^pag. 31), o tribunal de família tomou fórma fixa, quando teve regras certas sobre
o ofício do juiz. Como se aí se tratasse de uma coisa fixa, ou de uma instituição
jurídica!
(342) Serão, inúteis os testemunhos em apoio déste facto. Consulte-se Klenze,
loc. ç i t tomo VI, pag. 25 e Geib, Gesch. . . (História do processo criminal emi Roma),
pag. 84*.
146 RUDOLF VON JHERING

que se convocavam os parentes e amigos, é relativo ao exercício


do jus necis ac vita sobre as m ulheres "casadas e sobre os fi­
lhos (343), congregava os parentes, expunha-lhes o caso e logo
pronunciava e executava o deliberado em lam um (344) . Mas o
costume exigia que os parentes deliberassem aiiSda sobre outras
ações de quem detinha o poder e que interessavam as relações
de fam ília. O facto era verificado,’ dum 'm odo expresso, p o r
esemplo, no divórcio (345) . Em regra gerai, não podia sobre­
vir nenhum acontecimefffo im portante, no seio da fam ília, em
que os parentes não tomassem parte, quer para realizar a sole­
nidade, por exemplo, quando um filho vestia a togco uirilis, ou se
casava (346), quer para lhe dar o seu consentimento. Os p a­
rentes e amigos eram os protetores naturais de todas as pessoas
de sua amisade, que necessitassem de assistência (347) . Graças
ao vigoroso desenvolvimento do espírito de família, na época àn-
tiga, o seu julgamento, a sua aprovação, ou a sua oposição, en­
contravam uma significativa diferença, muito distinta da atu al.
Não podemos julgar a sua situáção e a sua intervenção, de acor­
do com, o nosso critério atual. Suas pretenções não eram um a
usurpação, mas, sim, fundadas no conceito da idéia rom ana so­
bre as relações dá fam ília. Separá-las era provocar a discórdia
e o escándalo público. Devemos relem brar um exemplo in s­
trutivo que, melhor que longas explicações, elucidará essa inter­
venção dos parentes. O filho de Scipião, o Africano, bem dife­
rente do pai, sob todos os pontos de vista, foi pretor, apesar de
sua indignidade, escolhido pelo povo, e, como tal, deshonrou as
funções e a fam ília. Os parentes, convencidos de seu dever, na
m anutenção da honra da família, não somente lhe impossibilita-

<343), Sobre isto, há que se considerar mais de perto as relações da Tida, que a
questão puramente jurídica, para saber quem, em cada caso especial, tinha- direito
de exercer a jus necis ac-vitee, e o dever de reunir os parentes cm tribunal. Assim,
por exemplo, no caso citado por Cic. de fin ib ., 1, 7, o pai que tinha dado seus
filhos em adoção era quem pronunciava a sentença, em vês do possuidor casual da
potestas. Mais ainda, a mulher casada e os que dela dependiam se encontravam tam­
bém sob a patria potestas (do pai desta, c por conseguinte fora da manus do marido;
sem dúvida, é provável que êste último convocasse mais frequentemente o tribunal,
7 que o primeiro.
(344) Não há dúvida que juridicamente não era obrigado a seguir seu conselho;
pôr em dúvida èsse ponto conduziria a um juizo errôneo dc toda a matéria; mas, ao
mesmo tempo, é notório que, em| regra geral, o julgamento dos parentes era que decidia,
de facto, toda a questão.
(345) Val. Max., 2, 9, 2. Os censores expulsaram do Senado um indivíduo que
omitiu essa norma. Por issò, nó caso citado por Plauto (Stichus, I» 2, 71), o pai
que queria, em virtude de sua patria potestas, dissolver o casamento de sua filha, de­
clarava: m iht AUCTOKES ITA SUNT AMICI, ut vos hiñe abducam domum.
(346) Cic. ad Quint. 2, 6. Appian, bell, civ ., 4, 30. T ito L ivio , II, 3G.
(347) Exerciam singularmente «ua vigilancia sobre o tutor, e faziam por meio
do act. suspecti tutoris a proposta do encargo; evitando assim ao Estado o trabalho
de se ocupar disso, propondo, no interesse do filho do osbanjador, o estabelecimento
da curay prodigi, etc.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 147

:ram de exercer suas funções, mas, tanubém,.»lhe arrancaram do


dêdo o anel com a efígie de seu pai (34834950) . E ra a um Pretor ro­
mano que assim ^se tratava, a um personágem que não tinha ne­
nhum receio da-opinião pública, e que se se pudésse insurgir
-contra semelhante imposição da fam ília, difícilmente a ela se
submeteria, como, aliás, o fez. ^
A convocação dós parentes para o exercício do jus necis ac
.¿vita não estava, pois, juridicamente prescrita; mas era, em regra
■geral, perigoso não realizá-la. Tomar-se-ia como ato suspeito,
não submeter o ncaso ao foro dos parentes; somente quando a
culpa de quem se castigava era m anifesta, nodia o pai, ou o
m arido, afastar-se do costume (34d) . Mas, mèsmo nêsse caso,
lhes era sem pre melhor, em seu próprio interesse, conformar-se
com os costumes, porque, quaisquer que fôssem as circunsJtân-
cias, não podia prevêr se, independentem ente da sentença pro­
nunciada, o censor não puniria a violação do costume (35° ) . O
abuso evidente do poder podia trazer conseqüências ainda m ais
funestas. Entre a sentença de morte, pronunciada contra o mem­
bro da fam ília, seguida de execução, e o homicídio de que èsse
mesmo membro fosse vitima, a opinião pública sabia perfeita-
mente fazer a distinção. O autor do hom icídio podia ser cha­
mado perante a assembléia do povo, e não lhe servia de nada
prevalecer-se do jus necis ac vitm. A fórm a e. o espírito que do­
m inavam a antiga administração da justiça, tornava inútil este
protesto, impotente para serenar a indignação m oral do povo (351)-
Vém-nos à m em ória o caso de um pai, acusado de haver cortado
a carreira política do filho, por lhe haver exclusivamente em­
pregado nos trabalhos agrícolas, quando, pelo seu talento e li-
nhàgem, podia desempenhar altas funções (352) . O pai, no exer­
cício da patria potestas, nãp podia esquecer que a pátria tinha
também direito sôbre os filhos. O direito de punir era, sob
esse ponto de vista, puram ente privado. Sob x> ponto de vista
do Estado, era um a função de que o pai estava investido no inte­
resse geral, com o fim de educação e disciplina. Por este mo-

(348) Val. Max., 3, 5, 1. Nccossitava, para isso, um tribunal de familia, pro­


priamente dito.
(349) Veja-se, por exemplo, Val. Max., 5, 8, 3 . . . ne consilio quidem necessa-
Tium indigere se credidet, id. C* 3,.9. Sail. Catil. 39.
(350) Como no caso na nota 345.
(351) Veja-se, por exemplo, em Orosius, 3, 9, exstilit p a rric id a ... f ilium enim
suum peremit; 5. 15 (16): Q. Fabius Maximus filium su u m . .. cum duobus servis par­
ricid a ministris in terfecit... Diê~dieta Cn. Pompeio accusante damnatus est. Seneca
de clem ., 1, 14. V ejare em Plinio* Hist. nat. 14, 14, outro caso, em que o acusado,
reconhecido inocente, foi posto em liberdade. Valer. Max., 6, 3, 9, etc. Ainda que
èsse caso, que Plinio fez remontar a Romulo, fòsse um mito que não tivesse apenas
influência sobre a questão, seria, no entanto, essencial para saber como os romanos con­
cebiam a coisa, resultando dos tèrmos empregados por Plinio, que faziam a d is­
tinção que nós lhes atribuimos: eumque aedis esse absolutum .
* (352) Val. Max., ' 4, 3.
148 R U D O L F VON JH ERING
I
tivo, a censura afingia mais a quem deixára muitfl f^guxas as r e í
deas do governo domestico, que a q u errías m uito havia aperí
fado. Até mesmo m antendo a disciplina e a ordern untre os seu^|
d próprio pai era responsável perante o povo (353), e, se uin
deles cometià um delito, era o prim eirq a aplicar ao culpado
p é n a que merecesse, isentando-se, por èsse- modo, de toda p U n â |
plicidade m oral. A intervenção do Eistado, pois, deveria ser ra£j
rum ente aplicada (354), porque os m aridos e os pais gómanos, n a
antiga época, conheciam o seu dever e tinham a energia necessàri
ria p ára cumprí-lo.
Por pouco que se tivesse em conta, na construção jurídica
do poder doméstico, esse elemento do dever era sem pre deter­
m inante, tanto p ara o exercício como para a concepção completa
dêsse poder, que um antigo rom ano apenas o reconheceria no
delineamento que dele atualm ente se faz. dificilmente
compreenderia que os conhecedores do direito e da antiguidade
rom ana pudessem, um dia, lançar contra èsse povo a exproba-
ção de im oralidade e desrespeito a um a instituição que consti!
tuia o orgulho de Romá, e que, mais que nenhum a outra, foi a
fonte de sua força e de sua virtude, a mais poderosa alavancâ
de sua grandeza.

(353) Cícero reconheceu-o expressamente para as mulheres, num fragmento .|Í||


livro 4 da República (M o n iu s de num. et cas., ,pag. 499): nec vero mulierib.É|g
prsefectus pr&ponatur, qui apud Gr&cus creari solet, sed sit Censor, QUI VÍRV&
EDUCEAT MULIERIBUS MODERARI.
(354) Faz-se menção disso em alguns casos relativos às mulheres, em que as pen|||
se aplicam em nome do Estado, se bem que a execução se deixasse ^aos parentesi
Val. Max., 6 . 3, 7. Tifo L iv io , XXXIX, 18. S u e to n io , Tiber^ 35.
I V SECÇÃO. — A liberdade objetiva das instituições é um a
barreira à autonomia subjetiva

A liberdade corre o perigo de destruir-se por si mesma. — A objeti­


vidade, dentro da idéia da liberdade, indica que a liberdade é ü% dever.*
— Provas tiradas do Direito romano, notadamente na propriedade (ser­
vidões) .

38. — O aniquilamento da liberdade por si mesma, — què


;a própria idéia de liberdade parece tornár possível, — é a m ais
p erfeita pedra de toque para controlar a concepção dessa idéia,
O direito de ser livre, como tantás vêses temos repetido, im ­
plica, necessàriamente, a possibilidade de renunciá-lo, no todo
>011 em p arte. Se é um direito, por que não podemos renunciá-
lo? Se a vontade é livre, por que o seu exercício'não' poderá
«consistir em limitar-se, em ligar-se, em encadeiar-se? A liber­
dade trás em si o gérmen de sua negação; da boa semente d a
liberdade pódè brotar 0 gérmen da servidão.
Esta possibilidade, da destruição da liberdade por si ihês-
m a, *aparentem ente fundada na sua essência, parece dar como
resultado que, levada às suas ultim as conseqüências lógicas»
constitúi um a impossibilidade prática. Mas isto não é exato;
som ente a falsa liberdade é que se aniquila. 0 direito do indi­
víduo à liberdade jurídica, tal como tentámo$ demonstrar, no §
34, funda-se num a base m oral: — a missão criadora da perso­
nalid ad e.
Disto resulta, desde logo, para o indivíduo, que o seu direito
31 liberdade constitúi, ao mesmo tempo, um dever; e resulta, de­
pois, p a ra o Èsfado, qué não deve reconhecer e realizar senão
a verdadeira liberdade, que se funda na m oral. A missão do
.Estado, ante a liberdade individual, não é puram ente negativa,
nem a de um espectador indiferente; ao contrário, é de natureza
cssêncialm ente po sitiv a/p ara a realização da liberdade jurídi­
ca, assegurá-la contra o perigo de um a opressão exterior, ou um a
supressão por parte do. próprio indivíduo. Vêr, na liberdade,
arnia constante tutela do Estado, é, também, um a contradição
com a idéia dessa liberdade, porque ela não é possível, quando
n ão se reconhessem à liberdade e ao Estado a sua missão m oral.
Q direito romano dá-nos, sobre êste assunto,, um exemplo
105 R. UDOLF VON JHBRING

altam ente instrutivo, que nos dispensará de quaisquer considera­


ções gerais. Nunca existiu um direito, cómo aquele, ^ u e con­
cebesse a idéia da liberdadé de fórm a tão digna e tao ju sta.
Êsse perigo da destruição da liberdade por si mèsnqg. escolho da
falsa concepção da liberdade, fpi magistralmente arastado pelo*
Direito romano. O meio a que se recorreu, não consiste na
proibição ,legal exterior de se abusar da liberdade* mas na res­
trição oientiftoa, tomada de empréstimo, pela jurisprudencia*
da própria essência da liberdade.
A m aneira de vèr dos romanos (e, ao mesmo tempo, a sín­
tese da explicação que se següe), póde exprimir-se, com exati­
dão, dizendo que consideravam a liberdade, não como um a coi­
sa subjetiva, um bem, uma qualidade da pessoa, mas como um a
propriedade obje¿iva indestrutível, “independente da vontade pes­
soal, pertencente às instituições jurídicas.
A necessidade da liberdade, que sente a vida individual,,
satisfaz-se nas instituições de direito privado, que, em seu con­
junto, representam todas as manifestações da liberdade indivi­
dual, e cada uma delas, particularm ente, é a expressão duma.
necessidade, ou dum fim determinado da liberdade. Isso foi
o que o Direito romano realizou magistralmente, fazendo do
fim da instituição, a medida da liberdade outorgada ao indiví­
duo. Assim, a liberdade abstrata encontra no próprio fim das,
diversas instituições a sua proporção e os seus limites, e lhes
traça o caminho em que se deve m anter, sob pena de contradi­
zer-se consigo mesma. A teoria da liberdade, nas diversas ins­
tituições, é a disciplina realizada do sentimento abstrato da li­
berdade. Todo ato que contradiz o fim da instituição é, pois*:
nulo, improcedente.
Não podemos, agora, prosseguir nêste estudo, em toda sua
extensão (3Õ5) ; devemo-nos cingir a examiná-lo, sob um aspecto
bem determinado, para conhecermos a nulidade dos contratos
e das disposições em que. se renuncia o elemento da liberdade
das instituições, nas quais a liberdade pessoal se contrapõe à
liberdade objetiva da instituição.
A renúncia convencional da liberdade pessoal é impossível*,
em Direito rom ano. E’ um facto bastante conhecido. A liber­
dade pode perder-se, em virtude da pena, como, por exemplo*
p ara o ladrão, para o devedor insolvente, etc., mas não por um a
renúncia da liberdade. O pacto pelo qual alguéiú se tornasse
escravo, era nulo, em Direito romano (35c) .356

(355) Omitimos «qui, para voltarmos cm outra ocasião^ a limitação da vontade


como elemento lógico das instituições.
(356) A aiictoramentum, no entanto, convênio pelo qual Bs gladiadores se sub­
metiam à vontade de seu senhor, se aproximava muito da escravidão convencionai
(Schui.ting, Juris. Antiq., notas sobre a Coilat. leg. m os., tit. IV, § 3, IX, § 2 ) .
Iì’-nos difícil admitir que essa relação date dos tempos antigos.
O ESPIRITO DO DIREITO ROMANO 151

Até que limites era possível a restrição da liberdade pes­


soal? Toda obrigação contem um onus para a pessoa. Se os
romanos, como se lhes atribuia, tinham realm ente idéia de uma
força obrigatória absoluta da vontade, a obrigação, de facto, apre­
sentaria um meio de aniquilar completam ente a liberdade; por
exemplo, empenhando^se um a servidão perpétua, prometendo
não abrir mão de um direito, não se casarem sem o consenti­
m ento de terceiro, não alienar nada, etc. Mas semelhante con­
cepção era inteiram ente desconhecida dos rom anos. A obriga­
ção, desde logo, tinha, a seus olhos, o patrim ônio por exclusivo
objeto, e à avaliação objetiva do direito antigo, tornava impos­
sível qualquer divisão nesta m atéria. A obrigação que origina­
va prestações de serviços era desconhecida, no antigo direito,
porque a obrigação só se extendía às cousas. Podia prom eter­
se, obrigatoriam ente, a dação de um a cousa, quer por mancipa­
tio in jure cessio, ou por simples traditio, m as disso não resulta­
va que, para os romanos, sucedesse o mesmo,r relativam ente às
•ações que exigiam prestações pessoais de serviços. Com efeito,
o que se promete, no prim eiro caso, é somente um a partícula do
patrim ônio, ou p a ra falar claram ente a linguágem do direito,
um a prestação; ou seja uma obrigação que consista na execução
de um ato jurídico pertencente ao direito das cousas. Qualquer
promessa que proceda dêsse direito, vincula, juridicam ente, a
própria pessoa que a emite, privando-a, até certo ponto, de um a
força pessoal, e cria um a espécie de servidão parcial, que repug­
nava ao sentim ento da liberdade dos rom anos (357) . Ainda que
a fórca das relações acabasse por im por a possibilidade jurídica
de certas convenções, opunha, no entanto, em estabelecer um a
obrigação direta p a ra a execução, da acção. O princípio do
processo romano, de que toda condenação deve resolver-se em
dinheiro, m anteve a concepção prim itiva de que o romano li­
vre só podia receber, pessoalmente, um a citação que únicamente
recaísse sobre o seu patrim ônio.
Parece, à prim eira vista, que seria fácil frustar esse prin­
cipio e aniquilar compeltamente a liberdade pessoal, por meio
da pena convencional. Nada proibia, com efeito, que se esti­
pulasse um a indenização pecuniária, de qualquer espédie, no
caso da falta de pagamento. Mas isto m anifesta, claramente, e
mais uma vês, a preferência que os rom anos concediam à idéia
objetiva da libejfdad/e abstraia da vontade individual. Com
efeito, todos os pactos, que limitavam a liberdade pessoal, eram
nulos (358) . 0 direito hereditário contem um a disposição aná-

(3 5 7 ) C ícero d c I» 4 2 : Illiberales autem et sordidi queestus mercenariorum


omniumque, quorum operae, non artes emuntur. Est enin in illis m e r g es a u c to r a m e n -
tum SERviTUTis. . . Opificesqtie omnes in sordida arte versantur, ncc enim quidquamr
ingenuum potest habere officina; ib id .. Il, 6: qua est sordidissim a ratio.
(3 5 8 ) i„. 71, § 2 de cond. ( 3 5 , 1 ) . . . non esse locum coutioni, per quam JUS LI-
1 Si- RUDOLF. V ÒN JHBR^NG

Ioga. O testador não podia, diretaiiiente, nem poi* meio dé ór-


dèns, nem com proibições, lim itar a liberdade pessoal, do herdei­
ro ; podia, nsim, aconselhá-lo, indiretam ente, a que o fizesse, va­
lendo-se de legados condicionais ( por^èxemplo, se m eu herdeiro
se casar, pagará 1.000 a A ., legatura pcence nom ine relict um ) :
Mas, sob o Império, sémelhantes legados foram declarados abso­
lutam ente nulos (359), pouco im portando jque a açao, que ò tes­
tador queria impor, ou próíbir, a seu herdeiro, sob a am eaça de
p erda do legado, pudésse considérar-se, ou não, como um a res­
trição da liberdade pessoal. P a ra o direito antigo, essa proi­
bição absoluta não existia; m as deve admitir-se que no espírito
dêsse direito se usasse desse legado penal, como de urna pena
condicional, isto é, que seria nulo, no caso de se opor à vontade
pessoal do herdeiro.
Em m atéria de casamento, confirma-se o nosso raciocínio,
pelá ausência de loda e qualquer ação, nas convenções contrá­
rias à liberdade do casamento, exigida, em princípio, pelo Direi­
to rom ano, como, por exemplo, as,convenções, m ediante as quais
se obrigava um cônjuge direta e indiretam ente, (sob a promessa
de üm a pena convencional) a contrair, ou a não contrair, a dis­
solver, ou a não dissolver um casam ento (36° ) . Não podia haver
ou tra dúvida, se não a de que os esponsais, no antigo direito,
davam lugar a um a ação, porque, nò direito novo, a negativa
estava fóra de discussão (361) . À prim eira vista, à exigência da
suposta ação dos esponsais, deve parecer m uito duvidosa. O
m atrim ônio livre era sem pre dissolúvel e os esponsais obriga­
tórios, constitúiraíh um a extranha contradição. Mas, por que
se deli aos esponsais um a força obrigatória m aior que a do m a­
trim ônio? Devia ser justam ente o contrário. Qual seria a uti­
lidade prática de tal disposição? Quando o esposo ou o pài da
esposa eram contrários à celebração do casamento, acreditava-
se possível _opôr-se a actio ex sponsu (362) . Mas, por que èsse

RERTATIS -INFRINGINTUR. W ihl. Sellh, Die L e h re ... (Teoria das condições impos­
sív eis), pag. 139 a. V. L. 1 de bon., lib . (38,2), uma exceção para os manumitiidoa
«obre o patrão.
(359) Por Antonio Pio. V. Capito! in vita'A n t. P ie., 8. A generalidade da
proibição foi abolida nòvamente por Justiniano, que restabeleceu assim o direito an­
tigo, segundo o qual era o carater da ação, imposta ao herdeiro, quey decidia da va­
lidade dos legados. A opinião de que Antonio não «omente extendeu e até criu essa
proibição, é errônea; Sabinus já a conhecia, § 36, I« de leg. (2,20 ) .
(360) L. 134, p. de V. O.. (45,1). Inhonestum visum est vinculo peense m atri­
m onia ob string i sive futura sine jam contracta. L. 2. Cod. de inut stip. (8, 39).
Libera m atrimonia esse antiquitus placuit. L. 14.. Cod. de nupt. (5,4). L. 19. L .
71, § 1, de V. O. (45,1).
(361) A confirmação indireta para as arras foi possível, dias é preciso não vêr
nela uma exceção; a eficácia dêsse meio não reclama a intenção da ação. L. 38, p .
de R. N. (23,2). I sidor. Orig. IX, 8, § 4, 5.
(362) Com relação ao pai, pode invocar-se o testemunho de Y arrão, de L. L . VI«
§ 72; porém, mais adiante, veremos como era frágil a sua autonomia, nesta matéria.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 153

constrangim ento, se os esposos podiam, depois, disolver o m a­


trim onio? O caminho estava traçado p ara anular completamen­
te os efeitos dum a ação, nesta m atéria, m as não é certo que aos
rom anos se pòssa atribuir a criação dum circunloquio tão inú­
til. A idéia d a ação, ligada aos esponsais, se apoia na aiitori-
•dade de V arrao. Vejamos o que nela existe. A expressão spen­
dere, spensio, designava, na época de V arrao, um ato civilmente
-obrigatório: — a estipulação. Um eümologista, ou pessoa ex-
i r anh a ao direito, podia enganar-se; porque, como expressão, se
encontrava, também, nos esponsais (sponsalia, despondere, spon-
■sus, e tc .), e como êstes pactuavam em fórm a de estipulação
(spondesne gnatum tuam? spondeo) (^63), deduziram que, em
su a origem, os esponsais tinham toda força da sponsio ordiná­
ria (363364) . E* preciso acrescentar, além disso, que esta regra este­
ve realm ente em vigor no Latium, até a lei Julia (em 664) (365) .
V arrao, que escreveu a sua obra em língua latina, cincoenta anos
m ais tarde (ou seja em 706), tião o ignorou. E ’ fácil demons­
tra r que essas duas circunstâncias não justificam a conclusão de
que tratam os (366367) . Sponsio, com efeito, não designava, em sua
origem, um a obrigação civil, mas um a obrigação religiosa (§
2 1 ), e não se póde, sem novas provas, identificar o direito do
L atium com o de Roma. Mas V arrao emitiu, spbre esta questão,
sim plesm ente hipóteses, e a sua autoridade, portanto, é muito
problem ática (337) .

(363) L . 2 de epon. (23,1)* tJÍp. Sponsalia dicta sunt a sp oadendo, nam m oris
j n it veteribus stipili ari et spondere sibi uxores futuras. V arrão de L . L . IV, 7 0 .
.Em P lauto estafé a forma regular; veja-se, por exemplo, Aul., II 2, 78, em cuja pas-
ságem e estipulação compreende também ilice leges cum illa dote, quam tibi d'ixi. Se
èsse acúmulo de convenções de interesse pecuniário e de promessas pessoais- era a
regra geral na v*dà comum, explica-se, pela fórma mais simples, como pôde nascer
a idéia (v ., por exemplo, P lauto, Aul. IV, 10, 6 3 : ut leges jubent. P lutarco , Cato
m in. 7 ) , de que os esponsais tinham uma força obrigatória. Mas, concluir disto que
na vida ordinária se serviam da estipulação para terminar na existência de uma
ação, é um êrro. A circunstância que Amobius menciona da estipulação, demonstra-o
(ad. gent., IV, 2 0 : habent speratas, habent pactas, habent INTERPOSITIS STIPULA-
T IONIBUS sponsas) . Está, pois, fóra de dúvida que, em seu tempo, nenhuma das
«stipulações sobre esponsais dava lugar a uma ação. L . 134, pr. de V . O. ( 4 5 ,1 ) /
(364) I sidoro, IX, 8, 3, parte igualmente da idéia de que a spondere fundava
mina obrigação jurídica, que se refere aos esposos e toma sponsores por sponsus (§ 6 ).
(365) Ge l l iu s , IV, 4, § 3 .
(366) V . M . V oigt, Do direito natural, II, p a g . 234 s .
(367) No que diz respeito aos outros motivos invocados em favôr da tese que
•combatemos, quando se saiba o que os romanos entendiam por fides (referimo-nos aos
fideicommissa, isto é, às disposições deixadas aos fóros da conciência e, por conse­
qüência«, não obrigatórias em direito) ver-se-á, na passágem de F estu s — consponsos
■untiqui dicebant' fide mutua colligatos — a indicação exata do carater puramente moral
-dn relação. Mas dificilmente se compreende como um recente historiador do direito,
-de grande nomeada, pôde encontrar na fides mutua o indício das estipulações recí­
procas. Não eram necessárias, no direito antigo, exceções contra uma suposta act.
ex sponsu, comò contra qualquer outra ação sem valôr ipso jure. E* verdade que
P aulo , na L. 134, p . ide V. O. (45,1), garante ao pai uma exceptio para a resolução
na justiça da pena convencionada. Mas é, como se sabe, inexato que uma estipulação
rS4 RUDOLF VON JHBRING

A liberdade do direito hereditário consiste no direito de fa­


zer, bu modificar, segundo convenha; disposições de ultim a von­
tade (*36869370) . Todos os pactos, ou modificações, que tenham por
fim privar dêsse direito, ou alterá-lo, são nulos (a69) .
Um dos exemplos mais interessantes, que se nos oferece,
é o da propriedade (37° ) . Esta questão adquire um a im por­
tância maior, tanto do ponto de vista econômico, como em seu
aspecto político.
A propriedade torna possível usar e gozar, ilimitadamente,,
das cousas e, portanto, o proprietário pode estabelecer duas es­
pécies de disposições: umas que afetam somente o seu direito
e outras referentes à cousa; ou, em outros tèrmos, umas restrin ­
gindo somente seus efeitos, por exemplo, o aluguel, a venda;
outras, que se extendem a terceiros, por meio da constituição da
hipoteca e b estabelecimento de servidões. Esta distinção assi­
nala até que limites a legislação deve reconhecer a liberdade da
propriedade. As conseqüências prejudiciais das disposições da
prim eira espécie ferem exclusivamente o proprietário e a seus
herdeiros, mas não acarretam nenhum prejuizo ao comércio. Se
o proprietário dissipou o seu dinheiro, se não quiz vender os
seus bens, a sua má administração trará, como conseqüência
jurídica, desastresvpara os seus sucessores; mas os bens passarão
de uma para outra mão, encontrándose tão livres com o seguin­
do como com o primeiro dono. Ö contrário ocorre com as disr
posições que afetam o direito da cousa (em oposição ao direito-

contra bonos moras (que c uma das que P aulo admite aqui) somente póde ser inva­
lidada por èsse meio. (Suposição da qual resultaria que essa estipulação nunca po­
deria existir no direito antigo. Gaio, IV, § 108). Em regra geral, era declarada d i­
retamente nula. (Vèja-se. um exemplo» em matéria de matrimônio, na L. 19 ib id ).
Difícilmente póde admitir-se que o direito antigo, que não conhecia exceções, de­
clarasse válidas todas as estipulaçõcs de uma pena convencional, sem distinção de
sua tendência.
(368) Ambulatoria est voluntas defuncti usque ad vitee supremum exitum . L.
4 de adm. leg. (34,4).
(369) L. 34, Cod. de transact. (2,4). L. 4, Cod. de inut. :;tigs.~ (8 ,3 9 ). L..
15, Cod. de pact. (2,3), LIBERTATEM testamenti faciendi. L. 61 de V. O. (45,1).
L. 17 p. ad. se. Tribell. (36,1) L. lã, § 1, ad. leg. Falc. (35,2). L. 5, Cdd. de pact,
cónv. (5,14). Constituição de uma sociedade com èsse fim: L. 52, § 9, pro soci
(17,2). Os contratos, segundo os quais algueni sé obriga de antemão a aceitar uma
sucessão futura, ou a renunciá-la, são igualmente nulos. L. 4. Cod. leg. (38,16); mas
a idéia de que a liberdade da resolução do herdeiro de inut. stip. (8,39). L. 3, Cod.
de co-llat. (6,20). L. 16 de suis et leg. (38,16); mas a idéia de que a liberdade da
resolução do herdeiro não podia ser entabulada,, era o motivo decisivo dessa nulidade?'
Não o sustentaremos nunca, mas há, além disso, outro motivo. V o i..4.°, § 63.
(370) Póde citar-se o que diz respeito à pòsse. V. L. 12 de precar. (43,26):
Cum. precario aliquid datur, si convenit, ut in Calendas. Julias precario fossideat,
numquid exceptione adjuuandus est, ne ante ei possessio auferatur? SED NULLA VIS
EST IiUJlS CONVENTIONIS, ut rem alienam domino invito possidere licet. Eis^
a conseqüência do raciocinio: a pòsse contém o direito de excluir qualquer um;,
tal é a liberdade que tem a pòsse; por conseguinte, um pacto em que se renuncia essa
liberdade, é nulo do xponto de vista da pòsse. L. 2, § 2 ibdi.
O ESPIRITO DO DIREITO ROMANO 155.

da propriedade), que, em linguágem rom ana, dão urna actio in


rem a quem tem èsse direito. Se são de natureza perm anente,
fundam um estado, que a linguágem rom ana mais antiga aplica a
significação expressa de servidão, estado que perm anece sempre
sensível a todo possuidor. A renúncia completa de semelhantes
disposições à autonom ia privada, contém grandes prejuízos p a ra
a propriedade, porque é o sacrifício de sua verdadeira idéia.
Um momento de imprudência do possuidor tem porário, aniquila*
*o direito à liberdade da propriedade, que cada nova geração tem
desde que nasce. Um momento de desatino se perpetúa du­
ran te séculos, e é preciso não tratar de suas conseqüências irre-
fletidamente, porque a im portância capital não consiste na di­
m inuição do valôr pecuniário da cousa, mas na de seu valôr mo­
ral. A influência m oral que a propriedade imóvel póde e deve
exercer sobre o proprietário, o sentimento de segurança, de li­
berdade, de independência, o amor e o apêgo ao solo, podem
ser abalados, do modo mais lam entável, pelo direito de inge­
rência e de oposição que pertencem a um terceiro. O homem
livre quér o bem livre. A servidão da terra é um a fonte perm a­
nente de descontestamento para o possuidor, e um entrave para a
agricultura.
Perm itir ao possuidor vender seus bens à vontade, não causa
nenhum prejuízo ao Estado, porque nada mais fazem que m u­
dar de dono, sem m udar de natureza. Mas dar ao proprietário a
faculdade de sim ular a necessidade de um a venda, alienando
elementos de valôr intelectual de seus bens, obtendo dinheiro
por meio de dívidas, de rendas perpétuas, é dar-lhe o poder de
tirar da propriedade seus efeitos benéficos para a sociedade, de
destruí-la m oralm ente. Existe, na propriedade, alguma cousa
que se perde e que a nenhuma das partes aproveita (371) . E*
como vender o fragmento de uma obra de arte, para não ter
que' aliená-la toda. O que se aceita sob a fórma de um jus in
re, nada mais é do que outro sacrificio. — A* dívida, contraída
cm outra época, çpstou, na realidade, um têrço do trabalho p r a ­
ticável. Mas o verdadeiro preço pelo qual èsse direito restritivo
do terceiro foi adquirido, é o de um a propriedade duvidosa, vin­
culada m oralm ente e economicamente depreciada.
Tais são as pêrdas e danos inevitáveis, em que se desen­
volve, sem restrição, o sistema de arrendam ento das proprie­
dades. T al desenvolvimento, se não encontrasse obstáculo, tor-
nar-se-ia um verdadeiro câncro da propriedade. Somente com
medidas violentas se pôde extirpá-lo. Não se poderá, no en-

(371) Esta observação é claramente manifestada por P l í n i o . Epist. 7, 18: m e


plu s erogasse, quam donasse, cum pulcherrim i agri p retiu m necessitas vectigcaLHs infre-
<jedit, isto é, eu perdi mais do que a outra parte ganhou. P lin io , para impôr uma
renda sobre sua propriedade, cm proveito da comunidade, idoou-a a esta, que a tinha
dado como ager v cctig a lis.
S f lif ' r u d o .l f ’ v o n j h b r i n g

tanto, contestar a sua legitim idade, em certos lim ites. Os pon-


a considerar, nêste assunto, são o gráu da responsabilidade,
pòr um lado, e, por outro, o interesse, ou a necessidade da re ­
la ç ã o ^
O m aravilhoso instinto dos rom anos fez com que, désde a
m ais rem ota antiguidade, disíinguissem, precisamente, a verda­
de do êrro. As servidões (372) constituíram a única espécie de
onus da propriedade que conhecia o direito antigo; tinha tal
lim itação, que não podia originar-sé nenhum perigo p ara a pro­
priedade, sendo a correlação das servidões pessoais, sob este
aspecto, de düração passageira, pois se extinguiam pela m orte,
ou pela captis dem inutio dõ titu lar do direito. Com relação às
servidões prediais, a duração era, ao contrário, um elemento es­
sencial. Com efeito, os rom anos partiam da idéia de que a rela­
ção de obrigação e de auxilio, a título de vizinhança, existentes
entre duas propriedades, som ente m erece ser interpretada sob
a fórm a de servidão, quando o interesse de um e os serviços
possíveis de outro, são de natureza permanente (373) . A obriga-

(372) Não pôde ser causa a hipoteca no antigo direito, porque a fiducia contem
uma transferência de propriedade; e o antigo pignus, que era um gravame sobre a
propriedade, dificilmente poderia encontrar-se. na propriedade das terras. Seria melhor
citar-se a subsignaiio tios fundos e o mrarium, por parte dos devedores <do Estado.
&ACHOFBX, Pfandrecht, tomo I, p a g .. 217 s .
(373) A respeito da duração, existe uma diferença, fundada na durabilidade
diversa - dos preedia rustica e urbana. Em ambos os casos, a extinção do prédio
dominante, por exemplo, o incêndio da casa, acarreta, como conseqüência, a extinção
da servidão, arg. L. 20, § 2 de S. P . ü . (3,2). Se se quizer dar à servidão de uma
caísa uma seru. altius non toll., uma existência independente da destruição da casa,
é necessário estabelecê-là 6Ôbre o solum, em vês de agregá-la à superfícies (L. 3
de serv. (3,1), e, ao contrário, podia atingir a superficies uma servüdão, porque pela
regra gerai pertencia ao- solum (L. 13, p . de S. P . R ., (3,31), por exemplo, uma servidão
de passágem. A conseqüência disso era que a servidão cessava com a extinção da
casa. Se não se estipulou o que as partes quizeram fazer (por exemplo, o possuidor
de uma casa abria um caminho pelo jardim visiñho: a serviéão respectiva, pertencia
ao solum, ou à superficies?), presumia-se, segundo as circunstâncias, tanto num caso
como noutro, e a prática administra certas regras, estabelecendo a classificação das
servidões possíveis, que atualmente também temos com- o nome de seroitutes
prcediorum et urbanorum. Tal era, ao nosso vêr, o fim prático désta distinção.
O mesmo sucedia, quando era constituida uma destas servidões, sem que se indicasse
sé pertenceria^ dum modo absoluto, a quem tinha o direito (como servidão pesoal),
ou somente na qualidade de proprietário 'do prédio, decidindo-se, quasi sempre, os
romanos por esta última presunção. Atribuímos a- razão disto, a que a divisão da
servidão se apoia numa necessidade prática, que se manifesta em toda parte. Não
é este o momento de entrar em maiores detalhes, m as pedimos a todos que queiram
comprovar a nossa opinião, que não esqueçam as conseqüências da teoria romana sobre
bs servidões, ou seja que a S. P. U. deve .cessar com o praed. urbanum e que
estabelecer essa S. P. U ., entre os romanos - eqüivalia limitá-la à (duração de um
edifício.
Entre nós, a conseqüência de que com a casa deve desaparecer também, a ser-
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 157

cão é a fórm a que parece convir m elhor nas relações passagêb-


ras dessa espécie que, em regra geral, se concluem entre os dois
contratantes. Seria, ao contrário, m uito m al apropriada onde
essas relações, não só subsistissem durante a vida, mas que pas­
sassem, de .uma e outra parte, p ara os sucessores. Era preciso
im por restrições às servidões prediais, porque o seu çarater per­
m anènte, ou, melhor, perpétuo (causa perpetua) * acabaria por
atingir totalm ente o conteúdo da propriedade e por vinculá-la
completam ente (?74), Necessitava-se, pois, p ara subtrair a pro­
priedade dêsse perigo, lim itar a admissão dás servidões p re­
diais..
Apreciando exatamente a utilidade própria e o fim das ser­
vidões desta espécie, os jurisconsultos romanos estabeleceram a
reg ra de (pie somente as servidões prediais são válidas, em di­
reito, quando estão motivadas pelo destino econômico do prédio
dom inante, que póde ser diferente, quando é um pr&dium rus-
ticum, ou um proedium urbanum . — Seruitus fundo utilis esse
debet. Aquelas, ào contráMo, que não oferecem ao possuidor
mais de que um a vantágem, òu um a satisfação pessoal, é que
não tinham nada de comum com o destino do prédio dominante,
são nulas.
O auxílio mútuo só póde haver entre os prédios vizinhos
(prcedia esse debent vicina) . Esta condição condús quasi ne-
cessariám ente ao ponto dç vista sempre presente ao espírito da
teoria rom ana, em m atéria de servidões, ou seja ao direito de
vizinhança convencional. A individualização do direito de vi-
zinhançà. é o objeto da servidão predial, que substitúi a lei pela
vontade do indivíduo. E’, pois, p ara o direito de vizinhança
legal, o que o testamento é para a sucessão ab intestato. E*
essa a teoria completa das servidões p red iais. Em «eus efeitos,
como em suas condições, são a imágem do direito de vizinhança
legal. A ação tem a mèsma natureza e a m êsm a extensão {actio
confessoria e nugatoria — in rem actio) ; comporta as mèsmas
condições de vizinhança (o direito de vizinhança supõe o do
vizinho), dé propriedade (a lei tem um a duração perpétua e deve
ser igual p a ra a servidão, que ocupa seu lugar), de utilidade (q
direito de vizinhança legal não regula senão as relaçqes/ dos *374

vidão, -que lhe é inerente, passou à prática^ na dúvida, todas as servidões são tra­
tadas como S'. P. Rust, e só temos S. P, Urb.« onde se possa comprovar que a»
partes quizeram estabelecer a servidão para uni determinado edifício, durante todo
tempo que exista. A atual jurisprudência, segundo ent.ende a distinção de S. P-
Urb. e S. P. Rust., não teria nenhuma expressão para designar uma semelhante
6ervidão.
(374) L. 56 de usup. (7 ,1 )... proprietas inutilis semper abscente usafructu
esset futura.
158 RUDOLF VON J HERI N. G

prédios) (375) . Êstes são os dados que a prática fixa como ob­
jeto possível das servidões (376) .
Os progressos realizados, sem dúvida, nessas relações, afetam
m ais especialmente, em sua origem, os çasos de uma necessida­
de propriam ente dita, (servidões de vigilância e de escoamento
dáguas) ; mais tarde, a servidão extèndeu-se, à medida desta ne­
cessidade, com mais amplitude.
D urante séculos, a servidão foi a única instituição que per­
m itiu ao proprietário romano lim itar a liberdade de sua pro­
priedade. Somente no bom direito é que a linguágem expressa
um estado dé liberdade de cousa (servit pradium, serititus), e
na extinção da servidão menciona o restabelecimento da liber-
dade (usucapió libertatis, prcedium liberum ). A faculdade de
dispor, do proprietário, estava encerrada em limites tão estrei­
tos, que a propriedade não se via ameaçada de nenhum dano
sério. Finalmente, o proprietário não tinha poder sobre a ver­
dadeira liberdade da propriedade; podia mesmo abrigar-se e
arruinar-se, mas não arruinar a propriedade, nem a do futuro
proprietário. 0 ‘direito que tinha de dispor, por testamento,, li­
mitava-se, únicamente, à relação do proprietário com-a proprie­
dade. Podia legar seu direito, se quizesse, e, nesse ponto, era
completamente livre; mas fora do estabelecimento de servidões,
não podia diminuir o valor absoluto da propriedade. O herdei­
ro recebia a propriedade livre; o seu direito ficava intacto (377).
Resumindo o que precede, únicamente numa proposição, eis
em que sentido os romanos conceberam a idéia da liberdade e
a aplicação a suas diversas instituições:
A liberdade, como condição do desenvolvimento moral, é,
para o homem, uma lei suprema, um bem que não pôde juridi­
camente diminuir, nem para si, nem para seus sucessores.

(375) Podia-se renunciar por deductio a essas condições, pelo menos a primeira c
a terceira, no estabelecimento das servidões prediais, consideração que confirma a
que antecede. Com efeito, nesse caso não se fazia um pacto entre visinho-s, mas o
proprietário, em virtude de seu direito, impunha unilateralmente restrições à coisa,
com as quais passava a mão<s extranhas. Èsse caso é de uma lex rei suee dieta.
Veja-se sôbre éste caso, as explicações de J h er in g , em sua Revista, tomo X, pags. 549-554.
(376) E . Zaçhariae v . L in g en th a l , Ueber die Untersch.. (Sobre as distinções
das servidões prediais e rurais). R. E lvers, Die S ervit. (Teoria das servidões)
tomo I, pags. 1-16, e neste trabalho, voi. IV, § 70.
(377) Assim, o testador podia tirar-lhe o direito dc vender a coisa (L. 114,
§ 14 de leg. (í,30): talem legem testamento non possunt dicere), de manumitir o
escravo (L. 61, § 4, de man. test.. (40,4) e dc que cessasse uma indivisão.
y SECÇÃO. — A questão social e o Estado.

Participação do Estado no bem-estar do indivíduo. — À questão so­


cial. — Causas do pauperismo (o escravo é o gênio maléfico da sociedade
romana) — Situação das classes elevadas (suas obrigações sociais). —
Medidas adotadas pelo Estado.

39. — Depois de havermos dado a conhecer o sistema da li­


berdade individual, na sua finalidade e compreensão, resta-nos
ainda estudar a últim a questão, de im portância decisiva, para
podermos fazer um juizo exato sôbre èsse sistema. Apresen-
fa-se, nestes tèrmos: éste sistema se apoia na relação puram ente
negativa do Estado com o indivíduo,-ou se originava duma rela­
ção positiva? Em outros tèrmos: o Estado roftiano partia da
idéia ,dé que lhe era indiferente a esfera jurídica do particular,
<quando esta se agitava no interesse do indivíduo, ou, pelo me­
nos, acreditava não ter o direito, nem a missão de intervir, por
.meio de restrições, em favor do bem privado? Ou, ao contrário,
evitava essa intervenção, porque positivam ente queria a liber­
dade, que lhe parecia indispensável? Na prim eira hipótese, o
sistema da liberdade, que acabámos de expor, dever-se-ia ao
indiferentismo do Estado pelo bem privado, gerando, inútil é
adverti-lo, a prova de um a idéia m uito grosseira na missão do
próprio Estado, suposição que atriljpiria ao sistema, dè que tra­
támos, um papel pouco elevado na história da civilização. Mas,
ao nosso vèr, essa idéia contem um êrro radical, que nos esfor­
çaremos em rebater, de -um mòdo absoluto. Ninguém, que sai­
bamos, a enunciou substâncialmente, nem se constituiu seu de­
fensor (pois* rápidam ente se adquire a convicção de sua ina-
n id ad e ). Mas chegaram até nós os seus écos, e como de qual­
quer mòdo, a questão é muito im portante, para a m atéria de que
se. trata, não podemos .passá-la em silêncio.
As considerações que aduzimos anteriorm ente, convence-nos
da falta de base de tal idéia. Com efeito, o capitulo precedente
mostrou-nos que o Estado se ocupava ativam ente da liberdade;
demonstrou-nos que a liberdade subjetiva não era considerada
sómente dependendo do bem-estar pessoal, m as exatam ente dis­
tinta do capricho e da arbitráriedade do indivíduo, ou, em ou­
tros termos, form ava uma idéia subjetiva do direito.
160 RUDOLF YON JHBRLNG
-sa
'W

O erro desta concepção pode ser demonstrado de outro**


m òdo. Inqurrem-nos se o Estado romano abandonou, c o m p le ti
lam ente, o individuo à sua pròpria sorte, se não se inquietoú p orli
sua felicidade, por sua desgraça, por seus interesses e por s u ^ J
vidá no mundo jurídico privado. E se chegarmos a e s ta b e le r^
cer o contrário, desaparecerá a dúvida, quanto à verdadeira^relá^j
eão dò Estado com a sistema da~liberdade. ^ |||
Sabe-se que, em Roma, o cidadão vivia, mais do qüe ñós||¡
na m aior intim idade com o Estado e que o sentimento ju rid ic a l
daquêle <povo distinguía nítidam ente o direito do particular
o do Estado. Se, realm ente, a doutrina do direito natural, como
se tem sustentado recentem ente, tomou ao Direito rom ano se­
m elhante empréstimo, m erecerá censura, não a censura de
pedir èsse empréstimo, mas a de não descobrir, como nós, essa
verdade tão simples, de que cada um, logo ao nascer, traz con-’
sigo o seu direito, direito dado pela graça de Deus, e que qual­
quer Estado tem a obrigação de respeitar. A rigorosa delim i-^
tação das respectivas esferas jurídicas do ¡Estado e do partid ¿
cular, se conciliam perfeitam ente, em Roma, pela intim a r e l a ^
cão que éntre elas existia. Assim, também, era no amor, emll
que a desigualdade jurídica-existente éntre dois seres, não ofe^g
recia nenhum, obstáculo à sua união conjugal, sem que exigisse^f
de mòdo algum, apagar a linha de separação jurídica. Para 0 |
am or não existia limites, êle sempre os transpunha. O senti-/|
m ento jurídico rom ano exigia esta linha de delimitação entrei^
o direito do indivíduo e o do Estado, não para se antepor a ã
um sentimento egoista e mesquinho, mas para se dedicar, intei^jl
ram ente, ao seu livre acatam ento, ao espirito de sacrifício
render-lhe hom enágem. Atualmente, a relação éntre o cidadão^
e o Estado é indiferente, sem conexão íntima, sem afeição e m ||
Rom a era ardente, profunda, inflam ada de uma verdadeira paf->|j
xão! Na concepção atual, o Estado aparece como um a persona-li
lidade abstrata, oposta ao indivíduo; no conceito rofnano, e ra l
a unidade superior que cingia a dos indivíduos, e que somente?
existia por êles e para eles. Os interesses do Estado eram, p o isj
não somente direta, mas indiretam ente, os do indivíduo, como bjf
interesses da sociedade são os de todos os associados. O amoí
ao Estado não é, pois, um acatam ento a qualquer ser m oral ex |
tranho, m as a subordinação de fins puram ente especiais a fins!
gerais, ^do interesse especial ao interesse geral.
Na relação entre o Estado e seus membros, na união intimara
de seus interesses respectivos, compreendia-se a vigilância do E s||¡
tado pelo bem do cidadão, conhecendo-se seu interesse na en&rjfl
g ia com qúe sempre acudiu p ara salvar os direitos dos" cida|H
dãos. Devemos, pois, subm eter a um exame atento a v ig ila n ^
cia do Estado no interior, especialmente na sua aplicação à sqrígl
te econômica das classes pobres. : ||
Existiu, em Roma, desde tempos muito remotos, um façt||j|
Ò p ò ^ ireíto " ROMANO 161

que orhphou grandes perigos, e~que.se pode assinalar, sem mécto,


cpinq o germ en de decomposição, que precipitou ä queda da so-
cie^ade gromana. !Ésse^factGL era. o--estado defeituoso do sistèma
d e distribuição dos bens é de circulação. das riquezas. A dê-
Sigüaldädp riß destribuiçap das riquezas é o resultado, fatai dà
iibgfdade do coraéreip. À pj^ppndèrâiiiçia dó¿ grandes patri-
to n u iò s ^ Pá pequeños se- descobrp constali temen te,- e por
vjedã"piarte se repete ó fenômeno, de qué os bens afluem, de .pre-
roride estão a c iii^ lád o s em^^grandes quantidades. Eiii
fíomáv áúm entáratn ésta influência e impe**
sdiram a vplta"dos patrimônios p a ra as classes desherdadas. Em
parte alguâià o riixi podia, coni tanta facilidadé, ser milionario;
ném o pobre ser mendigo; em parte alguma o limite entre esses
dois extremos ^se fez tão estreito e tão difícil de m anter. Um:
passò m aisNp a ra um bu outro lado, e a miséria, ou a riqueza,
irrom piam áyassalàdoram ente.
/A destribuição desigual dos tributos, que as guerras faziam
pesar, m enos sòbrè as çláSsês abastadas qúe sóbre o proletaria*.
a pfiM éirà càusa desse fenómeno Sem dúvida, a gueir-
;ra-àfàsfaya de seus ¿ampos, tanto àovrico como ao pobre, mas
e^iàtia a d ife re n ç a de que as térras dos pobres ficavam, nesse
,interrégno, sem cultura, enquanto que, as dos ricos eram cuida-
Jdás pêlos escravos X378) . Na* épo?a m ais antiga, quando as guer­
ras tinham" o cara ter de. banditismo, clarp_é que o trabalho .agrí­
cola, pbucõ~sofm ,p essas expèdiçpes se faziam, geralmente;
nas estações em. quê à terra* não reclam ava o cuidado dos p arti­
culares. Masv/à medida qué as guerras tornavam^se importantes,
que os cam pós de bàtalhá eram m ais distantes, que a cam pànhá
¿é dòrriaya m ais duradoura, a agrièultura septia mais e mais as
ijunestas conseqüências qüe produziam . Não nos enganemos, nò
entanto, com isso, porque o resultado -direto dpssas guerras po­
dia dim inuir o bem-estar do/povo inteiro; mas bastaria, entre­
tanto; Sdbslocádo completamente dàs relações da riqueza das di­
versas classes, se não houvesse outra cousa mais decisiva: — á
^ ife fé ú ç a ida m aneira de cultivar .
E ntre o próprio possuidor, que cultiva os campos e o qúe
os, m andava cultivar pelos escravos, havia um a desvantágem, e
èra qüe a guerra não podia prejudicar êste. último, porqüe não
:lhe tiráva os instrumentos de trabalho, as forças ativas da agri-
.cúltura; m ás, aó primeiro, ao contrário, um a guerra prolongada

(378) L . 6, 1 2 .... - Servitici romana (ea loca ) ab solitùdine vindicant. A plano,


d e belio c iv ili,__1,7, in siste tam b ém riêste p o n to . Mas, no que diz respeito às conse­
q ü ê n cias destri d istin ç ão , não se escolheu o p o n to decisivo e tem os que nos .a tê r a
u m elem ento m enos seguro. Dá-se, como ra z ão , á riq u e z a dos grandes possu id o res
,-de bens rú s tic o s, q u e a fam ilia rústica, isen ta do serv iço m ilita r, po d ia d esm edida­
m ente, a u m e n ta r, enquanto que a p o p u lação liv re dos cam pos e ra disi m a d a pelas
g u e rra s .
1Ö2
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OL ~F y O N - J HB RI NG "’¡

causava perturbação, ê a miude, provocava o aniquilamento da


láv o u rã .
Só esta diferença era fefcunda etri conseqüências. È’ sabido
q u e cada deficit na cqlheita, acarretava,- cqmo conseqüência, uma
alta de preços. O m ovim enta do comércio atual, a séguráñca,
a rapides^ e<a facilidader de irosso sistema de ‘transportes, fazem
cpm qué à alta se divida entre grandes extensões de terras e sé
redùza a um m inimum relativo, o das diretarirente atingidas-por
èsse deficit. Na antiguidade sucédia de òutro modo; rièssa epo­
ca, sem dúvida, se éxercia, em grande escala* o comercio de ce­
reais. Èsse comércio, no entanto, não estavä difundido nem re­
gularm ente organizado no interior, para produzir séus benéfi­
cos efeitos. O monopólio do trigo, que hoje està reduzido a
proporções bem limitadas, graças à fórm a moderna do comér­
cio de grãos, podia elevar-se* na antiguidade, a proporções espan­
tosas (379380) . A falta de segurança do comércio, principalm ente
causada pelos piratas, e, além disso, a instabilidade das rela­
ções internacionais, juntaram -se às iinperfèiçõès do sistema de
transportes. Eis a origem dò carater local das crises e das flu¿
tu ações enormes, inacreditáveis, dos preços de cereais (38° ) .
Aplicando estes dados ao assunto de que nos ocupámos, po­
deremos dar exata conta da influência de um deficit na colhei­
ta, causado pela guerra, quàndo os preços se elevam, rápidam en­
te, de um mòdo desproporcional. .Somente os ricos estavam em
condições de realizar grandes importações de^trigo, forçando,
déste mòdo, a aibxa de preços ; mas* còrno isso erá contrário

(379) Vejii-se, sobré éste ponto, por exemplo, Böckh, Staatshaushaltung.. . (Eco­
nomía politica dos atiehses), tomo I, livro 1, § 15. ~
(380) B ö c k h , I. demonstrou-o a Grécia. Em Athenas, onde o meditane
custava um dracma, no tempo de Solon, ‘elevou-se, de repente, a 16. Para Roma,
C.. T L . S c h u l t z , Grundlegung.. (Idéias fundam entais . da história do direito pú­
blico de Romfl), pag. 502 e s., sustentou o contrário', nías sem razão pelo qué diz
respeito à época antiga. E’ certo que mais. tarde, à medida' que Roma dilatou seu
impèrio e que, por isto mesmo, o- comércio de cereais ganhou em firmeza, exterior­
mente, e cm extensão geográfica, se estabeleceu um equilíbrio exterior de preços; mas,
ainda nessa época a história menciona flutuações de preços altos. No ano de 544,
segundo P o l ib io , Reliq. 9 , 44, o medimke (6 m odii) do grão de Sicilia custava, ém
Roma, 15 dinheiros. O modius, qtie d esd e'o inicio, vália' 16 asses, custava 40 asses.
Seis anos-imds tarde, o mercádo de Roma era tão abarrotado ( T ito L iv io , XXX, 38),
que, pelos fretes, se entregava aos hoteleiros, a carga. O preço pelo qual >Sicilia '
devia entregar o grão aos romanos, era de 3 a 4 sextercios pelo m odius. Na dis­
tribuição pública de trigo, dava-se o modius ,por um as e mesmo mais barato^ (ve­
ja-se mais adiante). C'ic., de o ff., II, 17, conta que um edil, C. Sejus, manteve
èsse preço numa crise, e não sofreu, por isso, grandes pèrdas. No ano 314, chegou
o preço, por circunstâncias especiais ( T it o L iv io , IV, 12, 16) do mercado, durante três
dias consecutivos, a baixar até a um as ( P l í n i o , Hist. nat.18,4). Um caso.
análogo tornou-se a apresentar mais tarde. Vejá-se Niebuhr, Röm. G. (História ro­
mana), tomo I, 4.a ed., pag.' 483. A baixa de preços externos de cereais, na Prussia,
em 1815 a 1860, foi de 1 á 4, c isto por uma só espécie de frutos.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 163

a seus intereses X381), porque sómente êles se achavam em con­


dições de poder vendèr, aproveitaram a ocasião para explorar a
situação de qualquer m aneira, financeira ou politicamente (382).
Èsse foi o motivo de ter irrom pido o ódio contra S p . Maelius,
quando, em um caso análogo, empreendeu suas,especulações. A
acusação levantàda contra êle, de que ambicionava o poder real,
foi sómeiite um pretexto de vingança e não © Verdadeiro motivo
da cólera popular (383) .
Em semelhantes circunstâncias, a sifuação dos pobres era
insustentável (384) . Um ano próspero, em nossas relações atuais,
póde compensar a agricultura de todos os danos de m ás colhei­
tas anteriores, mas, em Roma, isto não era possível. Com efei­
to, em um ano de abundância, quando o pobre tinha, também,
cheio os seus celeiros e imaginava vender o seu trigo, os preços
estavam quatro vêses mais baixos, e talvez mais baixo que o p re­
ço a que, pouco antes, tinha precisão de comprá-lo. Para obter
o preço da compra, necessita-se angariar dinheiro, com um a taxa
exorbitante, e a próxim a co lh eita. devia garantir o capital, os
juros e as contribuições de guerra. Se sobrevinha uma nova
guerra, ou um ano de crise, em vês de proventos que a colheita
deveria garantir, lutava para solver os respectivos compromissos,
qúe se elavavam ao duplo, ou triplo (385) . Quer-se encontrar a
¿aüsa dst dívida, sempre crescente, da plebe, na elevação, da taxa
de juro; mas êste não é o mal, é a sua conseqüência. Sem as
circunstâncias indicadas, a pequena propriedade imóvel não che­
garia a ser tributária da grande, nem, por consequêhcia, tão ele­
vada a taxa do próprio juro.
Uma circunstância, também, aum entou as vantágens do

(381) P l in ., H ist. nat., 18, 4, assinala a sua influência nociva sob êste aspecto,
.■latifundio, singuiorum arcentium uicinos. E nào. é surpreendente que disso resulte
u m estado quasi equivalente a da proibição. T ito L ivio , II, 34, caritas annonae EX
JNCVLTIS per secessionem AGRIS, famZs deinde, QUALIS CLAUSIS FORET.
(382) X ito L ivio . IV, 4, 12. . . regno propebper largitionis dulcedinem in cervices
<acepto. Tal era, também, a intenção de Coriolàno . T ito L ivio , II, 34: Si annonam
meterem volimi, jas pristinum feddant Patribus. Para compreertdcr a resignação e a
apatia politica que, às vêses, manifestava a plebe, é preciso não perder de vista a
influência dêsse meio de opressão.
(383) T ito L ivio , 8 , II, 12, 16. O mesmo sucedeu em outras circunstâncias, por
exemplo, com Sp. Cassius, Mr. Manlius. Não eram as tendências políticas que mo­
tivavam essa explosão de ódio,’ mas as ambições sociais e bs prejuízos materiais des­
prendidos de suas inovações. Acreditava-se estar o Estado ameaçado, quando o in­
teresses materiais eram os únicos que estavam em jogo.
(384) Ainda atualmente se encontra essa relação na cultura da vinha, com a
•diferença de que as causas que aqui dão ao grande produtor uma preponderância
importante sobre o pequeno, tem sua basq, não nass relações exteriores, mas em a
natureza dá cultura ‘d a videira e do comércio do vinho.
(385) Veja-se, por exemplo, T ito L ivio , VI, 32: Parvo intervallo ad respirandum
■debitoribus dato, postquam quieta res ab hostibus erant, celebrari de integro ju ris-
,dictio et tantum abesse spes. veteris lev ondi foenoris, ut tributo novum fxnus
•iontraJieretur.
grande proprietária sobre, o pequeno: a de que, o
prim eiro, era o único qué-podia evitar a concurrencia do según-
sdo, I m p ^ i n d o ^ coinpletaniénte^ de participar das vãntá-
gètj^ áp qgçfi pà b licm . Mà^, independents
giö, a prepóriderancia jâ era muito sensível p ara explicar o fació
c ó rS ^ d ó , d e q u e a ;p ) ^ ^ não se . podia m a n te r
a© *l a d o d a ^ á ^ d ^ p ó r q d e . por ser absorvida (^8é) : ,O
paliativo q n é a ^ introduzir, foi insuficiénteí por­
que as cousas chegaram a um à situação, erti que não haviá rem e­
dio^ Jòssíyel; p a ra debelar o mal.. Nao hayia outro meid de
evitar a . catástrofe senão a proibição de cultivar com o auxilio
dos escravos, m as èsse meio e ia im praticável ; fora preciso, p a ra
isso, abolir a pròpria escravidão.' A disposição da lei, que pres-
creviá o emprego de certo núm ero de pessoas Jivres, em concur-
rência com os escravos, veio oferecer algum a utilidade, assegu­
rando^ pelo menos, trabalho a um a p a rte do proletariado dos
campos, e tornou mais operosa a adm inistração dos grandes do­
m inios. Dominou, dêase mòdo, se bem^què ligeiramentê, a pte?-
pqúdêrahcia^ dd 8 grandes ^proprietários, em cóncurrênciâ}éóiñ¿ a.
pequena «pri>priedäde.-- Mas, repetim os, não destruía .completa­
m ente ó m al. O cultivo^ coni a ajü d a dos escravos, conservava
sem pre a d upla vantàgem, que riinguém pódia equiribrar: —- o
menor: preço d a mão de. obra, e, consequentemente, da produ­
ção; circunstância què áe tornou patente" e à que se atribuiu a
m aior im portância; porqué um a gueijra lançaria a desordem
.entre os peqúèpôs lavradõres^m as não alteraria sensivelmente ó
cultivo dos grandes proprietários (*387) . Pouco importava, p ara
ô pònto capital da! questão, qué a L e x Licinia estabVÌecfe$se o
máximo^ de propriedade territorial (500 jugeras) e do rébanho
(100 cabeças de gado grande e 500 do p equeno). Sem elhante
proprçdade. já constituía um grande patrim ônio, ño sentido que
lhe damos (388>; a sua extensão, além desses limites, não. aum en­
taria as^consequências, não; podendo,; afinal d e contas, a m edida
aproveitar senão às grandes propriedades. Além dissó, o ex-
cedènte das terras vendidas, ein ; pequenos lotes, aos pobres, se­
gundo a lei acim a declarada, devia dividir-se novamente em
grandes porções de 500 júgeraji., A um etnar o número de gran-
des proprietários, im pelir os ireos, em benefício das classes me­
nos abastadas, colocar, sua fortuna em bèns de raiz, tais foram ,
em conclusão. Os únicos resultados que òbfivéra a Lex Ltçinial

(3JT6) P l i n i o , H. N'., 18 7. A ppian, 1,-7; Veja-se em Cic-, de off., 2, 21, as palavras dbs>
tribunos : n o n e ss e in c iu ita te d u o m i l i á h o m i um q u i rem h a b e r e h t. T ito L iv io , VII,
.22: s ó lu tio eeris a lie n i m u lta r u m r erù m m u lta o e r u n t d o m in o s .
(387) N'a Idade Média, a relação era precisamente em sentido inverso. O' grande
proprietário^ què tinha- sobre si todos es encargos, da guerra, seria arimi nado pelo
pequeno, se não se houvesse réstabelecido, por outros meios, o equilibrio.
(388) Cultivado por escravos. A medida normal da pequena propriedade, era;
homo é sabido, de 7 jugeras, e aia época màis antiga, de 2 .sómente.
O ÊSPíRÍTajy<y ^R isrfò ROMÀNO 165

De restó, ésta lèi sé chocou, dèsde ;a sua: formação* contra , tão


forte resistência, que nãó lhe foi nièsiho possível realizar suas
finalidades restritivas (388) •
-Poder-se-ia eyitar o perigo "que a supressão, ou a diminui­
ção considerável 'dos agricultores Ifvres devia dar origem, •tpr-
pahdo-os arrendatários ou cplonqs. 8ja$ ó sistem a de arrenda^
méfíto das terras, em pequéjios ló te sf399)* tál còmó existe, por
exemplo, ria Inglaterra, nãó correspondia às relações da vida ro­
m ana, Os niesmos inconvenientes que agravavam a situação do
pequeno proprietário* pesavam sobre o pequeno arrendatário. A
conòurrência nao era possível senão entré um grande proprietá­
rio e úm grande arrendatário. Podemos, pois, adm itir que o sis­
tem a de cultura direto estava, na antiguidade, mais desenvolvi­
do (38930391), e durou, pelo ménos, o longo tempo ém que não inter­
veio lima m udança essencial has relações que acabámos de enun-'
ç:ar ' Esta m udança, que sé produziu sob o Império, iniciou a
form ação do colonato.
Outro m al n ã o menos pernicioso' e inerente as condições es­
peciais ém quê sé achava Romã, jüntava-se às pragas sociais,
quê acabamos de enum erar. A guerra foi, em Roma, durante
séculos, o úÉíco meió de adquirir fortuna. Assim, j>ois, sé com-
preénde q u i-o serviço militar, 'encarado por> èsse prisma, viésse
a ser, não um encargo, mas um benefício. O exército tinha o
diréiftxdé rep a rtir a presa feifa ao inimigo; a consignação desta
prèsa aòs^çofres públicos lhe parecia um roubo feifo ao solda­
do (392>. Ainda que nesta fonte de lucros comuns "existisse um a
igualdade aparenté entre todás as classes, na realidade eram
sórtiente os ricos que auferiam _os proventos, porque sabiam se
aproveitar da m elhor parte dás terras conquistadas, ou conver­
tê-las em ager publicas. As outras fontes de aquisição, reputadas
honrosas pêlos usos romanos, supunham grandes fortunas, até
mesmo pára serem utilizadas com proveitos dum a grande rendq*
Admitamos ò que antecedentemente dissémos, sobre a agricul­
tu ra ; mas onde q u é r -que o capital esteja em jogo, se reprodús,
o mesmo fenôm eno. Ö acessp aos grandes negócios* ao m er­
cado de dinheiro, era vedado ào pequeno capital, quê se devia
contentar com ò pequeno tráfego e com o empréstimo a juros.
Uma circunstância ©specialissima de Róma, isto é, a situai

(389) A p p i a n ., 1, 8.
(390) Sobre os diferente^ sistemas de airendamento qué existiam ha época da
República«' veja-se *K. AV. N itzsch , Die Gracchen. . . (Os Gregos e seit precedentes
Imediatos),: Berlim, 1847, pags. 188-190. ^
(391) . Os. romanos-não eram partidários do arrendamento. Veja-se, por exemplo,
C olumela , I, 7, que iião o queria assinalar seiião excepcioniBfliente e apenas em con­
dições especiais.
(392) T ito L ivio , II, 4 2 ... malignitate palriini, qüi m ilitem preèda fraudavere.
fóde-se lêr em T ito L ivio , XLII, 32, como esta fonte de lucro era abundante: quia
Jocupletes videbant, etc., e 10, 25: mihi cordi est ut omites locupletes reducam.
ífô ^ HÚDOLP VON J H ERING

cãa; social da aristocracia do dinheiro, que formou um a verda-^


deira casta., a dos cavaleiros, veio aum entar ainda mais á supe-,
'rioridade que já o grande capital exercia por si mesmo. Èsta
casta* encontrou causa e razão de ser na riqueza, que dispunha*
sqhfe.a propriedade territorial. A atividade, a indústria, o és.-;
p in to dé negocios, eram qualidades características, podendo coní¿
párar-se este elementó da sociedade romana à classe m édia atual*'
íán to peía posição interm ediária entre a aristocracia e o prole­
tariado, como pelo espírito e ocupações. Reunía.o poder finan­
ceiro em um a grande casta, anim ada do sentimentoxle corpora­
ção, conseguindo um lugar assinalado, até na organização polir
tica; a rigorosa coesão constituía uma força irresistível. E ’'evi­
dente que não se podia, nem por sonho, lutar com ela, porque es­
tava segura de fazer um monopólio absoluto de tudo o que dis-
sésse respeito às suas especulações.
O grande comércio, o arrendam ento dos impostos públicos,
empreitadas, as obras públicas postas em concorrência, os em­
préstimos de dinheiro em grande escala, as cidades e as comu­
nas, etc., formavam, como é sabido, os objetivos principais de sua
atividade.
. Quais eram as "outras fontes de renda que restavam? A per­
gunta nos condús ao segundo mal fundamental, que corroía a
sociedade romana. Hoje o talento e o trabalho lutam, sob mil
fôrmas, com o capital. A arte, à ciência, o serviço público, o
exército, o "trabalho manual, o comércio, a m anufatura, ocupam
m ilhares de indivíduos e dão a milhões de seres os meios de
subsistência. Mas, em Roma, com relação a todas essas profis­
sões produtivas, existia a anom alia de que eram despresíveis
aqueles que serviam para ganhar a vida, sendo honrados aquê-
les que não tinham por fim conseguir os meias de viver. À pri­
m eira categoria pertenciam o serviço público, a arte e a ciência,
porque o serviço m ilitar não era, na época antiga, uma profis­
são propriamente dita, mas um dever cívico. O preconceito so­
cial, ou a suscetibilidade do orgulhoj-epublicano, taxaram de ¡g-';¡
nominoso o pequeno comércio (393) .

(3934. Cicero de o ff., 1, 42. Iltiberalis et sordidi quaestus mercenariorum omniumr i


quorum opera:, non quorum artes em untur: est enim in Jllis ipsa MERGES AUCTO-
RAMENTUM SERVITUTIS. Sordidi etiam putandi. qui mercàntur e merc.utoribus; quod
statim vendant, nihil enim proficiaunt, nisi admodum mentiantur__, opificesque omnes ~
in sordida .arte uersantur, NEC ENIM. QUWQUAM INGENUCM HABERE POTEST^
OFFICINA. . . mercatura autem__ sin magna et copiosa, multaque undique? apportans,
multisque sine vàiiitate impertins non est admodum vituperanda. D io n is ., 9, 25.
L. 22, 2 5 ... loco non humili, jsed etiam sordido natus. Patrem laninum fuisse fe-.f,
runt, ipsum institorem^jmercis filioque hoc ipso in SERVI-LIA ejus curtis m inisteri* -
u su m ... Aur. Vict., de Viris illu t., c. 75. Nam pater ejus, QUAÌiVIS datricius, ob*
\PA UPERTATEM carbonarium negotium exercuit. Ipse primo dubiiavit, honores p a -:y>
teret au argentarium faceret. (Trata-se, conio se ve, de duas partes extremas Ìn-..3
conciliáyeis entre si). -Entre os negocios quse in odia hominum incurrunt et impro-
bantur, Cic. de off. 1, c. 42, conta os dos"fseneratores e ib. 2 c. 2á, representa Catá'<ü$|
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 167

O' escravo, dedicando-se a esses trabalhos, vingaya-se dos ro ­


manos de um mòdo não menos evidente que sob o ponto de vista
da propriedade territorial. Quando se chamou ã escravidão o
lado oposto da cultura rom ana, e se a designou como o canal
de desvio, pelo qual Roma escoava tudo o que era de im puro
è pudesse em panar p sentimento de honra e de dignidade do
cidadão, proclamava-se, ao mèsmo tempo, que todo trabalho vil
afetava exclusiva ou principalm ente os escravos, e tornava indig-
no aquilo que era produto da inteligência e da arte, pelo único
motivo de ser exercida pelos escravos, tomando o carater de artes
illiberalis, isto é, se apresentam como. indignas de ser desempe­
nhadas por um homemvlivre. Rivalizar, nesse terreno, com os
escravos, afrontar os preconceitos dominantes, era renunciar a
sua estirpe e posição social, epa degradár-se. Do mesmo mòdo,
quem se resignava por necessidade: encontrava-se num caminho
eriçado de dificuldade. A concurrencia do trabalho barato dos
escravos, criava-lhes m il obstáculos. As grandes obras, tudo
aquilo que concernia às necessidades ordinárias da vida, salvo
insignificantes exceções, eram realizadas pelos esclavos (*394) .
Nada ficava ao alcance, por assim dizer, das classes inferiores,
nem mesmo que fosse de pouco proveito. Quanto aos ofícios, que
exigiam um a certa habilidade e grande prática, havia oficinas e
fábricas que empregavam os escravos. Ao lado disso, e com a
mesm a habilidade, sem ter em conta o capital que lhe era pre­
ciso, o operário livre não podia subsistir, e somente o conse­
guia com bastante dificuldade, quando tinha talento e incontes­
tável superioridade.
0 escravo gozava, geralmente, da vantágem produzida pelo
hábito constante e a maior agilidade, por qm a razão muito na­
tural: consagrava-se ao trabalho sem obstáculos nem interrup­
ções, enquanto que o trabalhador livre tinha contínuos interva­
los de repouso. Posto em liberdade, p escravo continuava a sua
indústria com as necessidades lim itadas, grande prática e a pro­
teção de um patrão poderoso, que lhe podia assegurar um futu­
ro modesto; enquanto que, para o trabalhadordivre, não era cer­
to, nem suficiente, nem mesmo bastante sedutor para induzi-lo a

respondiendo à pergunta: quid fenerctri? por esta ... outra: quid hominem occídere?
Havia certos assuntos em que as corporações pretendiam ter sido fundados por Nuna.
Plutarco, Num«, c. 71. Huschke, V e rf... (Constituição de Servius Tullius), pag. 149,
«* s. Th. Mommsen, de coíicgiis et sodaliciis Romanorum, Kil., 1843, pag. 37 e s.
Disso se pôde deduzir a ansiedade dessas corporações, mas não a exatidão da origem.
As centúrias de artesãos 'da Constituição Servia (Tibicines, Cornicines, Fabri), não
eram corporações- de operários, mas correspondiam a nossas associações de artesãos
atuais e não a bandas de música militares, como indica o fim militar dessa Constituição.
(394) V Gaio , de B ecker , t. 2 e 3, ed. Rien. V. em P etronio , Satiricon, c. 38,
uma fina ironia dirigida contra èsse estado (de coisas :Nec est, quod putes, ilium
quidquam emere, omnia domi nascuntur, etc.
liraeàr a facilidade de uma vida efe ócios j)ela posição hum ilde
:güe lhe cria va semelhante condição. > —
.^ ^ e m p r^ : se íreçeiava à transição dum gráu social elevado a
yowírò inferior* vÀtua:lmentev o nobre; empobrecido julga mais.
?digno yegètar como proletário aristocrata* que *sç dedicar,: comò
cla$Se média, ao tr á b a lh o ^ ^
dfridüós que,^O Tper^^ bòh f amílta, pfeferem a vidá de
hõ^hêMio à existência de artesão. O mésmo acontecia- nã antiga
JRoima.
J?ara qualquer lado que o hom em livre se dirigisse, em bus­
ca de trabalho, encontrava ó mesmo inimigo hereditário — o es­
cravo., Encontrava-o na m arinha (395), no comércio (396), na or­
ganização de impostos (397398), até mesmo nos empregos iiiferiores
da adm inistração do Estado, o u -d a copníunidade (servi publici)
(39* ). A todas estas causas favoráveis â suprem acia do trabalho
barato dos escravos , e dós irabalhádòres livres, é preciso acres­
centar o u tra circunstância da, inferioridade destes últimos. Se­
gundo os princípios de direito antigo, era lícito adquirir pór in­
termédio de. pessoas subordiniadas de sua fam ília, más não pela
m ediáção de pessoas livres. Resultava disto* que. em todas as rela­
ções que exigiam a*conclusão de atos jurídicos, por meio d e ln te r-
médiáriós^ a emprego do escrava tinha a preferência, por sua
própria .qualidade de escravo Podia-se obter o mesmo resul­
tado com um\ subterfúgio; mas, a via direta apresentava, não
somente a yaiitágem de simplicidade, como, também, de grande
certeza, Á subrogàção do direito adquirido, por um interm e­
diário livre, exigia um ato de própria vontade déste último, que
podia, po r conseqüência, ser retardado, rêcusádo ou impossível,
etc. A intervenção do escravo fazia-se em virtude dúm ato pró­
prio. A ,intervenção dó homem liv re „era um direito.de dispor
daquilo que adquiria; o escravo, no entanto, não adquiria ne­
nhum direito .
Assim, pois, até nó terreno do direito, o homem livre su­
cumbi ã na luta, pela concurrência do escravo!
Resultava, assim, que na antiga Romà sé tornava impossi-

(395) Não sóméntè se Jevàyani os escravos como marinheiros (ainda que para os.
berços, de guerra. T ito L ivio , XXIX, 11, XXVI, 35), nías se escolhiam, também, para
capitães dos. mesmos, segundo se depreende da act. exercitoria.
(396) £íão sómeñte, tambcm, o pessoal de serviço se: compunha' quasi sempre
de. escravos {act. institoria), como estes exerciam por conta própria um pequeuo co­
mércio (act. tributaria), tirando-lhes, no primeiro caso, o pósto <de; trabalhadores livres
e' fazendo-lhes», em segundo, uma perniciosa concorrência^
(397) . Esta organização exigia um numeroso pessoal inferior, e, naturalmente os
publicaiios / encontravam mais vantagens 'em se servirem dos esclavos (fò m ite pubìi-
canorum ).
(398) Existia, por exemplo, para o serviço da condução das águas, em Roma, sob
o Império* uma fam ilia publica de 240 escravos e uma fam ilia Cmsaris de 460; o.
mesmo sucedia para o serviço e conservação doS templos. Sobre o serviço público,
compare-se ,.Th. Mommsen,. Röm, Staatsrecht (Direito publico de Roma), I, 350-359.
O ÉSRíRITO DÖ DIREITÓ^ ROMANÓ itò

vel àò cidadão que não tinha fortuna, á faculdade de vivei’ de


sua própria industria, e que òs grandes capitate (eni hens de raiz, •
ou rendas) , tinhana sobre os pequenos, enorme preponderância^
Sé bem que, num Estãdó em que as relações sociais estejam bem
organizadas,, deva m anter-sé o equilíbrio da sociedade^ em rRqma,:
à classe m édia não podia prosperar ; Por outro lado, a riquezã se
acumulava em grandès prqpórções e, por outro, aumentava a mí^
seria e o proletariado; um a divisão mais equitativa, teria asse»,
gurado a subsistencia honrosa # milhares de homens, çom o qüe
um só poásuia. E sta proporção atingiu seu ponto culminante,
em m enor gráu (399) . ~.
■aié 9 fim da Republic a, .e que já anteriormente existia, se bem qüe~
Dò qué precede, resulta que o proletariado era, em Róma,
conseqüência inevitável de sua organização. Os pobres afluiam
a Roma de todos os pontos da Itália, e, por motivos fáceis de
com preender: Roma f o ia cidade idéial dos proletários. Lá, seih
trabalho, se levava uma existência agradável: sempre festas, jo­
gos, generosidade dos ricos, liberalidade do Estado, perpétuas
distrações K Pelò menos, em Roma, a m iséria era honrosa, ó mais
pobre se reanim ava ante o brilho e a glória do poder romano,
que, também, era, em parte, obra sua. Em Róma, até o pró*
prio mendigo se jactava de séu valor, como cidadão romàno, e
podia, nos comíçjos, exercer o sufrágio do vóto. .-: ou vende-lo!
O homem privado podia livrar-se da responsabilidade dé se­
m elhante estado de cousas; podia acusar,*por issopo Estado, pii,
ainda, a organização social. Mas, que fazia o Estado para com­
bater o m al e dar-lhe o remédio? Antes de responder esta per­
gunta, existe u m fenômeno da vida rom ana, que deve atrair a
nossa atenção p ara um outro fenômeno, que tem, àíém disso,
conexão íntim a c o n fo nosso assunto: referimo-nos à liberalida­
de dos grandes de Roma para com as classes inferiores, o que
tomou, com o tempo, colossal extensão, cujo tèrmo de compara-
çãó com os nossos costumes, séria falho. O motivo não se póde
encontrar, ao nosso* vêr, nem nos esforços feitos para captar o
am or do povo,- nem tão pouco na corrupção eleitoral, porque, se
assim fosse, nós véri a m o so próprio fenômeno reproduzir-se emi
outras Repúblicas. Menós ainda se póde atribuir a sentimentos
de beneficência, qualidade de que carecia a índole dos romanos.
As circunstânciais, acima descritas, revelam, frequentcmentè,
a causo secréta. E ra um dever social, para as clásses afprtuna-'
das, compensar a súpèrioridade que essãs circunstâncias lhes^
atribuíram , e pela sua generosidade, com relação às çlassés que *

(-399) P e t e r , Gesch. . . (História romana), tomo I, pag. 103, nota, com razão, que
se póde vèr na-renovação do censo do Servius T ullius,.como, em sua época, já-existia
uma desigualdade bem grande nas fortunas. O tèrmo médio da última classe coin
as classes superiores era de 1 a 10; mas havia muitos cMadãos cuja fortuna não
chegava ao mais baixo lim ite da classe inferior, e que excedia, em muito, dos bens
assinalados, à primeira classe.
J?GÍ R U D O E F VON J H'ÍS R I Ñ G
4

padeciam, tinham o dever de reparar e suavisar as-iñjusticás que


disso resultava. Quaisquer que fossem, de resto; a s 'causàs qué:
determinassem a ação dos particulares, um motivo geral dom i-
pava e propendía para acalmar o sentimento das clàsses infe­
riores, feridas pela iniqüidade social. Dai essa generosidade que
estreitava toda uma>dasse do povó, imposi adorne n m déyer for-
m ài de répresentaçãô;, dai a vergonha de se afastar da obriga­
ção assumida, ou frustá-la (400401V. Isso não era mais quçÀ jus­
tiça. Somente um espírito baixo, sórdido, podia aproveitar as
vantagens duma posição privilegiada, sem querer suportar os
deveres que dela dimanavamí Toda grande fortuna, diz um
áutor moderno (4M1), tem a obrigàòão moral de tirar aò gozo egoís-^
tico e pessoal uma parte para pô-la em circulação, em benefício
do interesse geral da sociedade. No fundo, a generosidade da
aristocracia romana completava o sistema de circulação das ri­
quezas, favorecendo às classes desherdadas da sorte (para as
quais a organização im perfeita deste sistema era insuficiente) ;
corrigia pelo menos, se bem que de leve, a acumulação despro­
porcional sobre os pontos favorecidos.
Foi, pois, um motivo puram ente social, ç não üm a verda­
deira causa m oral que impulsionou essa generosidade. O pró­
prio interesse das classes superiores o exigia como meio essen­
cial de assegurar a sua posição', manifestando sentimentos ver­
dadeiram ente aristocráticos, que se impunham ao povo e desar­
m avam a inveja. As classes inferiores, bem como as mais ele­
vadas, tinham um interesse igual em arrancar essa vontade do
individuo e de erigi-la em dever, acomodado ao costume (402). À
ocasião principal, em que a opinião popular exigia o cum pri­
mento desse dever, era a do ingresso ao exercício do cárgo de
édil e, mais tarde, ao de questor (403), cargos estes que figura­
vam nos primeiros degráus que se deviam transpor para se gal­
gar os demais superiores da administração pública. O futuro
funcionário devia, unicamente, em virtude de sua função, pagar*
de qualquer modo, o direito de exercer o cargo (404) . A liber­
dade era a tácita promessa do exercício vantajoso do cargo; acom­
panhava a função, e assim, introduzia-se como elemento essên-

(400) Cicero, de o f f . 2, 16, 17.


(401) R ieh i ., die bürg. fíesellsch. . . (A sociedade civil), Stuttgi. e T üb., 1851,
pag. 178.
(402) Cicero, de o f f . 2, 1 6 . . . tota ratio talium largitionum genere vitiosa est (é o
homo novus que fala) TEMPORIBUS NECESSARIA. Ib id . 17. Mamerco homini ditissimo'
preetermissio xdilitatis consti latus repulsam attui it.
(403) Auct., de Virg. ili., c. 17. L uculiu s... maims queestorium amplissimum
dedit. Suet., Domit., c. 4 . . . Quvtstoriis muneribus, qux olim omissa revocaverat.
Segurido Tacito, Claudio erigiu èsse dever em lei formai, obrigando os questore», por
sua propria conta, a dar oombates de gladiadores.
(404) Foi assim que Cicero o entendeu, na passágem acima citada, e diz que*
comparativamente às honras que depois teve, não pagou muito caro a solenidade inau­
gural das funções de seu magistério.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 171-

ciai no organismo *da administração pública. O edil que cum ­


prisse ròs mais laboriosos mistéres, mas que não fizesse gasto, e
adm inistrasse o manus patrimonii como um manas persones, não
somente perderia a confiança das classes inferiores, defraudadas
em suas esperanças, mas incorreria na destima do povo e deve­
ria p e rd e r a esperança de seu prestígio e reeleição. Esta obri­
gação dos edis parece ter se desenvolvido pouco e pouco, graças
à organização dos jogos públicos de que estavam encarregados.
Ó Estado destinava certa soma para, êsses jogos (500.000 asses
para os ludi magni) ; se esta soma não era suficiente, os edis fi­
cavam naturalm ente obrigados a cobrir o deficit, ainda que de­
les não dependesse organisar os jogos com menos dispendios. O'
mesmo ocorria com outras despezas. que eram inerentes às fu n ­
ções do edil, corno a entraga de cereais e azeite ao povo por
preço mais baixo que o da sua compra, os regosijos públicos, a.
formação de pòrtos, de aquedutos, de ruas, de teatros. Os di'-
nheiros públicos constituíram, originàriam ente, um fundo que
os edis deviam suprir, com os seus próprios recursos. Êsses dí-
nheiros se compunham, em parte, de somas impostas ao cerarium,
com um fim especialmente determ inado, e, em parte, com o di­
reito de livre disposição, para os edis, de multas por eles impos­
tas e cobradas (405) . Compreende-se, fácilmente, que a contri­
buição dos edis tornava-se, com o tempo, mais e mais considerá­
vel : um edil cheio de vaidade e generoso, constrangia ò seu su­
cessor a ostentar.o mesmo fausto; e, assim, os gastos, de dia a'
dia, atingiam (406) proporções colossais (407) .
Citam -se ainda exemplos dum a m unificência grandiosa, em
favor do povo, subministrada por funcionários públicós, ou p o r
pessoas privadas (408) . No fim da República, encontramos o sis­
tema de liberalidades aristocráticas em pleno erplendor, de que

(405) Decreta in earn rem pecunia e pecunia m uliatitia. Veja-se, por exemplor
T ito L ivio , X, 23, 47; XXXI, 50; XXXIII, 42; XXXVIII, 35 ; XXXIX, 44.
(406) Como diz C icero, de o ff. 2, 16: intelligo in nostra civitate inveterasse jam
BONIS TEMPORIBUS, ut splendor, eed&itatum ap optim .is viris postuletur. T ito Livio,
XXXII, 7; XXXIII, 25.
(407) O facto deu-se e podemos citar alguns exemplos: a entrega de trigo e azeite
ao povo por um preço vil. T ito L ivio , XXXI, 50; XXXIII, 42. P l in io , II. H. N.
15, 1. — Pftóentes de dinheiro aos soldados. T ito L ivio, XXXIII, 23, etc. — Esta­
belecimento de 170 banhos às expensas do edil, P l in io , II, H. N . 36, 15, e de teatros,
Veli. Patere., 2, 130 (Muera Pompejij„ etc. Em muitos casos os historiadores men­
cionam a liberalidade, mediante a qual os edis obtinham a gratidão do povo, e se
bem que não digam que as faziam ai expensas próprias, pddemos admitir que assim se
deve entender, porque, essa particularidade constituía o mérit© para os historiadores.
(408) Distribuição de cereais, T ito L ivio , IV, 43. Viscerationes (Distribuição de
carne), T ito L ivio , VIH, 22; XXXIX, 46. Auct. de vir. ill., c. 32. Liberdade dos
detidos por dividas, Dionis., 4, 9, 10; T ito Lrvio, VI, 20. Veja-se uma coleção de
exemplos tirados de insicrições, em Kuhnr über die M uñera... (Espetáculos públicos
e comuns do povo rondano) ; na revista Zeitschrift fü r Alterthum swiss, 'de Cesar, 1854;.
liv . 1, pags. 11-15.
ís ^ ã ò s ocuparemos no Jivro seguiu té, por Jiao ser áiújda tempo
■j .çst 3. m atéria. ' .
¡fe V-oitémos, entretanto, à pergunta que apontámos inais 'açi-
‘ m a; J u | fazia o Estado para suavisar a sorte rilaterial das clas­
ses inferiores? Podemos, desde logo, assinaiaér como medidas
j^rincipais, p á ra a assistência púbMca, as segümtés:
, Concessão de térras as classés pobrés; qiier p a ra á f u n -
dáèão de colonias, quer como concessão do ager publicus En­
tre todos os meios, este foi o prim eiro, tanto eiii sua relação
' prática coirio na social, poíqüe desim pedia a cidade düma gran­
de parte da pobreza turbulenta* dando-lhe a base de urna eristen-
cia m oral. Os romanos consideravam a formação de um a colô­
nia como um a sangria social (40í>), e se o sistema dessas san­
grias periódicas continuasse, Roma não seria, mai$ tarde, vítima
de seus" próprios vícios. A aplicação do sistema de colônias re ­
m onta aos tempos mais antigos (410)>j^ como durante a Repú­
blica ás cònquistas aum entaram na j ^ f m a proporção que o pro­
letário, foi sem pre possível a elas récorrer. ^
2. A introdução da soldada foi oütra m edida anállogáí
"Quando as guerras cessaram por longo tempo* crescerám mais
os tributos, impostos à parte mais pobre do povò. Não se po­
diam m odificar as circunstâncias que produziam este estado de.
«cousas; m as a soldada subministrou o meiò de nivelar, até cèrto
ponto, á desproporção que disso resultavá, diminuindo, em de­
term inada proporção, as suas conseqüências. No anó de 348*, o
jpartido dom inante cedeu, neste particular, às reclamações da
^classe pobre (411) .
3. Á questão de cereais (412) tinha grande im portância. 409

(409) Do mesmo modo que o saneamento dos exgotos. Cic. de leg. ãgr. 2, 26 inf.
urbaham plebem exhauriendam esse; hoc verbo usus quasi de aliqiia sentina. Veja-se
também T ito Liyio, XXIV* 29, sentinam quondam urbis rati exhaustam. T igo L ivio , X«,
6, Roma quoque píebem quietam et exoneratam deducía in colonias multitudo prces-
itabat. V, 24— m ultiplex seditio erat, cujus leñiendae causa cotóñiam in Voléeos. quo
3.000 civium Kom . scriberéñtur, deducendam censuerant. Wachsmuth, die m í. Ge-;
js.eçli.. (Historia antiga da Estado romano), pag. 326 s.
^ (410) E ngelpregt de leg. agrariis ante Gracchos. Lugd. Bat., 1842, pag. 31.
(411)- T ito L ivio , IV, 59. A introdução da soldada; a divisão do agei publicus c
sa expedição de èolóriias èram, nèsse tempo, o desideratum e atrativo do povo. Trro>
Livio, IV, 36: Agri publici dividendi colorirumque deduccndarum ostentai s p e s ...
ip Stipendium , m ilitum .erogandi oeeris.
'(412) Vejam-se as obras citadas por Marquardt, ein Becker, H an db... (Manual de
.antiguidades rom anas), 3.* parte, 2.* secçãq, pagina 88, entre as -.quais recomendamos,
a E. Nasse,' Maletémata de publica cura annonae apud Romanos. Bonn. 1851.; veja-sé
também Rudorff. ' R. R. G. (História do Direito romano), I, § 18,. e Rubino, de Ser­
vian i census sum m is disputatio partic, 1, Marburgs 1854, donde o ^utor demonstra;
entré outras, cousas, que o .preço indicado em á3cs, nas leges, frumentarise, deve ser en­
cendido pelò as urna libra, que calculado na práticá conforme a taxa inuito módica,
-é equivalente a um sèxtérçio. O preço tão baixo, que parece até inacreditável, é citado’
nas passagens reproduzidas na nota 416, infduz a Schutz (Grundlegung. . . .pag. 509)
za. propôr arbitrariamente lêr, em vez de seris, sestertiis ; mas Rubino dá a explicação
verdadeira, nao sendo êsté' o menor mérito dêsse pequeno, mas precioso escrito. 4
Ó É3PíÍtÍTO DO D IR U T O ROMANO

Nélá,sos esforços d à àutoridade deviam procurar sempre iriaater,


tanto quanto fosse possível, o Equilibrio dos preços, ou, p e lo x
ìneiiòs, im pedir que as flutuações nos de cereais não atingfe^m
às eíãssfeS; inferiores. ^ Em épocas jiormais, a provisão dé ce^
réais era ila competência dos edis; mas, em circunstancias calá^
itóltewsasi;|fistitqíá-s^ Uni furicionärio especial'. {pimféjcias: çuin&-^-
nfe)^ pu?uma cpiuissão que. disso se encarregasse^ Tanto um -
éènió oiitra, /tinham i[)or principal dever combater ps efeitós>pér-
ihigosos do mõnopólio do trigo (413) ; e logo comprar, nó
é$trangpirõ, a 'suas .expensas e às. expensas do Estado, pór um
preço módico, sereais para distribuir aos necsesrtados . Ä prin­
cipio, não se fizeram distribuições gratuitàs, como sé praticou
nos fins da Republica, conforme um a lei de Cláudius. Mas o.
Estado,, ou o funcionário, faziam, quasi o mesmo, vendendo ce­
reais por menos ¡preço que o de seu custo. Isto não está somente
ditò em termos expressos (415), mas se pôde dar comojcerto não
se poder elevar, nem baixar, o preço de um as, sequei:, p ó r um
modius, como ó com provam diversas épocas ,
Êssç interèsséi na questão de cereais, rem onta aós pTiuiitH
vos téinpôs (*4*4i7) ; èm sua origem, tomavam-se. m edidas extráor-
dinárias somente em circunstânciãs realm ente calamitosas. O s'
dispendios, que acarretavam as necessidades de e h ta ò ,'tom á-
-yam-se exclusivämente encargos do . tesouro do Eàtadó r r e t í i - '

(4Ì3) Punindo, criminalmente os- açambarcadores.. T ito L ivio ,- XXXVIII, '35; TV,
12 : étjoibjiàendo irse pòpuli flamèntàrios:. Bein, Kriminàlr. (Direitó^criminal dos
manos) , pag... 329, -òu fazendo-lhes - baixar ps preços com a concorrência criada pelas
/distribuições ao povo, P ljn io , H . N . XVIII, 4. T iberio obrigou um diav aos comer­
ciantes dè séreais.a vender por um preço médio, suprindo êle à diferença:^ Tac. Ann..
11, 37 ,
(4i4) Num caso, extremos, # um Prefectos annona empregou uin meio violento,, mas
inteiramente inútil, ., para èsse, fim, como sucede com todas', as intromissões dessa
pécie. Ordenou que todo o mundo fizésse a daclaração de suas provisões e vendesse,
tudó p que excedesse do necessário' para o consumo^ dum mês. T ito L ivio , iy , 12'.
(415Í Plinio, .IT. N,,- 18, 4..,. frumentoni pópulo in modios assibus donavit .;
^ £416) Outro dos exemplos da nota 380, veja-se T ito. Li'vioJ XXX, 2G; XXXÍ, .4 {qua-
Jertiis aerís, 4/12 de as) ; XXX, 50^ e XXXIII, 42 (binis aeris, 2/12 de as). Epitoriie 60;
(lex frumentaria) de C. Gracchus: ut semisse et tríente i,3/6 .dé as) frumerititm* plebi
.daréntúr¿
O preço era muito ppùcd elevado, porque o da venda do trigo chégavá, nos tempos
favoráveis, até seis sextércios o m odius; três vêses mais que o preço 'à* que se vendia
ao p o y o ,-contandò-sè o as livre por um sextércio. De c0nformidade .com a- plhusivel
suposição de Rubino (l. c. nota 5)(, e^sa moderada avaliação do aes .grave se produ­
ziu, ‘pela primeira vês, precisamente, em virtude da distribuição dos sereais. Com um
inódius^ um adulto podia sustentar-se durantç uma semana, mesmo 'tomando uma- pé-«
quêna quantidade de outro alimento. Os soldados Tecebiam todos, os mêses 4 modius,
os cidadãos» nas distribuições da ^época posterior, 5, os escravos, no inverno, 4, é np
trabalho intenso, 4%; o villicus somente 3, porque o outro alimento era de qualidade
melhor. Cato. de ru st.,. Polibiò, 6, 39. O as tinha antigamente um valór mínimo, que
foi diminuindo sucessivamento; ias é imposssivel entrar-agora em maiores detalhes" sobre
o assunto.
(417) T ito'L ivio, II, 9 (246 antes de J.-C .), 34 (año 262: Si veterem annonam
voiunt) . Dionis., 4, 22. Auct. de Vir. ili., c. 7^ —
^reéndéii-se, fácilmente, que o Senado não autorizasse o auxí-
^ lio áo ceráriüm senão em circunstâncias urgentes e cobrando, de­
so ís, êsse fayôr (418*^ . Foi, pois* um benefício sensível, para as
^ á ã ^ s /ib fè rio re s , -quando* mais tarde, os edis cederam, por conta
própria, çéreais a baixos preços. Além dessas distribuições, da-
J ya-s^ gratùitamente pão a todo aquele que sé refugiava no tem-
de certo .biodo, a sede oíiçial dós edis (412>.
De? resto, a- solicitude das autoridades públicas sé extendía,
tam bém, a outros objetos de utilidade m ateriál, como, ]k>r exem­
plo. o sal* o azeite, os anhos, a condução dágua'e os m ateriais
de construção f420) . Com relação ao sal, instituiu-se, especial­
mente, desde *òs prim eiros anos da República, o monopólio, não
•com o intuito- de criar um a nova fonte de receita para o
Estado, mas para reprim ir a especulação do comércio com èsse
artigo (421) . No século VI, dois censores (um dos quais M. Li-
vius, foi, por èsse motivo, alcunhado de Salinator), estabelece­
ram um imposto sob as bases de que a venda do sal a varejo
estava arrendada por preços" que variavam nàs diversas regiões
•da. Itália, mantendo ó seu antigo custo em Roma (422423) .
4. A questão da divida. Já indicámos que a dívida tinha,
*ein Roma, unia im portância social extraordinária. Semelhante
questão, atualriiènte, não póde ter mais ö mesmo interesse. Não
existe, em nossa sociedade, classe que corra ò perigo de estar
.totalmente endividada, nein classe -qüe pòssa tirar proveito dás
adiyidás de outra. De mòdo diferente acontecia em Roma, onde
ra dívida toitìou um caratér de verdadeira epidemia, devastàndo
até as ínfimas camadas sociais, que pela sorte precária de sua
..situação econômica, eram quasi exclusivamente dominadas pela
•dívida. Está invadia, não isoladamente os particulares, mas a
toda uma classe, e is»to com irritante e periódica regularida­
d e C123).

(418) Tal era o firn »da proposição de Coriolano. Tito Livio, II, 44, 35; ibid. IV,
'12, regnò prope per largitiónis dulcedinem in cerotees accpplo.
(419X_ Non. Marc, de progr., sem i., 1, § 2(g. ^ Veja-se prenderé.
(420) T ito L ivio , V, 35; VI, 4. "T;
(421) T ito L ivio , IÍ, 9: Salís quoque uendendi arbitrium, quia iijipenso pretio
üenibat, in publicum omni sumiu ademtum privqtis. T ito L ivio náo se podia exprimir
-com maior clareza, e seu texto não necessita de esclarecimentos; mas' é incrível como
foi tão mal^ interpretado e a finura com que se tem desvirtuado esse autor. Veja-se ^
’D backenborch sobre esta passagem. Atribue-se a A nco Martius o imposto sobre o sal.
Àuct. de nir i l l . . . c. 5, assim como o primeiro estabelecimento de salinas, e pri­
meiro presente de sal ao público. P lin ., H. N. 31, 41.
(422) T ito L ivio, XXIX, 37. Não vemos em que se apoia a afirmação de R uperti,
H antfb... (Manual de antiguidades romanas) 2.a palie, pag. 383, de que o monopólio
•do sal foi abolido, na Italia, porque náo se funda em .nenhuma prova.
(423) T it o L iv io , VI, 36. Gregatim quotidie de foro addictos duci et repieri vi-
.nctis nobiles domos.
O ESPÍRITO %0 DIREÍTO ROMANO 175*

Já sabemos, pelo exame anteriorm ente feito, qué das noy#


tabula e das restrições da taxa de juros, qual era o procedimen­
to do Estado, em face da situação. Falta-nos ainda acrescentar
algum as palavras, relativam ente a um facto relatado por Tito
Livio (424L
No ano 403, o oiius da divida atingiu, novamente, intoleirá-c
veis proporções, a ponto de, segundo refere Tito Livio, o Estado
intervir, no intuito de conseguir um a redução. Foi nom eada
um a comissão, a quem se destinou um a certa parte dó cerariiim;
es'ta comissão pagou parte da divida,'contraida eiii home do Es­
tado, e parte foi liquidada por um acordo entre credores e de­
vedores, valendo-se, únicamente, para realizar esta operação, da
cessão de bens públicos, a baixo preço. Desta maneira, se extin-
guiu, a contento de todos, e sem perda considerável para o Esta­
do, uma dívida bem avultada. A solicitude e o auxilio do Esta­
do não se limitavam á medidas de carater geral, abrangiam toda
um a classe do povo; às vêses mesmo baixavam às esferas mais
íntim as da nécessidade do indivíduo. Assim é qué vemos ò Es­
tado agir dum mòdo quasi paternal, por exemplo, constituindo,
iias vendas públicas, dotes às filhas .dos cidadãos merecedores *
disso, mas faltos de recursos, ou áinda se ocupando da adm inis­
tração da casa de funcionários ausentes, etc. (425) .
E \ pois, um grave êrro crêr que o Estadio perm anecia indife­
rente ao bem-estar do indivíduo. Finalm ente, é esía a solução
do problem a acima suscitado: ò sistema da liberdade individual
não se apoia numa atitude puram ente negativa e indiferente do
Estado para com o indivíduo, mas tem fundamento, na vontade
positiva do Estado.
A idéia, que até aqui temos combatido, encontra a sua ori­
gem nesta observação: o Estado rom ano perm anecia compieta-
m ente passivo numa série de determ inadas circunstâncias, en-,
quanto que o Estado moderno tem por hábito iritervir, por meio
de leis restritivas, ou disposições de outra natureza, como, por
exemplo, o controle, a cooperação da autoridade, etc. Esta dife­
rença deixa uma impressão que dificilmente desaparecia, quando
se considerava, por exemplo, à atitude do Estado romano ''an^
tigo e o Estado moderno, no que diz respeito à tutela e à fam ília.
Mas é decidir precipitadamente, proclam ar o descaso do poder
público em tais assuntos. O segredo dessa atividade erá que
o poder público circunscrevia a sua intenção ao limite do es-
tritamene necessária. O estado receiava intervir, quer impòn-

(424) T it o L ivio , VII, 21.


(425) V a l . Ma x . 4* 4, § 6 e 10. F r o n t ., Stratcg., 4, 3, § 15. Auct., de nir.
ili., c. 4 0 . (Alimentos h mulher e filhos de Régülo) ; ib. c. 18, 24, 23 (Presente duma
casa e de um solar para edificação, e para erigir u m túmulo); V a l . Ma x ., 5, 1, § i
(Enterro às expensas do Estado). S eneca , consol., 12. Às vêses, angariavam-se, para
•éste fim, (donativos entre o povo; veja-se Auct. d% Vir. ill., c. 18, 3 2 .
i H BER I N G

djá restrições, quer levando o seu èoncurso (42e), quando ãjieces-


sid á d é d o momento toirnára indispensável essa intervenção. Não
i^ rj^ ré i^ que im punha a sua missão-. 0 Estado m ò^
¿¿ejrho,. ào eontrário, parte, da idéia fixa de que à sua intenção, q
séu cdntrolo, e tc ^ sao sempre necessários. *69

(426) Veja-se, além disso, o estudo sobre o futídamento do direito subjetivo, §


69 e s.
B. Poder e liberdade no direito *público
Ação livre da personalidade nas relações do direito .público. — Atri­
buições dos magistrados romanos. — Garantia centra os abusos do podér
dos funcionários públicos. — Prática do direito político. — Importância
da personalidade na magistratura.
F ateor in i s t a ip s a p o te s ta te iriesse
q u id ã a m m a li, s e d b o n u m qu od e s t
queesitum in e a sin e is to m a lo n on h a ­
b e r em u s .
^ ícero, de legife , 3, IO. , 103.

40. O contraste existente entre p sistema da liberdade e o


coercitivo, que estudámos no § 34, tanto abrange o dirèito pú­
blico como o privado. Se o dei tor se recorda da nossa exposi­
ção, verá que a idéia da liberdade, no direito público, não se
identifica, de mòdo algum, com a constituição republicana, por­
que o espírito da verdadeira liberdade não se escravisa a nenhu­
m a fórm a de governo; e muitas vêses abandona as repúblicas
p a ra instituir-se numa monarquia absoluta. Onde quer qiie o
poder público se erija em fonte exclusiva do direito e do poder,
absorvendo a liberdade e o movimento qué se devem dividir por
todo o organismo social, únicamente emanado do Estado, a pri­
vação da verdadeira liberdade, pelo poder público, não deixä de
ser um íoúbo, que a diminúi, do mesmo modo que é enfraque­
cida pela fórm a republicana, dando a cada individuo a parte de
autoridade homeopáticamente diluida. Já determinámos a es­
sência e a finalidade da ação livre da missão criadora da per­
sonalidade, missão, tendência e necessidade que a mesma, per­
sonalidade deve preencher, sem se lim itar somente ao estreito
círculo da^ existência privada. Qualquer que seja a esfera em
que a personalidade se agite, na vida publica, na arte, na ciên­
cia, conserva sempre essa mesma tendência. À m edida que en­
contra oportunidade de a realizar, nasce o am or à missão, que
encontra satisfação e ventura, precisamente, nos sacrifícios de
que tem de dar provas e nos deveres a que se impõem. A satis­
fação causada pela livre ação da força criadora, que infunde na
personalidade a chama divina do verdadeiro amor, comunica-
lhe essa força sublime. Arrancai-lhe a liberdade, tutelai-a, en-
volveia-a num a rêde de importunas restrições, e a exuberância
inexgotável de força de vontade expontânea, de que dispõe, toda
17# RUDOLF VON JHERING

abnegação e toda sua inteligêneia, perder-se-iam, ficando esté­


reis para a missão que lhes está destinada. Verdade é que ñas
esferas da atividade hum ana, ha situações inferiores e deveres
qüe, por sua natureza, excluem a ação livre e a faculdade criado­
ra, que não reclamam essa força e que só exigem serviços subal­
ternos. Mas quem os preenche, renuncia, de antemão, a tòda
inicia'tiva; o direito de dominar, não encontrará nos obstáculos
exteriores, um motivo de desagrado. Mas, de outra fórm a acon­
tece, quando, por sua natureza, a missão pressupõe uma ação
expontânea, e que um a desconfiança inútil vem, de cheio, res­
tringir e.contrariar essa expontaneidade pessoal. Conceder, ou
tolerar um poder, adm itir as pretensões que desperta, para lhe
tirar logo a possibilidade de unia inicia'tiva qualquer; destruir o
gérmen em sua origem, o prazer, o amor, o sacrifício que incita
a missão; destruir, nos caracteres vulgares, o sentimento da per­
sonalidade, para deixar que sejam como rodas de um a máqui­
na, instrumentos inconcientes da lei, ou duma vontade superior;
conservar, nos caracteres fortes, o ressentimento profundo que
provoca conflitos en'tre a missão a cumprir, os meios pelos quais
deve ser cumprida e a perm anente tentação de violar as restri­
ções que se lhes impõem, — tal é a razão do' sistema, até hoje
em voga entre nós, e gue caracterizam a tutela da autoridade, o
"temor à liberdade e o temor ao domínio da personalidade.
Através de nossas instituições circula uma corrente de des-
çonfiança; o poder absoluto inspira-nos terror; não encontrámos
tranqüilidade senão quando o abuso se torna verdadeiramente
impossível. O temôr à personalidade, o respeito exagerado* à re­
gra »morta e à instituição, que já indicámos como um sinal do
carater de nossa época, são os que se manifestam, não só no di­
reito público, mas em todas as nossas relações. Vejamos, por
exemplo, a situação dos funcionários públicos. Vivem subjuga­
dos pelo pesado fardo das leis, ordenanças, ou instituições que
guiam os seús menores passos, como se fossem cégos de nascença.
Onde a lei rígida é falha, Ou quando proporciona a oportunida­
de ser interpretada pelo funcionário, surge a desconfiança que
lhe entrava a ação, impondo-lhe a obrigação de dar um
parecer, subordinado à aprovação do chefe. Vejamos, em se­
guida, as nossas corporações. ìmpéde-se, pelo terror, o governo
' pessoal e expon tâiifêb dá corporação, para substituí-lo pelo siste­
m a de tutela do Estado! A própria tutela atual, não será uma
irrisão? Como o 'tutor é tolhido em sua ação, em virtude duma
Outra tutela superior! Em vês de dar a essa questão da perso­
nalidade a sua verdadeira importância, isto é, de só intervir com
as funções de tutor os homens que inspiram confiança; em vês
de p£g>curar as garantias necessárias de personalidade, de sol­
vência, etc., dá-se à instituição da tutela, em geral, um cara'ter
que, previsto para tutores inteiramente incapazes de cumprir èsse
encargo, paraliza por completo quem está à altura de sua mis-
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 179

«ão, tirando-Ihe todo Risentivo que pòssa ter para desem penhar
*essas funções; política funesta, que transpôs os limites do absur­
do, dispondo que o chefe dum exército em frente ao inimigo se
colocasse sob as ordens e autoridade duma chaincelaria distante,
-qúe lhe proíba empreender a batalha, antes de ser aprovado o
plano^concebido pela sua m entalidade guerreira.
O sistema romano apresenta, comparado ao sistema modera­
no, absoluto contraste. Os romanos sabiam qúe o Estado pode­
roso exige -membros vigorosos; que o Estado m anietado não póde
conseguir nada dé grandioso e que nem o temôr dum abuso pos­
sível, nem o de excesso de liberdade, deviam impedir-lhes dotar
a sua m agistratura de faculdades onímodas. Habituados sempre
a um desdobramento de força, não suportariam, na sua comu­
nidade, ã fraqueza, nem a impotência. 0 povo não exigia, de
•seus funcionários, a submissão, tím ida e modesta, m as lhe com-
prazia vê-los agir imperiosam ente; que refletissem o poder e a
p ró p ria magestade do. Estado, para cujo efeito se lhes conferia,
■de bom grado, o poder e as faculdades necessárias. P o l i b i o nota,
com razão, que o Estado romano, considerado pelo carater de
«eus magistrados, dá a impressão dum a m onarquia (427) . A ple­
nitude de poder, da qual os “seus funcionários estavam antigam en­
te investidos, não foi diminuida, desde o século IV até os fins da
"Republic'a, nem foi objeto de nenhum a censura. A democracia
não se comprazia, como atualm ente, em hum ilhar o poder do go­
verno, nem a autoridade dos funcionários, a pretexto do interesse
d a soberania do povo, o que indica quão form al era o poder livre
d e seus funcionários, e como só em Roma foi possível que magis­
traturas nascidas em princípios do século IV, pudéssem, por sua
p ró p ria autoridade, sem nenhum a intervenção do poder legisla­
tivo, extender, muito além dos limites primitivos, o círculo de
suas atribuições.
Êste respeito inato dos rom anos para com a autoridade, seu
^sentimento natural de disciplina e de subordinação, explicajn,
«uficientemente, sem que seja necessário rem ontar à m onarquia,
a popularidade que, em Roma, cercava o poder e a autoridade de
q u e gozavam os funcionários públicos.
Certa escola, como é sabido, considerava o poder rom ano
scorno um a instituição teocrática, isto é, como um a espécie de
alto sacerdócio (428), e não adm itindo que a idéia necessária da
au toridade pudésse nascer do simples conceito natural e m oral
das relações sociais, chamou a Monarquia em seu auxilio p a ra
poder coroar a m agistratura, sua herdeira, com o auréola dum a
consagração divina. Mas, ainda mesmo que compartilhássemos
dêsse modo de vêr o poder real, não poderíamos consentir que *423

(427) P olibio , VI, 11, 5 . 12, 9 .


(423) Gerlache e Bachofen , Gesch. (História dos romanos), tomo I, 2.* parte.
^ sê m p e n ^ p ap el. Ao lado dos cônsules, veídár-
¿Jeiros herdeiros da dignidade real, órganizaram-se, a pouco er
pouco, ouixàs m agistraturas, sém quo nenhum a delas tivesse, ein:
seu passado, Antigas tradiçõêá religiosas, nem mesmo àquêl%
qué, como o poder real, se revestiram da auréola divina e, poh
issó> tíveçám prestígio e autoridade. A içda mais, a função sa-t
cerdo tal, pròpriam ente djrta, qué era o apanágio do poder re a l
romano,, foi elevada^ à m agistratura p a ra sèr transm itida aõ reax
sàcrificulus. Portanto, éste èra um papel, tão- mesquinho como»
d que desem penhava èsse direito, do poder religioso dos reist
Algumas provas notáveis explicarão o poder dós funcioná­
rios rom anos. Desde já, convem ter em vista a independencia
absoluta e a espontáneidade dos m agistrados, em suas relações
com o povo. Ao nom ear um funcionário, o povo não adquiria:
um servidor, um inferior (minister), mas um senhor,'um supe­
rior (magister, p alav ra derivada de magnus) . A circunstância
de ser eleito por sufrágio popular, e que depois de tér resignada
suas- funções podia ser chamado perante o público p ara respond
der pela sua conduta, não tinha influência nenhum a sobre p po­
der que lhe estava confiado. Desde que se via revestido de suà:
dignidade, a natureza de suas relações com o povo mudava com­
pletam ente de car ater anteriorm ente à suà eleição, erà humil­
de, más, posteriorinen te, desprezava a quem lhe tinha sufragada"
ö home, do alto de suá posição. A vontade do povo já não lhq-
podia atingir. Era, juridicam ente, inam ovível durante o perío^
do de süás-funções; ninguém lhe podia im pedir de ter, no exer­
cício de seu cargó, únicam ente como guia, a sua própriá vontade.;
A vontade do poyo não se m anifestava senão corno elemento pu-/
^riamente transitório, que desaparecia com o ato da eleição e que?
tornava a sé reproduzir dentro do m esm o. ãnó.
Os funcionários tinham, certamente, em conta a vontade e*
os desejos^dn povo, m as a im portância que lhe davam, não ex-,
cèdia ao cuidado -que pódia ter p soberano dum Estado m onár­
quico. Quando tinhaiii opiniòes contrárias às do povo, não jfie^
cessitayam de seu concurso, e a história nos conservou á esté;
^respeito, vestígios e palavras (429), que m anifèstam úm quasi ah4
*s0 lütísm 6 . A ditadura é, como se sabe, entre as diversas magis~
traturas, a que, p ela plenitude de seu poder, ocupou 0 primeiro^
lugar . Parece tér sido a instituição que indicava a passágem dáS
República p á ra a M onarquia absoluta; e reconheceu que o regi^
me republicano, praticável em circunstâncias comuns, não o èra*
nas épocas extraordinárias dè conflagração geral, em que a con^
centração de todo poder público nas mãos dum senhor absoluto*,
era urna necessidade, sendo, também, o reconhecimento da legi-^
tim idade relativa do absolutismo dentro dum Estado livre.

(429) Va l . Max ., 3, 7, 3: Tacete quseso, Quirites, plus enim ego, quam vos, quieta
Teipublicee expediat, intelligo. Ibid. 6. 2» 3. C. 4, 1, 2. Auct., de Vir. ill., 58, | 8 0
O ESPIRITO DO DIREITO ROMANO i¿t

Mais limitado se apresenta o poder dos cónsules; mas, qual


não era a extensão de sua autoridade! Dependia de jure ao
consul convocar, quantas vêses o julgasse oportuno, as assém-
ilé a s do povo e o Senado i430)* convocação que não podia ter lu­
g a r contra sua vontade. Fixava o objeto da deliberação, e quan­
do suspeitava que o voto podia ser-lhe desfavorável, tinha a fa­
culdade d e dissolver a assemblèa, etc. Além disso, tinha à suà
¿disposição o tesouro público; o exercício desse direito, não de­
pendia, de mòdo algum, do concurso do Senado. Mais adiante,
»teremos ocasião de voltar sobre êste assunto, que diz respeito à-
situação das m agistraturas com o Seriado.
Assemelhando-se muito aos cônsules, por seu poder, vinham,
depois, os Censores, cujo direito de punir estava, é certo, limi­
tado ao gênero de penas que podiam aplicar, mas que, dè resto,
se distinguía tanto pela sua extensão como pela sua liberdade do
direito de provocação da assemblèa do povo. Tinham , conio é
sabido, a faculdade de excluir os cidadãos da tribu, do corpo de
cavalerianos e do Senado. Tinham, além disso, o direito de com­
p leta r o Senado por sua exclusiva eleição, de estabelecer os im­
postos C431), etc. ; em urna palavra, possuíam direitos de um ab­
solutism o perfeito.
A natureza do poder dos tribunos, em sua origem, foi ne­
gativa, porque consistia no direito de vèto contra as medidas
arbitrárias dos magistrados patrícios. Mas, com o andar dos
"tempos, souberam, não somente dar a esse vèto grande latitude,
como ainda lhe acrescentaram direitos políticos de m aior eficá-
cja,-notadam ente o do jus prendendo. Em sua origem, èsse direi­
to lhes foi negado, relativam ente às pessoas privadas da classe
pátrícia, porém, mais tarde, exerceram-no contra os próprios côn­
sules (432) . “A arogação tribunicia, para falar comb N ièbuhr ,
ultrapassou a dos cônsules, a do Senado, e ainda a do próprio
povo, porque os tribunos, mais do que representantes da nação
e do poder supremo, eram tiranos tem porários” . Um déles m an­
d o u prender o cônsul que interrom peu seu discurso; outro man-
doú, também, prender dois cônsules e outro, ainda, m andou «quei­
m a r vivos, nove de seus colegas! (433) .
Não somente é notável a extensão extraordinária desse po­
d e r, em todas as suas manifestações, mas, sobre tudo, o que é

(430) Quanto âs sessões do Senado, eles- se ajustavam aos usos. Veja-se mais
¡adiante.
(431) P o r ex e m p lo , L iv iu s S a lín ator, estab eleceu o im p o sto d o s a l.
(432) Veja-se T ito L ivio , II, 56, e III, 26. O proprio Senado facilitou a usurpação
-dêstes, que também intentaram, segundo refere G e lliu s , XIII, 12, amparar-se no jus
¿uocationis, pertencente aõs magistrados que tinham o Im p eriu m , usando, outrossim,
-exercê-lo contra os cónsules ; m as a usurpação caiu e a uocatio não lhes foi nunca
•concedida. —
(433) V al . Max ., 6, 3, 2. 9, 5, 2. C icero dé leg., 3, c. 9. Aur, Vict. de Vir. ill.,
4)6, § 9.
182, RUDOLF YON j HERING

mais admirável, è que os próprios direitos, mesmo os mais exces­


sivos, não eram submetidos à nenhuma condição, em virtude d a
manifestação do mesmo fenômeno, no terreno do direito priva­
do (434) . A condição tácita do ^exercício de todos êsses direitos,,
funda-se na existência de circunstâncias que legitimam o seu us<^
Mas, como nascèm essas circunstâncias e como se realizam ? Essa.
faculdade fica exclusivamente entregue ao arbítrio do detentor d a
poder, que poder-se-á enganar, mas, pelo mènos, lhe é perm itida
escolher o melhor partido. E mesmo quando o perigo não fos­
se consideravelmente diminuido, graças a influências que 'tere­
mos de examinar, contudo os romanos podiam confortar-se com
a reflexão que fazia Cícero, quando falava do poder tribunicio,,
que o mal é o preço d o ’bem (435) . As garantias constitucionais
contra o abuso dos tribunos, foram muito fracas, e até não exis­
tiam contra o abuso do vèto. De todas as m agistraturas, esta
foi a mais exagerada e combatida; no entanto, Cícero encontrou
palavras para justificá-la (436) . De facto, considerando de perto
o seu poder, o perigo contra os abusos que podia originar era
menos assustador de que aquêle que se manifestava sob o ponta
de vista puram ente abstrato. Que o tribuno leve a sua presun­
ção a ponto de prender um cônsul; que o censor arteiro riscasse
a qualquer um do número de senadores e de cavalheiros, e fi-
zésse entrar protegidos seus para o Senádo; que o cônsul, com
intuitos frívolos, dissipasse os dinheiros públicos e recuzasse, por
animosidade pessoal, proclam ar os magistrados eleitos pelo povo*
para o ano seguinte; que os aúgures, com um interesse de p artid a
político, descubrissem supostos vícios de fôrm a nos auspícios*
para enfraquecer as eleições, ou outros atos públicos, — todos
estes factos eram, abstratamente, prováveis, e ocorreram mais:
tarde," quando a arbitráriedade, despojada de pudor, não retro­
cedia ante a aberta violência das leis. Mas, então, ainda se
reproduziu, como veremos no livro seguinte, a conseqüência ine­
vitável de tais excessos, ou seja, a destruição do poder por si mès-
mo. Mas não nos devemos esquecer, no entanto, que estamos na
época antiga, onde as cousas se passavam de outro modo. N ãa
tiramos, pois, nenhum valôr às garantias constitucionais; exis­
tiram, mais tarde, mas não conseguiram reprim ir o mal, o que
prova ter havido outro elemento decisivo para impedir os abu­
sos, e èsse foi o espírito da época antiga. Quando unja ten-

(434) Poderíamos agora 'lembrar a tutela do antigo direito, da qual ainda não»
tivemos oportunidade de falar. A tutela, como sc vê, era, no antigo direito, uma re­
lação de poder ( j u s i n c a p i t e l i b e r e ), e, portanto, uma relação juridicamente livre..
O tutor não estava sujeito a nenhum limite ou restrição, e não podia sér cha mdo
a prestar contas de seu encargo senão quando resignava as suas funções.
435) De lag. 3, c. 10. S e d i n i q u a e s t in o m n i r e a c c u s a n d o p r & ' t c r m i s s i s b o n i s
m a lo ru m en u m eran o v itio r u m q u e selectio. S ani isto q u id e m m o d o vel con sulatn s vi­
t u p e r a b a i s est, s i c o n s t u l u m , q u o s e n u m e r a r e n o l o , p e c c a t a c o f l e g e r i s .
(436) Vcja-se a epigrafe deste paràgrafo.
O E S P ÍR IT O DO D IR EITO ROMANO 183

idênciá-má domina um a época, paraliza e enfraquece todas as fôr­


m as jurídicas, quaisquer que sajam ; e se a parcialidade e a ve-
nalidade se introduzem nos tribunais, as mais sábias leis tor-**
nam-se impotentes p ara coibir o abuso. Não há nada melhor,
pois, que se enum erem as garantias outorgadas pela Constitui­
ção, na época antiga; mas que se observem, também, nesses meios
exteriores, impotentes p ara alcançar seu fim, inspirando-se no
gênio que inflamou e dominou a antiga èra de Rom a.
Essas garaiítias constitucionais consistiam, dèsde logo, na res­
ponsabilidade que am eaçava o funcionário, na extinção de suas
funções, e depois ila intervenção dos tribunos e dos magistrados
superiores. Não é necessário observar que o funcionário não
respondia somente pela violação da Constituição e pela trans­
gressão das leis, mas até por seus atos e omissões, contrários ao
interesse do Estado, qualquer que fòsse, além disso, a legitimi­
dade exterior (437) . O direito de intervir, dado aos magistrados
da mesma categoria ou superior, é outra particularidade notável
da Constituição rom ana, porque concedia à força de resistência
puram ente negativa, um a influência como não teve em parte al­
gum a. Seu fim, que foi o de suspender toda m edida ostensiva­
m ente nociva, necessitava ter sido executada, ao mènos na ci­
dade de Roma. D aria lugar a perguntar-se se èsse direito de
intervenção não exerceu influência estacionária, e se não evitou,
m uitas vêses, de produzirem -se atos benéficos. Tudo dependia,
como fácilmente se compreende, do espírito em que èsse direito
fosse exercido. Se o vèto não era utilisado de conform idade
cóm o espírito da Constituição, mas como meio de proteção con­
tra m edidas.condenáveis em absoluto, não havia perigo nenhum
p a ra o livre exerdeio dos m agistrados. Mas, no caso contrário,
ise um a simples divergência de opinião, ou até um a sutileza, pro­
vocasse essa intervenção, tal meio seria a ruina do referido livre
exercício dos m agistrados; o princípio nocivo que trazia em si,
seria mais funesto do que o m al que se procurava evitar (438) .
Ninguém ignora que, frequentem ente, se abusou dêsse meio
p ara atingir outros que lhe eram extranhos; notadam ente, os tri­
bunos, afim de estorquirem concessões políticas, opunham o vèto
á m edidas’ necessárias, como, por exemplo, o alistam ento das

(437) E . L a b o u i .a y e . *E nsaio sobre as leis crim in ais dos rom


re spon sabilid a d e dos m agistrados. P a ris , 1845.
(438) O m esm o su ced ia com os o u tro s d ire ito s. Na época d a decad ên cia não
fa lta v a m evidentes exem plos de ab u so s, aos q u ais se resp o n d ia, p o r o u tro lado, com
a com pleta observação d a le i. (S u c to n ., J u l. Cesar, 20. Cic. a r a t t ., 44, 2 ). Exem ­
p lo s : ab u so do servare de coelo e do obnuntiarc (vitto re d iem . C ic. a r a tt., 4, 9 ).
C ic. a d a t t ., 4, 3, 3 de dom o, 15, 39, 40 dc h a r ro s p ., 23, 48. S ueton. I. c i t . Im pe­
d im e n to do voto do Senado p o r diem dicendo consum ere . Cic. a d a tt. 4, 2, c im pe­
dim en to de deliberação id ., 1, 18, 3, 21. D ificu ld ad es su sc ita d a s dc acordo com a,
execução do m andato de n o m e a r um d ita d o r. T ito í . iv io , epit. V ili, 12, 19.
R U D O L F YON JHEÍÍ'ING

tropas, ou a divisão dos impostos de guerra (439) . No entapto;¿


nao se poderia sustentar,-ao nosso vèr, que esta instituição pucLéã-^
se atingir: ao livre exercício das m agistraturas. É; isto se com­
preende. O uso tem erário do vèto continha o abuso dé funções*
um a responsabilidade e um a peha^. der mesmo modo que o exercí­
cio reprovável dos direitos positivos (44°) . Além disso, os meios d e :v
intervenção não eram , de facto, tão fáceis conio se podia iihàgl- s
n a r à prim eira vista (441), porque estabeleciam um a verdadeira
provocação do m agistrado*contra quem se dirigiam, e sem que
fòsse de necessidade não se podia recorrer a um a determinação
tão hostil, que levantava tantos clamores. A opinião pública criava
um a situação tão desagradável para o autor de um a suspensão te­
m erária, incom parável com a de qualquer outro funcionário,
em suas medidas positivas; porque não se tratava somente de
provocar um debate, era preciso sustentá-lo; a acusação sem mo­
tivos plausíveis, hum ilhava a seu autor, que até podia ser força­
do a retirá-la (442) . Assim, pois, o poder não era, na verdade,
tão perigoso como se apresentava na fôrma, abstraía.
Não tiramos, como anteriormente dissêmos, im portância de­
cisiva às garantias constitucionais contra o abuso das funções de
que falámos. Mas a garantia mais forte estava quasi sempre
fora da Constituição, e se encontrava no espírito da época, no
carater do povo, nos elementos e faculdade da vida rom ana:
Não temos necessidade de repetir aqui as considerações, que ante­
riorm ente fizemos, quando tratámos do direito privado; o que
então dissêmos se aplica a fortiori ao caso presente. Aquilo que
era certo no terreno especial, que nascia de um direito próprio e
que protegia o lar romano, era ainda mais verdadeiro para o
magistrado, a quem se confiava o poder público. E para garan­
tir sua m elhor execução se agitava sempre em plena luz da pu­
blicidade, sujeito a cada momento ao controle e à crítica dos con­
tem porâneos e das gerações futuras (443), accessível a todos os
(439) T anto é 'assim , que im p ed iram , d u ra n te cinco a n o s (de 379 a 383) a eleição
dos fu n c io n á rio s p a tric io s p a ra im p e d ir o acesso d o s p leb eu s ao c o nsulado. T ito
L iv io , V I, 35. i
(440) V eja-se, p o r ex em p lo , T ito L iv io , V, 29.
(441) V eja-se, p o r ex em p lo , V ellejt . P a terc .„ 2, 4 4 ; B bu lu s, collega Csesaris, ju m
action.es ejus m agis VELLET im pedire, quam POSSET (isto é, q u e n ã o ousava sen ão
in te rn á -lo ) m ajore parte anni do m i se ten u it. j
(442) T ito L iv io , XLV, 2 1 . . . perseepe evenisset, u t . , , qui a d intercedendum y e -
nissent, desisterent v ie ti a u ctu rìta tib n s suadentium legem, ib id e m , XXXI, 6. Lacera-
tasque ‘pro b is in senatu trib u n u s p le b is ; XXXI, 20, victu s consensu patru m tr ib u n a s
c e s s it ; XXXIX, 5, v ictu s ca stig a tio n ib u s trib u n u s. N o caso cita d o p o r T ito L ivio IV,
60, os trib u n o s o p u s e ra m seu vèto c o n tra o estabelecim ento dos im postos de g u e rra ;
m as se e n co n tra ra m n u m a v e rd a d e ira confusão, em v è r q u e e n tre os p o b re s e os ric o s :
( )
espreto trib u n ilio a u x ilio certam en conferendi tr ib u ti est o rtu m . Pas6avam -se m u ito s
a n o s sem que se a p re se n ta sse u m só caso de in te rp o r u n i v èto . T ito L iv io , IX, 33.
(443) R eserv av am esp e c ia lm en te ao m ag istrad o a p ro sp e ctiv a h u m ilh a n te d e v e r seu
s u c e sso r rev o g ar as m é d id a s p o r êle a d o ta d a s; veja-se, p o r exem plo, o caso citado
p o r T ito L ivio , IX, 39, o n d e sem elh an te reso lu ção fo i a co m p an h a d a de u m a severa
c e n su ra .
O E SP ÍR IT O DO DIREITO^ ROMÀNO 185

olhares e sujeito às influências e considerações de toda espécie,


tal era o poder público ('444j . O direito dava plena liberdade ao
funcionário, mas o laço invisível que o cercava por toda parte,
sem impedi-lo de fazer o bem, lhe evitava de cair na tentação
de' fazer o m al.
Essa. faculdade invisível, o amor à pátria, o espírito de ab­
negação e o respeito às tràdições latentes no coração do magis­
trado, eram as que faziam que a prim itiva Constituição rom ana
atingisse à: sua posterior pureza. Se eliminámos esses fatores,
para somente levarmos em conta, a estrutura externa da Cons,-
iituição, o direito fórmal, então, em verdade, essa Constituição
deve nos parecer a m ais im perfeita que tenha existido, e infini­
tam ente abaixo das m ais defeituosas das nossas constituições mo­
dernas. Mas, se assim já não a compreendemos, poderíamos ad­
quirir a convicção de que o valor de um a Constituição não está
na perfectibilidade de sua estrutura, mas no espírito com que se
a aplica. Êste espírito nenhum a lei podia invocar, nem criar,
porque o povo e a própria época são os que o criam, e onde o
legislador consegue o fácil m anejo de toda a sua engreriágem;
assim foi nos bons tempos dà liberdade rom ana. A lei não po­
dia ensinar ao funcionário qual o uso legítimo que devia fazer
de seüs direitos, nem quais as condições de seu exercício: o fun­
cionário devia sabê-lo, e sabia-o.
Póde-se afirm ar, sem receio de contradição, que o direito
escrito, tanto pelo número de leis, como pelo seu conteúdo, era
extrem am ente falho. Já vimos que a tendência à fixação obje­
tiva do direito se manifesta, geralmente, com mepos intensidade
n o direito privado, que no terreno do direito público. Encon­
tram os o motivo, em parte, na' diferença profunda existente entre
essas duas partes do direito, e em parte, também, nas circuns­
tâncias características d a história da Constituição rom ana,, es­
pecialmente no dualismo do patriciado e da peble. Aos poucos
sé vão encçntrando, na Constituição romana, elementos mais dis­
pares : restos do poder real, unidos a instituições de carater pu­
ram ente republicano, idéias aristocráticas e democráticas, três
assembléias populares diferentes, em um a palavra, um conjunto
extraordinário. Determinar, dom precisão mecânica, a respec­
tiva competência, introduzir novos poderes, prever exatam çnte e
regular a ação que as inovações deviam operar sòbre tudo isso,
foi p a ra o legislador um a das mais complicadas operações. Abs­
tração feita do sistema político da lei das XII tábuas, abolido com

(444)' Mesmo p a ra a in flu ê n c ia n a s delações, d e fa m ilia , p o r exem plo, p a ra a pa­


tria potestas (Val Max, 5, 4 . 5 . 5, 8, 3 . T ito L ivio , II, 41), os a gnados e os gentis
<veja-se, p o r exem plo, nota 348). Ao p ró p rio p o n tífice m á x im o ob rig o u -se p e la voz
d o povo, a fecb ar os olhos a n te certos p re te n d id o s o b stácu lo s d o d ire ito eclesiástico.
T iro L ivio , IX, 464, coactus consensu p o puli . U m em isor fo i tam b ém o b rig a d o a ceder
a n te a o p in iã o p u b lica, que se h a v ia re v o lta d o co n tra êle, p o r u m a to a rb itr á r io , a p re ­
s e n ta n d o a su a d em issão . Tito L ivio, IX, 29.
lió RUDOLF VON JEERING

a quéda do decenvirato, os romanos não procuravam nunca for­


m ular legítimamente a Constituição em seu conjunto. Com re­
lação à m agistratura, contentavam-se em limitá-la parcialm ente
(por exemplo, a respeito da provocação da assemblèa popular*
e da im portância da multa, etc). A introdução de novos pode-
,res nada mais fazia que lhe dar nova vida. Como êsses pode­
res influíram no conjunto, como se produziram junto aos já exis­
tentes, como se exerciam em proveito do Estado, eram questões
que deviam ser resolvidas pelos mesmos, a quem* se encarregava.
Isto é, ficavam entregues ao bom juízo dos favorecidos por seus
detentores, à força das circunstâncias e à sagacidade da prática.
Tendo, pois, em conta a exuberância e a variedade do desenvol­
vimento político de Roma, os m ateriais que a legislação lhe con­
sagrou, se reduzem a muito pouca coisa: ela coloca alguns gér-
mens muito frágeis que, sob a influência da vida, desenvolverão
as mais pujantes fôrmas, por exemplo, a censura. Isto foi o que
os romanos, por si mesmos, fizeram notar (445) .
Dir-se-á que aqui, como em tantos outros casos, o direito
consuetudinàrio veiu preencher as lacunas do direito não es­
crito; mas esta objeção sugere-nos uma observação muito im­
portante para a apreciação exata do direito político de Roma,
em geral, e para a situação dos magistrados, em particular, que
nos obriga a combater enérgicamente a opinião dominante. O
êrró consiste em confundir os usos e as tradições (mos, mores
majorum) com o direito consuetudinàrio. O direito consuetu­
dinàrio e o direito legal só se distinguem, como é sabido, pela
sua origem; quanto à sua fôrça obrigatória, é exatamente o mes­
mo; a desobediência a unia como a outra, contém um a ilegalida­
de e produz um a nulidade. Mas ó direito consuetudinàrio é pre­
cedido do estado de indeterminação, que já descrevemos, e de­
signámos com o nome de usos. Èsse estado, que nada mais é
do que uma /o n te da evolução transitória de certas regras, con­
densadas no direito consuetudinàrio, propriam ente dito, fica para
inúmeros casos como um estado perm anente, do qual não será
fácil dèsvencilhar-se.
Em face do direito consuetudinàrio, o uso parece uma coisa:
imperfeita, não acabada; mas tem nessa mesma imperfeição no­
tável proeminência sôbre o direito consuetudinàrio. Para cer­
tas relações, somente é possível o uso, que vae até onde a regra,
geralmente, deve ser observada' mas donde póde surgir a res­
ponsabilidade dum desvio motivado. E’, pois, somente a casua­
lidade que mantém constantemente certas regras nêsse estado de.

(445) IV, 8...


T i t o L iv io , rei A PARVA ORIGINE orttc, quae deinde Ionio in­
cremento, aucta est, ut m orum disciplinaeque Romanoc penes cam regimen, senatus equi -
tumque centuriae decoris dedecorisque discrim en sub ditionc ejus m agistratus, p u b li-
corum jus p riva to ru m q a e locorum uectigalia po p u li Rom ani sub nutu atquc arbitrio,
.
e sse n t
O E S P ÍR IT O DÓ D IR EITO -ROMANO 187

usos; mas perdem a utilidade, desde que se convertam em dis­


posições jurídicas, propriam ente ditas. Esta observação é apli­
cável, tanto às relações do direito público, como às do 'direito
privado. Ö exemplo da antiga Roma (tal como o da Inglaterra
dos nossos dias) «é bem adequado para nos dar um a idéia exata
da .im portância do uso, no direito público. E stava"na essência
do espírito conservador do carater romano, que concedia um a
grande influência aos precedentes políticos (exem pla majo-
ru m ) (446), e, que, em consèquência, fundou, fácilm ente, uma
prática política. Se a prática, na aplicação do direito civil, não
tinha força obrigatória absoluta (mesmo quando o princípio de
igualdade, como já notámos anteriormente, tivesse p a ra ela tanta
importância como para a administração teria ainda menos para
as relações do direito público. Existiam, certam ente, no direi­
to público, como no direito civil, certas disposições e regras que,
sem estarem prescritas pela lei, eram, no entanto, invariável-
mente aplicadas na prática; mas seria errôneo dizer que o mes­
mo sucedia para todas as regras da prática. E ’ preciso distin­
guir, mesmo no direito político, o direito consuetudinàrio pro­
priam ente dito (por exemplo, a incapacidade das m ulheres p ara
ocupar cargos públicos, a necessidade de observar os auspícios, a
impossibilidade jurídica de um a assemblèa popular, sem a con­
vocação de um m agistrado, etc.) e o simples exercício ou a p lá ­
tica do direito público.
O magistrado não era, ante a prática, nem inteiram ente li­
vre, nem desprovido de liberdade. Não era inteiram ente livre,
porque o poder lhe era conferido sob a condição tácita de que
não se separaria, pelo menos por motivos particulares, do cami­
nho seguido até então, e, por outro lado, conservava certa liber­
dade, porque se tornava árbitro dos motivos que lhe podiam obri­
gar, excepcionalmente, a não seguir èsse caminho (447) . Mas con-

(446) Há grande exagero cm e rig ir, com o n a h is tó ria dos romanos*, d e G erlach c
B achofen (tom o I, 2.a p a rte , p ag . 208), os precedentes como base ú n ic a do estado posr__
te rio r e com o ú n ica re g ra p a ra ju lg á -lo . Se sem elhante estado p u d é ss e conceber-se,
onde q u e r que fosse, o povo em q u e sucedesse, m ereceria s e r c o m p a ra d o ao re b a n h o
d e P a n ú rg io ; mas,*'até h o je esse povo sóm ente ex istiu nas visões, n o tu rn a s d u m en tu ­
sia s ta da im o b ilid ad e a b so lu ta, e n ã o seria p o ssív el, nem m esm o em sonho, tra n s p o r-
tá -lo a Roma, a quem h a ja estu d ad o , a in d a que su p erfic ia lm en te, a civilização d a ­
q u e le povo. Que seria ôsse fetich ism o , segundo o que preccdq, sen ão o q u ietism o cu l-
pável, a a p a tia vergonhosa, a su b o rd in a çã o cega d a vo n tad e de to d a s as -épocas se­
g u in te s, ao julg am en to d a p rim e ira , e, ao m esm o tem po, d a ú ltim a pe9sôa que recioci-
n a sse ? V ejam -se exem plos, em c o n trá rio , em T ito L ivio, XXXI, 9 : toties a n te . . . dc
pecunia certa, ii prim i de incerta; XXXI, 48, 49; V, 16: novo exem plo; patres . . . aucto-
res fuerunt; VIII, 16: petitum a consulibus ut extra sortem Corvi ea provincia esset;
o m esm o X, 24: omnes ante se sortitos; V ili, 23, ,26 i. f . : prorogatio im perii non ante
in itilo facto; IX, 3 0 ... quod traditum ab antiquis erat; X, 37: novo exem plo; XXXVII,
11; XLV, 21, etc. V cja-se a n o ta 4540 e s.
(447) Tal é a objeção que p o d eríam o s fazer, especialm ente a L aboulaye, ì . pag.
73, que, de resto, c aracterisa, cm excelentes tèrm o s, a situ ação . “ Em d ire ito , diz ele,
o m agistrado era enérgico; m as o costum e o e streitav a n u m circ u lo d e precedentes, do
mùito aos rom anos que somente assim sê agisse, quando,;,
'¿gexigiám razões e necessidades imperiosas. Afastar-se, de um '
% d ò irref fetido* sem causa ponderável, do uso estabelecr/lo, era
^ ím facto raro na épóca antiga, que exercia no povo tanta in-
dignação como a da violação da Je i (448) .
Isto induzia o funcionário a exam inar, em cada caso, se se-
r ia m ais conveniente ,e vantajoso, em benefício dò Estado, aban­
donar, ou seguir a tradição. Assim, devia ponderar cuidadosa-*
m ente todàs as circunstâncias e ter/ em ,conta a - diversidade do
valor intrínseco das regras seguidas em um a longa prática. Cer­
tas regras podiam parecer-lhes simples hábitos do povo, indife­
rentes quanto ao fundo (por exemplo, a órdem nos votos do Se­
nado) ; outras, ao contrário, eram a expressão de um a necessi­
dade política (por exemplo, a execução dos decretos do Senado).
Por outro lado, o peso das razões, que podiam ser postas na ba­
lança para justificar um a derrogação em tal ou qual caso, era
igualmente variável. Compreende-se, também, que a persona­
lidade dos funcionários, a sua timidês ou resolução, as suas ten-*
dências e opiniões políticas, deviam, exercer grande influência.
Mas o m agistrado jám ais podia deixar de ter em vista, que se
afastar do uso era um ato que chamava a atenção pública, e
havia necessidade de justificar que o fazia com a m aior boa fé,
porque, de outro modo, se não fosse logo. atingido pelo oprobio,
estaria sujeito à acusação, e, depois, a um a pena. Considerações
pessoais dêsse gênero, não podiam, certamente, hesitar àquêle
que nutria um verdadeiro amor à pátria, sem necessidade e sem
razões decisivas; m as èsse mesmo amor obrigava-o a ter cuidado
de não rom per abertam ente com o uso estabelecido. Quantas
regras puderam observar-se* durante séculos, sem serem derro-
gadas, até que um a extraordinária complicação de circunstâncias
perm itiu ao m agistrado delas se afastar! Se a prática se reves­
tisse de força obrigatória absoluta, semelhante ação constituiria
um a ilegalidade, à que o m agistrado não se exporia , sem o assen-
timento^do Senado. O modo pelo qual os escritores romanos
-mencionavam exemplos desta órdem, bem como as circunstân­
cias em que se produziam , prova que sem elhante idéia era ex-
tran h a aos rom anos. Tráta-se, no entanto, de dem onstrar a ve­
racidade da opinião que se acaba de desenvolver. Poder-se-ia
tentar opor à generalidade dos tèrmos mos e mores majorum.

q u a l lh e era im p o ssív el s a ir . Free by law, slave by custom ; e sta d iv is a do cid ad ão


in g lês e ra tam bém a .do m a g is tra d o romano^ que se v an g lo ria v a do g ran d e resp eito
p e la tra d iç ã o , e c o n sid e ra v a o co stu m e como u m a d a s bases m a is só lid a s do E sta d o ” .
(448) E is p o rq u e se c ita sem p re, como exem plo d o sen tim en to despótico d e T aâ-
•quino o Soberbo, o te r esq u ecid o a in tim a ç ã o de u m consilium p a ra a p ro n u n c ia ç ão do
ju lg a m e n to con d en ato rio . E n tre ta n to , essa re u n iã o e ra a do C onselho d e fa m ília , p a ra o
exercício d a ju risd iç ã o c rim in a l, p o r p a rte n d o p a i. E* p reciso ta m b é m c o n sid e ra r, so b
o m esm o ponto d e v ista , a o n o sso v è r, a ceiisu ra q u e se lh e fazia, a s s im com o, tam bém ,
ao s decenviros, de te r tra n s g re d id o o u so que o rd e n a v a a convocação do Senado.
o t j s p ír It ô do

empregados pelos romanos, e a alegação de que a palavra Tirios


e ra observada como lei. O que prova a fragilidade desta obje­
ção é a circunstância de qué mos designava, táüto o direito coii-
suetudiiiário, como os usos, no sentido acima explicado (449450) . Ò
único meio de atingir a verdade, consiste em exam inar a prática
ifomana em si mesma, em m atéria de direito político, que é; o que
vamos agóra fazer, é vér-se-á quais as conclusões que disto áe
podem tirais. .
E ra substâncialmente contrário à tradição que os m agistra­
dos, que para escolha de seus sucessores deviam convocar os co­
mícios, prorrogassem o próprio .mandato. D urante as guerras
púnicas, um cónsul transpôs esta dificuldade, com a m elhor in­
tenção, e o sèu modo de agir foi unânimente aprovado (43° ) . Se­
gundo a tradição, somente o cónsul podia designar um ditador;
mas os áugures o pérmitiam, também, aos tribunos m ilitares (451) .
Únicamente o Senado podia outorgar as honras da vitória; m as
quando, por espírito de cavilação, recusou a Postumius essas hon­
ras,. êste as conferiu a si próprio, e parte dos .tribunos as confir­
m aram (452). A exemplo dos magistrados, revestidos do im p e -
rium , os tribunos se árrogavam o privilégio de não ter a obriga­
ção de comparecer, em juízo, e a tradição foi, com efeito, esta­
belecida nesse sentido; mas quando um dos tribunos chegou, num
caso reprovável, a invocar essa prerrogativa, os seus próprios co­
legas o abandonaram, decretando qué à-tradição não se deveria
respeitar naquêle cáso (45345) . A respeito do voto no Senado, exis­
tía, desde muito tempo, Umá órdem tradicional estabelecida, que,
entretanto, diversos cônsules derrogaram (434) . O Senado, tam ­
bém, não hesitava em afastar-se da tradição, quando julgava ne­
cessàrio (455), e o próprio Pontifex m axim us devia decidir, mes-:

(449) A m os compreendia: ta m b é m preceitos sociais e d e a n tig a m o ra l rom ana,.


comiQ. reg ras de natureza p u ra m e n te • ju r íd ic a s . Is to é ' tão conhecido, q u e n ã o h a ne­
ce ssid a d e de a d q u irir p ro v as. E n tre tan to , citarem o s como exem plo, C icero <de leg. 2.
24 ; d è o ff ic . i , 35, 2, 19. G e l l ., V . 19. E se, além disso, se ju n ta r o te stem u n h o
im p o rta n te de. V arrão, que fo i m a n tid a p o r Servius e M acrobio, m o & -significaria o que
e n tre nós sig n ifica o uso, e ço-nsuetudo, o u so aceito e estabelecido pelo d ir e ito ,costu­
m e iro . Serv. a d aeneid. 7, 601: Morem ’esse communem consénsum om nium sim u l
h abitan tiu m , qui INVETERATUS CONSUETUDINEM FACIT. V eja-se ta m b é m A rn o b iu s
á d v . g e n t., 2 .' 22: fie l fa m ilia ris E" MORE CONSUÉTUDO in naturam v e r sa . M ácrob:
S a tu r. 3. 8 : m orem p re ced ere; seq ui consuetudinem ... ...
porseverantiam c o n su etid in is
tu liu s m oris, quod est consuefudó ¿
(450) T ito L ivio, XXIV, 9 . Tem pus ac necessitas b a lli de discrim in em sum m ae
reru m faciebant, NE QUIS A U T IN EXEMPLUM exqüirerct, e tc .
(451) T ito L iv io , IV, 31.
-.(452) T ito L m o , X, 37. N ovo ex em p lo . \
( 4 5 3 ) V a l . Max , 6, 1 , 7 . 6 , 5 , 5 .
(454) G e l l iu s , XIV, 7. O caso d e que se fa la foi p er am bitinem gratiam qtíe ; n o
en ta n to , o d ireito de fazê-lo. n ã o fo i negado ao c o n su l. * -
(455) V a l. M ax., 2, 7, § 15. TRIBUNO PLEBIS ADVERSANTE, NE ADVERSCS
.
MOREM MAJORUM a n im a d verteret T ito Livio, V, 16; XXIV, 9; XXXI, 6 e 8; XXXIX,,
3. 9 .
mö contra á sua Vontade, para satisfazer os desejos do povo (45®) v
Acèrba censura feria, pois, em Roma, toda infração sem motivo*
toda violação flagrante da tradição; mas ainda que fosse por
iodos criticada severamente, jám ais a acusação podia significar
a-ilegalidade do ato. Pelo mènos, èsse tèrmo não se encontrava
nqs autores, que, ao par das cousas, evitavam empregar uma *ex-r;
pressão incorreta (456457) . Mas outros autores estabeleceram u n i¿ :
confusão fácil de praticar, entre a tradição, a prática e o direito».
Seria admirável, desde logo, que não se encontrassem, éntre os
autores, divergências sobre questões de direito público, apoiadas
únicamente nesta confusão. Por exemplo, quando autores grê-
gos, como P o l í b i o , D i o n i s i o d e H a l i c a r n a s s o e P l u t a r c o admi­
tiam um a obrigação jurídica (458), o autor romano, .no modo de
vèr dos romanos da antiguidade, sabia que semelhante obriga­
ção não existia. O que para um parecia violação do direito,
para outro não era mais do que uma ação condenável em si, mas
,legal na fórm a. Não temos necessidade de fazer notar, como
essas divergências entre os autores, confirmam, por si só, a cer­
teza de nossa apreciação. Esta diferença, e, geralmente, a im^
pressão da perplexidade, da incerteza, que não nos abandona por
um só instante, no terreno do direito público romano, demons­
tram à evidência que o uso, cuja essência é precisamente a in-
determinação, reina soberanamente nesta m atéria (459460) .
Havia, em Roma, um poder em que a ascendência do uso se
manifestava mais que em nenhuma outra parte: era o Sena­
do (46°), convindo ao nosso . assunto exam inar as suas relações
com os magistrados, e, notadamente, com os cónsules. Em di­
reito, o Senado não era mais do que um corpo deliberativo; não
-era superior, m as inferior ao cónsul, e sobre isto, prováveí^

(456) T ito L iv io , IX, 46. Quum MORE MA JORUM negaret n isi consulem aut im -
qieràtorem posse lem plum dedicare. oa
(457) P o r exem plo. C icero in V at., c . 14: ln om ni m em oria omnino inau ditu m .
T ito Livio, XLV, 21. Novo mcdoque exem plo.
(458) P o r ¿ennuplo, p a ra sab e r se o consul p o d ia, sem um decreto do Senado,
receber ou ro d o E r á r io . P o lib ., 6, c. 12, § 5, c. 15. Zo rn a r., 7, 13. Como n ó ^ o s autores
m odernos n ão tiv e ra m em conta a observação acim a re fe rid a , a divergencia entre êles,
neste assunto , com o em ta n to s outros (veja-se R u b in o , Investigações, pag. 178. B ec k er ,'
J f a n d b ... (Manual d a s antiguidades romanas., tom o II, seg u n d a p arte, pag. 110). Todos
os esforços feitos p a ra co n ciliar as contradições a p aren tes dos textos, im pediram ,
p o r, m uito tem po, a c e ita r o ponto de v ista p o r nós estab elecid o .
(459) Seria em preza m e ritó ria, p ara os tra b a lh o s so b re o d ireito público de Roma,
p re c isa r todas as co n tro v ersias existentes, em vês de nos esfo rçar, como até aq u i se
tem feito, em d eso o b rir, p o r to d a p arte, p rin cip io s d eterm in ad o s e certos. Não nos é
possível m en cio n ar a q u i todos os m ateriais que reu n im o s, sem contar ain d a os que
estão incom pletos, m as podem os asseg u rar, desde já , a q u em se quizer ocu p ar de se­
m elhante tra b a lh a , u m a o p u len ta colheita.
(460) Q uasi to d a s as regras expostas so b re o Senado, são devidas, ao nosso vêr,
à p rá tic a e aos uso s, p o r exem plo, a obrigação de co n v o car o Senado e de seguir um a
certa ordem na em issão do voto, o efeito que tin h a o *enatus au toritas de g a ra n tir contra
um a acusação ao fu n c io n á rio que se conform a, etc.
Ö E S P ÍR IT O 9 Ì$ì

m ente, não existia nénhum a dúvida, se o mòdo pjelo qual essa


relação foi considerada não induzisse ao erro; mas as fôrmas,
com que o Senado revestia seus decretos (461462), bastam para de­
m onstrar a verdade, e todos os factos históricos, bem como as
expressões dos romanos, por sua própria natureza, projetam a
m ais intensa luz sobre^essa relação do Senado (46¿) . Compreen­
de-se, entretanto, que a opinião e as deliberações de um a assem­
blèa, que se com punha de homens eminentes pela posição social,
pela inteligência e pela experiência política, deviam ter, para os
funcionários públicos, bem como para o povo, grande autoridade
m oral. Somente o interesse do cónsul, por si só, bastaria para
que deliberasse em comum com o Senado, e a m anter com êle
ns melhores relações possíveis, afim de se proteger contra o povo.
Além disso, diligenciando no sentido de obter èsse consentimento
do Senado, conseguia firar, de futuro, disposições que, por sua
natureza, provocariam sérios debates (463*), e que somente assim
podiam afastá-lo do ódio (4C4), bem como do perigo de uma
condenação u lte r io r i46546) , ficando a mesma m edida assegurada
d e antemão a qualquer obstáculo, e sendo recebida de modo
distinto, çómq se ò cónsul a tivesse ordenado, como chefe, e em
virtude do poder pleno de que estava investido’t 46C) . E’ pre­
ciso acrescentar, além disso, que o Senado dividia as províncias,
organizava as legiões, decretava as vitórias, etc., assim, pois, um
m agistrado ambicioso tinha inúmeros motivos p a ra grangear as
graças de tão alta corporação. Compreende-se, portanto, que os
decretos do Senado encontrassem, em regra geral; por parte do
(401) Senatui placeré, uideri, senatum existim are, a rb itra ri, ecquam censere, etc.
E r i s s o n , <Ie voc. ac f o r m ., liv . II, c . 73, 78. Daí o p d ó p rio no m e do d ecreto: SENATUS
CONSULTUM.
(462) P o r exem plo, o caso re fe rid o p o r D ionisio, excerto 16, 16, eni que o consul
re p e lia u m decreto d o Senado, d iz e n d o : áXk» avxov rfjç ßouTlffe» c o u tro exem plo,
tam bém , d ás cênas, seg u n d o V a l; M ax., 6, 2, 2. 9, 5. 1, 2, onde o Senado suplico u ao
.Consul e êste não se d ig n o u re sp o n d er, ou m elhor, on d e o c o n su l fez a g re d ir u m m em ­
b ro ido Senado, em p le n a sessã o . V ejam -se as paissagens re fe rid a s , em R ubino, In vesti­
g a ç õ e s ..., p ag . 125 e seg u in tes.
(463) O m esm o m o tiv o d e te rm in o u o Senado a s u b m e te r ao povo questões quo
« o n stitucionalin en te tin h a o d ire ito de d e c id ir. V eja-se p o r exem plo, T ito Livio, V. 30.
Itaque NE PENES IPSOS CULPA E S S E T ... cogn ition cm . . . a d po p u lu m rejiciu n t, e VII,
20. IX, 30. R ubino, I. c ., pag . 273, 274. C hegaram a envia;* ta m b é m essas questões
ao m agistrad o , p a ra q u e êste d ecid isse p o r si m esm o (rejicere a d m agistratura). T ito
Livio, IX, 43.
- (464) T ito L iv io , V , 2 0 . Ipsum dictatorem fugere in vid ia m et eo; eo delegasse ad
senatu m . V, 2 2 : qui a d senastum m align itatis auctores queerendo rem a rb itrii sui re-
J e c isse t.
(465) T ito L iv io , V , 2 9 . Dois trib u n o s que tin h a m feito u m a intervenção ord e­
n a d a pelo Senado, fo ram , en tretan to , condenados depois, p o is com o disse T i t o L i v io :
pessim o exem plo, e èsse exem plo m o stra claram ente de q u a n to se rv ia a proteção que
.dava a au toritas senàtus. Os cónsules fô ram am arg am en te in su lta d o s pelo que fizeram
s o fre r: FIDE PUBLICA DECIPI tribunos, qui senatus auctoritatem seqnuti essent.
(466) M enciona-se o caso em que o m agistrato, com a m a io r bòa vontade, não
póde re a liz a r intenções p e rfe ita m e n te legais,, p o r lhe te r fa lta d o èsse apòio dn povo.
V eja-se, p o r exem plo, T ito L iv io , V ili, 15.
mesma consideração que o Senado concedeu, duitóì|ìl
^ídípériO j às ó r a tio n e s p r i n c i p i s . Finalm ente, q Sen ardq
■dÖsÄads influentes poderes políticos, quanto à forina; cèând^/^u|^
ê m á u a .situação abstrata tivesse autoridadqriielibçrati^^
é preciso, no entanto, pensar que o elemento abstrato rião lev;
vestisse nenhuma 'realidade prática, e que riem s e i h e d q v â tç ri
èm conta para caracterizar a ácão-- p q lífiéá'd q ,S e a iá |^ :^ .
ria inexato ainda nas épocas em que o Senado ña o áiingià cí:
apogeu do poder e, com m aior razão, nas épocas anteriores.
que demonstra a realidade prática desse elemento é o- de haver,
efetivamente, circunstâncias em que os funcionarios* não só ado­
tavam às medidas mais importantes, mais graves, sem a inter­
venção do Senado, em vista da plenitude de sèu poder, mas até
se colocavam em franca contradição com as intenções declara­
das pela assemblèa, rejeitando seus decretos ( 467) ( n o n e s s é in
a u to r i t a t e s e n a tu s ), e sem que semelhante m aneira de agir fòsse
considerada como ile g a l , ou nula, nem provocasse a m enor cen­
sura. Quando, por exemplo, a paixão política inspirava os de­
cretos do Senado (468), a opinião pública, com a sua p rep ò n d eí
rància m oral,' pendia p a ra o lado do funcionário, e este conse­
guia, na fórm a e rio fundo, um a vitória sobre aquela. F óra dês-
ses casos, a posição do funcionário contra as disposições do Ser
nado era difícil e sem esperanças de êxito (469) . Efetivamente,,
ainda que o Senado, por direito, não tivesse nenhum a autoridade
sobre o funcionário, os meios de fazer prevalecer a sua vontade
n ão /lh e faltavam nunca. O prim eiro de todos era (47°), asse­
gurar-se da cooperação de um m agistrada que, graças à süa Apo­
sição hierárquica, podia dom inar o recalcitrante. T al era a au­
toridade do ditador e dos tribunos sobre os demais funcionários,,
em geral, e o cónsul, relativam ente a todos, com exceção dossóis-
prim eiros. Se, pois, por exemplo, o mesmo cónsul não estava.
in a u to r ita t e s e n a t u s , o seú colega recebia a incumbência de no^
m ear um ditador (471) Se èsse terminavamo seu m andato, o po­
der dos cónsules_cessava e, portánto, q obstáculo desapareci^/
mas, se não cum pria a sua missão, ou dêsde o inicio fazia càusa
comum com seu colega, o Senado podia dirigir-se aos tribunos,,
convidárido-os a fazer uso de seu**direito contra os cônsules, parai

(4 6 7 ) V e j a - s e e m A p p i a n o d e b e ll o c i J, 1 9 . T it o L iv io , X e n i , 2 ; R u b i n o , 1.
pag. 128, n o ta 3 , c L a b o u l a y e , p a g . 3 4 , 3 6 .
(4 6 8 ) P o r e x e m p lo , c o n t r a P o s t u m i us-„ n o ta 4 5 2 , o u M e te llu s . 'A u ct. d e y i r . i l l u s t r . ,
c . 4 5 : quum per calumnian* triu m p h u s ei a Senatu nogaretur, dc sua sententiá in A lbano -
m onte tr-ium phavit. T it o L iv io , V II , 1 7 .
(4 6 9 ) C o m p a r e -s e , p o r e x e m p l o , o c o n f l i t o q u e te v e o - c o n s u l M .. P o p í l l u s com o .
S e n a d o . T i t o L iv io , X l I I, 8 -1 0 , 2 1 , 2 2 . *
(4 7 0 ) V e ja -s e o u tr o e m T i t o L i v io , X L II. 1 0 . Macedoniam decréturos neganí, ni
de M. P opillio refera iu r. P o stu la n tib u s ..deinde, ut novos .exercitas 'se rib eret, ut $np~
piem entum veterilús licerci, utrum que negatum est; V II, 1 7 , om nique Qpe im pedieban t ,,
ne qu id dictatori ad id bellu m decernereiur p a ra retiirve.
(471) J T ito L iv io , XXX , 24.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO m

obrigá-los a tomar a m edida reclam ada, ou a se dem itirem de


suas funções (diretamente por abdicação ou, indiretam énte, pela
nomeação de um ditador) (472473) . Os tribunos, como os próprios
cónsules, não eram obrigados, por direito, a aceitarem essa m is­
são; mas, compreende-se, sem esforço, que estariam inteiram en­
te resolvidos a assumir o encargo. Nós casos extrem os,-ficava
ainda ao Senado o recurso de declarar o funcionário inimigo da
p á tria (4™), proclamando a sua destituição do cargo. F óra dês-
ses casos, o Senado não podia afastá-lo de súa função, nem mes­
m o o povo podia fazê-lo. Se as circunstâncias não se prestavam
à aplicação dêsse meio extremo, ou sé os tribunos recusavam o
seu concurso, o Senado não tinha outro remédio senão esperar
o fim dó ano e contar com a complacência do novo sucessor (ve­
ja-se, por exemplo, nota 469).
Êstes exemplos são suficientes para explicar e dem onstrar
a nossa asserção sobre a força especial dos usos no direito po­
lítico.
Em qúe relação se achavam, quanto aò número, as regras
dè uso político com ás disposições do direito político? Eis um
ponto que não podemos demonstrar, porque semelhante prova
eqüivaleria a uma exposição completa do direito público de Roma.
Devemos, pois, cingir-nos à simples alegação, deixando o m ais
ao critério das pessoas competentes. Crêmos que a m aior parte
das regras, que foram aplicadas na vidà pública dos romanos,
constituíam usos públicos. Essa circunstância perm itia fa^er
justiça às diversas necessidades da época, sem exigir, a cada
passo, o auxilio dó legislador, a quem, por outro lado, seria ini-
fitám ente difícil acompàrihar em seu ritmo, de descrever o au­
m ento e o decrécimo quasi initerruptos, a expansão, e a concen­
tração dos diferentes poderes, a flutuação e o choque de èlemen-
tos diversos. A flexibilidade dos usos, a possibilidade jurídica
de descurar* excepcionalmente, das regras e máximas públicas,
nos casos em que a sua aplicação fosse contrária ao verdadeiro
bem -estar do Estado, evitaram aoè romanos de recorrer a um a
triste necessidade que se impõe frequentemente na atualidade;
a solução de um caso isolado, criando um conflito, entre as leis
existentes e às necessidades do momento, quer para m odificar,
ou violar, a lei, quer para sacrificá-la a um a nova necessidade
que se apresenta, pela prim eira vez, na. vida.
Estudando as .relações d a direio privado, demonstrámos a
ação restritiva dos usos, na liberdade abstrata; ao contrário, na

(472) Trro L ivio , IV, 26: ut dìctatorem dicere cónsules pro potestete Destra cogatis.
Os tribunos derairi » ordem mencionada aqui, pelo Senado, a possibilidade de extender
seu prensio contra os cónsules. Trro L iv io , V. 9: et colleges aut fcùcient, quod censet
senatus aut si pertinacias tendet, dictatorem extemplo dicam, qui eos abriré magistrata
cogat. As origens mencionam diferentes casos de demissão forçada. T ito L iv io , Vo 31;
V ili, 3, epit. 19, etc.
(473) Por exemplo. A p p ia n ò de bello civ ., I, 65.
194 RUDOLF VON J HERING

m atéria de que nos ocuparmos, demonstraremos que os usos, ape*


sar dessa influência restritiva, deixam, no entanto, a liberdade
um campó suficientemente amplo para se movimentar a vonta­
de. Exagerou-se muito a reduzida influência dos usos no direi­
to privado. As origens, às quais temos de recorrer, indicar-
nos-ãa sua insuficiência» especialmente em tudo quanto é rela­
tivo à vida privada, e a sua abundância, quanto à vida pública,
explicando-nos essa diferença. Os juristas, que trataram do d i­
reito privado, excluiram, com razão, de seü exame, o elemento
dos usos. Mas quem expunha as regras do direito público ro­
mano, não podia colocar-se sob o ponto de vista juridicam ente
abstrato, nos usos; para o segundo, era preciso ter em conta os
to, para fazê-la o objeto de seu estudo.
Finalm ente, o direito público era um mixto de história e de
estatística; o direito privádo era apenas uma teoria abstrata.
Para o prim eiro, tratava-se de não perder de. vista o direito
abstrato, nos usos; para o segundo, era preciso ter em conta os
usus em sua relação com o direito abstrato.
Conhecemos» entretanto, os diversos elementos objetivos,
necessários para caracterizar a m agistratura; estudámos, de um
lado, sua liberdade, juridicamente, e, de outro, as regras que
moderavam e limitavam o - seu poder. Mas, falta-nos ainda
um elemento essêncial para term inar o quadro, isto é, o elemen­
to puram ente subjetivo, o da personalidade do funcionário.
Tal como para os de direito privado, a maior parte dos po­
deres públicos se manifestam, sob fôrm as amplas, elásticas, que
permitem a quem a detem, uma atividade mais ampla, sendo
a personalidade do referido funcionário a que fixa a siia exten­
são. Êstes poderes formam, assim» um contraste admirável ôom
os do Estado .m oderno/ que são mecanismos tão independences,
como praticáveis, da personalidade do individuo, e que, ainda
que sejam sempre variáveis, devem produzir constantemente'
idênticos resultados, fôrmas restritas, fixas, limitadas, que, em
vês de se adaptarem à personalidade, tornam-se dela prisionei­
ros. Em Roma, ao contrário, os resultados, bem como o fim
dos poderes públicos, dependiam essêncialmente da pessoa que
os exercia, graças* ao carater especial que êsses mesmos poderes
souberam im prim ir à personalidade» e como dela tudo espera­
vam, nada mais desejavam que o seu livre vôo. O gênio do seu
detentor governa êsses poderes; a sua extensão, a sua elastici­
dade permitem ao carater enérgico desenvolvê-los, fácilmente, e,
como o vestuário da fábula, tornam-se estreitos à medida que o
carater do.hom em baixa. Sob o ponto de vista abstrato do di­
reito, todo o poder que decorresse de um a única magistratura, de­
veria sempre se m anifestar do mesmo modo e com o carater
que revestia a quem prim eirám ente veio a exercê-la; mas, em
verdade, afforca moral de quem exercia a magistratura, determ i­
nava o seu poder. Um carater fraco, tímido, irresoluto, não ou-
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 19S

sava exercê-lo em toda a sua plenitude; de resto, era impotente


para fazê-lo, porque o poder exigia corágem a toda prova e pul­
so de ferro. A fraqueza do m agistrado comprometia a autori­
dade da m agistratura por inúteis concessões (4744756) ; afastava-se da
luta, mas quando a aceitava, deixa-se vencer. Quando» porém,
aparecia um homem altivo, de alma vigorosa, .dominando com seu
gênio a própria função, demonstra a dignidade e o poder dessa
magestade! Revivia direitos que, após séculos, os seus predé-
eessores não faziam prevalecer (473), restabelecendo pretensões
novas e revelando outras, que, até então, tentaram dom inar; res­
tabelecia e realçava o brilho da função, dilatava o seu vôo, e du­
rante longos anos, seus sucesores colhem os frutos, da passágem
de tal homem, pela m agistratura de um a n o . Que era, por exem­
plo, a censura» quando foi instituida? «Como se a vê um século
mais tarde! Qüem a fez tão poderosa? O apoio, o concurso do
legislador?' Foi, únicamente, o poder da personalidade. Cada
vês que um cara-ter forte se apoderava de suas funções, desen­
volvia, dilatava a sua ação. Nenhum a lei poderia criar seme­
lhante instituição e ninguém conseguiu m antê-la, quando os anti­
gos censores desapareceram . A intrepidez, a austeridade, a rí­
gida m oral dos censores, a sua própria dignidade, que eram os
títulos de valimento para o povo, form avam o núcleo de insti­
tuições de que tiravam a -sua força e o seu poder, sem os quais
nada eram . Dizemos, atualmente, que a função faz o homem;
mas, para o mundo romano* invertia-se o adágio — era o homem
quem fazia a função que desempenhava (4™).

(474) Veja-se, por cxemploi, em T ito L ivio , III, 26, a atividade dos cónsules, re­
lativamente ao jus prensionis, reclamada pelos tribunos. Se, nesta época, outros homens
estivessem investidos dessa função, certamente repeleriam a arrogante pretensão do
tribunos. Que diferença no modo pelo qual muitos cónsules se utilizavam da autori­
zação que lhes havia dado o povo, ou o Senado para firmarem a paz! Alguns con­
cluíam o tratado sobre as bases que julgavam convenientes, sem reservas e sem se re-
ferir, desde logo, ao Senado (Vejam-se os exemplos em R ubino , /. c.„ pags. 267, 268),
enquanto que os outros não ousaram fazer usò de seus plenos poderes, senão reser­
vando ao povo a decisão final. T ito L ivio,, XXX, 43, 44.
(4 7 5 ) T it o L iv io , XXVII, 8 , dá um exemplo muito interessante. O flamon dialis
tinha, desde a antiguidade, assento e voto no Senado. Durante muito tempo não se
tinha feito uso desse direito ob indignitatem priorum f lami num, até que uma persona­
lidade respeitada e decidida se investiu no cargo e sc atreveu fazer uso desse direito,
triunfado a oposição que desde logo se lhe fez. Somente com èsse direito que recon­
quistou, conseguiu realçar infinitamente o caráter da função. Não houve mais uma
voz para proclamar, como refere T it o L iv io , que s ó a personalidade do flainen decidiu
.a questão (magis sanctilate vitae, qíiam sacerdotii jure obitinuisse) . Veja-se também o
exemplo de Scipião. T it o L iv io , XXXVIII, in. f ., de Cesar., S'uetonio, Coesar, 2 0 .'
(476) T ito L ivio , IV, 8, atribùi aos patrícios, desde que se introduziu a censura,
a seguinte reflexão: futurum ... ut mox OPES EORUM, QUI FR/EESSENT ¡PSI HONORl
JUS MAJESTATENLQUE ADJICERENT Catão era um homem dessa tempera: a consi­
deração de sua personalidade deu-lhe a vitória sobre todos os concorrentes dft pres­
tigio (T ito Livio, XXXIX, 40, 41), que não se. podiam comparar com êlc (ibid. c. 44).
As vezes, sem dúvida, a energia degenerava também cm obstinação audaciosa, como
.aconteceu com Appius Claudius. T ito L ivio , IX, 33, 34.
R Ü D O L F~ VON JHERÌNG

- J a dissemos, maijs acima» que o exercício do cargo se rega­


lava, essêncialménte, de acorda com a força m oral de quem a
revestia. Esta asserção se encontra admiravelmente confirm a­
da na dependência que, entre si, tinham os diversos poderes pú­
blicos. O que precede, fixa qüe já háyia nisto um campo fértil
pa ra conflitos de toda espécie. Còm efeito, os domínios dos
diversos, poderes, compostos - de elementos políticos heterogêni-
cos, êntrechocam-se de um mòdo exranho. Seus limites, quasi
sempre, eram pouco definidos, e *até seu campo de ação, funda­
do num a convenção tácita e na tradição* não excluía a possibi­
lidade de uma extensão de poderes sobre os dos outros funcio­
nários. Além disso, o direito de intervir dava motivo para usur­
p a r o domínio incontestável dum poder imediato. O im portan­
te era saber, nessas constantes ocasiões de conflitos (477), quais
os que se desisteressavam . Sua própria diversidade fazia, fre­
quentemente* com que a solução fosse diferente. A um a perso­
nalidad^ que conseguia se im por, tolerava-se o que.jám ais se per­
m itiria a outras; nem se pensou jam ais em aplicar-lhe medidas-
coercitivas, que não se hesitaria aplicar aos demais. Sucedeu
que dois censores, em virtude do mesmo ato peculiar à sua fun­
ção, um foi acusado, enquanto que não se ousou incom odar o
“outro, que se im punha pela sua posição e pela sua altivez, de­
vendo o prim eiro a absolvição à atitude enérgica de seu co­
lega (478) . E* igualm ente certo que o resultado da ameaça, com
a qual um m agistrado procurava intim idar a outro, dependia in-
teiram ente da relação das forças morais de ambos. Im potente e
despresivel num caso, a am eaça atingia o fim colimado em ou­
tro (479480) . Umas vêses, era o tribuno que obrigava o cónsul a ce­
der, outras, o cónsul que dom inava a vontade do tribuno V de
seu próprio colega (4®°), e. ainda outras, a imposição de um eho-
cava-se com a am éàça do Outro.

(477) Deve ser tomada em consideração, a excelente nota de L àboulaye , l. c ., pag.


75. “ Êsses. poderes independentes, diz êle, os cônsules, os tribunos, o Senado, se en­
tendiam entre si, como atualmente as Camaras e o Poder executivo; os cónsules pro­
curavam manter-se sempre in auctoritate senatus, è o Senador por sua vês, ..esforçava-se
.em conservar o bòm entendimento entre os tribunos e os cónsules: Foi poderosa a
suà coesão, mas Cada um ficou seni força, desde que cessou a harmonia de vistas, e isto
só se explica por meio de uma série de transações; de concessões mútuas, de perpétua
contem porisaçãon.
(478) 'Auct. de Vir. illust. c. 57: ob quod a populo collega ejus Claudius {NAM
ÌPSUM AUTORITAS TUÈBATUR) reus factus et quqm eum dues classes condemnass'ent„
Tiberius juravit, se cum ilio' in exilium iturum ; ita reus absolutus est.
(479) Compare-se, por exemplo, T ito L ivio, IV, 2$, e V, 9; VIL 3 in f.-
(480) Veja-se, por exemplo, F lorus, epit.. 2, 2, § 17. T ito L ivio , II, 56: IV, 26i
XXXVIII, 54 : Cato tribunos actõritate deterruit. Veja-se também T ito L ivio , épit. 19
ibid. XXXVIII» 19; El ia senatu et ad populum magnis contentionibus certatum est et
imperia inhibtía ultro citroque et pignora capta et multae ei tribuni appellati et provó-
catum, ad populum est. Religio ad postermum vicit, ut dicto qudiens esset flam en
pontifici.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 197

CKditàdór, para repelir os desígnios da plebe, declarava que


ia organizar um a leva de homens e expulsar da cidade os descon­
tentes; os tribunos, por sua vês, replicavam com o plebiscito, im ­
pondo um a m ulta de meio m ilhão (481) . Imediatamente o fun­
cionário não se atrevia a levar a efeito a ameaça e deixava con­
sum ar-se o que desejava im pedir; outras vêses, não recuava (482) .
Os-censores tinham o direito de organizar a lista do Senado, sen­
do intim ados para redigi-la; mas, dèsde que a lista ficasse reor­
ganizada, arbitràriam ente, os cônsules declaravam que a não re­
conheciam, substituindo-a pela lista anteriormente organiza­
da (483) . Em outra ocasião, um Pretor, no exercício dé suas fun­
ções, não se levantou, no momento em que passava o cônsul
JE milius Scaurus; éste, que era um homem violento, não somen­
te m andou rasgar as vestes e quebrar-lhe a cadeira, como ainda
baixou um decreto, em virtude do qual proibia que. dessa data
em diante, alguém se dirigisse a èsse Pretor pára solicitar justi­
ça, órdem que, no fundo, eqüivalia a destituição das funções,
que o povo lhe havia conferido (484) .
Nos dois últimos casos, a justificação formal de semelhante
m edida era muito duvidosa.
Não queremos multiplicar os exemplos, uma vês que as nos­
sas explicações precedentes já patentearam a importância do ele­
m ento pessoal para a m agistratura em dois pontos im portantes:
a tradição e a relação do m agistrado com o Senado. Atingimos
o nosso objetivo e demonstrámos que a ideia do poder e da li­
berdade, são a expressão legítima e necessária do sentimento-da
personalidade, tanto no direito público como no direito priyado.
Se fatigám os o leitor com os rodeios que fizemos, temos um a
dupla desculpa a pedir. Prim eiram ente, essa idéia Constitúi a
essência de todo o sentimento jurídico romano, e exige mais
atenção que nenhuma outra, quando se examina a constituição
da fam ília, ou do Estado, qué sómentè existia para protegê-la e
realizá-la. Por outro lado, faz parte de nossos planos apresentar
um a época que, como a nossa, desconhecia, fundam entalmente,
na ciência e na vida, o direito e o prestígio da personalidade,
espêlho em que se reconhecem o verdadeiro e o falso. Não pre­
tendemos que o sistema romano antigo pòssa e deva ser por nós
seguido; sabemos, muito bem, quanto èsse sistema, por seu pró­
prio caráter, estava ligado à antiga Roma, a seus homens e às
circunstâncias. As considerações finais do parágrafo seguinte
proporcionar-nos-ão melhor oportunidade para demonstrá-lo.

(481) T ito L ivio , VI, 38.


(482) Compare-se, por exemplo, T ito L ivio , Vili, 15 Vellej. Patere 2, 92, e Geli.
TI, 9.
(483) T ìto L ivio , IX, 30.
4484) Auct., de Vir. ili., c. 72.
C. Importância histórica do sistema da liberdade

Idéia abstrata da liberdade e sua importância no direito privado. —


Independência destà abstração com relação à vida. — Fecundidade do
movimento autônomo do comércio jurídico. — Aspecto moral do sistema
da liberdade no mundo romano.

41. Podemos agora passar em revista e julgar o sistema


completo da liberdade. Crêmos poder deixar ao leitor o cuidado
de reunir em um quadro, os caracteres indicados na exposição
que precede. Os resultados adquiridos, permitem-nos erigir èsse
sistema de liberdade, num fenômeno histórico, cuja im portância
vamos exam inar.
Pelo conceito que formámos do sistema da liberdade, pelas
observações feitas, devemos evitar dous extremos: o de perder de
vista, ao falar do direito abstrato, os usos e as realidades da vida,
ou o de esquecer o direito abstrato, ao ocupar-nos destas últi­
mas . E’ tão indispensável conceber a liberdade jurídicaem seu
rigor abstrato, isolando-a das relações, das influências, e^^os laços
que a ligam à vida, còrno vèr, depois, todo o valôr que mantem
com essas forças de facto.
Mas esses dous pontos de vista devem ser rigorosamente dis­
tintos. Foi a bela lição que nos deram os romanos, em cuja
utilidade não nos poderemos nunca inspirar suficientemente. Seu
mérito imperissível foi dé ter distinguido o direito abstrato das
realidades de vida. Foi o primeiro e indispensável passo para a
fundação do direito privado. Foi-lhes preciso, por isso, ao form u­
lar a idéia jurídica abstrata da liberdade, não se deixarein sedu­
zir pelos aspectos naturais e morais da vida, de que estavão tão
compenetrados, pela manifestação exterior da liberdade, bem
como para as múltiplas influências e restrições que, por toda
parte, dominavam.
Dissemos que os romanos, assim, atingiram a verdade abso­
luta. Imitando-os, <é preciso estabelecer e desenvolver, a priori,
a idéia do poder e do domínio, considerando todo o direito pri­
vado» e a cada uma dessas relações, únicamente, sob o ponto de
vista dessa noção. Analisar essas relações, no sentido jurídico,
é isolar o conteúdo da fórca jurídica abstrata. O direito, em seu
tòdo, é uma emanação do poder e da vontade, revestido duma
fórma concreta e determ inada. Não há relação jurídica em que
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 199

se devam achar. O jjurista não póde, certam ente, emitir outras


,noções m orais, políticas, etc., porque, de outro modo, privar-
se-ia do meio eficaz de compreendê-las m elhor; mas para a abs­
tração das^ idéias jurídicas, é forçoso não as tom ar em conside­
ração. Neste,particular, a jurisprudência de todos os tempos se
inspirou nos romanos. Não era o pendor inato p a ra a abstra­
ção jurídica que lhes transm itia esta ciência, mas o amor acetì^
drado e forte pela liberdade, que era pujante em Roma. P ara
o romano, o direito privado era o código fundam ental, a Magna
Charta de sua liberdade pessoal sem existir, que saibámos, idéias
e fins mais nobres, que êsses sentimentos, ainda quando o mundo
pudésse e devêsse tirar, nêsse sentido, proveito das conquistas
realizadas pelos romanos. Outros povos teriam considerado a
vida sob um aspecto mais poético; ainda outros, talvês, pudés-
sem jactar-se de uma brilhante elevação m oral; mas o Direito ro­
mano, por prosaico que seja, foi o único, também, que descobriu
o direito privado, conquista que atualm ente constitúi o patrim ô­
nio de todos os povos. Não exageremos, nem se diga (como re­
centemente se sustentou) que o Direito rom ano é o direito abso­
luto (485) . Há, no Direito romano do período presente, como do
seguinte, muitos elementos puram ente nacionais, que somente
têm valôr para Roma, e estão ligados à fórm a histórica transi­
tória, revestindo toda verdade» quando, pela prim eira vês, apa­
recem. À posteridade pertence separar o transitório e acidental
do eterno e verdadeiro. A idéia absolutamente justa, que o Di­
reito romano corporificou, foi a de que todas as relações do Di­
reito privado são ralações de poder. O poder da vontade é o
prism a da concepção do direito privado e toda a teoria do direi­
to privado teve por único fim descobrir e determ inar o elemento
de liberdade e de poder, nas relações da vida. A medida, a ex­
tensão* a fórma, segundo as quais as diversas' instituições reali­
zam essa idéia de poder, não são mais do que elementos nacio­
nais e efémeros dp Direito romano.
A prim eira parte desta asserção está longe de encontrar uitia
aprovação geral. E’ um facto pouco lisongeiro para a atual
conciência jurídica. Muitos autores, não sómente perderam de
vista, mas até consideraram como um êrro e um a falha do Di­
reito romano, não apreciar uma verdade que, desde longo tempo,
o bom senso dos romanos lhes revelou. Censurou-se, com efeito,
o Direito rom ano de desprezar o elemento m oral, nas constru­
ções das relações jurídicas. A mesma censura condús, direta­
mente» à negação completa da jurisprudência. E’ da essência
desta se abstrair, nas relações do direito, de tudo quanto não é
jurídico; assim, tudo aquilo que se afasta da noção do poder,
não tem carater jurídico.

(485) G. Lek z , Ueber die Gasch.. Entsteh. (Sobre a origem histórica do direito).
Greifst e Leipzig, 1854.
E’ incontestável que idéias e considerações tão vârias, tàis;
como o interesse do bem público, da m oralidade, etc.,, póssaip|
prevalecer na criação legislativa dum a relação de poder. Mas§:
juridicam ente falando, a influência que semelhantes idéias proi.
curaram exercer, não consiste em confundir, com outra relação
de poder, um elemento que lhe seria extranho; e que m udaria
qualitativamente o seu objeto, sempre que o podei; dá vontade
pòssa produzir outro resultado que o de se justapor às relações
jurídicas, para lim itar a sua ação. Q conceito m oral de um a
instituição, varia segundo as épocas; as transformações, que nela*
se introduzem» podem m odificar completamente o seu aspecto
jurídico.- Juridicam ente falando, só se póde form ular èsse facto,
deste mòdo: a diversidade na soma de poder contido ha institui­
ção. Assim, as diferenças sobre a tutela, a autoridade do pai so­
bre os filhos, e do m arido sóbre a mulher, no antigo direito e no
direito atual, se reduzem, quando se lhes quer qualificar juridi­
camente, a uma diferença quantitativa do conteúdo potencial
dessas relações e à introdução de outro poder que aspira as mes­
m as vantágens (o do m enor, do filho, da m u lh er). Seria crássa
ignorância dizer, qüe essas relações não são mais que de autori­
dade, e que a idéia prosàica de poder, cedeu a um a idéia mais
nobre, desconhecida dos rom anos.
Não se deve perder nunca de vista que a finalidade da rela­
ção teve sempre como objetivo a própria utilidade do titular
do direito. O funcionário exercia o poder, únicamente, como re­
presentante do Estado. Poderia èie, por èsse motivo» im pugnar
o poder, em toda sua plenitude? O tutor da antiga Roma, zelava
pelòs interesses de seu pupilo, e às disposições legais obrigaram -
no à cum prir èsse dever (postulatio suspecti tutoris, actio ratio-
nibus distrahendis, infâm ia) (486) ; apezar, no entantoi(*dessas li­
mitações, a tutela era definida: jus ac potestás in capite libero.
P or isso, o direito atual confia ao pai um poder sóbre os filhos,
apenas no que diz respeito a sua educação; m as se opõe á que
faça uso de instituições contrárias a èsse objetivo. Em verda­
de, essa autoridade é essêncialmente restrita, quando com parada
com a da patria potestás rom ana. Não se pode, entretanto, de-
finí-la de outro mòdo, senão como um poder, de tal ou qual ex­
tensão, a que se está subordinado com tais ou quais restrições,
etc. O poder se concilia p e ri ertamente com o dever. O funcio­
nário, o tutor, têm um poder, mas, tam bém , um dever de usá-lo
no interesse do Estado, e do m enor . — Esta proposição em nada
repugna às nossas atuais idéias.
Mas onde a concepção rom ana antiga diverge das idéias mo­
dernas é em não conseguir ju n tar, na mesma pessoa, o poder e o
dever.

(486) O act. tutela pertence a uma época posterior, como o temos sempre provado.
O ^SPÌRITO DO DIREITO ROMANO '201

Os três árbitros do poder, acim á citados, o magistrado, o tu­


tor e o pai, no direito antigo, eram autorizados» mas não obriga-
a intenção de que hão o usassem em seu proveito, mas no Jbem-
a iiitenção de que não o ussassem em seu proveito, mas no bein'
estar do Estado e do m enor; por isso, quando terminavam as suas
funções, deviam prestar contas de sua gestão, e esperar, em caso
do não cumprimento de seus deveres, punições severas. Longe
de ser extranha à relação, a idéia do dever era, ao contrário, o seu
regulador invisível. Mas o que se m anifesta como tipicam ente
rom ano é a invisibilidade desse regulador, e a circunstância de
que o dever póde ser: exigido, enquanto subsiste a relação, m as
deve esperar que esta tenha terminado, para encontrar a satis­
fação devida. Não é a idéia do dever, propriam ente dita, que
os rom anos repeliam, mas a sua sim ultânea existência com a
idéia do poder, A m aneira parcial e apaixonada com que o es­
pírito rom ano compreendeu, na época antiga, a noção do poder
e a iipágem grandiosa que dela se formoü, são a explicação úni­
ca e possível da incompatibilidade dessas duàs idéias.. Conser­
vadores do poder, não podemos estar submetidos à esfera desse
poder, e estaríamos, se fôssemos sujeitos a outrem que exercesse
um poder jurídico sobre nós, podendo realizar a sua ação- obri-
gando-nos a fazer, ou deixar de fazer, alguma cousa. A exten­
são ilim itada do sentimento do poder, foi o elémento rom ano
especifico e transitório do antigo direito privado de Roma. O
exagero dêsse sentimento não esperou, para se manifestar, a qué-
da de Rom a. Mas, na própria Roma, nos últimos tempos da Re­
pública* produziu-se a reáção.
Depois de haver reconhecido a idéia do poder como o ver­
dadeiro princípio do direito privado, podemos proclam ar o di­
reito antigo de Roma, como a vitória da idéia abstrata dêsse di­
reito. Esta idéia quiz tentar, depois, desabusadamente, a sua in­
dependência; quiz tentar a prova de sua possibilidade' prática.
À razão do êxito dessa tentativa se encontra nas condições .es­
peciais de Roma, mas que não se reproduzem em parte algum a.
Essas condições, bem como a possibilidade prática da continua­
ção de tão grandè poder, cessaram mais tarde. O que podia e
devia desaparecer com o tempo, sem que o resultado adquirido
se devesse perder na posteridade, foi o elemento romano, p ró '
prio da época. Onde quer que se descubra uma idéia im por­
tante, deve ela, para atingir a existência e o regime práticos,
passar por um a fase de intolerante parcialidade e de rudeza, que
um a época posterior, lim itando os exageros, reduz, fácilmente,
a suas justas proporções.
Não- depreciaremos, no entanto, o mérito daquêle trabalho.
Não se tratava somente de criar, era préciso, além disso, fazer
valer o que, se havia descoberto. A vida não era favorável às
abstrações jurídicas; se a concepção jurídica se paralisava, cor­
ria o risco de confundir a realidade e o uso com o direito, como
202 RUDOLF VON JEERING

vulgarm ente se fazia. A rigorosa distinção entre os usos e of;


direito era uma das melhores pedras de toque para a espomtatí
neidade das concepções jurídicas, porque presumia uma ativi­
dade e um a tensão incessantes, da faculdade de abstrair e em an­
cipar o espírito dos fenômenos exteriores. Ai, onde-esta dis-'
tinção é rigorosamente concebida e pràticamente maftifesta4av
como sucede no Direito romano, a formação do direito consue­
tudinàrio encontra grandes obstáculos; e, ao contrário, quando
os nevoeiros escureceram as noções do direito e dos usos, o di­
reito consuetudinàrio se implanta, facilm ente.
A diferença das fôrmas abstratas, da liberdade, a sua con­
cepção jurídica, de um lado, e de outro, a concepção m oral na­
tural na vida, foi objeto de numerosas observações.
Se nos transportamos, agora, e, ao nosso vêr, devemos fazê-
lo, de nosso sistema abstrato da liberdade, aos primordios da his­
tória do Direito romano, encontraremos esse assombroso fenô­
meno, de que èsse sistema aí floresceu durante muitos séculos,
sem nenhuma transformação, apezar — e isto é decisivo — de
lhe ser contrário o espírito dominante na prática. Qualquer que
fòsse a fôrm a que os diversos poderes do direito público e do
direito privado tomassem, quaisquer que fôssem os caminhos que
seguissem e que, em verdade, devessem seguir, a concepção abs­
trata não verificaria senão um simples facto. Entre o direito
abstrato e a realidade da vida, entre a concepção jurídica abs­
trata e a concepção moral natural, intetpunha-se um abismo.
O uso,, em Roma, subsistiu, durante séculos, tal como era,
isto é, como simples uso. As restrições que ele impunha e rea­
lizava de fato, a fôrma que dava às instituições jurídicas puras,
as instituições positivas que êle mesmo produzira, eram tão cla­
ras, que todos as reconheciam e respeitavam, apezar dg^que se
lhe recusasse importância jurídica. O carater jurídico abstrato
do poder só assim poderia ser mantido, apezar de tòdas as trans­
formações, sem modificar a sua pureza originária e ideal. A
vida^podia transform á-las; a manifestação prática, as idéias mo­
rais e políticas, bem como as forças de facto que punha em mo­
vimento, tudo podia modificar-se; mas a idéia abstrata perm a­
necia imutável, até que uma nova lei introduzisse outras trans­
formações. Esta imutabilidade do direito abstrato, não tinha
inconvenientes para a vida, pois, de um lado, as fôrmas abstratas
se adaptavam a todas as influências e, de outro, a vida mesma
com a opulência de seus meios e de suas fôrças, podia, fácil­
mente, impor o que fosse necessário, sem modificar o direito.
Essa situação não podia sustentar-se quando tais forças perde­
ram o seu vigôr e o direito teve que nelas se plasmar.
O direito antigo entregou ao comércio jurídico as próprias
fôrças, e para completar a sua autonomia, nem mesmo lhe deu
o concurso de certas disposições subsidiárias. Cada ato ju ríd i­
co especial, ao ser verificado, qualquer que fòsse o conteúdo m a-
b ESPÍRITO. DO DIREITO ROMANO 20*

terial, deveria encerrar o conjunto das regras, pelas quais seria


julgado; assiiii, a lex contractus concreta devia subsistir â lex
de coñtractibus abstrata. Uma fase análoga precedeu sempre a
função do direito positivo, mas, ao mesmo tempo, por toda parte,
se reproduziu uma instituição que teve por fim torná-la possí­
vel: tal foi o emprego das fó rm u la s. À m edida que o direito po­
sitivo se desenvolveu, a im portância das fórmulas diminuiu. No
entanto, no período presente gozavam ainda, em Roma, grande
prestigio.
P ara toda espécie de negócios, existiam fórmulas fixas, ela­
boradas com o maior cuidado (actiones leges rerum vendenda-
rum, etc.) (487), que ao se acomodarem' aos atos da vida, corri­
gidas e enumeradas pelo uso» adquiriam utilidade notável. O
uso dessas fórmulas não era obrigatório; se surgisse um negócio»
que apresentasse carater novo, se elaborava outra fórmula, tra ­
çando-lhe antecipadamente uma norm a determinada, e depen­
dendo da apreciação individual recorrer-se, ou não, dela. As es-
tipulações estabelecidas, que se apresentavam diàriamente, eram
a expressão da vontade do contratante, sem que $é pudésse con­
siderar como elemento do direito a soma de m atérias jurídicas
nêle acum uladas. Mas tinham, no entanto, para o próprio di­
reito a mais alta importância, porque o direito positivo encon­
trava, nessas fórmulas, os seus antecedentes, as suas causas e as
suas origens Assim, já se encontrava resolvida a obra que essa
arte do direito tinha de realizar, ou seja a classificação dos
S iversos atos jurídicos, e especialmente a divisão de diferentes
contratos, a criação e a expressão exata das regras jurídicas con­
forme à própria natureza de suas várias espécies. Quando, mais.
tarde, a ciência e a legislação (notadam ente o direito pretoriano),
se aplicavam, na formação do direito positivo, encontraram m ui­
tos princípios sem necessidade de modificação, e temos motivos
para crêr que se aproveitavam am piam ente desses primeiros tra­
balhos. As disposições jurídicas pertencem à essa classe, tom a­
das, em sua maior parte, dessas fórm ulas. Esta consideração
esclarece muitas questões (como, por exemplo, o contrato de
salário), e nos promete outras inestimáveis descobertas.
À autonomia do comércio jurídico, projeta m uita luz sobre
os elementos da parte do direito de que nos ocupámos, assim
como a história do desenvolvimento do direito pretoriano, ho
(487) Mencionaremos ©specialmente as ManilUuite venalium vendendarum lajes. Crc..1
de orat. 1, 58. Varrão de rc rust. 2,5. Catão c Varrão cm cada passagem de sua obra
de re rustica, quando mencionam um contrato quaílqucr, por exemplo, a venda dc es­
cravos, do rebanho, da colheita, do vinho e do empreendimento do trabalho, referem
as fórmulas que lhes dizem respeito. Existiam outras fixas para os contratos que
o Estado devia fazer, como trabalhos públicos, arrendamento de impostos, etc. Entre
os princípios posteriores do contrato de arrendamento, o direito do colono à remiss io
mercedis por 'casus aparece como formado nas antrgais teges censoriee. Cómpare-se Cie.
de pror. cons. 5: is, qui frui publico noi* pòtuil per hostam, HIC LEGITVR IPSA LEGE
CENSORIA. Polib., 17, 5.
;terceiró período, fornece-nos, também, exemplos interessantes do
toèsm o processo pretoriano: o da noção abstrata procedendo da
idéia concreta.
Destacam-se dos diversos atos jurídicos concretos certos re­
sultados, sempre idênticos na sua fórm a e extensão; a idéia do
ato jurídico dètermiiiado se sedim enta, imediatamente, como um
precipitado abstrato do direito, qué a linguágem costuma desig­
n ar com um nome característico. Os m ateriais assim adquiri­
dos, sé bem que não tivessem, como já dissemos, im portância
jurídica, traçaram o fim, a via do comércio jurídico, atingindp
a m éta que indica a fórmula,^ segundo a qual devia traduzir-se
n a vida, a relação legal. Sob o ponto de vista jurídico f ormai,
esta disciplina do comércio não era menos im portante que a dos
usos; e nenhum a regra existente era aplicada num ato jurídico
^especial, sem estar expressam ente inscrita, emquanto que era da
essência do direito positivo que suas disposições4fossem destina­
d a s a preencher as lacunas deixadas pela autonomia privada.
Em um só ponto a atividade da autonom ia podia, desde o período
presente, haver criado noções jurídicas, revestidas de um carater
objetivo. Em sua origem, era completamente livre a escolha
das expressões, em que se queria desenvolver as disposições es­
senciais dum ato jurídico; m as, compreende-se que o comércio
Ju rídico escolhia as mais adequadas e as menos duvidosas» e que,
p ara determinados atos, se im puzeram certas palavras expressi­
vas. As investigações dos juristas posteriores, ensinaram -nos
que o emprego dessas palavras sacram entais era obrigatório em
sua época, a ponto de sua omissão acarretar a nulidade do ato.'
Ninguém poderia deixar de erigir em lei esta exigência, obra do
-comércio jurídico. Podemos, sem vacilar, atisjhuir esse facto à
*época antiga e explicá-lo da m aneira seguinte. NJma interpreta­
ção vacilante, atendo-se a palavras obscuras, podia produzir a
dúvida sobre a intenção de realizar um ato determinado, porque
.essa intenção só resultava das expressões mesmas de que se ser­
viam regularm ente, para esse ato; á palavra determ inada afir­
m ava a vontade form al. Resulta disso, para ò comércio ju rí­
dico , a necessidade prática de fazer uso de certa palavra, conse­
cu en cia que atingiu a interpretação, criando um verdadeiro di-
jreito.

É ’ sob a relação jurídica abstrata, de que nos temos ocupado,


que vamos determ inar a im portância do nosso sistem a. Dêsse
ponto de vista, podemos reivindicar uma im portância histórica
im ortal e universal. Resta-nos, entretanto» exàmináÇo sob o
ponto de vista da relação m oral natural com o m undo rom ano.
Lembramos, dêsdé já, a èsse respeito, a influência que exercia
«o dito sistema no povo rom ano. A idéia da personalidade^era a
fonte de todo sistema; o seu fim exclusivo consistia em dar à
O ÉSí^RÍTÓ bO DIREITO ROMANO " 2Ä5-

personalidade, tanto nas relações da vida privada, como ñas da


vida pública, a possibilidade jurídica de desenvolver-se livre­
mente, corii todo o sen vigor. O direito era um hino prático que
exaltava o valor e a missão da personalidade, cuja m oral se re ­
sum ia no desenvolvimento e na manifestação da mesma perso­
nalidade. O direito ensinára, desdé seus inicios, aos romanos,,
a teoría de que o homem existe para criar um mundo dentro de
si, que não devia revelar a ninguém, nem julgar nada senãó p o r
si mésmo, em suma, que cada um é ò autor de sua própria feli­
cidade.
O m undo romano não foi feito para os tímidos. Ó vigor
m aterial e a expontaneidade de idéias, eram virtudes indispen­
sáveis a quem pretendesse agir com êxito naquela sociedade. As
relações do direito público, como as do direito privado, estavam
subm etidas a esta mecessidade ; Atualmente, o direito nós pro­
tege, desde ó nascimento até a m orte; assegura a herança
de nossos pais, obrigando-os a ter-nos em suá com panhia;
conserva e garante os nossos direitos durante a nossa m aio­
ridade; dá-nos o seu apoio, quando somos enganados, ou
oprimidos, bem como os meios de combater as nossas pró­
prias ações e as que nos sejam préjudiciais, reparando as
nossas faltas, às nossas negligências. Nada disto se vê no Di­
reito rom ano antigo. Quem se julgava oprimido, devia supor­
tar as conseqüências; urii homem não se deve deixar oprim ir:
etiapise coactus, attamén vohzlt (488) . O mesmo acontecia com
quem fòsse enganado; o homem sabe qual é o seu direito, sabe
o qiie quer, nunca póde ser enganado. — Não comete deslises,
não contesta a validade de suas ações, nem, por conseguinte, as
de óutrém : jus civile vigilantibus scriptum est (489) . Chegada a
época da puberdade, cada um deve ser senhor de seu patrim ô­
nio As instituições protetoras da cura e da restitutio in inte­
grum são ^conhecidas no direito antigo; a lex Plcetoria pertenceu
m ais, ao fim do século V. Isto significa, simplesmente, que os
romanos, das épocas posteriores, dispendiam mais tempo p ara se
tornarem independentes, que os da época anterior. Esse fenô­
meno nada tem de surpreendente; a civilização retarda* no seu
início, a m aturidade do carater. Quem chogasse a ser homem,
gozava, também, na época antiga, da independência necessária
p a ra se iniciar na vida prática; se assim, não fosse o direito
antigo tratá-lo-ia de outra riiàneira.
Não é necessário fazer notar qjie um direito, que supõe p a ra
tòdos um a grande independência, reprodús essa qualidade no
povo e a mantem eiri todo o seu vigor. Se a história rom ana
apresentou um a pleiade de homens notáveis e de caracteres gran­
diosos, deve provar-se a razão disso, não em suas instituições.

(488) L. 21, § 5, quod met. (4, 2).


(489) L. 24, qua in ì . cred. (42, 8).
RU D O L F VO N J H E R I N G

«quaisquer que fossem, mas no pròprio povo. Não devemos, dei­


xar de reconhecer a influência das instituições exteriores sòbre
a formação do sentimento nacional* e o desenvolvimento e ò
^aperfeiçoamento das aptidões inatas. Se a força romana, se a
sua *espontàneidade, a sua firmeza de carater não eram a heran­
ça transmissive! de uma à/outra geração, se essas, qualidades hou­
vessem desaparecido ao mêsmo tempo que uma geração, crêmos
que poderiam, em grande parte, renascer do próprio direito, gra­
deas à imensa fôrçá romana que traziam em si (49n) . Uma brisa
suave e reconfortante, saturada de energia romana, pairava na
atm osfera dêsse direito; ao contacto dessa brisa, à sua virtude
«contagiosa adaptava-se, imperceptívelmente, o gênio rom ano. O
direito não* podia, é certo, im pedir a quéda do poder romano,
aporque nenhuma instituição, em geral, podia sempre" afastar-se
do espirito que a originou. Mas, não é menos verdade* entre­
tanto, que o direito, erigindo as qualidades, acima referidas em
postulado da vida prática, consagrou a sua imortalidade.
Outra qualidade romana vivia dentro do sistema da liber­
dade, que. já esplicámos, e constantemente se rejuvenecía, — era
.a altivês e o sentimento de dignidade do cidadão. Quando o
altivo romano contemplava os outros povos, ö seu orgulho não
repousava somente no sentimento da superioridade da fórca e
da preponderância exterior do Estado, mas na situação jurídica
«do cidadão romano, que se manifestava, tanto no interior como
no exterior, no maravilhoso efeito das palavras Civis ra m a n ü s
:su m . Quem era tido como cidadão romano, podia considerar-se
m ais forte e mais segufo, na pòsse de seu prestígio, que muitos
reis de nossa época, porque a constituição garantia* mésmo ao
mais humilde, certa parte no governo do mundo. Mas, o que
dava ao cidadão toda a força política era a c<w*fiança jurídica e
a inviolabilidade de« sua pessoa, assim como o poder sòbre a fa ­
m ília e a inviolabilidade dos direitos adquiridos. À dignidade e
’O direito da personalidade foram, pràticamente, reconhecidos e
protegidos, em Roma. como em parte alguma do m undo. A
:base da existência pessoal, — o direito —, era firme como uma

(490) O direito é para as instituições humanas, com relação ao espirito que as


formou, como o calôr da terra produzido polo sol ; assim como no otôno gozamos ainda
do calor do estio, também uma geração decadente ainda gozava da força de seus pre-
dcccssoros, que chega a ser objetiva para as suas instituições, seus usos e suas fôrmas'.
Esta é uma observação que já temos 1'eü.o em outro lugar (veja-se J h e r in g , Kampf
(A luta pelo direito), 3.« ed., pags. 105 c 106), mas que não podemos deixar de re­
produzir, nèste momento. E’ verdade que existe outro aspecto da questão: de que o
presente se aproveite ida vontade do passado, firmada nas suas instituições; essa von-
?tade c também um obstáculo que deve superar cada movimento progressivo; da civi­
lização, como em a natu rezza o sol da primavera domina o gèlo do inverno. E* a lei
do equilibrio das forças, principio tão verdadeiro, cm a natureza, como na história;
porque, para aquela, como para esta, não existe nenhum eleménto que esgote comple­
jamente as condições de sua existência. Cada elemento sofre a ação do presente, ao
mesmo tempo que a do passado.
O ESPÍRITO DO DIREITO ROMANO 207

rocha; cada romano podia, no recaiito da terra, que lhe era desig­
nado por sorte, considerar-se ao abrigo de qualquer agressão, e
um verdadeiro soberano. Eis, ao nosso vèr, o que o direito ti­
nha de mais precioso e bèlo, de que o romano podia orgulhar-se.
A altives, que se apòia no sentimento da liberdade, é per-
feitam ente legítima; não era simplesmente a posse o único gozo
da liberdade, que estimulava; mas, sim, os próprios méritos da
liberdade. A liberdade não é um presente dos deuses, m as o
bem que um povo conquista, e que só prospera na razão direta
de sua força e de sua dignidade m orais. Somente, o amor à li­
berdade não basta, mesmo quando é capaz de sacrifícios (e não
póde ser de outra fórm a). P ara que èsse amor seja fecundo, se
exige outra condição essencial, — é a de possuir a arte de saber
usar da liberdade. Nisso consiste a dificuldade. A prim eira
regra dessa arte é a m oderação. Nenhum bem concita a tantos
excessos, nenhum se perde tão fácilmente, tão irrem ediavel­
m ente, pelo abuso, como o mais precioso de todos: — a liber­
dade. Tem-se falado, com pertinácia, em nossa época, de povos
sem aptidões ainda para a liberdade, fixàndo-se, para isso, no
gráu dê cultura dèsses povos e de suas qualidades piorais. Se
se tratásse, únicamente, de ter a compreensão da liberdade, os
povos mais ilustrados deveriam ser os mais aptos, quando, pelo
contrário, é o progresso da civilização que acompanha sem pre o
declínio dessa aptidão. Roma deu-nos um exemplo curiosis­
simo .
Nião podemos deixar de insistir sobre a capacidade m oral, do
antigo povo romano, pela liberdade. Todo o nosso sistema vi­
veu, e com èie caiu:
Moribus antiquis stat res ramano, uirisque.
A decadência da m oralidade foi, ao mèsmo tempo, a deca­
dência da liberdade rom ana. À possibilidade prática de todas
as relações da liberdade, tanto do direito público como do di­
reito privado, tinha como condição necessária, que estivessem
anim ados dum verdadeiro espírito de liberdade. Desde que èsse
espírito se enfraqueceu, desde que a arbitráridade, o capricho»
a indisciplina, nela se amparou, perderam o seu sentido e a sua
legitim idade em vês do espírito livre, que não se deixava do­
m inar, apresentou-se a lei e a tirania. Tanto assim, que quem
quizesse julgar o sistema da liberdade da época antiga e com­
preender o sentido e o fim de suas instituições, não podia per­
der de vista, um só instante, a antiga m oralidade e o gênio da­
quela época. O uso foi a chave indispensável para com preen­
der o direito antigo; se éste nos mostrou a liberdade abstrata,
o outro nos fez ver a restrição da liberdade por si m esm a, res­
trição que era a condição tácita de todo direito.
T ácito gabou os antigos Germanos, porque entre êles o uso
r Oí* Pv- y O l f J H E R IN G

iinhá m ais força que as leis. Reivindicamos èsse elogio p á ra


oV antigos; romanos, porque êles mesmos representavam as leis
vivas, ô Direito rom ano antigo não adm itia com paração algu­
m a, no q u e diz, respeito à m oralidade ; mas é preciso não esque­
cer que á antiga liberdade, cercada de todas as precauções, que
lhe im punham as circunstâncias materiais* encontradas em Róma,
não podia ser com preendida senão pelo aspecto das realidades da
vid a. Quem se fixar, rigorosam ente, nêste ponto de vista, não
investigará inutilm ente o espírito moral das antigas instituições
de Roma, enquanto que êste' espírito perm anecerá sem pre oculto
a quem em preender èsse estudo, sem conhecer as fontes e sem
exam inar a vida dos rom anos, ' tanto no mòdo de pensar como
no de sentir.

F IM DO II V O L U M E

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