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1 ·
ç.io. dt angústia e de revolta, no qual
10$000
um penetroante observador descreve as
EM TODAS AS
a\õ~~s d.) upeucular colapSf .da França !
LIVRARIAS-
..
01
0 RODX E A TjCNICA"
O BOIEI E
·1 TÉ CNlCA
CONTRIBUIÇÃO
1 9 .. 1
B DI Ç O ES MER I D I AN O
PORTO ALBGRB
•
Public:~do originalmente em alemão com o seguinte título:
"DER MENSCH UND DJE TECHNIK .,
1931
TRADUÇ.\0 DE
ERICO VERISSIMO
'
I 9 1 1
.
Processo e meios.
Evolução e realização.
Lz'to. e arm.a. __,
A transitoriedade
ccnno forma do rea.l.
~M
que em cada "ci~ilização" (1) o materia- t l'ivial, tais imbecilidades nos fazem estreme-
lismo se distingue por sua falta de fôrça ima- à idéia do pavoroso tédio - o tredium
(' C' l'
ginativa, surge o quadro dum futuro no qual vitre da Roma Imperial - que se estende
o fim último e a condição duradoura e final Hôhre a alma humana à simples leitura dês-
da humanidade é um paraíso terrestre, con- ~cs idílios. Porque se êles se tornassem éfe-
cebido segundo as tendências técnicas, diga- livos na vi:da real, ainda mesmo que apenas
mos, da casa dos 80 no século passado - uma l'm parte, só poderiam levar ao assassínio e
desconcertante negação do conceito mesmo :to suicídio em massa.
de progresso, que por hipótese exclue os "Es- Ambos êsses pontos de vista estão hoje
tados". Essa ordem de idéias é representada antiquados. Chegamos finalmente, com o sé--
por livros como o Alte und Neue Glaube (A culo vinte, a uma era suficientemente madura
Antiga e a Nova Fé) de Strauss, Looking p:tra penetrar na significação derradeira dês-
Backward (Retrospecto) de Bellamy e Die scs fatos cuja totalidade constitue a histéria
Frau und der Sozialismus (A Mulher e o So- do mundo. A interpretação das coisas e dos
cialismo) de Bebe!. Nada de guerras; não :1 contecimentos não é mais assunto do gôsto
mais diferenças de leis, raças, estados ou re- p!'ivado de alguns indivíduos de tendência
ligiões; nada de criminosos e aventureiros~ racionalizadora, ou das esperanças e desejos
·nada de conflitos surgidos da superioridade e elas massas. Em lugar do "talvez seja assim"
das diferenças na maneira de ser das pessoas; ou do "devia ser assim" teremos os inexorá-
não mais ódios ou vinganças, mas apenas um veis "é assim" e "há de ser assim". Um cepti~
infinito bem-estar por todos os séculos dos cismo orgulhoso vem substituir os sentimenta-
séculos. Mesmo hoje em. dia, quando estamos lismos do século passado. Aprendemos que a
ainda a viver as últimas fases dêsse otimismo História é qualquer coisa que não tem em
menor conta as nossas esperanças.
(1) A palavra aqui é usada na turalmen te no se-ntidO espe-
O tacto fisiognomônico, como chamei em
cifico q ue ela tem em '"A Decadência <lo Ocldenti!", (N. do T.). outro livro à faculdade que nos permite pene-
24
OSWALD SPENGLER DOIS
~rar. o sentido dê todo o acontecimento - a
Intuição de Goethe e de todos os que nasce-
r~m com ? ?~m de conhecer as criaturas, a
~~a e a histona através dos tempos- o tacto
fis.IO~omônico é que descobre no indivíduo,
SeJ~ ele pessoa ou coisa, a sua significação
mais profunda.
pARA compreender a essência da técnica,
não devemos partir da técnica da era
da máquina e muito menos da idéia engana-
dora de que a construção de máquinas e uten-
.sílios seja o pbjetivo da técnica.
Porque na realidade a técnica . é mui-
tíssimo antiga e, além do mais, ela não é
algo de historicamente específico mas sim
.qualquer coisa de imensamente geral. A ·téc-
nica transcende as origens da humanidade,
recua até a vida dos animaiS, de todos os ani-
mais. O tipo de vida dêstes últimos, em con-
traste com o da planta, se distingue pela sua
-capacidade de movimento livre no espaço,
pela posse, em maior ou menor grau, de von-
tade própria e pela independência da Natu-
reza como um todo. Assim sendo, o animal é
obrigado a manter-se contra a Natureza e a
-dar à sua própria existência certa espécie de
.significação, certa. espécie de conteúdo e cer-
ta espécie de superioridade. Se vamos então
26
OSWALD SPENGLEH O HOMEM E A T~CNI CA 27
tendo a mãe de Aquiles oferecido a êste a es- os céus para submeter as potências divinas ao
colha de uma vida longa e vazia ou de uma homem, estava. implícita a queda. Que é fei-
vida breve mas cheia de feitos e de fama êle to, pois, dessa palavrosa alusão às "realiza-
preferiu a segunda. ' ções imorredoiras"?
O homem era e é demasiadamente super- A história do mundo tem um aspecto com-
ficial e covarde para suportar a idéia da mor- pletamente diferente daquele que nosso século
talidade de tôdas as coisas vivas. :ttle a en- se permite sonhar. A história do homem, com-
volve 'no otimismo côr-de-rosa do progresso, parada à do mundo animal e vegetal dêste
amontoa sôbre ela as flores da literatura, fica planeta - para não falar na vida dos mun-
a rastejar por trás de uma muralha de ideaia dos estelares, - é realmente breve. É uma
para nãü enxergar nada. Mas a transitorie- ascenção .e um declínio de uns poucos milê-
dade, o nascimento e o passamento, é a forma nios, um período que não tem a menor impor-
de tudo quanto tem realidade - desde as es- tância na história da terra mas que, para nós
trêlas, cujo destino para nós é incalculável, que nascemos com êle, está cheio de fô1·ça e
até o efêmero formigueiro de nosso planeta. gral!deza trágicas. E nós, sêres humanos do
A vida do indivíduo, seja êle animal, planta século vinte, descemos a encosta vendo a des-
ou homem, é tão perecível como a d.os povos cida. Nossa faculdade de perceber a história,
e das Culturas. Cada criação está predesti~ nossa capacidade de escrevê-la, é um sinal re-
nada à decomposição; todo o pensamento, velador de que nosso caminho se dirige para.
todo o descobrimento, todo o feito estão con- baixo. Nos picos das Culturas superiores, n~
denados ao esquecimento. Aquí e alí, por tô- momento em- que estas se acham em trânsito
da a parte vislumbramos cursos da história de para a civilização, êsse dom de penetrante co-
grandioso destino e hoje desaparecidos. Ve- nhecimento lhes aparece por um instante, mas
mos em tôrno de nós ruínas das obras "que só por um instante.
foram", de culturas mortas. No descomedi- Entre os enxames das estrêlas "eternas''
• mento de Prometeu, que ergueu as mãos para intrinsecamente não importa qual seja o eles-
O HOMEM E A TÉCNICA 83
32 OSWALD SPENG LER..
com um dado mundo e acabam vencendo ou
tino dêste pequeno planeta que segue seu cur- sucumbindo enquanto o universo ao redor dê-
so por breve tempo em algum lugar do espaço ' .
les segue lentamente o seu curso com. uma In-
infinito. Ainda mais insignifieante é aquilo diferença divina. Essa batalha é a v1da - a
que em sua superfície se move durante alguns vida, sim, no sentido nietzscheano - uma lu-
instantes. Mas cada um de nós, intrinseca- ta tôrva, impiedosa e sem quartel, que nasce
mente um nada, se vê lançado nesse universo- da vontade-de-poder.
rodopiante por um minuto indizivelmente bre-
ve. Porisso êste mundo em miniatura, esta
história universal, é algo de suprema impor-
tância. E, o que é mais, o destino de cada um
dêsses indivíduos não consiste apenas em,.
por seu nascimento, terem sido êles trazidos
para dentro desta história universal, mas sim
em haverem aparecid'O num detenninado sé··
culo, num determinado país, num determina-
d'O povo, numa determinada religião, numa
determinada classe. Não está ao nosso alcan-
ce escolher entre ser filho dum camponês
egípcio de 3.000 A. C., de um rei persa ou en-
tão dum vagabundo de nossos dias. A êsse
destino temos ~e nos adaptar. ~le nos con·
dena a certas situações, concepções e ações.
Não existe "o homem em si" tal como querem
os filósofos, mas apenas homens de uma épo-
ca, de uma localidade, de uma raça, de uma
índole pessoal, homens que travam batalha 3 - O H. T. I
CAPiTULO II
•
O homem como animal de rapina.
4
Ser" presa e "fazer" presa. - O movimento
'
"
TRE:S
Devemos hoje ajustar contas definitiva- quer poeta, conhece. Gosto de meditar sôbre
mente com êsse modo de ver. O ceptidsmo, a. fisiognomônica dos modos em que se mani-
a única atitude filosófica possível nesta época festa a vida animal e sôbre as espécies da alma
(mais ainda: a única digna dela) não permi- animal, deixando aos zoologistas a sistemá-
te tanto desperdício de palavras. No entanto, tica da estrutura corporal. Revela-se então
por essa mesma razão, não deixarei de con- uma hierarquia, do corpo e não do espírito,
testar as opiniões que se desenvolveram da completamente diversa.
ciência natural do século passado. Nosso trata- A planta vive, embora só seja um ser vi-
mento e classificação anatômicos do mundo vo no sentido restrito. Com efeito, há vida
animal acham-se inteiramente dominados nela ou ,em tôrno dela. Ela respira, ela se ali-
(como era de se esperar em vista de suas ori- menta, ela se multiplica, dizemos nós. Mas
gens) pelo ponto de vista materialista. A ima- na realidade ela,é simplesmente o teatro dês-
gem do corpo, tal como ela se oferece aos sEis processos que constituem uma unidade
olhos do homem (e só aos do homem), e, a com os processos da Natureza em tôrno, tais
fortiori, o corpo dissecado, preparado quimi- como o dia e a noite, os raios do sol e a fer-
camente e maltratado pelas experiências de- mentaÇão do solo. Assim sendo, a planta mes-
ram lugar a um sistema que Lineu fundou e ma não pode querer ou escolher. Tudo acon-
que a escola de Darwin ·aprofundou com a tece com ela e nela. A planta não escolhe a
paleontologia. É um sistema de particularida- sua posição, nem o seu alimento, nem as ou-
des estáticas e oticamente observáveis, ao la- tras plantas com as quais exerce as funções
do do qual encontramos outra ordem comple- de reprodução. Ela não se move, mas sim é
tamente diferente e destituída de sistema, movida pelo vento, pelo calor e pela luz.
uma ordem dos modos de vida que se revela Acima dessa espécie de vida alça-se ago-
aptmas na convivência ingênua, através dessa -ra a vida livremente móvel dos animais. Mas
afinidade intimamente sentida do Ego e do dessa vida há dois estádios. Há uma espécie,
Tu, que qualquer camponês, bem como qual.. :representada em todos os gêneros.. anatônticos
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PSWALD SPENGLE& O HOMEM E A TtCNICA • 48
desde os animais unicelulares até os palmí- ser o tipo humano um animal de rapina con-
pedes e os ungulados, e cuja vida depende fere-lhe urna alta dignidade.
em sua manutenção do mundo imóvel das Um herbívoro é por destino urna preaa.
plantas, pois estas não podem fugir nem de- Procura por meio do vôo fugir a essa sina,
fender-se. Acima, porém, dessa espécie exis- mas os animais de rapina precisam de vítimas.
te uma segunda: a dos animais que vivem de Um dos tipos de vida é, em sua essência mais
outros animais e cuja vida consiste em matar. íntima, defensivo; o outro, ofensivo, duro,
Neste caso a presa mesma é móvel, e em ~lto cruel, destruidor. A diferença se faz visível
grau, e, além do mais, é combativa e bem do- mesmo na tática dos movimentos. De um la-
tada de tôda a sorte de austúcias. Esta segun- do o hábito do vôo, o dom da velocidade, da
da espécie se encontra também em todos ·os evasão, de negar o corpo, de ocultar-se. De
gêneros do sistema. Cada gota d'água é um outro lado, vemos o movimento retilíneo do
campo de batalha. Nós que temos a luta da ataque, o salto do leão, o vôo arremessado da
teiTa tão constantemente ante nossos olhos águia. Existem negaças e artimanhas tanto
que chegamos a aceitá-Ia corno natural, e até no estilo do forte como no do fraco. A astú-
mesmo a esquecê-la, estremecemos de horror cia no sentido humano, isto é, a astúcia ativa,
ao ver corno entre as formas fantásticas das é atributo apenas dos animais de rapina. Com-
profundezas do mar se processa essa vida de parados com êstes, os herbívoros são obtusos,
matar e de ser morto. não apenas a pomba "inocente" e o elefante~
O animal de rapina é a forma maia alta mas também as espécies mais nobres dos un-
da vida móvel. Significa um máximo de li- gulados: o touro, o cavalo e o cervo. Só quan-
berdade a seu favor e contra os outros, o má- do cegos de raiva ou sexualmente excitados
ximo de responsabilidade própria, de singu- é que são capazes de lutar; de outro modo
laridade; significa também o extremo de ne- deixam-se domar• e urna criança facilmente os
cessidade onde êsse eu só se pode afirmar poderá conduzir.
lutando, vencendo e destruindo. O fato de Além dessas düerenças entre as espécies
r
I
-44
• OSWALD SPENGLER O HOMEM E A TÉCNICA 45
de movimento, 'existem outras, ainda mais des carnívoros, bem como os do homem, pode-
marcadas, nos orgãos dos sentidos. Porque ~·em fix.ar-se n~~ ponto do ambiente permite·
elas são acompanhadas por diferenças na ma- ao animal fascinar a presa. Nesse olhar hostil
neira de apreender, de ter um "mundo~'. Em está já implícito para a vítima o destino a qu9!
si mesmo todo o ser vive na natureza dentro não pode fugir, o salto do momento imediato.
de um ambiente, não importando que êle per- Mas êsse ato de fixação de dois olhos dirigi--
ceba ou não êsse ambiente ou que seja ou não dos para .diante e P!!;ralelamente é equivalen- -
notado dentro dêle. É , porém, a relação-mis- te ao nascimento do mundo no sentido da pos-·
teriosa, inexplicável por qualqJ}er raciocínio
humano - que se estabelece entre o animal
se do mundo pelo Homem - isto é, como um
quadro, como um mundo diante dos olhos,
..
e 9 ambiente, por meio dós sentidos do tacto,
.da ot•dem e do intelecto, que transforma o sim-
ples ambiente em um mundo circundante. .Os
berbívoros superiores são governados pelo ou-
como um mundo não apenas de luzes e côres,
mas de distâncias em perspectiva, de espaço
e de movimentos no espaço, de objetos situa...
I
dos em determinados pontos. Essa maneira
vido, mas acima de tudo pelo olfato C) ; os car- de ver que todos os carnívoros superiores pos- ' ;
nívoros superiores, por outro lado, dominam suem - os herbívoros, como por exemplo os .
·c om os olhos. O olfato é um sentido caracte-
risticamente defensivo. Com· o nariz animal
fai'I9ja o quadrante e a distância do perigo,
o -
ungulados, têm os olhos orientados lateral-·
_!!lenti, dando cada um dêles uma impressão
diferente e sem perspectiva - traz já em si
dando assim aos movimentos de fuga a dire- a idéia implícita de cjpmínio. A imagem do.·
·ção conveniente: o afastamento de alguma mundo é o mundo circundante dominado pe-·
eoisa. los olhos. Os olhos do animal de rapina de-
Mas o ôlho do ànimal ~ visa um terminam as coisas de acôrdo com sua posi-·
alvo. O fato mesmo de os dois olhos dos gran- ção e distância. :J!:les apreendem o horizonte.
Medem nesse campo de batalha os objetos e·
(1)' Uexküll : Biologlsche W~ltaruchauunq. as condições do ataque. Um a farejar, o ou-
...
46 OSWALD. SPENGLER. .O BOM\EM E A T1:CNICA 47
tro a esp~eitar, - o veado está para o falcão formar um mundo para sf mesmo, contra tô·J
assim como o ~scravo está para o senhor. Há . . ._ das as outras conjunturas de mundo a seu re-
um sentimento infinito de fôrça nesse olhar dor, tànto mais definida e forte é a têmpera
largo e tranquilo, ~ sentimento de liberdade de sua alma. Qual é o opostQ da alma de um
que brota da superioridade e se apoia na con- leão? A alma de uma vaca. Os herbívoros
ciência de um maior poder e na consequente substituem a fôrça da alma individual pelo
certeza de não ser presa de ninguém. O mun· grande número, pelo re'Qflnho, pelo sentir e
do é a presa, e dêsse fato, em última análise, pelo fazer em comum das massas. Quanto
nasceu tôda a cultura humana. menos, porém, um indivíduo precisa dos ou-
E, finalmente, o fato dessa superioridade tros, tanto mais poderoso êle é. O animal de
· inata se tem intensificado não apenas para fo- rapina é inimigo de todo o mundo. Não to-
ra do mundo luminoso e das suas distâncias lera nunca um igual em seu antro. Aquí es-
infinitas, mas também para dentro, relativa· tão as raízes do verdadeiro conceito régio de
mente à espécie de alma de que são dotados propriedade. A propriedade é o domínio no
os animais fortes. A alma - êsse quê de qual exercitamos poder ilimitado, o poder
enigmático que sentimos ao ouvir esta pala- que conqui~tamos em batalha, que defende-
vra, mas cuja essência não é acessível a ne- mos contra nossos pares, que mantivemos vi-
nhuma ciência; essa chispa divina neste cor- toriosamente. Não é o direito a um mero ha-
po vivo, que neste mundo divinamente cruel ver, mas sim o soberano direito a fazer o que
e divinamente indiferente tem de dominar ou queremos com o que é nosso.
de capituJar - a alma é o cont:re.·polo do Uma vez que compreendemos essas coi-
mundo luminoso que nos cerca. Daí o fato de sas, chegamos à verificação de que existe a
o pensamento e o sentimento humanos esta- ética do carnívoro e a ética do herbívoro: Es-
rem sempre prontos a aceitar a existência de tá fora do alcanee de qualquer um alterar is-
uma alma cósmica dentro dêle. Quanto mais so. Trata-se de algo que pertence à fm1na
~litário é o ser e mais resoluto ~mostra no íntima, ao sentido e à tática de tôda a vida.
~
QUATRO
48 • OSWALD SPENGLER.
52 OSWALD SPE.NGLER
.
/
f'·r.,
Ir
CINCO
si•m ultaneamente- a configuração dela. Não do elas separadas uma das outl'as por catás-
há nada em todo o mundo que se possa com- trofes de natureza e origem desconh ecidas;
parar a êsse membro capaz igualmente de e não poderíamos conhecer as espécies das
toque e de ação. Aos olhos do animal de ra- criaturas fósseis se estas não tivessem apare-
pina que contemplam ('teoricamente" o mun- cido de súbito, mantendo-se invariáveis até a
clo, ajunta-se a mão do homem, que o domina sua extinção. Nada sabemos dos "antepassa-
praticamente. dos" do Homem, a despeito ele tôdas as no~
A sua úrigem deve ter sido súbita, com sas investigações e ela anatomia comparada.
relação ao ritmo das correntes cósmicas. Ela O esqueleto humano desde que apareceu tem
deve ter acontecido tão abruptamente como sido exatamente o que é hoje. Em qualque1~
um relâmpago ou um terremoto, à maneira reunião popular podemos encontrar até o ho-
das coisas decisivas que na história do mun- mem dé Neandertal. É , pois, impossível qu e
do marcam época, no sentido mais alto da a mão, a postura erecta do corpo no marchar,
expressão. a posição d3: cabeça e o mais que segue se
Neste ponto . t.emos de ~utra vez nos li- tenham desenvolvido sucessivamente e de ma-
bertar da idéia - su stentada no século pas- neira independente. A coisa tôda aparece
sado e baseada nas investigações geológicas junta e de repente C). A história do mun do
de Lyell - ele um processo de "evolução".
Uma variação assim lenta e fleugmática adap- (1) Qunnto a ess::1 "evolução", em geral afirmam os dnrv•i-
nil>tas que a posse de armas t:lo admiráveis como essas favoreceu
ta-se bem à maneira de ser dos ingleses, mas e conservou a espécie na luta pela vida. Mas o certo é que !<Ó
não conesponde à Na~ureza . Para apoiar a 1r 'l a arma li\ completamente fonnada poderia constituir wna vanta-
gem. A arma. durante o processo de evoluçlio - e dizem que
teoria recone-se a milhões de anos, uma vez isst- processo durou mtlêoio.s - teria sido uma carga inútil e ~
que dentro dos períodos de tempo mensm·á- r.a trazido mais prejui.:os que beneflc:ios li e..~pécie. Como lma·
veis nada se revelava dêsse processo. Mas na glnar o irúdo de tal evolução? Esta caça das causas e dos efei-
tos. que no Um de conta.$ são formas do pensamento humano, e
verdade não pode1iamos distinguir as diver- não do vi'l'· rt-:>er do mundo, torna-se um tanto imbecil se espe·
?as camadas g-eológicas se não houvessem si- rNmos penetrar com da nos segredos dt'!sse mundo.
O HOMEM E A TÉCNICA 61
GO OSWALD SPENGLER
mais remotos instl'Umentos têm a mesma
avança de catástrofe em catástrofe, quer pos- idade.
samos compreender e provar o fato, quer não. O que se dividiu, entretanto - não cro-
A isso chamamos hoje, segundo A. de Vries, nológica mas logicamente - foi o proces-
Mutação C). É uma mudança interior que so técnico, de sorte que a produção do ins-
subitamente se apodera de todos os exempla- trumento e o seu uso são coisas diferentes.
res duma espécie, naturalmente "sem-tom- Assim como existe uma técnica de fabricar
nem..som", como tudo mais que se passa na violinos e outra de tocar-violino, do mesmo
realidade. É o ritmo misterioso do real. modo há uma técnica de construir navios e
Mais ainda: não só a mão do homem, outra de navegar, - a ar te de fazer bestas
a marcha e a postura devem ter surgido jun- e a arte ele manejá-las. Nenhum outro animal
tas, como também - e êste ponto ninguém de rapina e scolhe jamais suas armas. Mas o
até hoje obsct·vou - a mão e o instrumento. homem não só escolhe como também as faz,
A mão inerme não tem utilidade por si só. de acôrdo com suas idéias individuais. Com
Exige uma arma para se transformar ela mes- isso obtém uma tremenda superioridade na
ma em arma. Assim como os instrumentos luta contra seus semelhantes, contra os ou-
foram modelados de acôrdo com a .forma da tros animais e contra a Natureza.
mão, a mão t.omou també m a configuração Isso significa aua liberação da coação da
do instrumento. É insensato procurar separá- t-~.péci'e - fenômeno único na história de tô-
los a ambos no tempo. É impossível que a da a vida dêste planeta. Com isso o homem
mão já formada tenha exercido atividade, começa a ser. Faz sua vida ativa em larga
mesmo que por curto tempo, sem o instru- escala independente das condições do corpo.
mento. Os mais remotos restos humanos e os O instinto genérico ainda persiste com plena
fôrça, mas dêle se separou um pensamento e
(1), H. de Vr:~..,: O!e Mut3tiansl.heori~ ll901 . 1903) (A
uma ação inteligentes que não dependem da
Teoria da Mutaç:lo) . c·~pécie. Essa liberdade consiste na liberdarlc
62 0SWALD SPENGLER O HO:\-líE]-1 E .\. Tli:CNICA G3
de escolha. Cada um · fabrica as suas pi·ó- gt·andes animais de rapina, temos agora o
prias armas, de acôrdo com sua habilidade e "pensamento da mão". Do }Jrimeiro <,lesen-
raciocínio próprios. O descobrimento de gran- volveu-se nesse entrelempo o pensamento, que
des acervos de instrumentos falhos e abando- é teórico, contemplativo, observanlc - a "re-
nados são testemunhos eloquentes do cuida- flexão" e a "sabedoria". E agora, do Hegun-
do dêsse primitivo "fabricar conciente". do nasce o pensamento ativo c pr{\lico, nossa
Se, a-;pesar-de tudo, êsses espécimes são "astúcia", a "inteligência" ]H'Opl'iarnenle di ta.
tão semelhantes que - embora com ju~tifi O ôlho indaga sôbre causil c efeito; 1. ,nfí o
cação duvidosa - possamos deduzir a exis- trabalha segundo o princípio · dnH meioH c do
tência de "culturas" rliferençávejs, como a .fim. A questão elo pt·ópl'io c elo impróprio
acheulense e a solutrense, e até mesmo che- o critério do fazedor - nada tem a ver com
gar daí a estabelecer - desta vez certamente a verdade ou a falsidade, que ~ão o~ valoreH
sem justificação - paralelos de tempo nas do observador. E um fim, um alvo, é um fa·
cinco partes do mundo, deve-se isso ao fato to, ao passo que uma conexão de causa e
de que essa liberação da coação da espécie efeito é uma verdade. Dess'arie surgiram ().::!
surgiu a princípio apenas como uma granclP. diferentes modos ele pensar dos homens-de-
possibilidade e está muito longe de ser indi- verdade - o sacerdote, o estudioso, o filóso-
vidualismo já realizado. Ninguém gosta ele Ío - e dos homens-dos-fatos - o poHtico, o
parecer extravagante, nem tampouco de imi- general, o comet•ciante. Desde então, pois,
tar os outros. De fato, cada qual pensa e tra- até mesmo nossos dias, a mão que comanda,
balha para si mesmo, mas a vida da espécÜ! que dirige, a mão de punhos cerrados é a ex-
é tão poderosa que a despeito disso o resul- pressão de uma vontade. Tanto é assim que
tado é semelhante em tôdas as partes - co- temos realmente uma grafologia e uma qui-
mo no fundo acontece até mesmo hoje. rosofia, para não falar em figuras de lingua-
AEsim, pois, além do "pensamento dos gem como o "punho de ferro" do conquista-
olhos", do olhar agudo e compreensivo dos
I •
..
•
O HOMEM E A TÉCNICA 67
SEIS
um bando da forma mais livre e frouxa. Não
se podia falar ainda em tribus e muito me-
nos em povos. Essa hord.a é uma reunião aci-
dental de uns poucos machos - que dessa
vez não lutam uns com os outros, - e de suas
SOB a impressão poderosa dêsse ato singu-
la•·, livrec conciente, que assim emerge
mulheres e dos filhos dessas mulheres. Não
têm sentimento de comunidade. Vivem em
da unifol'me "nlivida<le da espécie", ativida- perfeita liberdade. Não constituem um "nós"
de essa impulsiva e coletiva, tomóu forma a como o simples reba,n ho composto de exem-
alma humana verdadeira, alma mui solitária plares duma espécie.
(mesmo comparada com a dos outros animaia A alma dê~SCR sol ilúl'ioH fol'lCH r total-
de rapina), cheia de expressão pensativa e mente gtwn c•irn, <l <'H<·o tt fiada, t"i mm dl' :-t tm
orgulhosa, alma de quem conhece o seu pró- própt'ia fôrça c clt• ~uas preHaH. l•ila co uiH'C<'
prio destino; alma dotada dum incoercível sen- o sentimento não só do "cu" como elo "meu''.
timento de poderio que se concentra no punho Conhece também a embriaguez dos sentidos
habituado aos feitos; alma inimiga de todos; quando a faca corta a carne do inimigo, quan-
alma que mata, que odeia, decidida à con- do o cheiro de sangue e a sensação ele espan-
quista ou à morte. Essa alma é mais profun- to penetram juntos a alma triunfante. Cada
11
da e mais apaixonada que a de qual.quer ou- homem" verdadeiro, mesmo nas cidades dos
tro animal. Acha-se ela em oposição ip·econ- períodos superiores das Culturas, sente em si
mesmo de tempos em tempos os fogos ad or-
ciliável ao mundo inteiro, do qual a separa
mecidos dessa alma primitiva. Não há aquí
seu próprio caráter criaclo1'. É a alma de um
o menor vestígio dessa lamentável estimação
rebelde.
O homem primitivo preparava sua gua- das coisas como "úteis" e "economizadoras de
rida, solitário como uma ave de rapina. Se trabalho" e muito menos dêsse desdentado sen-
várias "famílias" se reuniam num bando, era timento de compaixão, reconciliação e dêssc
~ i(f
;
68 OSWALD SPENGLER.
O HOMEM E A TÉCNICA 69
anseio de paz. Em vez, porém, disso, há o
profundo orgulho de se saber temido, admi- tísticas"". O Homem an-ebatou à Natureza
o privilégio da criação. A "vontade livre" é
rado e odiado pela sua ventura e pela sua
fôrça, e a necessidade urgente de vingança em si nada menos que um ato de rebeldia. :o
com relação a tudo, tanto aos seres vivos co- homem criador se libertou dos laços da Na-
mo ih; coisas - pois todos constituem, pelo tureza e com cada criação nova se afasta ca-
simples fato de existirem, .uma ameaça a êsse da vez mais dela, torna-se cada vez mais
orgulho. seu inimigo. ls59 é "História Universal", n
E essa alma avança cada vez mais, num história de uma dimensão fatal quo se m·g"llC',
Hcmpre crescente alheamento de tôda a Na- incoercível, sempre crescente, entre o mundo
ture~a. As aqnas dos animais de rapina são
do homem e o universo - n. lliatót·ia clt! 11111
naturais, mas o punho armado do homem l'ebelde que cresce pm·n er AUt'l" n 111:\o c:onlr:1
com a sua arma artificialmente feita, medi- a própria mãe.
tada e escolhida, não é natural. Aquí come- Aquí principia a tragédia do honu~m -·
ça a "Arte" como conceito contraposto à. porque a Natureza é o mais forte dos dols. O
"Natureza". Homem continua a depender dela, porque a
Cada processo técnico do homem é uma despeito de tudo ela o inclue, como a tudo
arte e sempre foi descrito como tal ; assim mais, no seu seio. Tôdas as grandes Culturas
temos, por exemplo, a arte de atirar com o são derrotas. Raças inteiras, interiormente
arco, de cavalgar e de guerrear. As artes da destruídas e quebrantadas, permanecem en-
construção, do govêrno, do sacrifício, da pro- tregues à esterilidade e à decomposição es-
fecia, da pintura, da versificação, da experi- piritual, como cadáveres abandonados no
mentação científica . .. Cada obra do homem campo. A luta contra a Natureza é uma luta
é artificial, antinatural, desde a produção do sem esperança, e no entanto o homem a leva
fogo até as criações que, nas Culturas supe- até o amargo final.
riOl·es, são especificamente consideradas "ar-
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mos que designam coisas muito mais moder- anos mais tarde, quando muito, as Culturas
nas), constlução de cabanas, sepulturas, indi- superiores começam no Egito e na Mesopo-
cações de viagens. Um novo mundo de idéias tâmia. Na verdade, o ritmo da história se
técnicas e de processos se anuncia. Do ponto processa tragicamente. Até então milhares
de vista dos museus- excessivamente super- de anos quasi não contavam absolutamente;
ficial c obcecado pela simples ordenação dos agora, porém, cada século se torna importan-
achados -- foi feita a distinção de duas Ida- te. Em saltos violentos a pedra se aproxima
des du Pedra, a mais velha e a mais nova, a rolando do abismo.
paleolítica e a neolítica. Esta distinção, po- Mas na verdade, que foi que aconteceu?'
rém, há muito tempo vem sendo olhada com Se nos aprofundarmos mais neste novo
inquietantes dúvidas, e nestes últimos decê- mundo de formas das atividades do homem,
nios se fizeram tentativas para substituí-la logo perceberemos as mais fantásticas e com-
por outra. Os estudiosos, porém, se apegam plicadas das relações. Em tôdas essas técnicas,
ainda à idéia da classificação de objetos (co- uma pressupõe a existência da outra. A ma-
mo indicam termos como mesolítico, miolíti- nutenção de animais domesticados exige o
co, mixolítico) e daí não vão para diante. cultivo de forragem, a semeadura e colheita
O que mudou não foram os utensílios, mas de plantas nutritivas requerem por sua vez
sim o Homem. É, uma vez mais, apenas par- a existência de animais de tiro e de carga;
tindo de sua alma que se pode descobrir a his- estes, por seu turno, pressupõem a construção
tória do Homem. de cercados. Cada tipo de edificação exige
Podemos fixar a data dessa mutação a preparação e o transporte de materiais; e
0 transporte, por sua vez, requer estradas,
com razoável precisão se a situarmos lá pelo
quinto milênio antes de Cristo (I) . Dois mil animais de carga e barcos.
Que é, em tudo isso, a t ransfonnação
l/espiritual"? A resposta que ofereço aquí
(1) Segundo as pesquls;u de De Geera tm torno da ccr1-
mk:a listada da Suécia. (lWallexikon der Veorgcscillchte),
está : - ação coletiva por meio de plano.
•
78 OSWALD SPENGLER O HO.:.\IEi\1 E A T1:CNICA 70
Até então cada homem tinha vivido sua P.ró- humanos. O "discurso" ou "linguagem" é
pria vida, feito suas próprias armas, seguido apenas uma abstração disso; é a forma in te·
sua própria tática na luta diária. Ninguém rior (gramatical) do falar e, portanto, das
precisava do próximo. Tuclo isso, pot·ém, mu- palavras. Essa forma deve ser propdedade
da subitamente. Os novos processos ocupam comum e ter uma certa permanência para que
longos períodos ele Lcmpo; em alguns casos, possa servir de meio de informação. Demons-
anos inteiro:;. Pcttscmot:~, por exemplo, no tem- trei em outra parte que o falar em sentenças
po que clü('OJTC cntl'e a clat'l'ubada de uma foi precedido de formas mais simples de co-
ál'vore e a l>úrLü1a <lo bal'co que com ela se municação, tais como símbolos visuais, sinais,
consLru i u. A história se divide numa série de gtsto.s, gritos de advertência e ameaça. Tôdas
"atos'' separados e bem ordenados e ele ((en- essas coisas continuam a existir ainda em nos-
redos" que se desenvolvem paralelamente uns sos dias, como auxiliares da palavra, na me-
aos outros. Para êsse processo coletivo a con- lodia da dicção, na ênfase, no jôgo de gestos
dição prévia indispensável era um meio - e (no discurso escrito) na pontuação.
a linguagem. Não obstante, o falar "fluente" é, por
O falar em frases e palavras, portanto, fôrça do seu conteúdo, qualquer coisa de com-
não pode ter começado antes nem depois, mas pletamente novo. Desde Hamann e Herder
deve ter surgido então - rapidamente corno vêm os homens propondo a si mesmos a ques-
tudo quanto é decisivo e, além disso, em es· tão ela origem da linguagem falada. Mas se
treita conexão com os novos métodos elo ho- tôdas as respostas oferecidas até h1oje nos pa-
mem. recem pouco satisfatórias é porque a intenção
Pode-se provar isso. da pergunta foi mal compreendida. Porque
Que vem a ser "falar"? É sem dúvida a origem da linguagem em palavras não se
um processo que tem por finalidade fornecer pode encontrar na atividade mesma do falar.
informação, uma atividade que é exer'cida t;sse foi o êtTo dos românticos que - alheios
continuamente por uma quantidade de sêres como sempre à realidade - queriam derivar
80 OSWALD SPENG LE R O HOMEM E A TtCNI CA 81
o idioma da " poesia primordial" da humani- vros, e põem-se a fazer minuciosas investiga-
dade. E mais ainda: achavam êles que a pró- ções sôbre aeu próprio modo de pensar e es-
pria linguagem já em si mesma era essa poe- crever. Em consequência disso o "pensamen-
sia original - mito, poema e oração, tudo a to" se lhes ap1·esenta como o fim da lingua-
um tempo - e que a prosa era simplesmente gem falada e - como de hábito êsses pesqui-
qualquer coisa de posterior que se degradara sadores fazem meditações solitárias - esque-
para se acomodar ao uso comum de cada dia. cem-se êles de que além do falar, existe o
Mas se tivesse sido assim, a forma íntima da ouvir, além da pergunta há a resposta, além
linguagem, a gramática, a construção lógica do eu está o tu. Quando dizem "linguagem"
da sentença, deveria ter um aspecto comple- pensam no discurso, na conferência, na diR-
tamente diferente. Na realidade são precisa- 1-'c rLrt<"fto. Rua opinifw sôbrC' a origC'rn ela lín-
mente os idiomas primitivos, como os das tri- g-uas.;<· m é put'lanto f'al~a, po iH ele:-~ 11 <~tteéii'H m
bus bantús e turcomanas, que mostram de c:umo mon6logo.
maneira mais acentuada a tendência de mal> A maneira con cLa de Lratnr o probl<,m·t
car diferenças claras, incisivas e inequívo- não é procurat· saber como mas sim quando
cas. (1) apareceu a 1inguagem em palavras. E uma
Isso por sua vez nos leva ao êrro funda- vez formulada a pergunta, tudo em breve se
mental dêsses inimigos declarados do roman- esclarece. O fim da linguagem em sentenças,
t icismo, os r acionalistas, que vivem etemaN habitualmente mal compreendido ou ignora-
mente apegados à idéia de que a sentença do, é estabelecid o pelo período em que se
exprime um juizo ou pensamento. Sentam-se tornou um costume o falar assim (isto é,
êles a suas mesas-de-trabalho, cercados de li- "fluentemente") e revelado com absoluta
clareza na forma de construir a oração.
( 1) Tanto é ass.lm que ~m muitas línguas a sentença é uma A linguagem não nasceu por meio do
pa lavra única e monstruosa na qual, por melo de prefixos e su-
fsxos cl!USificatlvos, colocados em ordem .regular, se exprime o-
monólogo nem as sentenças seguiram os ca-
que s~ quer dizer. minhos da oratória. Ela nasceu da- conV"er&a-
6- O H. T.
82 OSWALD SPENGLER O HOMEM E A TÉCNICA 83
ção entre várias pessoas. Sua finalidade não que está tão aeostumado a falar, que não po-
é uma compreensão baseada na reflexão, mas de calar a bôca e é capaz de, por mero des-
sim um entendimento recíproco em conse- fastio, tagarelar e entabular conversação
quência de pergunta e resposta. Quais são, quando não tem nada que fazer, tenha ou
pois, as formas básicas da linguagem? Não o não tenha o que dizer. .
juízo nem a declaração, mas sim a ordem, a A finalidade primitiva da linguagem ' é
expressão de ,obediência, a enunciação, a per- a execução de um ato, de acôrdo com uma
gunta, a afirmação ou a negação. Eram sen- intenção, tempo, lugar e meio. A construção
tenças originalmente bastante breves e inva~ clara e inequívoca do ato é o primeiro ele-
riavelmente dirigidas .a outros, tais como "Fa- mento essencial; e a dificuldade de fazer-se
ça isto!" - "Pronto?" - "Sim!" - "Va- compre·ender, de impor aos outros a nossa
mos!". As palavras como designadoras de vontade, produz a técnica da gramática, da
-conceitos e) são apenas produtos da fina}i .. formação de orações e construções, os modos
dade da sentença, de sorte que o vocabulário corretos de dar ordens, fazer perguntas, res-
de uma tribu de caçadores é desde o início ponder, formar classes de palavras - tudo
diferente do de uma aldeia de pastores ou do isso baseado em intenções e própositos prá·
de uma população que habita a beira do mar. ticos e não teóricos. O papel representado
Originalmente o falar era uma atividade di- pela meditação teórica nos princípios da lin..
fícil e pode-se ter como certo que êle estava guagem falada foi praticamente nulo. Todo
limitado ao estritamente necessário. M<esmo o falar era de natw·eza prática e pt·ocedia do
em nossos dias o camponês é parco de pala- "pensar da mão".
vras, comparado com o homem da cidade -
A
' 11
AÇÃO coletiva por meio de plano"
· se pode dar o nome mais curto de 11 em-
decisiva e radicalmente - consiste nisto : em
que a ação comum é uma unidade tão defini-
da como seria a ação pessoal de um gigante.
prêsa". A relação que existe entre o falar e Ou como Mefistófeles diz ironicamente a
o empreender é precisamente a mesma que Fausto:
existia antes entre a mão e o instrumento. O
falar entre muitas pessoas desenvolveu sua ... Me1·co seis urcos,
de seis urcos a fô'rça ajunto à minha.
forma interna gramatical na execução das
L evo-me pelo ar, porque possuo
emprêsas; e, viceversa, o costume de levar a mais vinte e quat1·o pés . . . (1)
cabo tarefas se disciplinolJ. mediante o méto-
do de um pensamento que lidava com pala- O homem, animal de rapina, insiste con-
vras. Porque o falar consiste em comunicar cientemente em aumentar sua superioridade
alguma coisa ao pensamento de outrem. Se o muito para além dos limites de sua fôrça cor-
falar é um ato, é sem dúvida um ato intelec- poral. A êsse seu desejo-de-mais-poder êle sa-
tual com meios sensíveis. Muito em breve crifica até um elemento importante de sua pró·
deixa de precisar da primitiva relação ime- pria vida. O pensar e o calcular um efeito
diata com o ato físico. maior é o que vem em primeiro lugar. E pa-
No quinto milênio antes de Cristo uma ra conseguir isso êle se dispõe a sacrificar um
inovação marcou época: o pensar, o intelec- pouco de sua liberdade pessoal. Por dentro,
to, a razão ou como quer que chamemos a is- entretanto, o homem se conserva indepen-
so que, por meio da linguagem, se emancipou
(I) Goethe - Pausto (Tradução de Ca.stillio).
OSWALD SPENGLER O HOM'EM E A TÊCNICA 87
dente. Mas a História não p-ermite os passos Áustria, Sicília e Portugal; minas que certa-
à retaguarda. O Tempo, e por conseguinte a mente remontam a êsse tempo; minas com
Vida, não são 1·eversíveis. Uma vez habitua- poços e galerias, com ventilação, drainagem e
do à ação coletiva e aos seus êxitos, ficou o instrumentos feitos de cornos de cervo C) .
homem cada vez mais fundamente preso a No p·eríodo neolítico inferior, Portugal e o
êsses vínculos fatais. O pensamento de em· noroeste da Espanha tinham estreitas ligações
prêsa exige um domínio cada vez mais firme com a Bretanha (contornando a França me-
sôbre a vida da alma. O homem se tornou ridional) e a Bretanha por sua vez tinha co-
escravo do próprio pensamento. munições com a Irlanda. Essas relações su-
O passo que vai do uso dos instrumentos põem uma navegação regular e portanto a
pessoais à emprêsa comum implica numa ar· construção de navios capazes de enfrentar o
t ificialidade crescente do procedimento. O mar, a-pesar-de não termos dêstes o menor
simples trabalhar com material artificial (co- conhecimento. Existem na Espanha edifícios
mo na cerâmica, na tecelagem e na arte de fa- megalíticos de pedra lavrada de proporções
zer esteiras) não significa ainda grande coisa, gigantescas com cobertas que pesam mais de
embora esteja muito mais impregnado de es- cem toneladas e que devem ter sido trazidas
pírito e seja muito mais criador do que tudo de muito longe e colocadas em seus lugares
quanto ficou para trás. Chegaram, porém, até segundo uma técnica para nós desconhecida.
nós vestígios de uns poucos processos que Será que na verdade compreendemos bem o
pressupõem de-fato grande fôrça mental e que que de reflexão, consultas, fiscalização e or-
se acham bastante acima dos muitos de espé- dens foi necessário durante meses e anos sem
cie ordinária a respeito dos quais hoje nada fim para se poder extrair o bloco, para tras-
podemos saber. Temos, sobretudo, os que ladá-lo, para distribuir as tarefas no tempo e
nasceram da idéia de construir: Muito antes
de qualquer conhecimento dos metais, havia (1} Realle:clkon du Vorguchkhte (Dicionárlo de Pr~h istó
ria ) ~ Tomo I, Verbct:e: Bergbau (rolné~i o).
minas de pederneira na Bélgica, Inglaterra,
88 . OSWALD SPENGLER O HOM1EM E A TÉCNICA . 89
no espaço, para delinear o plano e para em- mediante a qual o homem se faz representan-
preender e executar um tra·balho dessa· natu- te da Natureza criadora, imitando-a, modifi-
reza? Como comparar a prolongada medita- cando-a, melhorando-a e violentando-a. Des-
ção prévia necessária para o transporte dêsse ' de o tempo em que o homem começou a cul·
bloco por alto mar com a simples produção de tivar em vez de apenas apanhar as plantas
uma faca de pederneira? Só o "arco compos- não há dúvida que êle as tem modificado con-
to", que aparece nas figuras pintadas em ro- cientemente de acôrdo com seus propósitos.
chas, na Espanha, requer para sua constru- Em todo o caso os achados prehistóricos de
ção, tendões, cornos e madeiras especiais, to- exemplares vegetais pertencem a espécies
dos de origens diferentes, e ao mesmo tempo que nunca foram encontradas em estado sel-
um complicado processo de manufatura que vagem. Mesmo nos mais antigos achados de
levava de cinco a sete anos. E a "invenção", ossos de animais que indicam alguma fonna
como ingenuamente dizemos, do carro - · de criação de gado, percebemos já as conse-
quanto pensamento, quantas ordens e quanta quências da "domesticação", a qual em parte,
atividade ela pressupõe, desde a determina- se não no todo, deve ter sido intencional e foi
ção do propósito e da espécie de movimento conseguida por meio de uma criação C) de-
exigidos, da escolha e preparação da estrada liberada. O conceito-de-presa do carnívoro
(um ponto habitualmente esquecido), da cap- se amplia e inclue não apenas as vítimas mor-
tura ou domesticação dos animais para a tra- tas na caçada, mas também o rebanho selva-
ção - até as considerações a respeito do ta- ge que pasta em liberdade dentro (ou mesmo
manho, pêso e amarramento da carga e da di- fora) dos cercados erguidos pela mão do ho-
reção e abrigo de um combóio !
Um outro mundo absolutamente diferen-
( J) Hilzheimer : Natürliche Rassengeschichte der Haussiiugll•
te de criações surge da "idéia" de procriação tiere - 1926 (História Natural d.as Ra ças dos Mamíferos Domés·
- a saber, a criação de plantas e animais ticos).
...
mem. (1). Pertence êle a alguém, - a uma se trate de caçar grandes animais, de cons-.
clã ou bando de caçadores - e seus donos de- truir templos, de lançar uma emprêsa guer-
fendem o seu direito de exploração. A cap- reira ou agrícola, quer se cogite de fundar um
tura de animais para fins de criação, fim que ' ·H
estabelecimento comercial ou de organizar a
JH'essupõe o cultivo de plantas forrageiras viagem de urna caravana, urna rebelião e até
para sua alimentação, constitue uma das vá- mesmo um crime - sempre o primeiro requi-
rias maneiras de possessão naqueles tempos sito é uma cabeça empreendedora e inventi-
praticadas. . va para traçar a idéia e dirigir a execução,
Já demonstt·ei que o nascimento da mão para comandar e para distribuir as tarefas.
armada teve por consequência uma separa- Numa palavra, alguém que tenha nascido pa-
li I
ção lógica de duas técnicas, a saber: a da ra chefe de úutros que não o são.
produção e a do manejo da arma. Do mesmo . Porque na época das emprêsas dirigidas
modo, a emprêsa dirigida pela linguagem le- verbalmente não existem apenas duas espé-
va à separação. da atividade mental da ativi- .,. cies de técnicas - as quais, por falar nisso,
dade manual. Em tôda a emprêsa o planejar divergem de modo cada vez mais definido à
e o executar são elementos distintos e, a par- medidá que se passam os séculos - mas tam-
tir dêsse momento, o pensamento prático re- bém duas espécies de homens, diferenciados
presenta o principal papel. Há um trabalho pelo fato de seus talentos se encontrarem nes-
de direção e um trabalho de execução e êste ta ou naquela direção. Em todo o processo
fato tem sido desde então a fonna técnica há uma técnica de direção e uma técnica de
fundamental de tôda' a vida humana. Quer execução, de sorte que com não menos evj-
dência existem homens nascidos para man-
( 1} M esmo no .século dezenove as tribus de índios perse- dar e homens nascidos para obedecer, aujei-
guiam os grandes rebanhos de búfalos como ainda hoje os gaúchos
argentinos correm a trás dos rebanhos vacuns que são .proprle-·
toa e pbjetoa do processo político e econômi-
dade privada. O nomadismo nasce u assim em grande parte da co. Esta é a forma básica da vida humana
scdentarledade.
92
.
OSWALD SPENGLER
O HOMEM E A 'flf:CNICA 93
em prol do poder e da pilhagem, tanto mais transformar numa jaula de barras estreitas
íntimos e fortes eram os laços da lei e da fôr- para a àlma indomável. O animal de rapina,
ça que prendiam o indivíduo. que transformou os outros em seus animais
Nas tribus de índole assim primitiva, a domésticos afim de os explorar, aprisionou-
vida do indivíduo pouco ou nada importava. se a si mesmo. O grande símbolo dêsse fato
Consideremos, pois, que em cada viagem por é a casa do homem.
mar (as sagas da Islândia ilustram bem isso) Nesta, e em seu crescente número, o in-
só uma parte nos navios chegava ao pôrto; divíduo desaparece, despido de importância.
que em tôda a grande construção perecia par-
.. Porque uma das consequências mais fecundas
te não pequena dos operários; e que tribus do espírito humano de emprêsa é que a popu-
inteiras morriam de fome em tempos de sêca. lação se multiplica. Onde antigamente um
Fica claro que a única coisa que interessava bando de uns poucos milhares vagabundeava,
era que ficassem indivíduos suficientes para assenta-se agora U!fla população de dezenas
representar o espírito do todo. As populações de milhares. (1). Dificilmente se encontram
decresceram rapidamente, mas o que se sen- regiões despovoadas. Os povos são frontei-
tiu como aniquilamento foi, não a perda de I'iços uns dos outros e o simples fato da fron-
um ou mesmo de muito~, mas sim a extinção teira - o limite do poder de cada um - es-
da organização, isto é, do nós. timula os
velhos instintos do ódio, do ataque
Nessa interdependência crescente reside e do aniquilamento. A fronteü-a, seja ela de
a tranquila e profunda vingança da Natureza que espécie fôr·, mesmo a fronteira intelec-
sôbre o ser que lhe arrebatou o privilégio da tual, é o inimigo mortal do Desejo-de-Poder.
criação. ~sse pequeno criador contra a Na· Não é verdade que a técnica humana
tureza, êsse revolucionário no mundo da vi- economize trabalho. Porque o característi-
da, tornou-se o escravo de sua criatura. A co essencial da técnica pe8soal e modificável
Cultura, coniunto das formas artificiais, pes-
soais e próprias da vida, desenvolve-se até se (1 ) H oje se apertam milhões.
O HOl\f.EM E A Tt:CNICA 101
100 OSWALD SPENGLER
para dirigir permanece pequeno. É de-fato o
do homem, em contraste com a técnica da es- ban~o das verdadeiras bêstas de rapina, o
pécie, é o de que cada descobrimento contém grupo dos aptos, que dispõe, dum modo ou
a possibilidade e a neceuidade de novos des- de outro, sôbre o rebanho crescente dos de-
cobrimentos, cada desejo realizado desperta mais.
mil outros desejos, cada triunfo sôbre a na- Mas mesmo essa dominação dos poucos
tureza incita ainda a outros muitos. A alma se acha muito afastada da antiga liberdade.
dêsse animal de rapina está sempre faméli- Dão testemunho disso as palavras de Frede-
ca, seu desejo nunca se satisfaz. Essa é a. rico o Grande: "Sou o primeiro servidor do
maldição que pesa sôbre êsse tipo de vida meu Estado". Daí os esforços desesperados
mas é também a grandeza inerente de seu do homem "excepcional" para se conservar
destino. A paz, a felicidade, o gôzo, são des- interiormente livre. Aquí, e só aquí, começa
conhecidos justamente dos exemplares supe- o indivtdualiamo, que é uma reação contra a
riores. E nenhum inventor nunca previu exa- psicologia da massa. É a última rebelião da
tamente o efeito prático de sua ação. Quanto alma rapace contra o cárcere da Cultura: é a
mais frutífero é o trabalho do chefe, maior última tentativa de sacudir as limitações es-
necessidade tem êle de mãos executoras. Po- pirituais e intelectuais produzidas e represen-
.
risso, em vez de matar os prisioneiros das tri- tadas pelo fato do grande número. Expli-
cam-se, assim, os gêneros de vida que levam
bus inimigas, os homens começam a escravi-
zá-los, afim de lhes explorar a fôrça corpo- o conquistador, o aventureiro, o solitário e
ral. Essa foi a origem da escravidão huma- mesmo certos tipos de criminosos e boêmios.
na, que portanto deve ser tão antiga como a A desejada fuga da absorção pelo grande nú-
escravidão de animais domésticos. mero assume várias formas - o domínio dês-
Em geral êsses povos e tribus se multi- se grande número, a fuga dêle ou o desprêzo.
plicam por assim dizer ~ra baixo. O que au- A idéia de personalidade, em seu sombrio
menta não é o número de "cabeças" , mas sim despontar, é um protesto contra ~ homem da
o de mãos. O grupo de naturezas nascidas
•
102 O~WALD SPENGLER
•
massa. E a tensão entre ambos cresce cada
vez mais até um trágico final.
O ódio, o mais legítimo de todos os sen-
timentos raciais do animal de rapina, pressu-
põe o respeito pelo adversário. Há nele um
recónhecimento de igualdade em categoria
espiritual. Mas o animal de rapina despreza
os sêres que estão por baixo. E os sêres que
estão por baixo são invejosos. Todos os con-
tos, todos os mitos divinos, tôdas as legendas
heróicas estão cheios dêsses motivos. A águia
odeia apenas os seus iguais, não inveja nin- CAPíTULO V
guém, despreza a muitos, ou melhor, a todQs. J O úLTIMO ATO: ASCENÇAO E FIM DA
I
O desprêzo olha das alturas para baixo. A
inveja espreita de baixo para cima. ~sses CULTURA MECÂNICA ·
são os dois sentimentos univenaillüstóricos
da humanidade organizada em Estado e clas-
ses. Seus exemplares pacüicos sacodem, im-
potentes, as grades da jaula em que estão
presos todos juntos. Dêsse fato e de suas co!l- '
sequências nada os pode livrar. Assim foi e
assim há de ser, ou então nada no mundo po-
derá ser. ~sse fato do respeito e do desprêzo
tem um sentido. Alterá-lo é impossível. O
destino do homem está seguindo o seu curso e
tem de ser cumprido.
. .,
..
4 ..
,
DEZ
..
A CULTURA da mão armada tomou um ·
largo alento e se apoderou de tôda a
espécie humana. Nas culturas da linguagem
e da emprêsa - usamos o plural porque sã()
várias e se podem distinguir claramente - a
' personalidade e a massa começam a ficar em
oposição espiritual, e o espírito se torna cada
vez mais ávido de poder, aferrando-se à vida
com violência. Essas culturas, mesmo em sua
plenitude, só compreendiam uma parte da hu-
manidade e hoje, ao cabo de uns poucos mi-
lênios, -estão extintas, tendo sido substituídas
por outras. O a que chamamos "povos natu-
rais" e "primitivos" são simplesmente os re- ,
manescentes do . material vivo, as ruínas de
formas dantes animadas, cinzas das quai&
desapareceu o ardor do vir-a-ser e do perecer.
Nesse solo, a partir de 3.000 anos antes
de Cristo até hoje, têm proliferado, aquí e alí,
as Culturas superiores, Culturas no sentido
mais restrito e no mais largo, ocupando cada
108 OSWALD SPENGLER
O HOMEM E A Tt:CNICA 100.
uma delas apenas uma pequena porção do es-
paço da terra e durando cada uma delas um invejosamente mal compreendidos por aque-
escasso milênio. ~sse é o ritmo das catástro- les que não os possuem.
fes finais. Cada década tem a sua significa- Mas que é o luxo senão Cultura na sua
ção, e cada ano tem quasi a sua "fisionomia" forma mais exigente? Olhemos a Atenas de
especial. É a história universal no seu senti- Péricles, a Bagdad de Harum-al-Raschid, o
do mais legítimo e mais exigente. ~sse gru- rococó . . . A Cultura urbana é luxo ~ tudo
po de apaixonados cursos de vida inventou e por tudo; luxo em todos os graus e clas-
a cidade como seu símbolo e seu "mundo", ses, artificial da cabeça aos pés. É um assun··
em contraste com a aldeia do peliodo ante- • to de arte, quer se trate da arte da diploma-
rior. É a cidade de pedt·a em que se alberga. cia, quer da arte da vida, do adôrno, da pro- ijfl
uma vida absolutamente artificial, que se di- dução escrita ou do pensamento. Sem rique-
vorciou da mãe-terra, que se tornou comple- za econômica concentrada em umas poucas
tamente antinatural, - a cidade do pensa- mãos, não pode haver "riqueza" nas artes, no
mento sem raízes, a cidade que atrai e conso- pensamento, na elegância, para não falar no
me as torrentes de vida que nasceram da luxo de ter uma concepção do universo, de
terra. pensar teórica em vez de praticamente. O
Na cidade nasce a sociedade com sua empobrecimento econômico arrasta imediata-
mente consigo o empobrecimento espiritual e
' hierarquia de classes·- nobreza, sacerdócio,
burguesia - como uma gradação artificial artístico.
da vida ante o "mero" camponês (a natural E neste sentido os processos técnicos que
é a divisão em fortes e fracos, astutos e estú- amadurecem nessas Culturas são também lu-
pidos) e como sede de uma evolução cultu- xos espirituais, frutos tardios, doces e frágeis
ral totalmente intelectualizada. Na cidade de uma artificialidade e espiritualização cres·· •
Teina o "luxo" e a "riqueza". São conceitos (.entes. Começam com a construção das pirâ-
mides funerárias do Egito e das tôrres doa
..-.-·.... ~ · · ·- -·- -·· ""'
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templos sumerianos da Babilônia, surgem es-
•
1.10 OSWALD SPENGLER O HOMIEM E A TtCNICA 111
em 1066, partindo outra vez da Normandia, ço dos métodos matemática., que devemos
conquistam a Inglaterra. e) aos ingleses Grosseteste (nascido em .1175}
Com a mesma audácia e a mesma fome e Roger Bacon (nascido em 1210) e aos
de poder e de pilhagem, neste caso intelec- alemães Albertus Magnus (1193) e Wi-
tuais, os monges nórdicos dos séculos treze e telo ( 1220). Daí, também, a experimen·
quatorz·e penetram no mundo dos problemas tação, a "Scientia experimentalia" de Bacon,
técnico-físicos. Neste caso não há nada da que é a interrogação da Natureza submetida
curiosidade ociosa e sem sentido dos sábios a aparelhos de tortura, ao pé-de-cabra, ao
chineses, indús, clássicos e árabes. Não há torniquete; o "experimentum enim sol um cer-
aquí nenhuma especulação teológica, nenhu- tificat", como escreve Albertus Magnus. É o
ma busca contemplativa de uma imagem da- estratagema intelectual das aves de rapina.-
quilo que se não pode conhecer. Certo, tôda Imaginavam êles que seu desejo era "conhe-
a teoria científica é um mitp que o entendi- cer Deus" e no entanto eram as fôrças inor-
mento cria sôbre as fôrças da Natureza. E gânicas da Natureza - a energia invisível
tôda a teoria depende completamente da re- manifestada em tudo quanto acontece - o
ligião à qual pertence. Mas na Cultura Fáus- que êles lutavam por isolar, apanhar e tornar
tica, e só na fáustica, tôda a teoria, desde utilizável. Essa ciência fáustica, e só ela, é
o princípio, é uma hipótese de trabalho. Dinâmica, em contraste com a estática doa
Uma hipótese de trabalho não precisa ser gregos e a alquimia dos árabes. Não se ..trata
"correta"; o que ie lhe exige é apenas que de matéria, mas sim de fôrça. A própria mas-
. seja prática. Ela se propõe, não abarcar e sa é uma função da energia. Grossetl.:!ste de-
revelar os segredos do mundo, mas sim fa- .senvolveu a teoria do espaço como uma fun-
zê-los servir determinados fins. Dai o avan- ção da luz .e Petrus Peregrinus estabeleceu
uma teoria do magnetismo. A teoria coper-
(1 ) K. T . Strasscr : Wikingtr und Normannen, 1928 (Vt·
nicana do movimento da terra ao redor do
ldngs e norma ndos). sol foi antecipada num manuscrito de 1322 e
,
116 OSWALD SPENG LER O HOMEM E A TÉCNICA 117
formulada - com mais clareza e profundida- própria Cultura Fáustica. Já no século X en-
de do que pelo próprio Copérnico - por Ores- contramos construções técnicas de uma espé-
me, que também antecipou a lei de Galileu cie completamente nova. Robert Bacon e Al-
sôbre a queda dos corpos e a geometria car- bertus Magnus meditavam sôbre a máquina
tesiana das coordenadas. Considera-se Deus a vapor, o barco a vapor e os aparelhos voa-
não mais como o Senhor que governa o mun- dores. E muito mong'9 andava a lidar em sua
do de Seu trono, mas como uma fôrça infini- cela com a idéia do moto-contínuo.
ta (já imaginada como quasi impessoal) que Daí por diante esta última idéia nunca
está onipresente no universo. Era uma forma mais os abandona. Porque o sucesso nesse
singular da adoração divina, essa investiga- terreno significaria a vitória final sôbre "Deus
ção dos monges piedosos em tôrno. das fôrças ou a Natureza" ( Deus sive Natu ra ), um pe-
secretas. E, como dizia um velho místico ale- queno mundo de nossa própria criação a se
mão, "ao servires tu a Deus, Deus te serve n mover como o grande mundo, em virtude de
t1.. " suas fôrças próprias e a obedecer apenas à
O homem estava e~identemente cansado mão do homem. Construir um mundo, ser
de ter a seu set'Viço apenas as plantas, os ani- Deus - eis o sonho dos inventores fáusticos.
mais e os es~ravos, de roubar à natureza seus Dêle surgiram todos os nossos projetos de
tesouros de metal e pedra, madeira e matérias máquinas que se aproximavam o mais possí-
têxteis, de reter-lhe as águas em canais e po- vel do fim inacessível do perpetuum mobile.
ços, de vencer-lhe as resistências por meio O conceito de presa do animal de rapina foi
de barcos, estradas, pontes, túneis e reprêsas. levado até o seu fim lógico. Não se trata dês-
Ag·ora êle tencionava não apenas saquear-lhe te ou daquele pedaço de mundo, como quan-
os materiais, mas escravizar e submeter a do Prometeu roubou o fogo, mas sim do pró-
seu jugo tôda s as suas fôrças, para dêsse mo- prio mundo, completo com o seu segrêdo de
do multiplicar sua própria fôrça. Essa idéia fôrça que é considerado como um despôjo, e
monstruosa e sem igual é tão antiga como a como presa incorporado à nossa Cultura. Mas
118
.OSWALD SPENGLER O HOMlEM E A TÉCNICA
119
os que não estavam possuídos dessa vontade- ram inumeráveis, todos com o mesmo propó-
de-poder sôbre tôda a natureza haviam de sito de extrair as fôrças inorgânicas do mun-
sentir tudo isso necessariamente como algo de do circundante, levando-as a fazer os traba-
diabólico. E, de-fato, os homens sempre olha- lhos em lugar dos homens e dos animais.
ram as máquinas como invenções do diabo. Com o crescimento das cidades, a técni-
Com Roger Bacon começa a longa série de ca se tornou burguesa. O sucessor dêsses mon-
cientistas que foram considerados mágicos e ges góticos foi o inventor leigo e culto, o sa~
hereges. cerdote perito da máquina. Finalmente, com
Mas a história da técnica da Europa oci- o advento do racionalismo, a crença na técni-
dental seguia para a frente. Lá por 1500, com ca quasi se transforma numa religião mate-
Vasco da Gama e Colombo, começa uma no- rialista. A técnica é eterna e imortal, como
va aventura de Vikings. Novos reinos são cria- Deus Pai, e salva a Humanidade como o Fi-
dos ou conquistados nas índias Orientais ou lho de Deus; ilumina-a como o Espírito San-
Ocidentais, e uma corrente de sangue nórdi- to. Seu adorador é o filisteu moderno do pro-
co se derrama na América C), onde antiga- gre3:9o, desde Lamettrie até Lenine.
mente os navegadores da Islândia em vão Na realidade a paixão do inventor nada
haviam desembarcado. Ao mesmo tempo as tem a ver, seja o que fôr, com suas consequên-
viagens dos Vikings do intelecto continuaram cias. Ela é o motivo pessoal de sua vida, sua
em grande escala. A pólvora e a imprensa alegria e tristeza pesaoai~. O inventor quer gon
foram descobertas. De Copérnico e Galileu zar seu triunfo sôbre os problemas düíceis, a
para diante, os processos técnicos se sucede- riqueza e a fama que a vitória lhe traz. Seja
a sua invenção útil ou fatal, criadora ou des-
(1 ) Porque os que emigraram da Espanha, Portugal e Pran- truidora, isso pouco se lhe dá. Mas ninguém
Çl' foram, 'Se'gUramente em sua maior parte, descendentes dos
conquistadores da época das invasões bárbaras. O que restava
está em situação de ~aber disso de antemão.
era a massa humana que havia pudurado atraYb de celtas. ro- Ninguem pode preyer os efeitos de uma "rea-
manos e saN"aceoos. lização técnica da humanidade" e, por falar
...
nisso, a "humanidade" nunca inventou coisa queno que nem pode ser levado em conta.
alguma. Os descobrimentos da química,· co- Entendemos os segredos da Natureza tão pou-
mo o do anil sintético e o da borracha artifi- co como sempre, mas conhecemos, sim, a hi-
cial, transtornam as condições de vida de paí- pótese de trabalho - não "verdadeira" mas
ses inteiros. A transmissão de fôrça elétrica simplesmente apropriada- que nos capacita
e o descobrimento da possibilidade de tirar a forçá-la a obedecer ao comando que o ho-
...
energia da água desvalorizaram as velhas re- mem exprime ao mais leve toque de um bo-
giões carboníferas da Europa, com tôda a sua tão ou de uma alavanca. A marcha dos des-
população. Considerações desta natureza le- cobrimentos se acelera fantasticamente e -
varam alguma vez algum inventor a suprimir deve-se repetir - nem porisso se poupa o
sua invenção? Quem quer que imagine isso trabalho humano. O número de mãos neces-
pouco conhece da natureza rapace do homem. sárias cresce com o número de máquinas, uma
Tôdas as grande descobertas e invenções sur- vez que o luxo técnico ultrapassa tôdas as ou-
gem do deleite que os homens fortes encon- tras espécies de luxo C) e a nossa vida arti-
tram na vitória. São expressões da persona- ficial se torna cada vez mais artificial.
lidade e não do pensamento utilitário das Desde a invenção da máquina, a mais
massas, que não passam de meros espectado- sutil de tôdas as a1~mas possíveis contra a
res do acontecimento, mas que devem sofrer Natm·eza, os empreendedores e inventores
suas consequências, sejam elas quais forem. têm aplicado à sua construção essencialmente
E essas consequências são imensas. O pe- o número de braços de que necessitam. O tra-
queno bando de homens que nasceram para balho da máquina é realizado pela fôrça inor-
comandar, os empreendedores e os invento- gânica - pela pressão do vapor ou gás, pela
res, forçam a Natureza a fazer um trabalho
que se mede em milhões e milhares de mi-
( 1) Cem parem-se as condições de vlda das classes operá-
lhões de cavalos--vapor, e em face disso o nas de 1700 com aa de 1900 e o modo geral de vida dos traha·
quantum de energia física humana é tão pe- Jbadores da cidade com relaçllo ao dos trabalhadores da terra.
'
eletricidade, pelo calor - que se obtem do so nem profundidade. Desperta uma amar-
carvão, do ·petróleo e da água. Mas esta di- gura contra a vida que levam os que nasceram
ferença acentuou perigosamente a tensão es- dotados e com capacidade criadora. Os ho-
piritual entre os condutores e os conduzidos. mens já não vêem mais nem mais compreen-
~les já não se entendem mais. As mais remo- dem que o trabalho dos chefes é o trabalho
tas "emprêsas" nos milênios pre-cristãos exi- maia duro e que sua própria vida depende do
giam a cooperação inteligente de todos os in- sucesso dêle. Sentem simplesmente que êsse
teressados que tinham de saber e sentir do trabalho está fazendo os seus realizadores
que se tratava. Havia nelas, portanto, uma felizes, enchendo-lhes e enriquecendo-lhes a
espécie de camaradagem um tanto parecida alma. E é porisso mesmo que êles os odeiam.
com a que vemos hoje nos esportes. Mas mes-
mo ao tempo das grandes cõnstruções da Ba-
bilônia e do Egito êsse não deve ter sido o
caso. Os trabalhadores individuais não com-
preendiam o objeto nem o propósito da em-
prêsa como um todo, ao qual êles eram indi-
ferentes ou talvez hostís. O 41 trabalho" era
uma maldiçãp como na história bíblica do
Jardim do Eden. E agora, desde o século de-
zoito, 11 mãos" inumeráveis trabalham em coi-
sas cuja função efetiva na vida (inclusive na
vida dêles mesmos) lhes é inteiramente des-
conhecida e em cujos êxitos os donos dessas
mãos não têm a menor participação interior. ,
Uma nudez espiritual se estabelece e se alas-
tra, uma unüormidade enregeladora sem pê-
'
O HOMEM E A T:tCNICA
DOZE 125
•
• 128 • OSWALD S PENGLER O HOMíE.M E A T~CNICA 129
te o simples arado puxado a cavalo do peque- nha como a falta de matérias não poderia de
no lavrador se tem revelado economicamente modo algum det.e r essa evolução poderosa.
superior ao grande trator, e está tomando o Enquanto o pensamento que trabalha dentro
lugar dêste. Já em muitas regiões tropicais o dela permanecer nas alturas, êle saberá sem-
negro ou o pardo, com seus meios primitivos pre criar os meios necessários a seus fins.
de trabalho, é competidor perigoso para a Mas por quanto tempo ficará êle nessa
moderna técnica de plantação do branco. O culminância? Se quisermos manter, nem que
trabalhador branco da velha Europa e da seja no nível atual, os nossos métodos e ins-
América do Norte se está tornando incomo- talações técnicas, precisaremos de, vamos di-
damente perguntador com relação a seu tra- zer, cem mil cabeças invulgares: organizado-
balho. res, inventores, engenheiros. Têm de ser ta-
É tolice falar, é claro, como era moda lentos fortes e, além disso, criadores, cheios
fazer-se no século dezenove, na exhaustão imi- de entusiasmo pela sua causa e formados du-
nente dos campos carboníferos dentro dos rante anos com acerado esfôrço e grandes
próximos séculos e das consequências disso. gastos. Na realidade, há cincoenta anos que
Neste ponto também o século materialista não a maior parte dos fortes talentos juvenís dos
podia pensar doutro modo senão à maneira povos brancos sentem uma inclinação predo-
materialista. Independentemente da econo- minante para essa vocação. Até mesmo as
mia real de carvão pela substituição do pe- cr,ianças brincam com coisas técnicas. Naa
tl·óleo e da hulha branca, o pensamento téc- classes ru·banas e nas famílias, cujos filhos
nico conseguiria descobrir logo outras e mui são os que a êsse respeito devem ser levados
diferentes fontes de fôrça. Mas não deve- em consideração, existe já uma tradição de
mos entrar tanto futuro a dentro nessas cogi- confôrto e cultura, de sorte que as condições
tações. Por.que a técnica americana e euro- prévias normais já são propiciadoras dêsse
ocidental por êsse tempo já terá chegado produto outonal, o pensamento técnico.
a seu tênno. Uma circunstância mesqui- Mas tudo isso está mudando nas últimas
182 OSWALD SPENGLER
O HOMIEM E A TÉCNICA 133
décadas, em todos os países onde a indústria
em larga escala já é antiga. O pensamento qualidades espirituais de seus descendentes.
fáustico começa a se enfarar das máquinas. Mas o grande desenvolvimento técnico do sé-
Está se espalhando um cansaço, uma espécie culo dezenove só fôra possível porque o nivel
de pacifismo na luta contra a Natureza. Os intelectual estava ficando cada vez mais alto.
homens estão voltando a formas de vida mais Não só a diminuição, como também o estacio-
simples e mais próximas da Natureza; pas- namento, é um perigo e um sinal de fim, por
sam o tempo nos esportes em vez de nas ex- mais numerosas e bem pr.eparadas que sejam
periências técnicas. As grandes cidades se as mãos prontas para o tr.abalho.
lhes estão tornando odiosas, e êles aspiram E que é que se passa com elas? A tensão
sacudir o jugo das atividades sem alma e fu- \ entre o trabalho de direção e o trabalho de
~ir à fria atmosfera da organização técnica. execução atingiu um nível de catástrofe. A
E são precisamente os talentos fortes e cria- importância daquele, o valor econômico de
dores que procuram desviar-se dos problemas cada personalidade real que nele existe, tor-
e das ciências práticas para se dedicar à pura nou-se tão grande que já não é visível nem
especulação. O ocultismo, o espiritualismo, compreensível para a maior parte ~os que !5C
as filosofias ·indús, as cogitações metafísicas acham por b;:dxo. No que diz respeito às
de colorido cristão ou pagão, - tudo que foi mãos que executam, o indivíduo agora não
desprezado no período darwiniano está res- tem importância. O que importa é apenas a
suscitando. É o espírito da Roma da época quantidade. O conhecimento dêsse estado de
de Augusto. Enfartados da vida, os homens coisas inalterável, conhecimento agravado,
fogem da civilização e se refugiam nas partes envenenado e financeiramente explorado por
mais primitivas da terra, · em vagabundagens, / jornalistas e oradores egoístas, é tão descon-
no suicídio. /Os dirigentes natos começam ,( solador que a simples natureza humana se
fugir da Máquina. Cada grande empresário revolta contra o papel que a máquina (e não,
tem ocasião de observar uma diminuição das como êles imaginam, os seus donos) confere
à 'maior parte dêles. Aquí começa, em suas
1'()- O H. T.
0 HOMEM E A TÉCNICA 135
134 OSWALD SPENGLER
rocada que está começando reside, entretan-
formas inumeráveis - desde a sabotagem, to, no que posso classificar como traíção à
por meio da greve, até o suicídio - a revolta técnica. Trata-se de coisas que tôda a gente
das Mãos contra o seu destino, contra a má- conhece, mas que nunca foram vistas na sua
quina, contra a vida organizada, contra tudo inteireza, e cujo sentido fatal consequente-
e contra todos. A organização do trabalho, mente nunca se manifestou. A · imensa supe-
tal como existiu por milhares de anos, basea- riOl·idade que a Europa Ocidental e a Améri-
• da na idéia da "ação coletiva", e a con8e- ca do N01ie gozaram, na segunda metade do
quente divisão de trabalho entre condutores século dezenove, no que se ref,ere à fôrça de
e conduzidos, cabeças e mãos, está sendo des- tôdas as espécies - econômica, política, mi-
feita a começar por baixo. Mas a "massa., litar e financeira - estava baseada num in-
não é mais do que uma negação ( esp.ecifica.. contestado monopólio da indústria. GrandEi
mente, uma negação do conceito de organiza~ indústrias só eram possíveis em estreita cone-
ção) e não qualquer coisa capaz de viver por xão com os campos carboníferos dêsses países
si mesma. Um exército sem oficiais não pas- nórdicos. O papel do resto do mundo era 1:
. sa de um rebanho de homens supérfluos e de absorver o produto e a política colonial foi
desorientados C). Um caos de tijolos e ferros sempre, com propósitos práticos, dirigida no~
velhos já não é mais um edifício. Essa revol- sentido do descobrimento de novos mercado~ '
ta em tôda a terra ameaça pôr têrmo à possi· e novas fontes de matérias primas, e não do
bilidade do trabalho econômico técnico. Os desenvolvimento de novas áreas de produção. /
diretores podem fugir, mas os dirigidos, já Havia carvão em outras partes, está claro/
inúteie, estarão perdidos. Seu número signi- mas só os engenheiros brancos é que teriam
fica morte. }Jodido descobrí-lo. Achamo-nos na posse úni-
O terceiro e mais sério sintoma da der- <.:a não só do material como também dos m~
todos e dos cérebros capazes · de dar-lhe apli-
(1) Outra co!sa não fal'. o govêmo soviético nos último R
qlllnze anos senl!o restaurar, sob novos comes, as or{)anl~açõ.:s
cação. Isso constitue a base da vida luxuosa
politicns, m!litares c econômicas que drstrulra.
186 O&WALD SPENGLER O HO.MlEM E A TÊCNICA 137
instrutores. E, por uma combinação da astú- falta de trabalho que se verifica nos países
cia "nativa" com a inteligência ultra-amadu- brancos. Não é uma simples crise, mas o prin·
recida das suas civilizações antigas, possivel- cípio de uma catástrofe.
mente os sobrepujaram. Onde quer que exis- Para os homens "de côr" (os russos fi-
ta carvão, petróleo ou energia hidráulica, po- cam incluídos neste conceito) a técnica fáus-
de ser forjada uma nova arma contra o coraM tica não é já uma necessidade interior. É só
ção da Civilização Fáustica. O mundo explo- o homem fáustico que pensa, sente e vive
rado está começando a se vingar de seus se- dessa forma. Para êle se trata duma necessi-
nhores. As mãos inumeráveis das raças de dade espiritual, não por causa de suas conse-
côr - que são pelo menos tão dextras como quências econômicas, mas por causa de suas
as das raças brancas e muito menos exigentes vitórias. Navigare necesse est, vivere non est
que elas - hão de sacudir a base da organi- necease. Para as raças de côr, ao contrário,
zação econômica dos brancos. O luxo habi· a técnica não é mais que uma arma na luta
lual do operário branco, comparado com o contra a civilização fáustica. Essa técnica
do coolie, será a sua condenação. O próprio maquinista acabará com a civilização fáusti-
trabalho do branco está se fazendo desneces- · ca e um dia· cairá por terra em pedaços, es·
sãrio. As enormes massas de homens concen- quecida - •as nossas estradas de feno e va-
tradas nas regiões carboníferas do Norte, as pores tão mortos como os caminhos de Roma
insta:lações da indústria, o capital nelas em- e como a muralha da China; nossas cidades e
pregado, cidades e distritos inteiros se encon- arranha-céus gigantescos feitos ruínas como
tram em face da possibilidade de sucumbir as antigas Menfis ou · Babilônia. A história
na competição. O centro de gravidade da desta técnica está chegando rapidamente a
produção está se afastando incoercivelmente seu final. Acha-se carcomida por dentro, co-
dêles, especialmente desde que o respeito das m·o as grandes formas de tôda e qualquer Cul-
raças de côr pelo branco terminou com a tura. Quando e de que maneira acabará, não
Grande Guerra. Esta é a base real e final da sabemos.
140 OSWALD SPENGLER
MEllóBU8
DE SA.l'~A. BELE1U.
mano e histórico.
Cartas, &&critoa fi op~
grande Imperador, reuD\401
volume pela primeira .,..
\ lingua. portugu&ea.
\
!ndict da. obra:
I - De Rochefort a Baal
Helena.
JI- Juizos literárloa (H
mero, Vtrglllo, Raol
etc.)
Ill- Retratos de 101~
(Opintõea sObre 01 1ft
des capltlea, • IOt
Deaalx, Klêber, loalt
Wellington.)
IV- Retratos de Pol.U.
(Talleyrand, Pltt, ocr
.__
. wallls e Fox)~
V- Oplntoea sObre a pol
---:--~ ca e a. guerra. •
VI- Napol&llo mo;raflata.
VII- NapoleA.o eclucador.
VIU- Napolell.o oconomiiU
IX- Napolell.o admlnletrll
X - Recordaç!Se11 • &D...
XI- A.aauntoa dlY...IOII
fatallamo, o acuo, a
dlcina, a múlo&.) ·
XII- AI paluru ••Jn.
- EDIÇGES D&UtUII