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Um documento de pro tuto. de ind1gn.

1 ·
ç.io. dt angústia e de revolta, no qual
10$000
um penetroante observador descreve as
EM TODAS AS
a\õ~~s d.) upeucular colapSf .da França !
LIVRARIAS-

..
01
0 RODX E A TjCNICA"

Eeerlto e publicado ap6s o


monumental "A Decadênc.la do
Ocfdenfle'', o llvro Que as Edl.
tle1 IerliJ&Do apresentam ho-
Je ao pObUco brasileiro encerra
um eumárlo da filosofia de Os-
wald Bpengler.
Estava êle convencido de que
a cultura técnica - a cultura
da Idade da máquina Que o ho-
mem criou com a. sua capaci-
dade llnlca para a técnica In-
dividual, bem como para a ra-
cial, - J! atingiu seu ponto
mate alto e que o futuro só
nos reserva catáetrotes.
A era mecânica em que vive-
A. TÉCNICA
moa - acha êle - não tem
Ylda cultural progressiva, mas
apenas A.nsla de poder e de
po11e. O triunfo da máquina.
conduz nlo a menos traballla-
dorea e menos trabalho, mas a
um estado de reglmentação em
uaa11a. A técnica ditou, pois, I
o dettlno da civilização ocl-
dMlal.
{
o nzu dêste livro pequeno
utaa compacto e cheio de fOrça,
~ uma peroração !llosóflca que
dltlollmente encontrar!\ Igual
em no11a 6poca.
1'odo o volume la.n ça luz sO-
bre o que parecer obscuro a
multoa leitores em "A Deca-
dtncla do Ocidente''.

OSWALD SPENGLER

O BOIEI E
·1 TÉ CNlCA
CONTRIBUIÇÃO

A UMA FILOSOFIA DA VIDA

1 9 .. 1

B DI Ç O ES MER I D I AN O
PORTO ALBGRB


Public:~do originalmente em alemão com o seguinte título:
"DER MENSCH UND DJE TECHNIK .,
1931

TRADUÇ.\0 DE

ERICO VERISSIMO

'

I 9 1 1

OP. GRAP. DA TJP. TU.URMANN


Rua 7 de Setembro, 7:13
POrto Aler.o
OSWALD S PENGL
....
ER

O SWALD SPENGLER nasceu em. 1880, em


Blankenbu1·g, Alemanha. Estudou tnatetnáti-
ca, filosofia e história em. Munich e Berlim, e de
1907 a 1911 ensinou 1na.tem.ática e fisica numa es-
cola em. Hamburgo. A crise de Agadir em 1911
lhe seniu de incentivo imedwto para exha:u.stivas
investigações em. tôrno das orige?tS de nossa civili-
zação. Abandonando o magistério, completou em
1914 a prirn.eira ve1·são do volume primeiro de A
DECAD~NCIA DO OCIDENTE, que permaneceu
inédito durante quatro anos. Antes disso nada ha-
via publicado além de sua tese de doutoramento sô-
bre H e1·áclito.
Durante seus últimos anos de vida, Spengler
enchia as horas de lazer com quad1·os, ar1na.s p1·i·
?nitivas, quartetos de Beetlwven e c01nédias de Sha-
kespeare e Molie.re. Eram essa.s as diversões P1'in-
cipais do filósofo, além, de passeios a pé ds nwnta-
nhas de Harz e de visitas à Italw . Sob o regime
nazista te·ve a coragem, de exprimir o seu desprêzo
pelo anti-semitismo e no fim cait' dà.s graças do
8 'OSWALD SPENGLER PREFÁCIO
pa1·tido, o qual, ent1·etanto, nad4 ousou faze?· cont·ra
êle.
Oswald Spengler •morreu e·m Munich a 8 d fl
Maio de 1996. Por ocasião de seu falecimento o '
"New Yol'k Times" esc1·eveu num editorial: I" A
primeira edição de "A Decadência do Ocidente"
apa1·eceu não apenas antes da ascenção de Musso-
lini lW pode?·, mas também ?nuito antes do apa?·c-
N AS pclginasseguin~ ponho ante os olhos do
leitor uns poucos pensamentos tirados de
ci·m ento 'de Hitler. As.si?n, quando Spengler predi- urna obra maior na qual há anos me acho empe-
zia a volta da ditadura, não estava mera?nent/3 nhado. IF'oi minha intençã'O empregar aqui o mes-
profetizando um estado de coisas já atingido. Sua.~ mo método que em A D ecadência do Ocidente apJi.
profecias cumpriram-se quasi contpletamente na quei exclusivamente ao grupo das culturas superio-
Alemanha". res para a investigação de seu pre-requisito histó -
Além de "A Decadência do Ocidente", publicou rico, ou seja a história do homem desde suas ori-
Spen.gler "A Hora da, Decisão" e êste ad·m.irável "O gens. Mas a experiência do trabalho anterior mos-
Homem e a T écnica" que, segundo o crítico anteri- h'Ou que os leitores em sua maioria não se acham
cano Law1·ence Stallings é "u?na obra de filosofia em condições de ter wma visão de conjunto da mas-
como ninguém a não se1· Spengler nos podia da1· sa de idéias como um todo, de S()II'te que assim se
com tal amplitude". perdem nas particularidades dêste ou daquele do-
!lDÍnio que lhes é faromar, vendo o resto de soslaio
• • o ou então não vendo de maneira nenhuma. Em con-
sequência disso, ficalm com uma falsa imagem não
só do que escrevi; como também do assunto sôbre
o qual escrevi. Hoje, como então, estou convencido
de que o destino do homem só pode ser coanpreen-
<lido se levarmos em conta tôdas as provincias de
sua atividade simultti?tea e compMativa.mente, evi-
tando o êrro de procurar a elucidação de algum prG-
blema - por exemplo: o da política, da religião ou
o da arte - considerando-o exclusivamente como
10
• OSWALD S PENGLER

um aspecto particular de sua existênc.


de qu . ~ . Ia, na crenç~
e, lSSO .leito, nada mais resta a d.
Nest ]' Izer.
e Ivro, não obstante, aventuro-me a pro
por a 1gun.s dêsses problemas. s- -
tre muitos A h ao uns poucos den-
la d · c am-se, poréan, de tal forma entr e..
ça ~ que podem por ora a judar o leitor a tei·
wrna 1mpress- á 'd
...._-:, ~ r P1 a e provisória do grande se-
IS~.,..,o do destmo humano. íNDICE
l- A T'ÉO'llCA COMO TATICA DE VlDA . . . . . . . . 13'

P roces.s:> e mrios. - Luta e arma. - Bvoluçl!o e reall·


:z.ac;:lo. - 1\. transitoriedade como forma do reill.

JJ - HERDIVORDS E ANIMAIS DE RAPINA . . . . . . . . 35

O homem como animal de rapina. - "Ser" prua e "fa-


ur" presa. - O movimento como fuga e ataque. - O
Olho rnpace e seu mundo. - A invariável "técnica da
rspécie" e a técnica Inventiva- do homem.

lll - A ORIGEM DO HOMBM : A MÃO E O INSTRU-


MENI'O ....... . . . . ..... . . . ... . ........ . .... .... 53

A mllo como órgll.o do tacto e da açllo. - Dlferenclac;ão


entre o fabrico da., armas e o u~o delas. - Liberac;âo
!'elatlva à coac;:Jo da- espécie. - "P ensamento do Olho" e
"pensamento da mllo". - Meios e fim. - O Homem co-
m:> criador. - O ato singular. - Natureza e "arte" . -
A tlknica humana é artificial. Homem vus~ Natureza.
- A tragédJa do Homem.

JV- O SEGUNDO ESTADIO: FALAR E EMPREENDER• 71


O "fa:.er" coletivo. - H A quanto tempo s.e fala com pa-
lavras? - Finalidade da linguagem : w ~pr~sà coletivl.
OSWALD SPENGLER

- Finalidade da empr~sa : exaltação d.:~ p.:>to!ncia huma -


na. - Separação do pensamento e da mão : o trabalho
do diretor c o trabalho do executor. - Cabeças e mãos .
3 hierarquia dos talentos. - Organizaçllo. - Existên-
cia organizada : Estado c povo, polftl<:a e economia. -
A técnicá e o número dos homen.~. - P~r~ona!idade c
massa.

V- O úL11MO ATO : ASCE!\i'ÇAO E FIM DA CULTU-


RA MECANICA .......... , . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

Yiklngs do Intelecto. - Experi~ncia. hlp6tc~c de trabnlho,


J:>CrpctuUDl mobile. ·- Sentido d.l máqu!na, a& fôrças or-
gânicas da Natureza ohrlgada5 a trabalhar. - Indústria.
riqueza e poder. - Carv:lo e populaç;Jo. - M.!canizaç:ío CAPíTULO I
do mundo. - Sintomas de dccad~nci,l : dimlnulçllo dJs
naturezas c!iretoras. - A revolta d;u mlos. - O mono-
pólio perdido êa técnica. - O mundo colorido. - O Plm. A TÉCNICA COMO TÁTICA DE VIDA
,

.
Processo e meios.
Evolução e realização.
Lz'to. e arm.a. __,
A transitoriedade
ccnno forma do rea.l.
~M

O PROBLEMA da técnica e de sua rela-


ção com a Cultura e a História só no
século dezenove é que se apresenta pela pri-
meira vez. O dezoito, com o seu cepticismo
fundamental - com a sua dúvida que se avi-
zinhava do desespêro - havia proposto a
questão do sentido e do valor da Cultura. Foi
um assunto que levou a outros cada vez mais
largos e subdivididos, criando assim para o
bécnlo vinte, para os nossos próprios dias, a
possibilidade de olhar a História Universal
c:omo um problema.
O século ~ezoito, a era de Robinson Cru-
Hoe e de J ean Jacques Rousseau, dos parques
ingleses e da poesia pastoril, considerava o
homem "primitivo" como uma espécie de cor-
cleirinho pacífico e virtuoso, que mais tarde a
Cultura deitou a perder. Seu aspecto técnico
era completamente esquecido ou, se chega-
vam a vê-lo, consideravam-no iudigno da
ntenção do moralista.
~ - o H. ·r.
18
OSWALD SPENGLER
o !IOMEM E A TÉCNICA 1~ •
Mas depois de Napoleão a técnica ma-
quinista da Europa ocidental cresceu a pro- patrono da literatura e da arte. ~ouco imp~r- ~
porções gigantescas e, com suas cidades fa- Lava a maneira como se conduzia em outr~s ~~
brís, suas estradas~de-ferro e barcos a vapor Lcrrcnos. Q Estado era um constante obsta- ~
obrigou-nos finalmente a encarar o problema culo à verdadeira Cultura que se buscava nas
' de frente e a sério. Qual a significação da salas de conferências, nos refúgios dos estu-
técnica? Qual o seu sentido dentro da Histó- üiosos e dos artiStas. Mal se chegava a dar
ria? O seu valor dentro da vida? Que posi- crédito à possibilidade da guerra, que não
çã-o ocupa, social e metafisicamente? Ofere- passava de uma barbárie de épocas pretéri:as.
ceram-se muitas respostas a essas perguntas, A economia era qualquer coisa de ptosaiCo,
mas no fundo elas se podem reduzir a duas. slúpido e indigno de nossa atenção, en:?~ra
De um lado, o&. idealistas e ideólogos, os na realidade fôsse assunto de trato d1ano.
epígonos do Classicismo humanista da época Mencionar o nome de um grande comerciante
de Goethe, consideravam as coisas técnicas e ou de um grande engenheiro junto com o de
os assuntos econômicos corno fora ou melhor Poetas e pensadores, era quasi um ato de
'
abaixo da "Cultw·a". O próprio Goethe, com
, lêse-majesté à "verdadeira Cultura " . E xami-.
seu grande senso do real, havia procurado, no nemos, por exemplo, as Weltg:scbichtlic~e
seu segundo Fausto, penetrar nas mais fundas Betrachtungen (Considerações sobre a His-
profundidades dêsse novo mundo-de-fatos. tória Universal) de Jakob Burckhardt. Seu
Mas já em Wilhelm von Humboldt temos os ponto de vista é característico da m~ioria dos
princípios de urna concepção filológica e anti- professores de filosofia e até de n~o pou:os
realista da História que, no fim de contas, historiadores, ao mesmo tempo que e tambem
0 ponto de vista dêsses literatos e est:tas 9-e
aquilata o valor de uma época histórica pelo
número de quadros e livros que ela produziu. nossos dias que consideram a elaboraçao dum
Um homem de govêrno só era olhado como romance mais importante que o projeto de
figura significativa quando ganhava foros de um motor · de avião.
() llOMIEM E A T:tCNICA 21

OSWALD SPENGLER. quina. Libertar os homens da "miséria da


escravidão ao salário", dar-lhes igualdade nas
De outra parte havia . o Materialismo - diversões e confortos e no "gôzo da arte". É
• .. em sua essência um produto inglês. Estava o panem et circenses da urbe gigantesca das
em grande moda entre os semi-cultos da se- épocas de decadência que se está apresentan-
gunda metade do século passado. Era a filo- do. Os filisteus do progresso se entusiasma-
sofia do jornalismo liberal e das assembléias vam liricamente a cada botão que punha em
populares radicàis, dos marxistas e dos escri- movimento um aparelho cuja finalidade era,
tores ético....sociais que se consideravam pen- :ao que se supunha, a economia do trabalho
sadores e profetas. humano. Em lugar da religião honesta dos
Se o característico da primeira classe era tempos passados, havia um entusiasmo super-
uma falta do senso da realidade, no segund() ficial pelas "conquistas da humanidade" -
grupo o que havia era uma ausência devas- palavras estas que nada mais querem dizer
tadora do sentido de profundidade. O ideal s enão progresso na técnica da economia do
dos materialistas era o útil e a penas o útil. trabalho e da fabricação de divertimentos.
Tudo quanto fôsse útil à "humanidade" era. Sôbre a alma, porém, nenhuma palavra.
um elemento legítimo de Cultura, era na rea- Ora, tais ideais não são em absoluto do
lidade Cultura. Quanto ao resto .. . luxo, su- gôsto dos grandes descobridores (com raras
perstição ou barbárie. exceções) nem mesmo dos que conhecem bem
Agora: essa utilidade era a utilidade que: os problemas técnicos. Mas o é dos especta·
levava à "felicidade do maior número" e es- dores que os cercam e que, inc:apazes de des-
sa felicidade consistia em não fazer , nada. cobrir qualquer coisa ou pelo menos compre-
Tal é em última análise a doutrina de Ben- ~nder o que por acaso descobrissem, sentem
tham, Spencer e Mill. Mirmava-se que o ob- que há no ar algo que pode redundar em
jetivo da humanidade consistia em aliviar o. seu benefício. Nessas condições, uma vez
indivíduo da maior quantidade possível de
trabalho, atirando a carga para cima da má-
.:
'

22 OSWALD SPENGLER. o 11 O~tEM E A TÉCNICA 23

que em cada "ci~ilização" (1) o materia- t l'ivial, tais imbecilidades nos fazem estreme-
lismo se distingue por sua falta de fôrça ima- à idéia do pavoroso tédio - o tredium
(' C' l'
ginativa, surge o quadro dum futuro no qual vitre da Roma Imperial - que se estende
o fim último e a condição duradoura e final Hôhre a alma humana à simples leitura dês-
da humanidade é um paraíso terrestre, con- ~cs idílios. Porque se êles se tornassem éfe-
cebido segundo as tendências técnicas, diga- livos na vi:da real, ainda mesmo que apenas
mos, da casa dos 80 no século passado - uma l'm parte, só poderiam levar ao assassínio e
desconcertante negação do conceito mesmo :to suicídio em massa.
de progresso, que por hipótese exclue os "Es- Ambos êsses pontos de vista estão hoje
tados". Essa ordem de idéias é representada antiquados. Chegamos finalmente, com o sé--
por livros como o Alte und Neue Glaube (A culo vinte, a uma era suficientemente madura
Antiga e a Nova Fé) de Strauss, Looking p:tra penetrar na significação derradeira dês-
Backward (Retrospecto) de Bellamy e Die scs fatos cuja totalidade constitue a histéria
Frau und der Sozialismus (A Mulher e o So- do mundo. A interpretação das coisas e dos
cialismo) de Bebe!. Nada de guerras; não :1 contecimentos não é mais assunto do gôsto
mais diferenças de leis, raças, estados ou re- p!'ivado de alguns indivíduos de tendência
ligiões; nada de criminosos e aventureiros~ racionalizadora, ou das esperanças e desejos
·nada de conflitos surgidos da superioridade e elas massas. Em lugar do "talvez seja assim"
das diferenças na maneira de ser das pessoas; ou do "devia ser assim" teremos os inexorá-
não mais ódios ou vinganças, mas apenas um veis "é assim" e "há de ser assim". Um cepti~
infinito bem-estar por todos os séculos dos cismo orgulhoso vem substituir os sentimenta-
séculos. Mesmo hoje em. dia, quando estamos lismos do século passado. Aprendemos que a
ainda a viver as últimas fases dêsse otimismo História é qualquer coisa que não tem em
menor conta as nossas esperanças.
(1) A palavra aqui é usada na turalmen te no se-ntidO espe-
O tacto fisiognomônico, como chamei em
cifico q ue ela tem em '"A Decadência <lo Ocldenti!", (N. do T.). outro livro à faculdade que nos permite pene-
24
OSWALD SPENGLER DOIS
~rar. o sentido dê todo o acontecimento - a
Intuição de Goethe e de todos os que nasce-
r~m com ? ?~m de conhecer as criaturas, a
~~a e a histona através dos tempos- o tacto
fis.IO~omônico é que descobre no indivíduo,
SeJ~ ele pessoa ou coisa, a sua significação
mais profunda.
pARA compreender a essência da técnica,
não devemos partir da técnica da era
da máquina e muito menos da idéia engana-
dora de que a construção de máquinas e uten-
.sílios seja o pbjetivo da técnica.
Porque na realidade a técnica . é mui-
tíssimo antiga e, além do mais, ela não é
algo de historicamente específico mas sim
.qualquer coisa de imensamente geral. A ·téc-
nica transcende as origens da humanidade,
recua até a vida dos animaiS, de todos os ani-
mais. O tipo de vida dêstes últimos, em con-
traste com o da planta, se distingue pela sua
-capacidade de movimento livre no espaço,
pela posse, em maior ou menor grau, de von-
tade própria e pela independência da Natu-
reza como um todo. Assim sendo, o animal é
obrigado a manter-se contra a Natureza e a
-dar à sua própria existência certa espécie de
.significação, certa. espécie de conteúdo e cer-
ta espécie de superioridade. Se vamos então
26
OSWALD SPENGLEH O HOMEM E A T~CNI CA 27

atrí~uir um significado à técnica, devemcs


partu· da alrna, e apenas dela. exemplo, a de um leão negaceando uma g~-
7ela ou a da diplomacia. A técnica da admi-
Porque a livre mobilidade dos animais é
lut~, nada mais, nada menos que luta. É ~ nistração consiste em manter· o Esta.do apto
t?tica de vida, a sua superioridade ou inferia· [)ara as lutas da história política. Existem as
c
técnicas da guerra química e de gases. H' _a
l'ldad~ em face do "outro" (seja êle Nature- ainda a técnica .das pinceladas do pintor, a da
za ammada ou inanimada) que decide a his-
tória dessa vida, que determina se seu destino/
equitação e a de pilotar dirigíveis. Não se
é. so.f~er a... história dos outros ou é ser êle a
trata de coisas, mas sim de uma atividade ~u.e
tem um propósito. E é precisamente por Isto
' lnstoria desses outros. ..A..Técnica é a tática
que tantas vezes tem sido esquecido no estu-
{ de .vi::; é a forma íntima cuja expressão ex-
teflot e a conduta no conflito - no conflit do da pre-história, em que se presta exage:
que se identifica com a própria Vida.
0 rada atenção às coisas dos museus e se da
pouquíssima importância aos inumeráveis pr_?-
Vamos ao segundo êrro que se deve evi-
cessos que devem ter existido, mesmo que nao
tar: A técnica não deve ser compreendida
hajam d-eixado o menor vestígio.
~omo inse~r~vel dos instrumentos. O qu•.
1/ mas
lmporta nao e como se fabricam as coisas,
não se trata das
o que fazemos com elas;
Cada máquina serve um processo, e de-
ve sua existência ao pensamento a respeito
armas, mas da batalha. A guerra moderna dêsse processo. Todos os nossos meios de
transporte se desenvolveram da idéia de mo-
na qual a tática é o elemento decisivo - is~
é~ levando em conta que a técnica de condu. vimentar um carro, de remar, de navegar a
vela e não do simples conceito de carro ou de
~~ : a guen·a, .a técnica de inventar, de produ-
1

barco. Os próprios métodos são armas. E con-


~n' de maneJar as armas são apenas elemen-
' tos do processo como um todo - aponta uma sequentemente a técnica não é uma parte ~a
economia, do mesmo modo que a economia
v:rdade geral. Há inúineras técnicas nas quais
(ou a guelTà ou a política) não pode ser c~n:
nao se usam absolutamente instrumentos. Por
siderada uma parte da vida existente por SI
28 OSWALD SPENGLER

mesma. Todos êsses são apenas aspectos de O HOMiEM E A Tl!:CNICA


uma vida ativa, lutadora e cheia. Não obstan·
t e, da guerra f1"\~ 1Htl "' •
lnme~ das bestas extmtas a verdade, que ninguém ousava imaginar.
emerge um caminho que leva aos processoa Porque um alvo é um fim. Ninguém faz uma
dos modernos inventores e engenheiros, do coisa sem pensar no momento em que atinge
mesmo modo que da cilada, a mais antiga de o que deseja. Ninguém começa uma guerra
tôdas as armas, sai uma estrada que conduz ou uma viagem ou mesmo um simples passeio
ao desenho das máquinas com que hoje fa- sem pensar na direção ou na conclusão. Todo
z·emos guerra à Natureza, superando-a em o ser humano realmente criador conhece e te-
estratagemas. me o vazio que se segue à terminação duma
Ao movimento nesses caminhos se dá p obra.
nome de Progresso. Foi essa a grànde epígra- A evolução implica em cumprimento --
fe do século passado. Os homens viam a his- cada evolução tem um princípio e cada cum-
tória à sua frente como uma rua pela qual a primento é um fim. A velhice está implícita
"1mmanidade" marchava corajosa e sempr(;: na juventude; o nascimento no perecimento;
para a frente; e com "humanidade" queriam a morte na vida. Porque o animal, cujo pen-
designar as raças brancas ou, mais exatamen- samento está preso ao presenté, conhece ou
te, os habitantes de suas grandes cidade, ou, fareja a morte como alguma coisa que está
com maior precisão ainda, os "educados". no futuro, alguma coisa que não o ameaça.
Mas . . . marcha para ·onde? Por quanto 1tle apenas conhece o mêdo da morte no mo·
tempo? E . . . depois? mento de ser morto. Mas o homem. que tem
Era um pouco ridícula essa caminhada o pensamento emancipado das cadeias do
rumo do infinito, dum alvo em que os homens aquí e do agora, do ontem e do amanhã, in-
não pensavam seriamente, dum objeto que vestiga o "uma vez" do passado e do futuro,
ninguém concebia com nitidez ou, para falar e o seu triunfo ou derrota final ante o mêdo da
morte depende da profundidade ou superfi-
cialidade de sua natureza. Conta velha lenda. 1 •
grega, sem a qual não existiria a llíada, que,
30 OSWALD SPENGLER O HOMiEM E A Tli:CNICA 31

tendo a mãe de Aquiles oferecido a êste a es- os céus para submeter as potências divinas ao
colha de uma vida longa e vazia ou de uma homem, estava. implícita a queda. Que é fei-
vida breve mas cheia de feitos e de fama êle to, pois, dessa palavrosa alusão às "realiza-
preferiu a segunda. ' ções imorredoiras"?
O homem era e é demasiadamente super- A história do mundo tem um aspecto com-
ficial e covarde para suportar a idéia da mor- pletamente diferente daquele que nosso século
talidade de tôdas as coisas vivas. :ttle a en- se permite sonhar. A história do homem, com-
volve 'no otimismo côr-de-rosa do progresso, parada à do mundo animal e vegetal dêste
amontoa sôbre ela as flores da literatura, fica planeta - para não falar na vida dos mun-
a rastejar por trás de uma muralha de ideaia dos estelares, - é realmente breve. É uma
para nãü enxergar nada. Mas a transitorie- ascenção .e um declínio de uns poucos milê-
dade, o nascimento e o passamento, é a forma nios, um período que não tem a menor impor-
de tudo quanto tem realidade - desde as es- tância na história da terra mas que, para nós
trêlas, cujo destino para nós é incalculável, que nascemos com êle, está cheio de fô1·ça e
até o efêmero formigueiro de nosso planeta. gral!deza trágicas. E nós, sêres humanos do
A vida do indivíduo, seja êle animal, planta século vinte, descemos a encosta vendo a des-
ou homem, é tão perecível como a d.os povos cida. Nossa faculdade de perceber a história,
e das Culturas. Cada criação está predesti~ nossa capacidade de escrevê-la, é um sinal re-
nada à decomposição; todo o pensamento, velador de que nosso caminho se dirige para.
todo o descobrimento, todo o feito estão con- baixo. Nos picos das Culturas superiores, n~
denados ao esquecimento. Aquí e alí, por tô- momento em- que estas se acham em trânsito
da a parte vislumbramos cursos da história de para a civilização, êsse dom de penetrante co-
grandioso destino e hoje desaparecidos. Ve- nhecimento lhes aparece por um instante, mas
mos em tôrno de nós ruínas das obras "que só por um instante.
foram", de culturas mortas. No descomedi- Entre os enxames das estrêlas "eternas''
• mento de Prometeu, que ergueu as mãos para intrinsecamente não importa qual seja o eles-
O HOMEM E A TÉCNICA 83
32 OSWALD SPENG LER..
com um dado mundo e acabam vencendo ou
tino dêste pequeno planeta que segue seu cur- sucumbindo enquanto o universo ao redor dê-
so por breve tempo em algum lugar do espaço ' .
les segue lentamente o seu curso com. uma In-
infinito. Ainda mais insignifieante é aquilo diferença divina. Essa batalha é a v1da - a
que em sua superfície se move durante alguns vida, sim, no sentido nietzscheano - uma lu-
instantes. Mas cada um de nós, intrinseca- ta tôrva, impiedosa e sem quartel, que nasce
mente um nada, se vê lançado nesse universo- da vontade-de-poder.
rodopiante por um minuto indizivelmente bre-
ve. Porisso êste mundo em miniatura, esta
história universal, é algo de suprema impor-
tância. E, o que é mais, o destino de cada um
dêsses indivíduos não consiste apenas em,.
por seu nascimento, terem sido êles trazidos
para dentro desta história universal, mas sim
em haverem aparecid'O num detenninado sé··
culo, num determinado país, num determina-
d'O povo, numa determinada religião, numa
determinada classe. Não está ao nosso alcan-
ce escolher entre ser filho dum camponês
egípcio de 3.000 A. C., de um rei persa ou en-
tão dum vagabundo de nossos dias. A êsse
destino temos ~e nos adaptar. ~le nos con·
dena a certas situações, concepções e ações.
Não existe "o homem em si" tal como querem
os filósofos, mas apenas homens de uma épo-
ca, de uma localidade, de uma raça, de uma
índole pessoal, homens que travam batalha 3 - O H. T. I
CAPiTULO II

HERBIVOROS E ANIMAIS DE RAPINA


O homem como animal de rapina.
4
Ser" presa e "fazer" presa. - O movimento
'

como fuga e ataque. - O ôlho rapace e seu,


mundo. - A invariável "técnica da espécie"
43 a técnica inventiva do homem.

"
TRE:S

O HOMEM é um animal de rapina.


Pensadores agudos como Montaigne e
Nietzsche nunca ignoraram isso. Os velhos
contos-de-fadas e os provérbios dos campo-
neses e nômades de todo o mundo, com sua
sabedoria da vida: a semi-sorridente penetra-
ção característica dos grandes -conhecedores
de homens (estadistas, generais, comercian-
tes ou juízes) do alto de suas vidas ricas: o
desespêro do reformador fracassado: a invec-
tiva do sacerdote irado -• em nenhuma parte
se nega ou sequer se tenta esconder êsse fato.
Só a cerimoniosa solenidade dos filósofos
idealistas e outros . . . teólogos é que não te-
ve a coragem de proclamar o que no fundo
os seus corações sabiam muito bem. Os ideais
são covardias. Não obstante, das obras mes-
mas dessas pessoas se pode tirar uma bonita
antologia das opiniões que de quando em
quando. elas deixaram escapar a respeito da
bêsta humana.
40 OSWALD SPENGLER O HOMoEM E A TtCNICA 41

Devemos hoje ajustar contas definitiva- quer poeta, conhece. Gosto de meditar sôbre
mente com êsse modo de ver. O ceptidsmo, a. fisiognomônica dos modos em que se mani-
a única atitude filosófica possível nesta época festa a vida animal e sôbre as espécies da alma
(mais ainda: a única digna dela) não permi- animal, deixando aos zoologistas a sistemá-
te tanto desperdício de palavras. No entanto, tica da estrutura corporal. Revela-se então
por essa mesma razão, não deixarei de con- uma hierarquia, do corpo e não do espírito,
testar as opiniões que se desenvolveram da completamente diversa.
ciência natural do século passado. Nosso trata- A planta vive, embora só seja um ser vi-
mento e classificação anatômicos do mundo vo no sentido restrito. Com efeito, há vida
animal acham-se inteiramente dominados nela ou ,em tôrno dela. Ela respira, ela se ali-
(como era de se esperar em vista de suas ori- menta, ela se multiplica, dizemos nós. Mas
gens) pelo ponto de vista materialista. A ima- na realidade ela,é simplesmente o teatro dês-
gem do corpo, tal como ela se oferece aos sEis processos que constituem uma unidade
olhos do homem (e só aos do homem), e, a com os processos da Natureza em tôrno, tais
fortiori, o corpo dissecado, preparado quimi- como o dia e a noite, os raios do sol e a fer-
camente e maltratado pelas experiências de- mentaÇão do solo. Assim sendo, a planta mes-
ram lugar a um sistema que Lineu fundou e ma não pode querer ou escolher. Tudo acon-
que a escola de Darwin ·aprofundou com a tece com ela e nela. A planta não escolhe a
paleontologia. É um sistema de particularida- sua posição, nem o seu alimento, nem as ou-
des estáticas e oticamente observáveis, ao la- tras plantas com as quais exerce as funções
do do qual encontramos outra ordem comple- de reprodução. Ela não se move, mas sim é
tamente diferente e destituída de sistema, movida pelo vento, pelo calor e pela luz.
uma ordem dos modos de vida que se revela Acima dessa espécie de vida alça-se ago-
aptmas na convivência ingênua, através dessa -ra a vida livremente móvel dos animais. Mas
afinidade intimamente sentida do Ego e do dessa vida há dois estádios. Há uma espécie,
Tu, que qualquer camponês, bem como qual.. :representada em todos os gêneros.. anatônticos
42
PSWALD SPENGLE& O HOMEM E A TtCNICA • 48

desde os animais unicelulares até os palmí- ser o tipo humano um animal de rapina con-
pedes e os ungulados, e cuja vida depende fere-lhe urna alta dignidade.
em sua manutenção do mundo imóvel das Um herbívoro é por destino urna preaa.
plantas, pois estas não podem fugir nem de- Procura por meio do vôo fugir a essa sina,
fender-se. Acima, porém, dessa espécie exis- mas os animais de rapina precisam de vítimas.
te uma segunda: a dos animais que vivem de Um dos tipos de vida é, em sua essência mais
outros animais e cuja vida consiste em matar. íntima, defensivo; o outro, ofensivo, duro,
Neste caso a presa mesma é móvel, e em ~lto cruel, destruidor. A diferença se faz visível
grau, e, além do mais, é combativa e bem do- mesmo na tática dos movimentos. De um la-
tada de tôda a sorte de austúcias. Esta segun- do o hábito do vôo, o dom da velocidade, da
da espécie se encontra também em todos ·os evasão, de negar o corpo, de ocultar-se. De
gêneros do sistema. Cada gota d'água é um outro lado, vemos o movimento retilíneo do
campo de batalha. Nós que temos a luta da ataque, o salto do leão, o vôo arremessado da
teiTa tão constantemente ante nossos olhos águia. Existem negaças e artimanhas tanto
que chegamos a aceitá-Ia corno natural, e até no estilo do forte como no do fraco. A astú-
mesmo a esquecê-la, estremecemos de horror cia no sentido humano, isto é, a astúcia ativa,
ao ver corno entre as formas fantásticas das é atributo apenas dos animais de rapina. Com-
profundezas do mar se processa essa vida de parados com êstes, os herbívoros são obtusos,
matar e de ser morto. não apenas a pomba "inocente" e o elefante~
O animal de rapina é a forma maia alta mas também as espécies mais nobres dos un-
da vida móvel. Significa um máximo de li- gulados: o touro, o cavalo e o cervo. Só quan-
berdade a seu favor e contra os outros, o má- do cegos de raiva ou sexualmente excitados
ximo de responsabilidade própria, de singu- é que são capazes de lutar; de outro modo
laridade; significa também o extremo de ne- deixam-se domar• e urna criança facilmente os
cessidade onde êsse eu só se pode afirmar poderá conduzir.
lutando, vencendo e destruindo. O fato de Além dessas düerenças entre as espécies
r
I

-44
• OSWALD SPENGLER O HOMEM E A TÉCNICA 45

de movimento, 'existem outras, ainda mais des carnívoros, bem como os do homem, pode-
marcadas, nos orgãos dos sentidos. Porque ~·em fix.ar-se n~~ ponto do ambiente permite·
elas são acompanhadas por diferenças na ma- ao animal fascinar a presa. Nesse olhar hostil
neira de apreender, de ter um "mundo~'. Em está já implícito para a vítima o destino a qu9!
si mesmo todo o ser vive na natureza dentro não pode fugir, o salto do momento imediato.
de um ambiente, não importando que êle per- Mas êsse ato de fixação de dois olhos dirigi--
ceba ou não êsse ambiente ou que seja ou não dos para .diante e P!!;ralelamente é equivalen- -
notado dentro dêle. É , porém, a relação-mis- te ao nascimento do mundo no sentido da pos-·
teriosa, inexplicável por qualqJ}er raciocínio
humano - que se estabelece entre o animal
se do mundo pelo Homem - isto é, como um
quadro, como um mundo diante dos olhos,
..
e 9 ambiente, por meio dós sentidos do tacto,
.da ot•dem e do intelecto, que transforma o sim-
ples ambiente em um mundo circundante. .Os
berbívoros superiores são governados pelo ou-
como um mundo não apenas de luzes e côres,
mas de distâncias em perspectiva, de espaço
e de movimentos no espaço, de objetos situa...
I
dos em determinados pontos. Essa maneira
vido, mas acima de tudo pelo olfato C) ; os car- de ver que todos os carnívoros superiores pos- ' ;
nívoros superiores, por outro lado, dominam suem - os herbívoros, como por exemplo os .
·c om os olhos. O olfato é um sentido caracte-
risticamente defensivo. Com· o nariz animal
fai'I9ja o quadrante e a distância do perigo,
o -
ungulados, têm os olhos orientados lateral-·
_!!lenti, dando cada um dêles uma impressão
diferente e sem perspectiva - traz já em si
dando assim aos movimentos de fuga a dire- a idéia implícita de cjpmínio. A imagem do.·
·ção conveniente: o afastamento de alguma mundo é o mundo circundante dominado pe-·
eoisa. los olhos. Os olhos do animal de rapina de-
Mas o ôlho do ànimal ~ visa um terminam as coisas de acôrdo com sua posi-·
alvo. O fato mesmo de os dois olhos dos gran- ção e distância. :J!:les apreendem o horizonte.
Medem nesse campo de batalha os objetos e·
(1)' Uexküll : Biologlsche W~ltaruchauunq. as condições do ataque. Um a farejar, o ou-
...
46 OSWALD. SPENGLER. .O BOM\EM E A T1:CNICA 47

tro a esp~eitar, - o veado está para o falcão formar um mundo para sf mesmo, contra tô·J
assim como o ~scravo está para o senhor. Há . . ._ das as outras conjunturas de mundo a seu re-
um sentimento infinito de fôrça nesse olhar dor, tànto mais definida e forte é a têmpera
largo e tranquilo, ~ sentimento de liberdade de sua alma. Qual é o opostQ da alma de um
que brota da superioridade e se apoia na con- leão? A alma de uma vaca. Os herbívoros
ciência de um maior poder e na consequente substituem a fôrça da alma individual pelo
certeza de não ser presa de ninguém. O mun· grande número, pelo re'Qflnho, pelo sentir e
do é a presa, e dêsse fato, em última análise, pelo fazer em comum das massas. Quanto
nasceu tôda a cultura humana. menos, porém, um indivíduo precisa dos ou-
E, finalmente, o fato dessa superioridade tros, tanto mais poderoso êle é. O animal de
· inata se tem intensificado não apenas para fo- rapina é inimigo de todo o mundo. Não to-
ra do mundo luminoso e das suas distâncias lera nunca um igual em seu antro. Aquí es-
infinitas, mas também para dentro, relativa· tão as raízes do verdadeiro conceito régio de
mente à espécie de alma de que são dotados propriedade. A propriedade é o domínio no
os animais fortes. A alma - êsse quê de qual exercitamos poder ilimitado, o poder
enigmático que sentimos ao ouvir esta pala- que conqui~tamos em batalha, que defende-
vra, mas cuja essência não é acessível a ne- mos contra nossos pares, que mantivemos vi-
nhuma ciência; essa chispa divina neste cor- toriosamente. Não é o direito a um mero ha-
po vivo, que neste mundo divinamente cruel ver, mas sim o soberano direito a fazer o que
e divinamente indiferente tem de dominar ou queremos com o que é nosso.
de capituJar - a alma é o cont:re.·polo do Uma vez que compreendemos essas coi-
mundo luminoso que nos cerca. Daí o fato de sas, chegamos à verificação de que existe a
o pensamento e o sentimento humanos esta- ética do carnívoro e a ética do herbívoro: Es-
rem sempre prontos a aceitar a existência de tá fora do alcanee de qualquer um alterar is-
uma alma cósmica dentro dêle. Quanto mais so. Trata-se de algo que pertence à fm1na
~litário é o ser e mais resoluto ~mostra no íntima, ao sentido e à tática de tôda a vida.
~
QUATRO
48 • OSWALD SPENGLER.

É um simples fato. J;>odemos aniquilar a vida,.


mas não lhe podemos alterar o caráter. Um
animal de rapina domesticado e cativo -
qualquer jardim zoológico nos oferece exem-
plos disso - . fica mutilado, tomado de sauda-
de cósmica, interiormente morto. Alguns dê-
O HOMEM não é nenhum simplório,
"bom por natureza" e estúpido; nem
.
les fazem voluntariamente a greve da fome,.
quando capturados. Os herbívoros nada per-
um semi-macaco com tendências técnicas, co-
mo Haeckel o descreve e Gabriel Max o pin-
dem no processo de domesticação. ta. C). Por sôbre êsses quadros cai ainda a
Essa é a diferença entre o destino dos sombra plebéia de Rousseau. Não, a tática
herbívoros e o do animal de rapina. Um dês- de sua vida é a de um esplêndido animal de
ses destinos apenas ameaça; o outro, exalta. 1·apina, corajoso, astuto e cruel. Vive de ata-
Aquele deprime, empequenece e acobarda; car, de matar e de destruir. Êle quer, e des-
êste eleva por meio do poder e da vitória, do de que existe sempre tem querido, ser senhor.
orgulho e do ódio. E a luta da natureza- Significará isso, entretanto, que a técni-
interna com a natureza-externa já não de- ca é na realidade mais antiga que o homem?
ve ser considerada miséria como afirmava
Schopenhauer, ou "luta pela existência", co- (') Foi o impaciente demônio da classilicaçfio. que assom·
mo achava Darwin, mas sim um grande sen- bra os anatoml~tas puros. que aproximou o homem do macaco.
J\J(m do mais, l!sses rnesmos anatomistas estao hoje em dia co-
tido que enobrece a vida, o am~r fati de meçando a achar essa conclusão muito apressada e superficial.
Nietzsche. É a esta espécie e não à outra que Veja-:<c, por exemplo, Klaatsch. que fol darwinista: ~r Wetdc,
gWig der Menscbhclt (O Advento da Humanidade) 1920. ã pág.
o Homem pertence. 29 e seguintes. É justamente no "sistema" mesmo que o homem
se coloca à margem e fora de tOda a ordem, sendo mui primitivo
en multas partes de .\ua eslnltur8 cor;poral c aberrado em outras.
Mas isso nlio nos interessa <a<JUÍ· O que estaJliOS estpdando é sua
vldo, e em seu destino, em sua alma, ~le é um animal de rapJ.na.
4 - O R. T.
50 O Hm.IEM E A T~CNICA 61
- - -----=-- pSWALD SPEXGLER

Certamente não. Há uma enorme diferença as migrações se acha largamente difundida na


entre o homem e os outros animais. A técnica natureza. Tudo que o homem pode fazer esta
dêstes últimos é uma técnica genérica. Não é ou aquela espécie de animal já tem feito. São
inventiva nem suscetível de desenvolvimento. tendências que existem adormecidas sob a
O tipo abelha desde que existe tem construí- fmma de possibilida des dentro da vida mó-
do seus favos exatamente como o faz agora, vel. O homem nada realiza que não seja rea-
e há de continuar a construí-los assim até a lizável pela vida como um todo.
sua extinção. Os favos pertencem à abelha No entanto, no fundo tudo isso nada tem
como a forma de suas asas e a côr de seu cor- a ver com a técnica humana. A técnica da
po. As diferenças entre a est~·utura corporal espécie é inalterável. Eis o que significa a
e o modo de vida só existem vistas do ângulo palavra "instinto". Estando o "pensamento''
do anatomista. Se partirmos da forma interna animal estritamente ligado ao agora e aqui
da vida em vez de da forma externa do cor- imediatos e não conhecendo o passado e o
po, veremos então a tática de vida e a distri- futuro, não conhece também a experiência e
buição do corpo como uma única e mesma a preocupação. Não é verdade que entre os
coisa, expressões ambas de uma mesma rea- animais as fêmeas se "preocupem" com os
lidade org-ânica. A "espécie" é uma forma, filhotes. Preocupação é sentimento que pres-
não do visível c estático, mas ela mobilidade supõe visão mental futuro a dentro, interêsse
-uma forma não do ser-assim mas elo fazer- pelo que está por acontecer, do mesmo modo
assim. A forma corporal é a forma elo corpo que remorso implica em conhecimento do que
ativ.o. aconteceu. Um animal não pode odiar nem
As abelhas, as térmitas e os casLorcs er- desesperar. O cuidado da cria é, como tudo
guem construções admiráveis. As formigas mais que se mencionou acima, um impulso
conhecem a agricultw·a, a construção de estra- obscuro e inconciente como os que se encon-
das, a escravidão e a guerra. A arte de criar tram em muitos tipos de vida. Pertence à es-
os filhos, de erguer fortificações e organizar pécie e não ao indivíduo. A técnica genérica
J

52 OSWALD SPE.NGLER

não é apenas inalterável, mas também impes-


soal.
Pelo contrário, há até um fato único com
relação à técnica humana: o de que ela é in-
dependente da vida do gênero humano. É o
único caso em tôda a história da vida em que
o indivíduo se liberta da coação da espécie.
Precisamos meditar longamente sôbre essa
idéia se quisermos apanhar-lhe a imensa sig-
nificação. A técnica na vida do homem é con-
ciente, arbitrária, alterável, pessoal e inven· CAPíTULO III
tiva. Aprende-se e é suscetível de melhora.
O homem se fez criador de sua tática de vidv. A ORIGEM DO HOMEM: A MÃO E O INS-
Esta é a sua grandeza e a sua fatalidade. E TRUMENTO
à forma interna dessa criatividade chamamos
cultura, - possuir cultura, criar cultura, pa-
decer pela cultura.
As criações do homem são a expressão
de sua existência em forma pessoal.
l
'

.
/

A nwo co-mo órgão do tacto e da ação. .-


Dife,·cn.ciação ent1·e o fctbrico d.as arma.s e o
u.so delas. - Libemção relati·va à. coação da,
espéc·ie. -'- " Penswm.ento elo ôlho" e "pensa-
?nento da m-ão". -Meios e fim. - O Homem
como criador. - O ato singula.1·. - Natureza
e "art;e". - A técnica h?.tmana é a;rtificial.
Hom.ern versus Natu.reza. - A tragédia do
Homem.

f'·r.,

Ir
CINCO

.O ESDE quando existe êsse tipo de carní-


voro inventivo? Ou, então, o que vem
dar no mesmo, desde quando existe o ho-
\
mem? Que é o homem? Como veio a set· ho-
mem?
Eis a resposta: através da gênesis da
mão. A mão é uma arma sem igual no mun-
do da vida móvel. Cornparêmo-la com a pa-
ta, o bico, os cornos, os dentes e as barbata-
f ll l nas dos outros animais. Para começar: o sen-
tido do tacto se acha em tal grau concentra-
do na mão que esta pode ser quasi conside-
rada o órgão táctil, no mesmo sentido em
que os olhos são os orgãos visuais e os ouvi-
dos os orgãos auditivos. A mão não só dis-
tingue o quente do frio, o sólido do líquido,
o duro do mole, mas também, acima de tudo,
o pêso, a forma, o lugar das resistências, etc.,
- em suma, a a coisas no espaço. Além e aci-
ma dessa função, porém, a atividade da vida
se reúne de modo tão completo na mão que
tôda a postura e marcha do corpo tomou -
68 ÔSWALD S PEKGLER O HOMJEM E A TÉC);II CA 1'1!1

si•m ultaneamente- a configuração dela. Não do elas separadas uma das outl'as por catás-
há nada em todo o mundo que se possa com- trofes de natureza e origem desconh ecidas;
parar a êsse membro capaz igualmente de e não poderíamos conhecer as espécies das
toque e de ação. Aos olhos do animal de ra- criaturas fósseis se estas não tivessem apare-
pina que contemplam ('teoricamente" o mun- cido de súbito, mantendo-se invariáveis até a
clo, ajunta-se a mão do homem, que o domina sua extinção. Nada sabemos dos "antepassa-
praticamente. dos" do Homem, a despeito ele tôdas as no~
A sua úrigem deve ter sido súbita, com sas investigações e ela anatomia comparada.
relação ao ritmo das correntes cósmicas. Ela O esqueleto humano desde que apareceu tem
deve ter acontecido tão abruptamente como sido exatamente o que é hoje. Em qualque1~
um relâmpago ou um terremoto, à maneira reunião popular podemos encontrar até o ho-
das coisas decisivas que na história do mun- mem dé Neandertal. É , pois, impossível qu e
do marcam época, no sentido mais alto da a mão, a postura erecta do corpo no marchar,
expressão. a posição d3: cabeça e o mais que segue se
Neste ponto . t.emos de ~utra vez nos li- tenham desenvolvido sucessivamente e de ma-
bertar da idéia - su stentada no século pas- neira independente. A coisa tôda aparece
sado e baseada nas investigações geológicas junta e de repente C). A história do mun do
de Lyell - ele um processo de "evolução".
Uma variação assim lenta e fleugmática adap- (1) Qunnto a ess::1 "evolução", em geral afirmam os dnrv•i-
nil>tas que a posse de armas t:lo admiráveis como essas favoreceu
ta-se bem à maneira de ser dos ingleses, mas e conservou a espécie na luta pela vida. Mas o certo é que !<Ó
não conesponde à Na~ureza . Para apoiar a 1r 'l a arma li\ completamente fonnada poderia constituir wna vanta-
gem. A arma. durante o processo de evoluçlio - e dizem que
teoria recone-se a milhões de anos, uma vez isst- processo durou mtlêoio.s - teria sido uma carga inútil e ~­
que dentro dos períodos de tempo mensm·á- r.a trazido mais prejui.:os que beneflc:ios li e..~pécie. Como lma·
veis nada se revelava dêsse processo. Mas na glnar o irúdo de tal evolução? Esta caça das causas e dos efei-
tos. que no Um de conta.$ são formas do pensamento humano, e
verdade não pode1iamos distinguir as diver- não do vi'l'· rt-:>er do mundo, torna-se um tanto imbecil se espe·
?as camadas g-eológicas se não houvessem si- rNmos penetrar com da nos segredos dt'!sse mundo.
O HOMEM E A TÉCNICA 61
GO OSWALD SPENGLER
mais remotos instl'Umentos têm a mesma
avança de catástrofe em catástrofe, quer pos- idade.
samos compreender e provar o fato, quer não. O que se dividiu, entretanto - não cro-
A isso chamamos hoje, segundo A. de Vries, nológica mas logicamente - foi o proces-
Mutação C). É uma mudança interior que so técnico, de sorte que a produção do ins-
subitamente se apodera de todos os exempla- trumento e o seu uso são coisas diferentes.
res duma espécie, naturalmente "sem-tom- Assim como existe uma técnica de fabricar
nem..som", como tudo mais que se passa na violinos e outra de tocar-violino, do mesmo
realidade. É o ritmo misterioso do real. modo há uma técnica de construir navios e
Mais ainda: não só a mão do homem, outra de navegar, - a ar te de fazer bestas
a marcha e a postura devem ter surgido jun- e a arte ele manejá-las. Nenhum outro animal
tas, como também - e êste ponto ninguém de rapina e scolhe jamais suas armas. Mas o
até hoje obsct·vou - a mão e o instrumento. homem não só escolhe como também as faz,
A mão inerme não tem utilidade por si só. de acôrdo com suas idéias individuais. Com
Exige uma arma para se transformar ela mes- isso obtém uma tremenda superioridade na
ma em arma. Assim como os instrumentos luta contra seus semelhantes, contra os ou-
foram modelados de acôrdo com a .forma da tros animais e contra a Natureza.
mão, a mão t.omou també m a configuração Isso significa aua liberação da coação da
do instrumento. É insensato procurar separá- t-~.péci'e - fenômeno único na história de tô-
los a ambos no tempo. É impossível que a da a vida dêste planeta. Com isso o homem
mão já formada tenha exercido atividade, começa a ser. Faz sua vida ativa em larga
mesmo que por curto tempo, sem o instru- escala independente das condições do corpo.
mento. Os mais remotos restos humanos e os O instinto genérico ainda persiste com plena
fôrça, mas dêle se separou um pensamento e
(1), H. de Vr:~..,: O!e Mut3tiansl.heori~ ll901 . 1903) (A
uma ação inteligentes que não dependem da
Teoria da Mutaç:lo) . c·~pécie. Essa liberdade consiste na liberdarlc
62 0SWALD SPENGLER O HO:\-líE]-1 E .\. Tli:CNICA G3

de escolha. Cada um · fabrica as suas pi·ó- gt·andes animais de rapina, temos agora o
prias armas, de acôrdo com sua habilidade e "pensamento da mão". Do }Jrimeiro <,lesen-
raciocínio próprios. O descobrimento de gran- volveu-se nesse entrelempo o pensamento, que
des acervos de instrumentos falhos e abando- é teórico, contemplativo, observanlc - a "re-
nados são testemunhos eloquentes do cuida- flexão" e a "sabedoria". E agora, do Hegun-
do dêsse primitivo "fabricar conciente". do nasce o pensamento ativo c pr{\lico, nossa
Se, a-;pesar-de tudo, êsses espécimes são "astúcia", a "inteligência" ]H'Opl'iarnenle di ta.
tão semelhantes que - embora com ju~tifi­ O ôlho indaga sôbre causil c efeito; 1. ,nfí o
cação duvidosa - possamos deduzir a exis- trabalha segundo o princípio · dnH meioH c do
tência de "culturas" rliferençávejs, como a .fim. A questão elo pt·ópl'io c elo impróprio
acheulense e a solutrense, e até mesmo che- o critério do fazedor - nada tem a ver com
gar daí a estabelecer - desta vez certamente a verdade ou a falsidade, que ~ão o~ valoreH
sem justificação - paralelos de tempo nas do observador. E um fim, um alvo, é um fa·
cinco partes do mundo, deve-se isso ao fato to, ao passo que uma conexão de causa e
de que essa liberação da coação da espécie efeito é uma verdade. Dess'arie surgiram ().::!
surgiu a princípio apenas como uma granclP. diferentes modos ele pensar dos homens-de-
possibilidade e está muito longe de ser indi- verdade - o sacerdote, o estudioso, o filóso-
vidualismo já realizado. Ninguém gosta ele Ío - e dos homens-dos-fatos - o poHtico, o
parecer extravagante, nem tampouco de imi- general, o comet•ciante. Desde então, pois,
tar os outros. De fato, cada qual pensa e tra- até mesmo nossos dias, a mão que comanda,
balha para si mesmo, mas a vida da espécÜ! que dirige, a mão de punhos cerrados é a ex-
é tão poderosa que a despeito disso o resul- pressão de uma vontade. Tanto é assim que
tado é semelhante em tôdas as partes - co- temos realmente uma grafologia e uma qui-
mo no fundo acontece até mesmo hoje. rosofia, para não falar em figuras de lingua-
AEsim, pois, além do "pensamento dos gem como o "punho de ferro" do conquista-
olhos", do olhar agudo e compreensivo dos

I •
..

d OSWALD S PEN G LER O HOMlEM E A TtCNICA 65

dor, a ''mão hábil" do financista e a "mão" enigmáticos fenômenos da Natureza - o


elo artista ou do c1iminoso. 1·aio, o incêndio da floresta, o vulcão - é
Com a mão, sua arma, e com o seu pen- chamado à vida pelo próprio Homem, contra
~amento pessoal o homem chegou a ser cria- a Natureza. Que se ~eria passado na alma do
d or. Todos os animais permanecem dentro Homem quando pela primeira vez êle viu o
dos limites da atividade da espécie e não en- fogo que sua própria mão provocara?
d quecem de modo nenhum a sua vida. Entre-
tanto o Homem, o animal criador, espalhm;
por todo o mundo tais tesouros de pensamen-
tos inventivas que êle parece perfeitamente
autorizado a dar à sua breve história o no-
me de História Universal, e a olhar o que o
cel'ca como ((humanidade", tendo o resto da
natureza como um fundo, um objeto e um
meio.
A atividade da mão pensante chamamos
feitos. Já existe atividade na existência dos
animais, mas os 'feitos só começaram com o
Homem. Nada caracteriza melhor essa dife-
rença que a história ~lo fogo. O Homem vê
(causa e efeito) como surge o fogo, e o mes-
mo vêem muitos dos animais. Mas só o Ho-
mem (fim e meios) penaa num processo para
pt·ovocat· o fogo. Nenhum outro ato nos dei- ...,.
xa como êsse a impressão do sentido da cria-
<_.·fLO. Um dos mais fantásticos, violentos e ...
5-O H. T.


O HOMEM E A TÉCNICA 67
SEIS
um bando da forma mais livre e frouxa. Não
se podia falar ainda em tribus e muito me-
nos em povos. Essa hord.a é uma reunião aci-
dental de uns poucos machos - que dessa
vez não lutam uns com os outros, - e de suas
SOB a impressão poderosa dêsse ato singu-
la•·, livrec conciente, que assim emerge
mulheres e dos filhos dessas mulheres. Não
têm sentimento de comunidade. Vivem em
da unifol'me "nlivida<le da espécie", ativida- perfeita liberdade. Não constituem um "nós"
de essa impulsiva e coletiva, tomóu forma a como o simples reba,n ho composto de exem-
alma humana verdadeira, alma mui solitária plares duma espécie.
(mesmo comparada com a dos outros animaia A alma dê~SCR sol ilúl'ioH fol'lCH r total-
de rapina), cheia de expressão pensativa e mente gtwn c•irn, <l <'H<·o tt fiada, t"i mm dl' :-t tm
orgulhosa, alma de quem conhece o seu pró- própt'ia fôrça c clt• ~uas preHaH. l•ila co uiH'C<'
prio destino; alma dotada dum incoercível sen- o sentimento não só do "cu" como elo "meu''.
timento de poderio que se concentra no punho Conhece também a embriaguez dos sentidos
habituado aos feitos; alma inimiga de todos; quando a faca corta a carne do inimigo, quan-
alma que mata, que odeia, decidida à con- do o cheiro de sangue e a sensação ele espan-
quista ou à morte. Essa alma é mais profun- to penetram juntos a alma triunfante. Cada
11
da e mais apaixonada que a de qual.quer ou- homem" verdadeiro, mesmo nas cidades dos
tro animal. Acha-se ela em oposição ip·econ- períodos superiores das Culturas, sente em si
mesmo de tempos em tempos os fogos ad or-
ciliável ao mundo inteiro, do qual a separa
mecidos dessa alma primitiva. Não há aquí
seu próprio caráter criaclo1'. É a alma de um
o menor vestígio dessa lamentável estimação
rebelde.
O homem primitivo preparava sua gua- das coisas como "úteis" e "economizadoras de
rida, solitário como uma ave de rapina. Se trabalho" e muito menos dêsse desdentado sen-
várias "famílias" se reuniam num bando, era timento de compaixão, reconciliação e dêssc

~ i(f
;

68 OSWALD SPENGLER.
O HOMEM E A TÉCNICA 69
anseio de paz. Em vez, porém, disso, há o
profundo orgulho de se saber temido, admi- tísticas"". O Homem an-ebatou à Natureza
o privilégio da criação. A "vontade livre" é
rado e odiado pela sua ventura e pela sua
fôrça, e a necessidade urgente de vingança em si nada menos que um ato de rebeldia. :o
com relação a tudo, tanto aos seres vivos co- homem criador se libertou dos laços da Na-
mo ih; coisas - pois todos constituem, pelo tureza e com cada criação nova se afasta ca-
simples fato de existirem, .uma ameaça a êsse da vez mais dela, torna-se cada vez mais
orgulho. seu inimigo. ls59 é "História Universal", n
E essa alma avança cada vez mais, num história de uma dimensão fatal quo se m·g"llC',
Hcmpre crescente alheamento de tôda a Na- incoercível, sempre crescente, entre o mundo
ture~a. As aqnas dos animais de rapina são
do homem e o universo - n. lliatót·ia clt! 11111
naturais, mas o punho armado do homem l'ebelde que cresce pm·n er AUt'l" n 111:\o c:onlr:1
com a sua arma artificialmente feita, medi- a própria mãe.
tada e escolhida, não é natural. Aquí come- Aquí principia a tragédia do honu~m -·
ça a "Arte" como conceito contraposto à. porque a Natureza é o mais forte dos dols. O
"Natureza". Homem continua a depender dela, porque a
Cada processo técnico do homem é uma despeito de tudo ela o inclue, como a tudo
arte e sempre foi descrito como tal ; assim mais, no seu seio. Tôdas as grandes Culturas
temos, por exemplo, a arte de atirar com o são derrotas. Raças inteiras, interiormente
arco, de cavalgar e de guerrear. As artes da destruídas e quebrantadas, permanecem en-
construção, do govêrno, do sacrifício, da pro- tregues à esterilidade e à decomposição es-
fecia, da pintura, da versificação, da experi- piritual, como cadáveres abandonados no
mentação científica . .. Cada obra do homem campo. A luta contra a Natureza é uma luta
é artificial, antinatural, desde a produção do sem esperança, e no entanto o homem a leva
fogo até as criações que, nas Culturas supe- até o amargo final.
riOl·es, são especificamente consideradas "ar-
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O "fazer" coletivo. - Há quanto tempo


se fala com palavras? - Finalidade da lin·
guagem: a empr§sa coletiva. - Finalidade da
emprêsa: exaltação cüt potência htl-mana. -
Separação do pcnsam.mtlo e da ·mão: o trflba.
lho do direto1· e o trabalho M rxerutor. - Co·
• beças e 1niios: a hierarquia eloR talf'ntos.
Organiza.çã.o. - Exist§ncia organizada.: esta-
do e povo, política e economia. - A técnica
e o número dos homens. - Personalid,ade e
massa.
SETE

Q UANTO tempo durou a era da mão


armada - isto é, desde quando o ho-
mem é homem? Não sabemos. Seja como
fôr, o tota l de anos não importa, em bora hoje
ainda o estimemos em cifra muití8~imo <' lP-
vada. Não é um assunto de milh õc~ de a n o~-;
nem mesmo de várias cenlcnaH df' millwt·~~~.
Não obstante, devem ter transconido muito~
milênios.
Verifica-se agora, porém, a segunda mn-
dança que m~rcou época. Foi tão abrupta c
imensa como a primeira, e como ela tl·ansfor-
mou o des~ino do homem desde os alicerces.
Foi mais outra verdadeira "mutação" no sen-
tido anteriormente explicado. A arqueologia
prehistórica observou isso faz muito tempo, e
de-fato as coisas que se acham em nossos mu-
seus de súbito começam a ter um aspecto di-
ferente. Aparecem vasos d·e barro, traços de
"agricultura" e "criação de gado" (embora
~e empreguem aquí impropriamente êsses ter-
..
76 " osWALD SPENGLER O HOMEM E A TéCNICA 77

mos que designam coisas muito mais moder- anos mais tarde, quando muito, as Culturas
nas), constlução de cabanas, sepulturas, indi- superiores começam no Egito e na Mesopo-
cações de viagens. Um novo mundo de idéias tâmia. Na verdade, o ritmo da história se
técnicas e de processos se anuncia. Do ponto processa tragicamente. Até então milhares
de vista dos museus- excessivamente super- de anos quasi não contavam absolutamente;
ficial c obcecado pela simples ordenação dos agora, porém, cada século se torna importan-
achados -- foi feita a distinção de duas Ida- te. Em saltos violentos a pedra se aproxima
des du Pedra, a mais velha e a mais nova, a rolando do abismo.
paleolítica e a neolítica. Esta distinção, po- Mas na verdade, que foi que aconteceu?'
rém, há muito tempo vem sendo olhada com Se nos aprofundarmos mais neste novo
inquietantes dúvidas, e nestes últimos decê- mundo de formas das atividades do homem,
nios se fizeram tentativas para substituí-la logo perceberemos as mais fantásticas e com-
por outra. Os estudiosos, porém, se apegam plicadas das relações. Em tôdas essas técnicas,
ainda à idéia da classificação de objetos (co- uma pressupõe a existência da outra. A ma-
mo indicam termos como mesolítico, miolíti- nutenção de animais domesticados exige o
co, mixolítico) e daí não vão para diante. cultivo de forragem, a semeadura e colheita
O que mudou não foram os utensílios, mas de plantas nutritivas requerem por sua vez
sim o Homem. É, uma vez mais, apenas par- a existência de animais de tiro e de carga;
tindo de sua alma que se pode descobrir a his- estes, por seu turno, pressupõem a construção
tória do Homem. de cercados. Cada tipo de edificação exige
Podemos fixar a data dessa mutação a preparação e o transporte de materiais; e
0 transporte, por sua vez, requer estradas,
com razoável precisão se a situarmos lá pelo
quinto milênio antes de Cristo (I) . Dois mil animais de carga e barcos.
Que é, em tudo isso, a t ransfonnação
l/espiritual"? A resposta que ofereço aquí
(1) Segundo as pesquls;u de De Geera tm torno da ccr1-
mk:a listada da Suécia. (lWallexikon der Veorgcscillchte),
está : - ação coletiva por meio de plano.

78 OSWALD SPENGLER O HO.:.\IEi\1 E A T1:CNICA 70

Até então cada homem tinha vivido sua P.ró- humanos. O "discurso" ou "linguagem" é
pria vida, feito suas próprias armas, seguido apenas uma abstração disso; é a forma in te·
sua própria tática na luta diária. Ninguém rior (gramatical) do falar e, portanto, das
precisava do próximo. Tuclo isso, pot·ém, mu- palavras. Essa forma deve ser propdedade
da subitamente. Os novos processos ocupam comum e ter uma certa permanência para que
longos períodos ele Lcmpo; em alguns casos, possa servir de meio de informação. Demons-
anos inteiro:;. Pcttscmot:~, por exemplo, no tem- trei em outra parte que o falar em sentenças
po que clü('OJTC cntl'e a clat'l'ubada de uma foi precedido de formas mais simples de co-
ál'vore e a l>úrLü1a <lo bal'co que com ela se municação, tais como símbolos visuais, sinais,
consLru i u. A história se divide numa série de gtsto.s, gritos de advertência e ameaça. Tôdas
"atos'' separados e bem ordenados e ele ((en- essas coisas continuam a existir ainda em nos-
redos" que se desenvolvem paralelamente uns sos dias, como auxiliares da palavra, na me-
aos outros. Para êsse processo coletivo a con- lodia da dicção, na ênfase, no jôgo de gestos
dição prévia indispensável era um meio - e (no discurso escrito) na pontuação.
a linguagem. Não obstante, o falar "fluente" é, por
O falar em frases e palavras, portanto, fôrça do seu conteúdo, qualquer coisa de com-
não pode ter começado antes nem depois, mas pletamente novo. Desde Hamann e Herder
deve ter surgido então - rapidamente corno vêm os homens propondo a si mesmos a ques-
tudo quanto é decisivo e, além disso, em es· tão ela origem da linguagem falada. Mas se
treita conexão com os novos métodos elo ho- tôdas as respostas oferecidas até h1oje nos pa-
mem. recem pouco satisfatórias é porque a intenção
Pode-se provar isso. da pergunta foi mal compreendida. Porque
Que vem a ser "falar"? É sem dúvida a origem da linguagem em palavras não se
um processo que tem por finalidade fornecer pode encontrar na atividade mesma do falar.
informação, uma atividade que é exer'cida t;sse foi o êtTo dos românticos que - alheios
continuamente por uma quantidade de sêres como sempre à realidade - queriam derivar
80 OSWALD SPENG LE R O HOMEM E A TtCNI CA 81

o idioma da " poesia primordial" da humani- vros, e põem-se a fazer minuciosas investiga-
dade. E mais ainda: achavam êles que a pró- ções sôbre aeu próprio modo de pensar e es-
pria linguagem já em si mesma era essa poe- crever. Em consequência disso o "pensamen-
sia original - mito, poema e oração, tudo a to" se lhes ap1·esenta como o fim da lingua-
um tempo - e que a prosa era simplesmente gem falada e - como de hábito êsses pesqui-
qualquer coisa de posterior que se degradara sadores fazem meditações solitárias - esque-
para se acomodar ao uso comum de cada dia. cem-se êles de que além do falar, existe o
Mas se tivesse sido assim, a forma íntima da ouvir, além da pergunta há a resposta, além
linguagem, a gramática, a construção lógica do eu está o tu. Quando dizem "linguagem"
da sentença, deveria ter um aspecto comple- pensam no discurso, na conferência, na diR-
tamente diferente. Na realidade são precisa- 1-'c rLrt<"fto. Rua opinifw sôbrC' a origC'rn ela lín-
mente os idiomas primitivos, como os das tri- g-uas.;<· m é put'lanto f'al~a, po iH ele:-~ 11 <~tteéii'H m
bus bantús e turcomanas, que mostram de c:umo mon6logo.
maneira mais acentuada a tendência de mal> A maneira con cLa de Lratnr o probl<,m·t
car diferenças claras, incisivas e inequívo- não é procurat· saber como mas sim quando
cas. (1) apareceu a 1inguagem em palavras. E uma
Isso por sua vez nos leva ao êrro funda- vez formulada a pergunta, tudo em breve se
mental dêsses inimigos declarados do roman- esclarece. O fim da linguagem em sentenças,
t icismo, os r acionalistas, que vivem etemaN habitualmente mal compreendido ou ignora-
mente apegados à idéia de que a sentença do, é estabelecid o pelo período em que se
exprime um juizo ou pensamento. Sentam-se tornou um costume o falar assim (isto é,
êles a suas mesas-de-trabalho, cercados de li- "fluentemente") e revelado com absoluta
clareza na forma de construir a oração.
( 1) Tanto é ass.lm que ~m muitas línguas a sentença é uma A linguagem não nasceu por meio do
pa lavra única e monstruosa na qual, por melo de prefixos e su-
fsxos cl!USificatlvos, colocados em ordem .regular, se exprime o-
monólogo nem as sentenças seguiram os ca-
que s~ quer dizer. minhos da oratória. Ela nasceu da- conV"er&a-
6- O H. T.
82 OSWALD SPENGLER O HOMEM E A TÉCNICA 83

ção entre várias pessoas. Sua finalidade não que está tão aeostumado a falar, que não po-
é uma compreensão baseada na reflexão, mas de calar a bôca e é capaz de, por mero des-
sim um entendimento recíproco em conse- fastio, tagarelar e entabular conversação
quência de pergunta e resposta. Quais são, quando não tem nada que fazer, tenha ou
pois, as formas básicas da linguagem? Não o não tenha o que dizer. .
juízo nem a declaração, mas sim a ordem, a A finalidade primitiva da linguagem ' é
expressão de ,obediência, a enunciação, a per- a execução de um ato, de acôrdo com uma
gunta, a afirmação ou a negação. Eram sen- intenção, tempo, lugar e meio. A construção
tenças originalmente bastante breves e inva~ clara e inequívoca do ato é o primeiro ele-
riavelmente dirigidas .a outros, tais como "Fa- mento essencial; e a dificuldade de fazer-se
ça isto!" - "Pronto?" - "Sim!" - "Va- compre·ender, de impor aos outros a nossa
mos!". As palavras como designadoras de vontade, produz a técnica da gramática, da
-conceitos e) são apenas produtos da fina}i .. formação de orações e construções, os modos
dade da sentença, de sorte que o vocabulário corretos de dar ordens, fazer perguntas, res-
de uma tribu de caçadores é desde o início ponder, formar classes de palavras - tudo
diferente do de uma aldeia de pastores ou do isso baseado em intenções e própositos prá·
de uma população que habita a beira do mar. ticos e não teóricos. O papel representado
Originalmente o falar era uma atividade di- pela meditação teórica nos princípios da lin..
fícil e pode-se ter como certo que êle estava guagem falada foi praticamente nulo. Todo
limitado ao estritamente necessário. M<esmo o falar era de natw·eza prática e pt·ocedia do
em nossos dias o camponês é parco de pala- "pensar da mão".
vras, comparado com o homem da cidade -

( 1) O conceito é a ordcnaçtlo de coisas, sltuaç6es e ativl·


d::!des em classes de generalidade "prática". O c.riador de. cavalos
ni:<l diz nunca "cavalo", mas sJm "egua tordllha", "potro balo·,
<!C.... •
OITO
O HOMiEM E A TtCNICA 85

da dependência da mão ativa - apareceu co-


mo uma fôrça em si mesmo ante a Alma e a
Vida. A reflexão puramente intelectual, o
"cálculo" que nesse ponto surgiu - súbita,

A
' 11
AÇÃO coletiva por meio de plano"
· se pode dar o nome mais curto de 11 em-
decisiva e radicalmente - consiste nisto : em
que a ação comum é uma unidade tão defini-
da como seria a ação pessoal de um gigante.
prêsa". A relação que existe entre o falar e Ou como Mefistófeles diz ironicamente a
o empreender é precisamente a mesma que Fausto:
existia antes entre a mão e o instrumento. O
falar entre muitas pessoas desenvolveu sua ... Me1·co seis urcos,
de seis urcos a fô'rça ajunto à minha.
forma interna gramatical na execução das
L evo-me pelo ar, porque possuo
emprêsas; e, viceversa, o costume de levar a mais vinte e quat1·o pés . . . (1)
cabo tarefas se disciplinolJ. mediante o méto-
do de um pensamento que lidava com pala- O homem, animal de rapina, insiste con-
vras. Porque o falar consiste em comunicar cientemente em aumentar sua superioridade
alguma coisa ao pensamento de outrem. Se o muito para além dos limites de sua fôrça cor-
falar é um ato, é sem dúvida um ato intelec- poral. A êsse seu desejo-de-mais-poder êle sa-
tual com meios sensíveis. Muito em breve crifica até um elemento importante de sua pró·
deixa de precisar da primitiva relação ime- pria vida. O pensar e o calcular um efeito
diata com o ato físico. maior é o que vem em primeiro lugar. E pa-
No quinto milênio antes de Cristo uma ra conseguir isso êle se dispõe a sacrificar um
inovação marcou época: o pensar, o intelec- pouco de sua liberdade pessoal. Por dentro,
to, a razão ou como quer que chamemos a is- entretanto, o homem se conserva indepen-
so que, por meio da linguagem, se emancipou
(I) Goethe - Pausto (Tradução de Ca.stillio).
OSWALD SPENGLER O HOM'EM E A TÊCNICA 87

dente. Mas a História não p-ermite os passos Áustria, Sicília e Portugal; minas que certa-
à retaguarda. O Tempo, e por conseguinte a mente remontam a êsse tempo; minas com
Vida, não são 1·eversíveis. Uma vez habitua- poços e galerias, com ventilação, drainagem e
do à ação coletiva e aos seus êxitos, ficou o instrumentos feitos de cornos de cervo C) .
homem cada vez mais fundamente preso a No p·eríodo neolítico inferior, Portugal e o
êsses vínculos fatais. O pensamento de em· noroeste da Espanha tinham estreitas ligações
prêsa exige um domínio cada vez mais firme com a Bretanha (contornando a França me-
sôbre a vida da alma. O homem se tornou ridional) e a Bretanha por sua vez tinha co-
escravo do próprio pensamento. munições com a Irlanda. Essas relações su-
O passo que vai do uso dos instrumentos põem uma navegação regular e portanto a
pessoais à emprêsa comum implica numa ar· construção de navios capazes de enfrentar o
t ificialidade crescente do procedimento. O mar, a-pesar-de não termos dêstes o menor
simples trabalhar com material artificial (co- conhecimento. Existem na Espanha edifícios
mo na cerâmica, na tecelagem e na arte de fa- megalíticos de pedra lavrada de proporções
zer esteiras) não significa ainda grande coisa, gigantescas com cobertas que pesam mais de
embora esteja muito mais impregnado de es- cem toneladas e que devem ter sido trazidas
pírito e seja muito mais criador do que tudo de muito longe e colocadas em seus lugares
quanto ficou para trás. Chegaram, porém, até segundo uma técnica para nós desconhecida.
nós vestígios de uns poucos processos que Será que na verdade compreendemos bem o
pressupõem de-fato grande fôrça mental e que que de reflexão, consultas, fiscalização e or-
se acham bastante acima dos muitos de espé- dens foi necessário durante meses e anos sem
cie ordinária a respeito dos quais hoje nada fim para se poder extrair o bloco, para tras-
podemos saber. Temos, sobretudo, os que ladá-lo, para distribuir as tarefas no tempo e
nasceram da idéia de construir: Muito antes
de qualquer conhecimento dos metais, havia (1} Realle:clkon du Vorguchkhte (Dicionárlo de Pr~h istó­
ria ) ~ Tomo I, Verbct:e: Bergbau (rolné~i o).
minas de pederneira na Bélgica, Inglaterra,
88 . OSWALD SPENGLER O HOM1EM E A TÉCNICA . 89

no espaço, para delinear o plano e para em- mediante a qual o homem se faz representan-
preender e executar um tra·balho dessa· natu- te da Natureza criadora, imitando-a, modifi-
reza? Como comparar a prolongada medita- cando-a, melhorando-a e violentando-a. Des-
ção prévia necessária para o transporte dêsse ' de o tempo em que o homem começou a cul·
bloco por alto mar com a simples produção de tivar em vez de apenas apanhar as plantas
uma faca de pederneira? Só o "arco compos- não há dúvida que êle as tem modificado con-
to", que aparece nas figuras pintadas em ro- cientemente de acôrdo com seus propósitos.
chas, na Espanha, requer para sua constru- Em todo o caso os achados prehistóricos de
ção, tendões, cornos e madeiras especiais, to- exemplares vegetais pertencem a espécies
dos de origens diferentes, e ao mesmo tempo que nunca foram encontradas em estado sel-
um complicado processo de manufatura que vagem. Mesmo nos mais antigos achados de
levava de cinco a sete anos. E a "invenção", ossos de animais que indicam alguma fonna
como ingenuamente dizemos, do carro - · de criação de gado, percebemos já as conse-
quanto pensamento, quantas ordens e quanta quências da "domesticação", a qual em parte,
atividade ela pressupõe, desde a determina- se não no todo, deve ter sido intencional e foi
ção do propósito e da espécie de movimento conseguida por meio de uma criação C) de-
exigidos, da escolha e preparação da estrada liberada. O conceito-de-presa do carnívoro
(um ponto habitualmente esquecido), da cap- se amplia e inclue não apenas as vítimas mor-
tura ou domesticação dos animais para a tra- tas na caçada, mas também o rebanho selva-
ção - até as considerações a respeito do ta- ge que pasta em liberdade dentro (ou mesmo
manho, pêso e amarramento da carga e da di- fora) dos cercados erguidos pela mão do ho-
reção e abrigo de um combóio !
Um outro mundo absolutamente diferen-
( J) Hilzheimer : Natürliche Rassengeschichte der Haussiiugll•
te de criações surge da "idéia" de procriação tiere - 1926 (História Natural d.as Ra ças dos Mamíferos Domés·
- a saber, a criação de plantas e animais ticos).
...

90 • OSWALD SPENGLER O HOMEM E A TÉCNICA 91

mem. (1). Pertence êle a alguém, - a uma se trate de caçar grandes animais, de cons-.
clã ou bando de caçadores - e seus donos de- truir templos, de lançar uma emprêsa guer-
fendem o seu direito de exploração. A cap- reira ou agrícola, quer se cogite de fundar um
tura de animais para fins de criação, fim que ' ·H
estabelecimento comercial ou de organizar a
JH'essupõe o cultivo de plantas forrageiras viagem de urna caravana, urna rebelião e até
para sua alimentação, constitue uma das vá- mesmo um crime - sempre o primeiro requi-
rias maneiras de possessão naqueles tempos sito é uma cabeça empreendedora e inventi-
praticadas. . va para traçar a idéia e dirigir a execução,
Já demonstt·ei que o nascimento da mão para comandar e para distribuir as tarefas.
armada teve por consequência uma separa- Numa palavra, alguém que tenha nascido pa-
li I
ção lógica de duas técnicas, a saber: a da ra chefe de úutros que não o são.
produção e a do manejo da arma. Do mesmo . Porque na época das emprêsas dirigidas
modo, a emprêsa dirigida pela linguagem le- verbalmente não existem apenas duas espé-
va à separação. da atividade mental da ativi- .,. cies de técnicas - as quais, por falar nisso,
dade manual. Em tôda a emprêsa o planejar divergem de modo cada vez mais definido à
e o executar são elementos distintos e, a par- medidá que se passam os séculos - mas tam-
tir dêsse momento, o pensamento prático re- bém duas espécies de homens, diferenciados
presenta o principal papel. Há um trabalho pelo fato de seus talentos se encontrarem nes-
de direção e um trabalho de execução e êste ta ou naquela direção. Em todo o processo
fato tem sido desde então a fonna técnica há uma técnica de direção e uma técnica de
fundamental de tôda' a vida humana. Quer execução, de sorte que com não menos evj-
dência existem homens nascidos para man-
( 1} M esmo no .século dezenove as tribus de índios perse- dar e homens nascidos para obedecer, aujei-
guiam os grandes rebanhos de búfalos como ainda hoje os gaúchos
argentinos correm a trás dos rebanhos vacuns que são .proprle-·
toa e pbjetoa do processo político e econômi-
dade privada. O nomadismo nasce u assim em grande parte da co. Esta é a forma básica da vida humana
scdentarledade.
92
.
OSWALD SPENGLER
O HOMEM E A 'flf:CNICA 93

encontramos uma velha conhecida, agora um


que, desde aquela transformação, se foi fa- pouco fora de moda. Trata-se da questão do
zendo cada vez mais variada de aspecto e gênio e do talento. Gênio (1) significa - li-
que só com a própria vida é que podia ser teralmente - poder criador, a faísca divina
eliminada. da vida individual que na torrente das gera-
Admitamos que ela seja artificial e con- ções surge súbita e misteriosamente, extin-
b·ária à Natureza, mas precisamente isso é gue-se depois para tornar a aparecer uma ge-
que é "Cultura". O destino pode ordenar, e ração mais tarde, iluminando subitamente tê-
às vezes chega mesmo a fazer isso, que o ho- da uma época. , O talento é um dom relativo
mem se imagine capaz de a abolir artificial- a problemas particulares já existentes e que
mente - mas nem por essa razão deixa isso se pode desenvolver por meio da tradição,
de ser um fato. Gov'e rnar, decidir, guiar, co~ do ensino, do adestramento e da prática para
mandar é uma arte, uma técnica difícil e, co- produzir resultados mais sólidos. O talento
mo qualquer outra, ela pressupõe um talento para se poder aplicar pressupõe o gênio e não
inato. Só as crianças é que imaginam que um VICe-versa.
rei vai para a cama com sua coroa e só os sub- Finalmente, há uma distinção natural de
homens da cidade-monstro, os marxistas e os grau entre os homens nascidos para mandar
literatos, é que têm a mesma idéia com rela- e os homens nascidos para servir, entre os
ção aos reis do mundo dos negócios. A em- condutores e os conduzidos da vida. A exis-
prêsa é um labor e só como resultado dêsse tência dessa distinção é um fato manifesto e
labor é que se torna possível o trabalho ma- em épocas sãs e entre povos sãos é reconhc ·
nual. E, igualmente, o descobrir, o refletir, o cida (embora involuntariamente) por tôda a
calcular e o dirigir um novo processo são ati-
vidades ~riadoraa de algumas cabeças bem (1) Vem do latim gcoius, que slgnlfic:n a fOrça fccundonte
dotadas e têm como consequência necessária do varão.
a atividade executora dos não criadores. Aquí
...
94 O"sWALD SPENGLER
NOVE
gente. Nos séculos de decadência a maioria
se esforça por negar ou ignorar êsse fato.
Mas justamente êsse continuo insistir na
fórmula de que "todos os homens são iguais77
é um sinal de que há aquí alguma coisa que
precisa de ser explicada. ·A GORA7 essa emprêsa dirigida pela lin-
guagem está condicionada a uma imen ·
sa perda de liberdade - a velha liberdade
do animal de rapina - tanto para o dirigen-
te ~mo para o dirigido. Tornam-se ambos,
de corpo e alma7 membros intelectuais7 espi-
rituais de uma unidade maior. A isso cha-
mamos organização. É a concentração da vi-
da ativa em formas definidas com o fim de ·
ficar "em forma 17 para emprêsas de qualquer
índole. Com a ação coletiva dá-se o passo de-
cisivo da existência orgânica para a existên-
cia organizada, da vida em grupos naturajs
para a vida em grupos artificiais, ela horda
para o povo, para a tribu, para a classe e pa-
ra o Estado.
Dos combates entre os carnívoros surgiu
a guerra7 como dma emprêaa de tribu contra
iribu7 com seus chefes e seguidores, com suas
marchas organizadas, surpresas e ações. Do
aniquilamento do vencido emerge a lei que se
9G O.SWALD SPENG LER
O HOM•E M E A TÉCNI CA 97
impõe ao derrotado. A lei humana é sempre
a lei do mais f orte, com a qual se t em de con- Há povos cuja raça forte conservou o ca-
formar o mais fraco. Considerada como algo ráter do animal de rapina. São povos senho-
de permanentemente válido entre as tribus, riais, conquistadores, amantes da luta contra
essa lei constitue a "paz". Paz semelhante os homem. Povos que deixam a guerra eco-
existe também dentro da tribu, com o fim nômica contra a Natureza a outros, que a seu
de manter suas fôrças disponíveis para a tempo êles tambem submeterão e saquearão.
ação externa. O Estado é a ordem interna A pirataria é tão antiga como a navegação,
de um povo para os fins externos. O Estado a pilhagem nas rotas comerciais é tão velha
é, como forma, como possibilidade, o que a como o nomadismo; e onde quer que haja
história de um povo é como realidade. Mas camponeses aí ha verá também escravidão a
a história, tanto a antiga como a de agora, é uma nobreza guerreira.
a história da guerra. A p olítica é apenas um Porque com a organização das emprêsas
substituto temporário da guerra que usa mais vem a separação dos lados político e econô-
as armas do intelecto. E a parte masculina mico· da vida, a orientação para o poder on
de uma comunidade é originariamente um si- para a pilhagem. Encontramos não apenas
nônimo de h oate. O caráter do animal de rapi- uma articulação interna do p ovo de acôrdo
na livre se trasladou, com seu traços essen- com as atividades - gueiTeiros e operários,
ciais, do indivíduo para o povo organizado, cabecilhas e camponeses - mas também a
que é o animal que tem uma alma e muitas organização de tribus inteiras para uma úni-
mãos ( 1) . A técnica do govêrno, da guerra ca atividade econômica. Me-ê_mo então d eve
c da diplomacia têm tôdas essa mesma raiz ter havido tribus de caçadores, criadores e
e em todos os tempos revelaram uma profun- agricultor es ; aldeias dedicadas à mineração,
da afinida de. h cerâmica e à pesca; organizações políticas
ele marinheiros e traficantes. E, além disso,
( 1) E acrE>scenlt'·.se : uma cRbeça, n5o multas. povos conquistador~s sem nenhuma ocupação
<'<'onômica. Quanto mais áspera era a luta
o H. T.
98 OSWALD SPENGLER O HOMEM E A TtCNICA 99

em prol do poder e da pilhagem, tanto mais transformar numa jaula de barras estreitas
íntimos e fortes eram os laços da lei e da fôr- para a àlma indomável. O animal de rapina,
ça que prendiam o indivíduo. que transformou os outros em seus animais
Nas tribus de índole assim primitiva, a domésticos afim de os explorar, aprisionou-
vida do indivíduo pouco ou nada importava. se a si mesmo. O grande símbolo dêsse fato
Consideremos, pois, que em cada viagem por é a casa do homem.
mar (as sagas da Islândia ilustram bem isso) Nesta, e em seu crescente número, o in-
só uma parte nos navios chegava ao pôrto; divíduo desaparece, despido de importância.
que em tôda a grande construção perecia par-
.. Porque uma das consequências mais fecundas
te não pequena dos operários; e que tribus do espírito humano de emprêsa é que a popu-
inteiras morriam de fome em tempos de sêca. lação se multiplica. Onde antigamente um
Fica claro que a única coisa que interessava bando de uns poucos milhares vagabundeava,
era que ficassem indivíduos suficientes para assenta-se agora U!fla população de dezenas
representar o espírito do todo. As populações de milhares. (1). Dificilmente se encontram
decresceram rapidamente, mas o que se sen- regiões despovoadas. Os povos são frontei-
tiu como aniquilamento foi, não a perda de I'iços uns dos outros e o simples fato da fron-
um ou mesmo de muito~, mas sim a extinção teira - o limite do poder de cada um - es-
da organização, isto é, do nós. timula os
velhos instintos do ódio, do ataque
Nessa interdependência crescente reside e do aniquilamento. A fronteü-a, seja ela de
a tranquila e profunda vingança da Natureza que espécie fôr·, mesmo a fronteira intelec-
sôbre o ser que lhe arrebatou o privilégio da tual, é o inimigo mortal do Desejo-de-Poder.
criação. ~sse pequeno criador contra a Na· Não é verdade que a técnica humana
tureza, êsse revolucionário no mundo da vi- economize trabalho. Porque o característi-
da, tornou-se o escravo de sua criatura. A co essencial da técnica pe8soal e modificável
Cultura, coniunto das formas artificiais, pes-
soais e próprias da vida, desenvolve-se até se (1 ) H oje se apertam milhões.
O HOl\f.EM E A Tt:CNICA 101
100 OSWALD SPENGLER
para dirigir permanece pequeno. É de-fato o
do homem, em contraste com a técnica da es- ban~o das verdadeiras bêstas de rapina, o
pécie, é o de que cada descobrimento contém grupo dos aptos, que dispõe, dum modo ou
a possibilidade e a neceuidade de novos des- de outro, sôbre o rebanho crescente dos de-
cobrimentos, cada desejo realizado desperta mais.
mil outros desejos, cada triunfo sôbre a na- Mas mesmo essa dominação dos poucos
tureza incita ainda a outros muitos. A alma se acha muito afastada da antiga liberdade.
dêsse animal de rapina está sempre faméli- Dão testemunho disso as palavras de Frede-
ca, seu desejo nunca se satisfaz. Essa é a. rico o Grande: "Sou o primeiro servidor do
maldição que pesa sôbre êsse tipo de vida meu Estado". Daí os esforços desesperados
mas é também a grandeza inerente de seu do homem "excepcional" para se conservar
destino. A paz, a felicidade, o gôzo, são des- interiormente livre. Aquí, e só aquí, começa
conhecidos justamente dos exemplares supe- o indivtdualiamo, que é uma reação contra a
riores. E nenhum inventor nunca previu exa- psicologia da massa. É a última rebelião da
tamente o efeito prático de sua ação. Quanto alma rapace contra o cárcere da Cultura: é a
mais frutífero é o trabalho do chefe, maior última tentativa de sacudir as limitações es-
necessidade tem êle de mãos executoras. Po- pirituais e intelectuais produzidas e represen-
.
risso, em vez de matar os prisioneiros das tri- tadas pelo fato do grande número. Expli-
cam-se, assim, os gêneros de vida que levam
bus inimigas, os homens começam a escravi-
zá-los, afim de lhes explorar a fôrça corpo- o conquistador, o aventureiro, o solitário e
ral. Essa foi a origem da escravidão huma- mesmo certos tipos de criminosos e boêmios.
na, que portanto deve ser tão antiga como a A desejada fuga da absorção pelo grande nú-
escravidão de animais domésticos. mero assume várias formas - o domínio dês-
Em geral êsses povos e tribus se multi- se grande número, a fuga dêle ou o desprêzo.
plicam por assim dizer ~ra baixo. O que au- A idéia de personalidade, em seu sombrio
menta não é o número de "cabeças" , mas sim despontar, é um protesto contra ~ homem da
o de mãos. O grupo de naturezas nascidas

102 O~WALD SPENGLER

massa. E a tensão entre ambos cresce cada
vez mais até um trágico final.
O ódio, o mais legítimo de todos os sen-
timentos raciais do animal de rapina, pressu-
põe o respeito pelo adversário. Há nele um
recónhecimento de igualdade em categoria
espiritual. Mas o animal de rapina despreza
os sêres que estão por baixo. E os sêres que
estão por baixo são invejosos. Todos os con-
tos, todos os mitos divinos, tôdas as legendas
heróicas estão cheios dêsses motivos. A águia
odeia apenas os seus iguais, não inveja nin- CAPíTULO V
guém, despreza a muitos, ou melhor, a todQs. J O úLTIMO ATO: ASCENÇAO E FIM DA

I
O desprêzo olha das alturas para baixo. A
inveja espreita de baixo para cima. ~sses CULTURA MECÂNICA ·
são os dois sentimentos univenaillüstóricos
da humanidade organizada em Estado e clas-
ses. Seus exemplares pacüicos sacodem, im-
potentes, as grades da jaula em que estão
presos todos juntos. Dêsse fato e de suas co!l- '
sequências nada os pode livrar. Assim foi e
assim há de ser, ou então nada no mundo po-
derá ser. ~sse fato do respeito e do desprêzo
tem um sentido. Alterá-lo é impossível. O
destino do homem está seguindo o seu curso e
tem de ser cumprido.
. .,

..
4 ..

Vilcings do intelecto. - Experiência, hi-


~
pótese de trabalho, perpetuum mobile.
Sentido da máquina, as fôrças orgdnicas da
natureza obrigadas a trabalhar. - Indústria,
riqueza e pode1·. - Carvão e população. -
Mecanização do mundo. - Sinto?nas de deca-
dência: diminuição da.s naturezas diretoras. -
A revolta das mãos. - O monopólio perdido
da técnica. - O 'mundo colorido. - O Fim,

,
DEZ

..
A CULTURA da mão armada tomou um ·
largo alento e se apoderou de tôda a
espécie humana. Nas culturas da linguagem
e da emprêsa - usamos o plural porque sã()
várias e se podem distinguir claramente - a
' personalidade e a massa começam a ficar em
oposição espiritual, e o espírito se torna cada
vez mais ávido de poder, aferrando-se à vida
com violência. Essas culturas, mesmo em sua
plenitude, só compreendiam uma parte da hu-
manidade e hoje, ao cabo de uns poucos mi-
lênios, -estão extintas, tendo sido substituídas
por outras. O a que chamamos "povos natu-
rais" e "primitivos" são simplesmente os re- ,
manescentes do . material vivo, as ruínas de
formas dantes animadas, cinzas das quai&
desapareceu o ardor do vir-a-ser e do perecer.
Nesse solo, a partir de 3.000 anos antes
de Cristo até hoje, têm proliferado, aquí e alí,
as Culturas superiores, Culturas no sentido
mais restrito e no mais largo, ocupando cada
108 OSWALD SPENGLER
O HOMEM E A Tt:CNICA 100.
uma delas apenas uma pequena porção do es-
paço da terra e durando cada uma delas um invejosamente mal compreendidos por aque-
escasso milênio. ~sse é o ritmo das catástro- les que não os possuem.
fes finais. Cada década tem a sua significa- Mas que é o luxo senão Cultura na sua
ção, e cada ano tem quasi a sua "fisionomia" forma mais exigente? Olhemos a Atenas de
especial. É a história universal no seu senti- Péricles, a Bagdad de Harum-al-Raschid, o
do mais legítimo e mais exigente. ~sse gru- rococó . . . A Cultura urbana é luxo ~ tudo
po de apaixonados cursos de vida inventou e por tudo; luxo em todos os graus e clas-
a cidade como seu símbolo e seu "mundo", ses, artificial da cabeça aos pés. É um assun··
em contraste com a aldeia do peliodo ante- • to de arte, quer se trate da arte da diploma-
rior. É a cidade de pedt·a em que se alberga. cia, quer da arte da vida, do adôrno, da pro- ijfl

uma vida absolutamente artificial, que se di- dução escrita ou do pensamento. Sem rique-
vorciou da mãe-terra, que se tornou comple- za econômica concentrada em umas poucas
tamente antinatural, - a cidade do pensa- mãos, não pode haver "riqueza" nas artes, no
mento sem raízes, a cidade que atrai e conso- pensamento, na elegância, para não falar no
me as torrentes de vida que nasceram da luxo de ter uma concepção do universo, de
terra. pensar teórica em vez de praticamente. O
Na cidade nasce a sociedade com sua empobrecimento econômico arrasta imediata-
mente consigo o empobrecimento espiritual e
' hierarquia de classes·- nobreza, sacerdócio,
burguesia - como uma gradação artificial artístico.
da vida ante o "mero" camponês (a natural E neste sentido os processos técnicos que
é a divisão em fortes e fracos, astutos e estú- amadurecem nessas Culturas são também lu-
pidos) e como sede de uma evolução cultu- xos espirituais, frutos tardios, doces e frágeis
ral totalmente intelectualizada. Na cidade de uma artificialidade e espiritualização cres·· •
Teina o "luxo" e a "riqueza". São conceitos (.entes. Começam com a construção das pirâ-
mides funerárias do Egito e das tôrres doa
..-.-·.... ~ · · ·- -·- -·· ""'
, ---·- .. _
"'-• -
templos sumerianos da Babilônia, surgem es-


1.10 OSWALD SPENGLER O HOMIEM E A TtCNICA 111

sas edificações no terceiro milênio antes de As regiões do Norte, com a severidade'


Cristo, lá no extremo Sul, e signüicam sim- de suas condições de vida - o frio e a priva-
plesmente a vitória sôbre as massas pesadas. ção contínua - f<Orjaram raças duras, dota-
Vêm depois as emprêsas das Culturas chine- das de intelectos extremamente aguçados e
sa, indúr clássica, árabe e mexicana. E ago- do glacial ardor de uma paixão indomável
Ta, no segundo milênio de nossa era, temos pela luta, pelo perigo e pelo arremêsso. A ês-
no Norte a nossa Cultura fáustica, que repre- se sentimento dei em outro livro o nome de
senta a vitória do pensamento técnico puro paixão pela T erceira dimensão. t;sses ho-
sôbre os p roblemas de vulto. mens são uma vez mais autênticos animais de
Porque essas Culturas crescem indepen- l'apina cujas almas fortes lutam infrutifera-
dentes umas das outras numa sucessão que mente por quebrar a superioridade do pensa-
vai do Sul para o Norte. A Cultura fáustica mento, da vida artüicialmente organizada,
européia ocidental é provavelmente não a úl- sôbre o sangue, e por colocá-las a seu serviço,
tima, mas com tôda a certeza a mais apaixo- elevando ao mesmo tempo o destino da per-
nada, a mais poderosa, a mais trágica de tô- sonalidade livre à categoria de sen tido mes·
das. Deve-se isto ao conflito interior entre a mo d o mundo. São dotados de uma vontade-
sua intelectualidade compreensiva e a sua de-poder que zomba de tôdas as limitações
profunda desharmonia espiritual. É possível de tempo e de espaço e que tem como alvo
. que durante o próximo milênio ela seja segui- específico o ilimitado e o infinito; uma von-
da de algum rebento retardatário ·- pode tade-de-poder que submete a si mesma con-
surgir, por exemplo, uma Cultura nas planí- tinentes inteiros, envolvendo eventualmente o
cies entre o Vístula e o Amur. Mas aquí, na mundo todo no enredamento de suas formas
nossa própria Cultura, a luta entre a Nature- de comunicação e tráfego e o transforma pe-
za e o Homem, cujo destino histórico o levou la fôrça de sua energia prática e pelo gigan-
a competir com ela, chega para todos os efei- tesco poder de seus processos técnicos.
tos a seu têrmo. No princípio de tôda a Culturà superior
112 OS·WALD SPENGLER
ONZE
tomam forma as duas ordens primárias, a no-
breza e o sacerdócio - os princípios da "so-
ciedade" - destacando-se da vida aldeã do
campo aberto. Elas encarnam idéias e, o que
é mais, idéias que se excluem umas às outras.
O nobre, o guerreiro, o aventureiro, vivem no
I

mundo dos fatos; o sacerdote, o sábio, o filó-


sofo vivem· no seu mundo de verdades. Uns E STA diferença subsiste em tôda sua gran-
são (ou sofrem) um destino. Os outros pen- deza no contraste entre os Vi~inga do
sam em causalidades. Aqueles querem pôr o sangue e os Vikings do espírito, durante a
espírito a serviço de suas vidas fortes. Estes. ascenção da Cultura fáustica. Os primeiros,
desejam pôr sua vida a serviço do intelecto. partindo do extremo norte no seu arremêsso
E até aquí essa oposição jamais assumiu for- insaciável rumo do infinito, chegaram à Es-
mas mais irreconciliáveis do que na Cultura panha em 796, ao interior da Rússia em 859,
faustiana, na qual o sangue orgulhoso do ani- à Islândia em 861. Atingira.m também Marro-
mal de rapina se revolta pela última vez con- cos nesse mesmo ano e daí alcançaram Pro-
tra a tirania do pensamento puro. Do confli- vença e os arredores da própria Roma. Em
to entre as idéias do Império e do Pontifica- 865, por Kiew, chegaram ao Mar Negro e a
do, nos séculos doze e treze, ao conflito entre Constantinopla. Em 880 entraram no mar
as fôrças de uma tradição de boa educação Cáspio e em 909 na Pérsia! Estabeleceram-se
- monarquia, nobreza, exército - e as teo- na No1·mandia e na Islândia pelo ano de 900,
rias de um racionalismo, liberalismo e socia- e na Groenlândia Já por 980. Descobriram a
lismo plebeus, desde a revolução francesa à América do Norte perto do ano 1000. Em
alemã, a História é uma sequência de esfor- 1029, partindo da Normandia, vão à baixa
ços em busca da decisão. Itália e à Sicília. · Em 1034 saem de Constan-
tinopla e chegam à Grécia e à Asia Menor e
8 - O H. T.
OSWALD SPENGLER O HOM,E M E A TtCNICA 115
114

em 1066, partindo outra vez da Normandia, ço dos métodos matemática., que devemos
conquistam a Inglaterra. e) aos ingleses Grosseteste (nascido em .1175}
Com a mesma audácia e a mesma fome e Roger Bacon (nascido em 1210) e aos
de poder e de pilhagem, neste caso intelec- alemães Albertus Magnus (1193) e Wi-
tuais, os monges nórdicos dos séculos treze e telo ( 1220). Daí, também, a experimen·
quatorz·e penetram no mundo dos problemas tação, a "Scientia experimentalia" de Bacon,
técnico-físicos. Neste caso não há nada da que é a interrogação da Natureza submetida
curiosidade ociosa e sem sentido dos sábios a aparelhos de tortura, ao pé-de-cabra, ao
chineses, indús, clássicos e árabes. Não há torniquete; o "experimentum enim sol um cer-
aquí nenhuma especulação teológica, nenhu- tificat", como escreve Albertus Magnus. É o
ma busca contemplativa de uma imagem da- estratagema intelectual das aves de rapina.-
quilo que se não pode conhecer. Certo, tôda Imaginavam êles que seu desejo era "conhe-
a teoria científica é um mitp que o entendi- cer Deus" e no entanto eram as fôrças inor-
mento cria sôbre as fôrças da Natureza. E gânicas da Natureza - a energia invisível
tôda a teoria depende completamente da re- manifestada em tudo quanto acontece - o
ligião à qual pertence. Mas na Cultura Fáus- que êles lutavam por isolar, apanhar e tornar
tica, e só na fáustica, tôda a teoria, desde utilizável. Essa ciência fáustica, e só ela, é
o princípio, é uma hipótese de trabalho. Dinâmica, em contraste com a estática doa
Uma hipótese de trabalho não precisa ser gregos e a alquimia dos árabes. Não se ..trata
"correta"; o que ie lhe exige é apenas que de matéria, mas sim de fôrça. A própria mas-
. seja prática. Ela se propõe, não abarcar e sa é uma função da energia. Grossetl.:!ste de-
revelar os segredos do mundo, mas sim fa- .senvolveu a teoria do espaço como uma fun-
zê-los servir determinados fins. Dai o avan- ção da luz .e Petrus Peregrinus estabeleceu
uma teoria do magnetismo. A teoria coper-
(1 ) K. T . Strasscr : Wikingtr und Normannen, 1928 (Vt·
nicana do movimento da terra ao redor do
ldngs e norma ndos). sol foi antecipada num manuscrito de 1322 e

,
116 OSWALD SPENG LER O HOMEM E A TÉCNICA 117

formulada - com mais clareza e profundida- própria Cultura Fáustica. Já no século X en-
de do que pelo próprio Copérnico - por Ores- contramos construções técnicas de uma espé-
me, que também antecipou a lei de Galileu cie completamente nova. Robert Bacon e Al-
sôbre a queda dos corpos e a geometria car- bertus Magnus meditavam sôbre a máquina
tesiana das coordenadas. Considera-se Deus a vapor, o barco a vapor e os aparelhos voa-
não mais como o Senhor que governa o mun- dores. E muito mong'9 andava a lidar em sua
do de Seu trono, mas como uma fôrça infini- cela com a idéia do moto-contínuo.
ta (já imaginada como quasi impessoal) que Daí por diante esta última idéia nunca
está onipresente no universo. Era uma forma mais os abandona. Porque o sucesso nesse
singular da adoração divina, essa investiga- terreno significaria a vitória final sôbre "Deus
ção dos monges piedosos em tôrno. das fôrças ou a Natureza" ( Deus sive Natu ra ), um pe-
secretas. E, como dizia um velho místico ale- queno mundo de nossa própria criação a se
mão, "ao servires tu a Deus, Deus te serve n mover como o grande mundo, em virtude de
t1.. " suas fôrças próprias e a obedecer apenas à
O homem estava e~identemente cansado mão do homem. Construir um mundo, ser
de ter a seu set'Viço apenas as plantas, os ani- Deus - eis o sonho dos inventores fáusticos.
mais e os es~ravos, de roubar à natureza seus Dêle surgiram todos os nossos projetos de
tesouros de metal e pedra, madeira e matérias máquinas que se aproximavam o mais possí-
têxteis, de reter-lhe as águas em canais e po- vel do fim inacessível do perpetuum mobile.
ços, de vencer-lhe as resistências por meio O conceito de presa do animal de rapina foi
de barcos, estradas, pontes, túneis e reprêsas. levado até o seu fim lógico. Não se trata dês-
Ag·ora êle tencionava não apenas saquear-lhe te ou daquele pedaço de mundo, como quan-
os materiais, mas escravizar e submeter a do Prometeu roubou o fogo, mas sim do pró-
seu jugo tôda s as suas fôrças, para dêsse mo- prio mundo, completo com o seu segrêdo de
do multiplicar sua própria fôrça. Essa idéia fôrça que é considerado como um despôjo, e
monstruosa e sem igual é tão antiga como a como presa incorporado à nossa Cultura. Mas
118
.OSWALD SPENGLER O HOMlEM E A TÉCNICA
119

os que não estavam possuídos dessa vontade- ram inumeráveis, todos com o mesmo propó-
de-poder sôbre tôda a natureza haviam de sito de extrair as fôrças inorgânicas do mun-
sentir tudo isso necessariamente como algo de do circundante, levando-as a fazer os traba-
diabólico. E, de-fato, os homens sempre olha- lhos em lugar dos homens e dos animais.
ram as máquinas como invenções do diabo. Com o crescimento das cidades, a técni-
Com Roger Bacon começa a longa série de ca se tornou burguesa. O sucessor dêsses mon-
cientistas que foram considerados mágicos e ges góticos foi o inventor leigo e culto, o sa~
hereges. cerdote perito da máquina. Finalmente, com
Mas a história da técnica da Europa oci- o advento do racionalismo, a crença na técni-
dental seguia para a frente. Lá por 1500, com ca quasi se transforma numa religião mate-
Vasco da Gama e Colombo, começa uma no- rialista. A técnica é eterna e imortal, como
va aventura de Vikings. Novos reinos são cria- Deus Pai, e salva a Humanidade como o Fi-
dos ou conquistados nas índias Orientais ou lho de Deus; ilumina-a como o Espírito San-
Ocidentais, e uma corrente de sangue nórdi- to. Seu adorador é o filisteu moderno do pro-
co se derrama na América C), onde antiga- gre3:9o, desde Lamettrie até Lenine.
mente os navegadores da Islândia em vão Na realidade a paixão do inventor nada
haviam desembarcado. Ao mesmo tempo as tem a ver, seja o que fôr, com suas consequên-
viagens dos Vikings do intelecto continuaram cias. Ela é o motivo pessoal de sua vida, sua
em grande escala. A pólvora e a imprensa alegria e tristeza pesaoai~. O inventor quer gon
foram descobertas. De Copérnico e Galileu zar seu triunfo sôbre os problemas düíceis, a
para diante, os processos técnicos se sucede- riqueza e a fama que a vitória lhe traz. Seja
a sua invenção útil ou fatal, criadora ou des-
(1 ) Porque os que emigraram da Espanha, Portugal e Pran- truidora, isso pouco se lhe dá. Mas ninguém
Çl' foram, 'Se'gUramente em sua maior parte, descendentes dos
conquistadores da época das invasões bárbaras. O que restava
está em situação de ~aber disso de antemão.
era a massa humana que havia pudurado atraYb de celtas. ro- Ninguem pode preyer os efeitos de uma "rea-
manos e saN"aceoos. lização técnica da humanidade" e, por falar
...

12{) ÔS W A L D S P E N G L E R O HOl\1lEM E A TÉCNICA 121

nisso, a "humanidade" nunca inventou coisa queno que nem pode ser levado em conta.
alguma. Os descobrimentos da química,· co- Entendemos os segredos da Natureza tão pou-
mo o do anil sintético e o da borracha artifi- co como sempre, mas conhecemos, sim, a hi-
cial, transtornam as condições de vida de paí- pótese de trabalho - não "verdadeira" mas
ses inteiros. A transmissão de fôrça elétrica simplesmente apropriada- que nos capacita
e o descobrimento da possibilidade de tirar a forçá-la a obedecer ao comando que o ho-
...
energia da água desvalorizaram as velhas re- mem exprime ao mais leve toque de um bo-
giões carboníferas da Europa, com tôda a sua tão ou de uma alavanca. A marcha dos des-
população. Considerações desta natureza le- cobrimentos se acelera fantasticamente e -
varam alguma vez algum inventor a suprimir deve-se repetir - nem porisso se poupa o
sua invenção? Quem quer que imagine isso trabalho humano. O número de mãos neces-
pouco conhece da natureza rapace do homem. sárias cresce com o número de máquinas, uma
Tôdas as grande descobertas e invenções sur- vez que o luxo técnico ultrapassa tôdas as ou-
gem do deleite que os homens fortes encon- tras espécies de luxo C) e a nossa vida arti-
tram na vitória. São expressões da persona- ficial se torna cada vez mais artificial.
lidade e não do pensamento utilitário das Desde a invenção da máquina, a mais
massas, que não passam de meros espectado- sutil de tôdas as a1~mas possíveis contra a
res do acontecimento, mas que devem sofrer Natm·eza, os empreendedores e inventores
suas consequências, sejam elas quais forem. têm aplicado à sua construção essencialmente
E essas consequências são imensas. O pe- o número de braços de que necessitam. O tra-
queno bando de homens que nasceram para balho da máquina é realizado pela fôrça inor-
comandar, os empreendedores e os invento- gânica - pela pressão do vapor ou gás, pela
res, forçam a Natureza a fazer um trabalho
que se mede em milhões e milhares de mi-
( 1) Cem parem-se as condições de vlda das classes operá-
lhões de cavalos--vapor, e em face disso o nas de 1700 com aa de 1900 e o modo geral de vida dos traha·
quantum de energia física humana é tão pe- Jbadores da cidade com relaçllo ao dos trabalhadores da terra.
'

122 OSWALD SPENGLER O HOMEM E A TtCNICA 123

eletricidade, pelo calor - que se obtem do so nem profundidade. Desperta uma amar-
carvão, do ·petróleo e da água. Mas esta di- gura contra a vida que levam os que nasceram
ferença acentuou perigosamente a tensão es- dotados e com capacidade criadora. Os ho-
piritual entre os condutores e os conduzidos. mens já não vêem mais nem mais compreen-
~les já não se entendem mais. As mais remo- dem que o trabalho dos chefes é o trabalho
tas "emprêsas" nos milênios pre-cristãos exi- maia duro e que sua própria vida depende do
giam a cooperação inteligente de todos os in- sucesso dêle. Sentem simplesmente que êsse
teressados que tinham de saber e sentir do trabalho está fazendo os seus realizadores
que se tratava. Havia nelas, portanto, uma felizes, enchendo-lhes e enriquecendo-lhes a
espécie de camaradagem um tanto parecida alma. E é porisso mesmo que êles os odeiam.
com a que vemos hoje nos esportes. Mas mes-
mo ao tempo das grandes cõnstruções da Ba-
bilônia e do Egito êsse não deve ter sido o
caso. Os trabalhadores individuais não com-
preendiam o objeto nem o propósito da em-
prêsa como um todo, ao qual êles eram indi-
ferentes ou talvez hostís. O 41 trabalho" era
uma maldiçãp como na história bíblica do
Jardim do Eden. E agora, desde o século de-
zoito, 11 mãos" inumeráveis trabalham em coi-
sas cuja função efetiva na vida (inclusive na
vida dêles mesmos) lhes é inteiramente des-
conhecida e em cujos êxitos os donos dessas
mãos não têm a menor participação interior. ,
Uma nudez espiritual se estabelece e se alas-
tra, uma unüormidade enregeladora sem pê-
'
O HOMEM E A T:tCNICA
DOZE 125

mando no escravo da Máquina, que o está


forçando - f orçando a todos nós, quer per-
cebamos isso quer não - a seguir o seu cur-
so. Os cavalos arrastam para a morte o vito-

N A realidade, enti·etan1to, nem as cabe-


ças nem as mãos podem alterar de
rioso cujo corpo se espedaça.
Em p1·incípios do século vinte, o aspecto
do umundo" neste pequeno planeta of er ece o

qualquer modo o destino da técnica maqui~ espetáculo de um grupo de nações de sangue


nista, porque esta s.e desenvolveu pelas neces- nórdico dirigidas pelos ingleses, alemães,
sidades internas e espirituais e agora amadu- franceses a dominar a situação. Seu poderio
rece a caminho de sua plenitude e de seu têr- político depende de sua riqueza e sua riqueza
mo. Encontramo-nos hoje numa culminância, consiste em sua fôrça industrial. Esta, porém,
no ponto em que começa o quinto ato. Sobre- se acha por sua vez condicion ada à existên-
vêm as últimas decisões. A tragédia está a cia do carvão. Os povos germânicos em par-
finalizar. ticular estão garantidos pelo que é quasi um
Tôda a Cultw·a superior é uma tragédia. monopólio das regiões carboníferas conheci-
A história da humanidade como um todo é • das e essa circunstância levou a uma multi-
trágica. Mas o sacrilégio _e a catástrofe do plicação de populações sem paralelo em tôd a
homem fáustico são maiores que tôdas as ou- a história. Nas zonas carboníferas e nos
tras, maiores que tudo quanto Ésquilo e Sha- centros das linhas de cdmunicação que
kespeare jamais imaginaram. A criatura se dalí se irradiam, acha-se reunida uma massa
está erguendo contl·a o seu criador. Assim humana de tamarlho monstruoso, disciplinada
como dantes o Homem do microcosmo se al- pela técnica maquinista, trabalhando para
çava contra a Natureza, agora a Máqui~a do ela e vivendo dela. Aos outros povos - já
microcosmo se revolta contra o Homem Nór- como colônias ou estados nominalmente inde-
dico. O senhor do Mundo se está transfor- pendentes - está destinado o papel de for-
126 'OS WALD SPENGLER O HOMEM E A T:tCNICA
127
..
necer a matéria prima e receber os produtos. mas, em compensação, mais na Alemanha,
Essa distribuição de funções é garantida por "a terra de poetas e pensadores". A frase im-
exércitos e armadas, cuja manutenção supõe becil "as rodas tôdas se imobilizariam se
uma riqueza industrial. Essas fôrças, como teu poderoso braço assim quisesse" obnu-
consequência de sua educação técnica, se con- bila os cérebros de escribas e discursadores.
verteram também em verdad.eiras máquinas Qualquer carneiro que caísse no meio dum
que trabalham a um sinal dado. Mais uma mecanismo seria capaz de fazer isso. Mas in-
vez se revela a profunda relação e quasi iden- ventar essas rodas e pô-las a funcionar afim
tidade que existe entre a política, a guerra e de dar sustento a êsse "poderoso braço", é
a economia. O grau de poder militar depen- alguma coisa que só pode ser feita por uns
de da intensidade da indústria. Países indus- poucos nascidos para isso. ~sses condutores
trialmente pobres são pob~es em geral; não incompreendidos e odiados, êsse "punhado"
podem portanto manter um exército ou finan- de personalidades fortes, têm uma psicologia
ciar uma guerra; são por conseguinte politi- difer.ente. Não perderam a velha sensação de
camente impotentes, e os trabalhadores, tanto triunfo do animal de rapina que aferra as
os dirigentes como os dirigidos, são como•"pe- garras na vítima palpitante, a sensação de
nhores" na política econômica de seus adver- Colombo quando viu terra no horizonte, a
sários. sensação de Moltke em Sedan ao ver fechar-
Em comparação com as massas de mãos se o círculo d·e suas baterias em llly, rematan-
executoras - que formam a única parte do do a vitória. Momentos como êsses, cumea
quadro que descontentes examinarão - a tais da experiência humana, goza também o
valor crescente do trabalho diretor das pou- armador quando um enorme transatlântico
cas cabeças criadoras (empresários, organiza- é lançado ao mar, e o inventor, quando sua
dores, descobridores, engenheiros) já não é máquina começa a trabalhar à maravilha, ou
mais compreendido nem valorizado. Isso quando o primeiro Zeppelin se ergue do solo.
acontece menos na América, nação prática, Mas a tragédia da época é que êsse pen-


• 128 • OSWALD S PENGLER O HOMíE.M E A T~CNICA 129

sarnento humano desencadeado já não mais mecânica. Hoje só pensamos em cavalo-va-


possa apreender as próprias consequências. A por. Não podemos olhar para uma queda-
técnica se tornou tão esotérica quanto a ma·· d'água sem transformá-la mentalmente em
temática superior que ela emprega, ao passo fôrça elétrica; não podemos contemplar um
que a teoria física refinou suas abstrações in- campo cheio de rebanhos a pastar sem pensar
telectuais de fenômenos a tais culminâncias, em sua exploração como fonte de fornecimen-
que (sem perceber claramente êsse fato) che- to d.e carne; não podemos mais encarar o be-
gou às formas fundamentais puras do conhe- lo ofício ,antigo de um povo primitivo e sadio
cimento humano. A mecanização do mundo sem querer substitui-lo por um processo téc-
entrou numa fase de hipertensão altamente nico moderno. Nosso pensamento técnico
perigosa. A imagem da terra, com suas plan- quer realizar-se, com sentido ou sem êle. O
tas, animais e homens, se modificou. Dentro luxo da máquina é a consequência de uma
de poucos decênios haverão desaparecido as necessidade de pensamento. Em última aná-
grandes selvas, transformadas em papel de lise, a máquina é um símbolo, como o seu se-
jornal; e se terão produzido mudanças de creto ideal, o movimento perpétuo - uma
clima que ameaçarão a agricultura de popu- necessidade espiritual e intelectual, mas não
lações inteiras. Inumeráveis espécies animai~ vital. I

se extinguem quasi por completo, como o bi- Começa já a contradizer-se em muitos


sonte; raças humanas inteiras chegaram qua- pontos a prática científica. Já ·seu divórcio
si ao· ponto de extinção, como os pele-verme- está sendo anunciado por tôda a parte. A
lhas da América e os índios da Austrália. máquina, por sua multiplicação e por seu
Tôdas as coisas orgânicas estão sucum.. refinamento está traindo sua própria fina-
bindo à organização. Um mundo artificial lidade. O autojmóvel nas grandes cidades
está impregnando e envenenando o natural. anulou por sua massa o efeito que queria con-
A própria Civilização se tornou uma máquina seguir; e vai-se mais depressa aos .lugares a
que faz, ou procura fazer, tudo de maneira pé. ·Na Argentina, em Java e em tôda a par-
o - O H. T.
""
180 OSWALD SPENGLER O HO:MEM E A TtlCNICA 181

te o simples arado puxado a cavalo do peque- nha como a falta de matérias não poderia de
no lavrador se tem revelado economicamente modo algum det.e r essa evolução poderosa.
superior ao grande trator, e está tomando o Enquanto o pensamento que trabalha dentro
lugar dêste. Já em muitas regiões tropicais o dela permanecer nas alturas, êle saberá sem-
negro ou o pardo, com seus meios primitivos pre criar os meios necessários a seus fins.
de trabalho, é competidor perigoso para a Mas por quanto tempo ficará êle nessa
moderna técnica de plantação do branco. O culminância? Se quisermos manter, nem que
trabalhador branco da velha Europa e da seja no nível atual, os nossos métodos e ins-
América do Norte se está tornando incomo- talações técnicas, precisaremos de, vamos di-
damente perguntador com relação a seu tra- zer, cem mil cabeças invulgares: organizado-
balho. res, inventores, engenheiros. Têm de ser ta-
É tolice falar, é claro, como era moda lentos fortes e, além disso, criadores, cheios
fazer-se no século dezenove, na exhaustão imi- de entusiasmo pela sua causa e formados du-
nente dos campos carboníferos dentro dos rante anos com acerado esfôrço e grandes
próximos séculos e das consequências disso. gastos. Na realidade, há cincoenta anos que
Neste ponto também o século materialista não a maior parte dos fortes talentos juvenís dos
podia pensar doutro modo senão à maneira povos brancos sentem uma inclinação predo-
materialista. Independentemente da econo- minante para essa vocação. Até mesmo as
mia real de carvão pela substituição do pe- cr,ianças brincam com coisas técnicas. Naa
tl·óleo e da hulha branca, o pensamento téc- classes ru·banas e nas famílias, cujos filhos
nico conseguiria descobrir logo outras e mui são os que a êsse respeito devem ser levados
diferentes fontes de fôrça. Mas não deve- em consideração, existe já uma tradição de
mos entrar tanto futuro a dentro nessas cogi- confôrto e cultura, de sorte que as condições
tações. Por.que a técnica americana e euro- prévias normais já são propiciadoras dêsse
ocidental por êsse tempo já terá chegado produto outonal, o pensamento técnico.
a seu tênno. Uma circunstância mesqui- Mas tudo isso está mudando nas últimas
182 OSWALD SPENGLER
O HOMIEM E A TÉCNICA 133
décadas, em todos os países onde a indústria
em larga escala já é antiga. O pensamento qualidades espirituais de seus descendentes.
fáustico começa a se enfarar das máquinas. Mas o grande desenvolvimento técnico do sé-
Está se espalhando um cansaço, uma espécie culo dezenove só fôra possível porque o nivel
de pacifismo na luta contra a Natureza. Os intelectual estava ficando cada vez mais alto.
homens estão voltando a formas de vida mais Não só a diminuição, como também o estacio-
simples e mais próximas da Natureza; pas- namento, é um perigo e um sinal de fim, por
sam o tempo nos esportes em vez de nas ex- mais numerosas e bem pr.eparadas que sejam
periências técnicas. As grandes cidades se as mãos prontas para o tr.abalho.
lhes estão tornando odiosas, e êles aspiram E que é que se passa com elas? A tensão
sacudir o jugo das atividades sem alma e fu- \ entre o trabalho de direção e o trabalho de
~ir à fria atmosfera da organização técnica. execução atingiu um nível de catástrofe. A
E são precisamente os talentos fortes e cria- importância daquele, o valor econômico de
dores que procuram desviar-se dos problemas cada personalidade real que nele existe, tor-
e das ciências práticas para se dedicar à pura nou-se tão grande que já não é visível nem
especulação. O ocultismo, o espiritualismo, compreensível para a maior parte ~os que !5C
as filosofias ·indús, as cogitações metafísicas acham por b;:dxo. No que diz respeito às
de colorido cristão ou pagão, - tudo que foi mãos que executam, o indivíduo agora não
desprezado no período darwiniano está res- tem importância. O que importa é apenas a
suscitando. É o espírito da Roma da época quantidade. O conhecimento dêsse estado de
de Augusto. Enfartados da vida, os homens coisas inalterável, conhecimento agravado,
fogem da civilização e se refugiam nas partes envenenado e financeiramente explorado por
mais primitivas da terra, · em vagabundagens, / jornalistas e oradores egoístas, é tão descon-
no suicídio. /Os dirigentes natos começam ,( solador que a simples natureza humana se
fugir da Máquina. Cada grande empresário revolta contra o papel que a máquina (e não,
tem ocasião de observar uma diminuição das como êles imaginam, os seus donos) confere
à 'maior parte dêles. Aquí começa, em suas
1'()- O H. T.
0 HOMEM E A TÉCNICA 135
134 OSWALD SPENGLER
rocada que está começando reside, entretan-
formas inumeráveis - desde a sabotagem, to, no que posso classificar como traíção à
por meio da greve, até o suicídio - a revolta técnica. Trata-se de coisas que tôda a gente
das Mãos contra o seu destino, contra a má- conhece, mas que nunca foram vistas na sua
quina, contra a vida organizada, contra tudo inteireza, e cujo sentido fatal consequente-
e contra todos. A organização do trabalho, mente nunca se manifestou. A · imensa supe-
tal como existiu por milhares de anos, basea- riOl·idade que a Europa Ocidental e a Améri-
• da na idéia da "ação coletiva", e a con8e- ca do N01ie gozaram, na segunda metade do
quente divisão de trabalho entre condutores século dezenove, no que se ref,ere à fôrça de
e conduzidos, cabeças e mãos, está sendo des- tôdas as espécies - econômica, política, mi-
feita a começar por baixo. Mas a "massa., litar e financeira - estava baseada num in-
não é mais do que uma negação ( esp.ecifica.. contestado monopólio da indústria. GrandEi
mente, uma negação do conceito de organiza~ indústrias só eram possíveis em estreita cone-
ção) e não qualquer coisa capaz de viver por xão com os campos carboníferos dêsses países
si mesma. Um exército sem oficiais não pas- nórdicos. O papel do resto do mundo era 1:
. sa de um rebanho de homens supérfluos e de absorver o produto e a política colonial foi
desorientados C). Um caos de tijolos e ferros sempre, com propósitos práticos, dirigida no~
velhos já não é mais um edifício. Essa revol- sentido do descobrimento de novos mercado~ '
ta em tôda a terra ameaça pôr têrmo à possi· e novas fontes de matérias primas, e não do
bilidade do trabalho econômico técnico. Os desenvolvimento de novas áreas de produção. /
diretores podem fugir, mas os dirigidos, já Havia carvão em outras partes, está claro/
inúteie, estarão perdidos. Seu número signi- mas só os engenheiros brancos é que teriam
fica morte. }Jodido descobrí-lo. Achamo-nos na posse úni-
O terceiro e mais sério sintoma da der- <.:a não só do material como também dos m~­
todos e dos cérebros capazes · de dar-lhe apli-
(1) Outra co!sa não fal'. o govêmo soviético nos último R
qlllnze anos senl!o restaurar, sob novos comes, as or{)anl~açõ.:s
cação. Isso constitue a base da vida luxuosa
politicns, m!litares c econômicas que drstrulra.
186 O&WALD SPENGLER O HO.MlEM E A TÊCNICA 137

do trabalhador branco - cujo rendimento, dos japoneses. Inicia-se a conhecida "disse~


em comparação com o do "nativo" (1) é prin· minação da indústria", motivada pela idéia
cipesco. Esta circunstância foi mal explorada de obter maiores lucros, levando a produção
pelo Marxismo, para seu próptio prejuízo. Ela aos consumidores. E assim, em vez da expor-
se vinga em n9s hoje, porque daquí por dian- tação de produtos acabados, começam a ser
te a evolução vai ser complicada pelo proble- exportados os segredos, processos, métodoa,
ma da falta de trabalho. O nível alto ele sa- engenheiros e organizadores. Até mesmo os
lário elo operário branco, que hoje em dia é inventores emigram, porque o Socialismo, que,
um perigo para sua própria vida, r~pousa no se quisesse, os poderia submeter, prefere em
monopólio que os chefes da indústria haviam vez disso .expulsá-los. E assim os "nativos''
estabelecido ao redor dêsse operário. (Z) hoje penetraram nos nossos segredos, com-
.. E então, ao finalizar o século passado, a preenderam-nos e usaram-nos plenamente. No
cega vontade-de-poder começou a cometer espaço de trinta anos os japoneses se trans-
seus erros decisivos. Em vez de manter em formaram em técnicos de primeira água, e
segrêdo o conhecimento técnico que consti- em sua guerra contra a Rússia revelaram uma
.tuía o seu maior tesouro, os povos "brancos" superioridade técnica que ia além do que seus
ofereceram-no complacentemente a todo o professores lhes haviam ensinado. Hoje em
mundo, em tôdas as escolas superiores, ver- dia, mais ou menos por tôdas as partes - no
balmente ou por escrito, aceitando com delí- ID.xtremo ,Oriente, na índia, na América do
cia a embasbacada homenagem dos indús e Sul e na África do Sul - as regiões indus-
triais já existem ou começalm a existir. E, co-
( 1) Incluo tntre os nativos os h abltant~s da Rússia e de
mo pagam salários baixos, fazem à nossa in-
uma parte da E uropa merldlonal. dústria uma concorrência de morte. Os in-
( 2) Sem precisar Jr mais Jonge : a tensl!io que existe em substituíveis privilégios das raças brancas fo-
n<útéria de salârlo entre o traballiador da terra e o operário me·
talúrgico.
ram jogados fora, gastos e atraiçoados. As ou-
, tras raças subiram ao mesmo nível de seus

138 OSWALD SPENGLER O HOMEM E A TltCNICA 139

instrutores. E, por uma combinação da astú- falta de trabalho que se verifica nos países
cia "nativa" com a inteligência ultra-amadu- brancos. Não é uma simples crise, mas o prin·
recida das suas civilizações antigas, possivel- cípio de uma catástrofe.
mente os sobrepujaram. Onde quer que exis- Para os homens "de côr" (os russos fi-
ta carvão, petróleo ou energia hidráulica, po- cam incluídos neste conceito) a técnica fáus-
de ser forjada uma nova arma contra o coraM tica não é já uma necessidade interior. É só
ção da Civilização Fáustica. O mundo explo- o homem fáustico que pensa, sente e vive
rado está começando a se vingar de seus se- dessa forma. Para êle se trata duma necessi-
nhores. As mãos inumeráveis das raças de dade espiritual, não por causa de suas conse-
côr - que são pelo menos tão dextras como quências econômicas, mas por causa de suas
as das raças brancas e muito menos exigentes vitórias. Navigare necesse est, vivere non est
que elas - hão de sacudir a base da organi- necease. Para as raças de côr, ao contrário,
zação econômica dos brancos. O luxo habi· a técnica não é mais que uma arma na luta
lual do operário branco, comparado com o contra a civilização fáustica. Essa técnica
do coolie, será a sua condenação. O próprio maquinista acabará com a civilização fáusti-
trabalho do branco está se fazendo desneces- · ca e um dia· cairá por terra em pedaços, es·
sãrio. As enormes massas de homens concen- quecida - •as nossas estradas de feno e va-
tradas nas regiões carboníferas do Norte, as pores tão mortos como os caminhos de Roma
insta:lações da indústria, o capital nelas em- e como a muralha da China; nossas cidades e
pregado, cidades e distritos inteiros se encon- arranha-céus gigantescos feitos ruínas como
tram em face da possibilidade de sucumbir as antigas Menfis ou · Babilônia. A história
na competição. O centro de gravidade da desta técnica está chegando rapidamente a
produção está se afastando incoercivelmente seu final. Acha-se carcomida por dentro, co-
dêles, especialmente desde que o respeito das m·o as grandes formas de tôda e qualquer Cul-
raças de côr pelo branco terminou com a tura. Quando e de que maneira acabará, não
Grande Guerra. Esta é a base real e final da sabemos.
140 OSWALD SPENGLER

Em face, pois, dêsse destino, há apenas


uma concepção do Universo digna de nós : a
já citada a propósito da escolha de Aquiles,
que preferiu uma vida curta, cheia de feito~
e de glória, a uma vida longa sem conteúdo. •
O perigo é já tão grande para cada indiví·
duo, cada classe e cada povo, que é deplorá·
vel alimentar qualquer ilusão, seja ela qual
fôr. O tempo não se pode deter; já não é
questão de uma retirada prudente ou de uma
'r enúncia cautelosa. Só os sonhadores é que
acreditam em que haja uma saída. O otimis-
, mo é covardia.
Nascemos neste tempo e devemos seguir
corajosamente o caminho até o final. Não há
outro rumo. Nosso dever é permanecer sem
esperança no pôsto perdido e sem salvação,
como aquele soldado romano cujos ossos fo-
J'am encontrados à frente de uma porta de
Pompéia e que, durante a erupção do Vesú- ., •
vio, morreu no seu pôsto porque se esquece-
ram d e vir rendê-lo. Isso é grandeza. Isso
significa ter raça. ~sse honroso fim é a úni-
ca coisa que não pode ser tirada ao homem.
N otoltõo B oMp.ril:

MEllóBU8
DE SA.l'~A. BELE1U.

mano e histórico.
Cartas, &&critoa fi op~
grande Imperador, reuD\401
volume pela primeira .,..

\ lingua. portugu&ea.

\
!ndict da. obra:

I - De Rochefort a Baal
Helena.
JI- Juizos literárloa (H
mero, Vtrglllo, Raol
etc.)
Ill- Retratos de 101~
(Opintõea sObre 01 1ft
des capltlea, • IOt
Deaalx, Klêber, loalt
Wellington.)
IV- Retratos de Pol.U.
(Talleyrand, Pltt, ocr
.__
. wallls e Fox)~
V- Oplntoea sObre a pol
---:--~ ca e a. guerra. •
VI- Napol&llo mo;raflata.
VII- NapoleA.o eclucador.
VIU- Napolell.o oconomiiU
IX- Napolell.o admlnletrll
X - Recordaç!Se11 • &D...
XI- A.aauntoa dlY...IOII
fatallamo, o acuo, a
dlcina, a múlo&.) ·
XII- AI paluru ••Jn.

- EDIÇGES D&UtUII

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