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Silas Daniel respondeu à avaliação que preparei de seu texto “Em defesa do arminianismo” (publicado na revista
Obreiro Aprovado Ano 36, nº 68) em cinco postagens, publicadas no site da CPAD News.1 Neste ensaio respondo
a estes.
Introdução
Palavras têm signi cado. Portanto, há que se fazer uma diferença entre semipelagianismo e
semiagostinianismo: o primeiro ensina que a graça de Deus e a vontade do homem trabalham juntas na
salvação, e o homem deve tomar a iniciativa; a fé e o arrependimento são obras humanas, sendo consideradas
pré-requisitos para se receber o Espírito. O segundo ensina que a graça de Deus se estende a todos, capacitando
uma pessoa a escolher e a fazer o necessário para a salvação; a fé e o arrependimento são dons do Espírito.
Esta diferença não pode ser subestimada, ainda que o termo “semipelagianismo” tenha sido cunhado pelos
luteranos no século XVI, usado na Epítome da Fórmula de Concórdia, para, retrospectivamente, rotular a teologia
associada a João Cassiano (conhecida como massilianismo, mas que também tem sido chamada pelos
católicos de semipelagiana).
Já “molinismo” é a noção ensinada pelo jesuíta Luis de Molina, no século XVI. Esta posição foi uma ruptura não
só com os ensinos de Agostinho e Aquino sobre a predestinação, mas também com os de Armínio (na medida
em que o molinismo defende que Deus sabe que, se certa pessoa for colocada em uma situação particular, ela
não irá resistir à graça). Logo, em um non sequitur, o autor busca respaldo no molinismo, ainda que se identi que
como arminiano. Para tentar responder à questão “quem criou o que Deus previu?”, ele apela à ideia do
“conhecimento divino do futuro contingente condicional” (a scientia media, ideia elaborada por Molina), que
supostamente teria respaldo bíblico (ele cita apenas um texto-prova em apoio a esta ideia). O molinismo tem
sido popularizado atualmente por William Lane Craig e Alvin Plantinga. Já há em português farto material
refutando o molinismo.2
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08/06/2020 Sobre arminianismo, calvinismo e o uso da história do pensamento cristão | Teologia Brasileira
De toda forma, a teologia católica tem rejeitado o ensino associado com o semipelagianismo (ou massilianismo)
como herético, desde o sínodo de Orange, de 529:
Silas reconhece que errou em seu estudo da soteriologia dos teólogos medievais. Ele havia, con antemente,
escrito em seu artigo publicado na revista Obreiro Aprovado4 que “o que prevaleceu na Igreja, desde o século 6
em diante, foi uma soteriologia que aceitava a Depravação Total, mas negava o conceito de predestinação”.
Agora, nas postagens mais recentes, escreve, corrigindo-se, que “houve um excesso (…) [de sua] parte ao
desprezar 100% de todo e qualquer vestígio da compreensão agostiniana (…) durante a Idade Média”.
Usando a data da queda do Império Romano do Ocidente, que a historiogra a tradicional emprega para marcar o
m da Antiguidade clássica, o autor rejeita Próspero como um escritor medieval, desconsiderando o fato de que,
intelectualmente, pode-se citar as origens do pensamento medieval cristão em Agostinho de Hipona, o “mestre
do ocidente”6 – por exemplo, Jacques LeGoff situa Agostinho num primeiro período do medievo, que “balança
da Antiguidade Tardia e a alta Idade Média”.7 Ao tratar da rejeição da heresia pelagiana no Sínodo de Cartago,
em 418, M. Pohlenz a rmou: “O fato de a Igreja ter-se pronunciado por tal doutrina [da necessidade da graça]
assinalou o m da ética pagã e de toda a loso a helênica – e assim começou a Idade Média”.8
De qualquer forma, há algumas a rmações questionáveis por parte do autor, sobre os teólogos citados. Sobre
Próspero, ele supõe haver ocorrido uma mudança em sua posição.9 Próspero, após deixar a Gália, onde
contendia com os discípulos de Cassiano, se tornou secretário de Leão I, sendo in uente na composição do
Tomo a Flaviano, fundamental na preparação da De nição de Calcedônia. E os cânones do sínodo de Orange
foram baseados em uma coletânea de textos de Agostinho (chamadas Sententiae) “recolhidas em Roma pela
metade do século V por Próspero de Aquitânia”.10 Pode-se citar neste contexto, outro importante agostiniano,
Isidoro de Sevilha, considerado o último grande Pai latino, que defendeu as posições agostinianas sobre
predestinação e graça em sua obra Etymologie (livro VII) – e foi ele, mais do que Agostinho (que tratou mais da
predestinação para a vida eterna, do que à condenação eterna), que formulou a doutrina da predestinação
dupla.11
Sobre Anselmo e Bernardo, o autor reconhece que ambos seguiram a Agostinho, ainda que “foram menos
consistentes que Gottschalk em sua delidade à visão agostiniana”, como ele mesmo escreve. Mas este não é o
ponto em questão. O fato é que ambos eram monergistas, como aqueles que forem às suas obras poderão
comprovar. Sobre Bradwardine, o autor a rma, categoricamente, sem apresentar fontes, que ele “não cria na
depravação total, dizendo que o pecado original não teria causado consequências mais graves sobre a natureza
humana”. Na verdade, este teólogo medieval não enfatizou tal doutrina por uma razão metodológica:
“Bradwardine apoia sua teologia anti-pelagiana com uma doutrina metafísica da onipotência divina
consideravelmente distinta das ideias de Agostinho, resultando em que a dependência soteriológica total da
humanidade em Deus é considerada uma consequência do caráter do ser humano como criatura e não de sua
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pecaminosidade. A Queda não é, portanto, tida como um divisor de águas na economia da salvação”. Outro
teólogo medieval pode ser citado como um rme agostiniano, Gregório de Rimini: “Enquanto o predestinarismo
de Bradwardine é resultante de sua doutrina metafísica da onipotência divina, o de Gregório surge de seu
conceito cristologicamente centrado na história da salvação”.12 De qualquer forma, recomendo a obra de
McGrath, que oferece uma boa discussão do impacto de Bradwardine e de Rimini na teologia posterior, e as
diferenças entre as escolas losó cas de ambos.
Acerca de Tomás de Kémpis, há uma carta que Susanna Wesley escreveu ao seu lho John, reclamando por
aquele crer na predestinação.13 E a respeito de Tomás de Aquino, ele também reconhece que ele “cria na
predestinação agostiniana só para os eleitos”. Portanto, a a rmação de seu primeiro artigo, de que não havia
ninguém que ensinasse a doutrina da predestinação entre Agostinho e a Reforma Protestante, é falaciosa –
ainda que ele reconheça, corretamente, em seu primeiro artigo, que, “do século 16 ao 18 a principal corrente no
meio protestante mundial era o que se convencionou chamar de calvinismo”. Portanto, para deixar claro, o que
era comum a todos os teólogos medievais citados acima era a crença na predestinação dos eleitos, ou aqueles
que são salvos; mas eles (com a possível exceção de Isidoro e Gottschalk) negavam que Deus predestinaria
ativamente pecadores ao inferno, desde a eternidade, sem levar em conta suas próprias escolhas. Tal posição
está em harmonia com o que havia sido de nido no sínodo de Quierzy, em 850:
No afã de provar que os autores antigos não eram “calvinistas” (ou, pelo menos, eram mais próximos do
“arminianismo”), o autor perdeu de vista o que a rmei em meu primeiro texto, quando lembrei que há diferenças
signi cativas entre os teólogos cristãos, uma constatação que deveria ser óbvia para qualquer um familiarizado
com fontes primárias. Em outras palavras, o que determina o que tal tradição crê (no caso, a tradição católica,
reformada, luterana, batista, etc.) são seus documentos confessionais, não a posição de seus teólogos, mesmo
dos mais representativos – pois este recurso, via de regra, se vale da falácia do argumento da autoridade (ad
verecundiam) e também suscita a pergunta: por que recorrer a teólogo tal, quando se pode citar outro teólogo?
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nem de grande in uência na época de nenhum desses nomes, mas muito ao contrário”. Nenhum especialista em
história do pensamento cristão fez tal a rmação. Também é evidente para qualquer estudioso do período
medieval que o pelagianismo e o massilianismo (ou “semipelagianismo”) eram a posição dominante no
catolicismo popular medieval, ainda que os principais teólogos do período seguissem em maior ou menor grau a
soteriologia de Agostinho. E é justamente a prevalência do “semipelagianismo” na igreja medieval que fornece o
contexto para que a Reforma Protestante seja chamada de “renascença agostiniana”15 e o movimento puritano
inglês e escocês dos séculos XVI e XVII seja chamado de “agostinianismo reformado”.16
Assim sendo, é necessário dizer que ainda que quase todos os teólogos reformados e luteranos no continente,
assim como os teólogos puritanos na Inglaterra, fossem rmemente monergistas, há diferenças de método e
ênfase entre eles, como qualquer leitor dos mesmos sabe (pode-se citar, somente a título de ilustração, Martinho
Lutero, Martin Bucer, Ulrich Zwinglio, João Calvino, Teodoro de Beza, William Perkins e William Ames).
Portanto, mais uma vez: o que de ne uma tradição não são os escritos dos teólogos que pertencem à certa
tradição, mas sim as con ssões de fé que resumem esta tradição. Se o leitor, portanto, quer saber o que a
tradição reformada ensina sobre predestinação, deve ir diretamente à Con ssão de Fé de Westminster (III.1-8), à
Con ssão Belga (Artigo 16), à Segunda Con ssão Helvética (X.1-9) e aos Cânones de Dort (I.6-18, II.8-9, e
rejeições de erros).
3. A progressão do dogma
Em nenhum de meus escritos a rmo algo como uma “forte linhagem histórica calvinista”, como o autor sugere.
Nem mesmo z isso em minha avaliação do artigo dele. Na verdade, a meu ver, o maior erro presente na análise
histórica de Silas Daniel é o anacronismo, que “consiste em utilizar os conceitos e ideias de uma época para
analisar os fatos de outro tempo”17 – segundo Lucien Febvre, o pecado mortal do historiador. Com isso, as
nuances e diferenças na soteriologia dos pais latinos e gregos que viveram antes de Agostinho, assim como dos
teólogos medievais, são perdidas, justamente por, no caso, o autor não permitir aos Pais da Igreja e Medievais
falarem, mas tentar impor a estes autores categorias interpretativas estranhas ao pensamento deles, tais como
“cinco pontos do calvinismo” ou do “arminianismo”. Ele constantemente usa estas categorias de avaliação (ou
lentes interpretativas), tentando achar “textos-prova”, a favor ou contra estes, nos diversos escritores citados.
Portanto, o uso destes eixos interpretativos, de forma anacrônica, torna sua pesquisa histórica comprometida.
O autor cita Jack Cottrell em seu apoio, para a rmar o que deveria ser claro: que nenhum Pai da Igreja antes de
Agostinho cria na predestinação graciosa e soberana, ainda que usem tal fraseologia ocasionalmente.20 Mas, ao
mesmo tempo em que critica Michael Horton, Cottrell (e, parece, Silas, que o cita) cai no mesmo erro que ele visa
corrigir; ele, aparentemente, não faz o serviço completo, ou seja, demonstrar qual seja a doutrina da salvação
dos Pais da Igreja antes de Agostinho.
Por exemplo, a noção de livre-arbítrio em vários dos Pais (Justino, Irene e Tertuliano) estava, na maioria das
vezes, conectada à teodicéia, não à soteriologia. E isso se deu porque a apologética destes Pais era dirigida
contra o determinismo cego presente na cultura greco-romana. Sobre a salvação, em linhas gerais, os Pais
diziam que a antiga lei tinha sido abolida, e o evangelho seria a nova lei. Deste modo, os Pais ressaltaram a
obediência à esta nova lei, bem como a imitação de Cristo, como sendo o caminho da salvação, e o conteúdo
essencial da vida cristã. Mesmo em Agostinho não havia uma noção da imputação da justiça de Cristo aos
pecadores, recebida pela fé somente (um tema-chave da Reforma protestante do século XVI). Também se
enfatizava que o Espírito Santo era recebido por meio do sacramento do batismo. Em outras ocasiões, a
salvação era apresentada em termos de imortalidade e indestrutibilidade, em vez de perdão dos pecados. E
vários dos Pais orientais, mesmo João Cassiano, no ocidente, a rmaram a doutrina sinergística da theosis,
ensinando que a salvação seria adquirida por meio da divinização do homem. Em linhas gerais, estas várias
formulações confundiram os ensinos bíblicos sobre a justi cação e a santi cação. Por outro lado, a noção da
eleição por meio da presciência divina estava conectada, muitas vezes, com a previsão de algum tipo de mérito.
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Justino, por exemplo, a rmou que Deus “prevê que alguns se salvarão pela penitência”.21 Ainda assim, a morte e
a ressurreição de Cristo eram enfatizadas como constituindo o fundamento da salvação dos homens – mas
Cottrell e Silas parecem ignorar estas nuanças, que tornam a teologia dos Pais bem diferente da posição
arminiana clássica.22
De qualquer forma, duvido que um arminiano genuíno endosse tais posições – e Silas cai na própria armadilha
que visa refutar. Assim sendo, por causa da interpretação anacrônica que arminianos contemporâneos23 fazem
dos escritores cristãos da Antiguidade e do Medievo, variações e diferenças entre os escritores antigos na
soteriologia são ignoradas, justamente por não se permitir que estes escritores falem, mas por tentar impor
categorias interpretativas estranhas ao pensamento deles. Mesmo a interpretação que Silas oferece de
aspectos da soteriologia de Agostinho incorre no anacronismo, pois ele tenta interpretá-la pela lente dos “cinco
pontos do calvinismo”. Uma interpretação da posição de Agostinho, sucinta, sóbria e muito mais perto da
verdade, é sugerida por Colin Brown:
O que é preciso ter em mente é que os escritos dos Pais da Igreja, especialmente no que se refere ao ensino da
graça antes da controvérsia pelagiana, não pretendiam ser apresentações doutrinárias sobre salvação no
sentido estrito do termo. Como resultado, não se pode esperar deles um quadro completo destes artigos de fé.
Até porque a soteriologia não foi um problema com o qual eles precisaram se defrontar, já que os principais
debates estavam relacionados com a Trindade e a divindade de Cristo – e resulta daí as tensões e mesmo
contradições presentes em seus escritos, quando tratam da soteriologia.
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O que se rejeitou no Sínodo de Orange, portanto, foi a ideia de que salvação e perdição seriam noções
simétricas. A posição estabelecida neste sínodo foi rea rmada no sínodo de Quierzy, em 853, que rejeitou o
ensino da predestinação à perdição (atribuído a Gottschalk), rea rmando que Deus predestina pela graça e salva
pela misericórdia, e a reprovação é um ato de perfeita justiça, que pronuncia a pena unicamente para punir a
falta, e após a previsão dessa: “Cap. 3. (…) Que alguns sejam salvos é dom daquele que salva; que alguns ao
contrário se percam é culpa dos que se perdem”.26 O sínodo de Valença, realizado em 855, a rmou: “Cân. 3. (…)
Assim professamos com fé a predestinação dos eleitos à vida e a predestinação dos ímpios à morte; na eleição
dos que devem ser salvos, a misericórdia de Deus precede o mérito, mas na condenação dos que perecerão, o
desmérito precede o juízo de Deus”.27
Silas Daniel cita uma imensa lista de fontes secundárias – todas em inglês (até onde percebi), mesmo quando já
traduzidas para o português, o que di culta ao leitor sem domínio daquele idioma o acesso às mesmas para
checar as fontes citadas. Um exemplo problemático é o uso que ele faz de Herman Bavinck. Em seu texto “Em
defesa do arminianismo”, ele, se apoiando no teólogo holandês, a rmou que Lutero “abrandou a sua posição
a rmada em De servo arbítrio”.30 Na verdade, Bavinck a rma que “embora em suas polêmicas com os
anabatistas [Lutero] tenha enfatizado cada vez mais a revelação de Deus na Palavra e nos sacramentos, ele
nunca reverteu sua posição sobre predestinação”.31 Em uma de suas respostas, Silas, que havia se apoiado
anteriormente em Bavinck, surpreendentemente, escreve que “quanto à a rmação de Bavinck de que os
‘verdadeiros luteranos’ rejeitaram o sinergismo de Melanchthon, trata-se de uma tremenda distorção da
história”.32 A impressão que dá é que o autor mencionou Bavinck apenas quando a citação aparentemente
favoreceu o seu argumento.
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Deste modo, lembrando do princípio de que para tratar de temas teológicos controversos deve-se começar com
o que a rmam as con ssões de fé que resumem as posições das tradições estudadas, passemos às citações
dos escritos confessionais luteranos contidos no Livro de Concórdia.
4.1. A tradição luterana é monergista. Isto pode ser conferido na Fórmula de Concórdia XI.1-14, no capítulo que
trata “da eterna presciência e eleição de Deus”, que a rma que “sobre este artigo não ocorreu dissensão pública
entre os teólogos da Con ssão de Augsburgo”. E continua:
Por meio de negativas, é rejeitada a ideia de uma dupla predestinação simétrica (predestinatio gemina), seguindo
as deliberações a rmadas nos sínodos de Quiercy e Valença. Na Declaração Sólida XI, “da eterna presciência e
eleição de Deus”, tal posição é detalhadamente rea rmada. Um trecho basta:
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Portanto, aqueles familiarizados com a tradição confessional luterana sabem que esta, ainda que tendo agudas
diferenças em relação à tradição reformada, é monergística.33
4.2. Por defender uma interpretação anacrônica da controvérsia soteriológica, o autor insiste que os Artigos de
Esmacalde III.40-45 ensinariam a “crença de Lutero na possibilidade de um cristão genuíno cair da graça”,
quando o luteranismo oferece outra possibilidade de compreensão da segurança da salvação. Os artigos
ensinam:
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DISSO NADA SABEM NEM PAPA, NEM TEÓLOGOS, NEM JURISTAS, NEM
HOMEM ALGUM. É DOUTRINA DO CÉU, REVELADA PELO EVANGELHO. E
ELA TEM DE SUPORTAR O SER CHAMADO DE HERESIA ENTRE OS
SANTOS ÍMPIOS.
Tal declaração deve ser lida em contexto, isto é, as controvérsias com os vários grupos anabatistas, chamados
coletivamente pelos reformadores alemães de “entusiastas” (Schwärmer ou Schwärmertum, sinônimo de
“fanáticos”). Numa nota de rodapé do Livro de Concórdia, comentando a frase “então o Espírito Santo e a fé não
estão presentes”, cita-se Gottfried Noth, que a rmou que “M. Chemnitz repetidas vezes apela para esse passo
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dos Artigos de Esmacalde, interpretando-o, porém, mal, como se Lutero quisesse dizer que pecados grosseiros
liquidam a fé”.
Para entender o que a tradição luterana confessional defende sobre a fé e a certeza da salvação, pode-se ir a
John Theodore Mueller, que escreve: “Se os papistas e protestantes romanizantes negam que o crente possa
estar certo de sua salvação, é porque ensinam que a salvação, ao menos em parte, depende das boas obras do
crente. (…) Todo aquele que crê em Cristo com sinceridade está seguro de seu estado de graça e salvação; pois
o Espírito Santo, que nele gerou fé pelo Evangelho, por essa mesma fé lhe dá certeza de que é lho de Deus e
herdeiro da vida eterna”. Mas, para Mueller, há que se fazer uma distinção entre a primeira conversão, e a
conversão continuada, que “jamais está completa enquanto [a pessoa que crê em Cristo] vive no mundo”. Esta
conversão continuada não é um processo de santi cação interna, mas um viver na con ança na salvação obtida
objetivamente na Palavra e nos sacramentos. Portanto, “o fato de aqueles que crêem em Cristo poderem cair da
graça ou perder a fé constitui doutrina clara da Bíblia”, ainda que seja “preciso manter que podem se converter
de novo (…) os que caíram na fé”. Esse autor, em sua obra, critica o entendimento reformado da perseverança,
pois esta nega “a gratia universalis”. Mas rejeita a compreensão sinergista da perseverança, pois esta nega “o
sola gratia”, ensinando que “o pecador tem de entrar com a sua quota a bem de se tornar cristão, assim como
também tem de cumprir com a sua parte para poder perseverar na fé”. De acordo com Mueller, “o monergismo
divino é, também, responsável pela conservação para a salvação”.34
Para a tradição luterana, a santi cação (que é interna) não pode ser a base da certeza da salvação, mas a
segurança da salvação é dada externamente, na Palavra e nos sacramentos. Como Lutero a rmou no Catecismo
Maior:
4.3. Sobre Lutero, deve ser óbvio, a esta altura, que é muito mais fácil a rmar que supostamente houve mudança
ou abrandamento no pensamento do reformador do que interagir com a robusta exegese que ele ofereceu ao
texto bíblico, não só em Da vontade cativa, mas também em suas preleções à Epístola do Bem-aventurado
Apóstolo Paulo aos Romanos e no Comentário à Epístola aos Gálatas.35 Assim sendo, me parece apropriado
encerrar esta seção com uma citação do Prefácio à Epístola de S. Paulo aos Romanos, escrita em 1522, e
revisada em 1546, ano da morte do reformador:
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Conclusão
É necessário deixar claro que calvinistas não tratam o arminianismo como herético. Ou, pelo menos, não
deveriam.37 Por exemplo: Agostinho, refutou os erros dos massilianos (“semipelagianos”) em duas obras (A
predestinação dos santos e O dom da esperança), mas tratou-os como irmãos ou amigos errados, não como
hereges. William Ames, um dos mais in uentes teólogos reformados, e que foi conselheiro do presidente do
Sínodo de Dort, Johannes Bogerman, escreveu que o arminianismo “não é corretamente uma heresia, mas um
erro perigoso na fé”.38
John Wesley reconheceu, em 1745, que sua teologia estava “a um o de cabelo” do pensamento de João
Calvino:39 “Ao atribuir todo o bem à livre graça de Deus. Ao negar o livre-arbítrio natural e o poder antecedente à
graça. E, ao excluir o mérito humano; mesmo para o que ele realizou ou pratica pela graça de Deus”.40 Isso é
exempli cado numa conversa que Charles Simeon teve com Wesley, em 1784:
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O grande desejo de John Wesley, ao qual ele devotou sua vida, foi pregar “as três grandes doutrinas bíblicas: o
pecado original, a justi cação pela fé e a consequente santidade”.42 Que Deus nos dê de seu Espírito Santo para
não apenas confessar tais doutrinas, mas pregá-las com zelo e paixão nesta época em que a igreja cristã é
desa ada e confrontada com um ambiente cultural e político cada vez mais hostil à fé evangélica.
_________________________
1As várias respostas de Silas Daniel podem ser lidas aqui: http://www.cpadnews.com.br/blog/silasdaniel/.
2Cf. especialmente: http://bereianos.blogspot.com.br/search/label/Molinismo. Há escritos proveitosos de
Joseph Nally, James Anderson, John Frame, Herman Bavinck, Matthew McMahon, Paul Helm e François
Turretini. Cf. também Franklin Ferreira & Alan D. Myatt, Teologia sistemática (São Paulo: Vida Nova, 2008), p. 340-
341.
3Compêndio dos símbolos, de nições e declarações de fé e moral (São Paulo: Paulinas & Loyola, 2013), 374.
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4Este texto foi publicado no hotsite das Obras de Armínio, da CPAD, sem nenhuma das correções que ele
ofereceu em seus artigos posteriores. A única aparente diferença entre o texto como publicado em O Obreiro
Aprovado e no hotsite da CPAD é o subtítulo de uma das seções do texto: “Lutero: de ‘calvinista’, no início, a
quase ‘arminiano’ no nal da vida”. O advérbio “quase” foi acrescentado no texto publicado no site.
5E não só entre eles, mas entre Martinho Lutero, João Calvino e Jonathan Edwards. cf. R. C. Sproul, Sola Gratia: a
controvérsia sobre o livre-arbítrio na história (São Paulo: Cultura Cristã, 2001).
6Philotheus Boehner e Etienne Gilson, História da loso a cristã (Rio de Janeiro: Vozes, 2004), p. 139.
7cf. Homens e mulheres da Idade Média (São Paulo: Estação Liberdade, 2013), p. 13. Cf. também Steven P.
Marrone, “A loso a medieval em seu contexto” em: A. S. McGrade (org.), Filoso a medieval (Aparecida: Ideias &
Letras, 2008), p. 27-70; Josep-Ignasi Saranyana, La losofía medieval: desde sus orígenes patrísticos hasta la
escolástica barroca (Eunsa, Pamplona 2003), Parte I, § 20-21; Etienne Gilson, A loso a na Idade Média (São
Paulo: Martin Fontes, 2001), p. 129-159; D. W. Hamlyn, Uma história da loso a ocidental (Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1990), cap. 7, etc.
8cf. Giovanni Reale & Dario Antiseri, História da loso a. v. 2 (São Paulo: Paulus, 2003), p. 84.
9Várias citações de Próspero podem ser encontradas em Jaroslav Pelikan, A tradição cristã, v. 1 (São Paulo:
Shedd, 2014), p. 321-333. Em um de seus textos, Silas Daniel faz várias citações de Próspero a favor daquilo que
é chamado de “universalismo hipotético”, e que não provam nada. As citações não demonstram que tal posição
é incompatível ou é uma ruptura com o monergismo que ele herdou de Agostinho, e do qual foi rme defensor.
Cf., por exemplo, Jordan Cooper, “Predestination, Grace, and Free Will in the Thought of St. Prosper of Aquitaine
and C.F.W. Walther: A Comparison and Evaluation”, em http://www.logia.org/logia-online/650. Para a mudança de
ênfase em Próspero, cf. especialmente Francis Gumerlock, “The Romanization of Prosper of Aquitaine’s
Theology of Grace”, em: http://francisgumerlock.com/wp-content/uploads/Romanization-of-Prospers-Doctrine-
of-Grace-NAPS-paper.pdf.
10 Compêndio dos símbolos, de nições e declarações de fé e moral, p. 139.
11 Cf. Jaroslav Pelikan, A tradição cristã, v. 3 (São Paulo: Sheed, no prelo), passim.
12 cf. Alister McGrath, Origens intelectuais da Reforma (São Paulo: Cultura Cristã, 2007), p. 124-125, 171-174.
13 Datada de 8 de junho de 1725; cf. Charles Wallace Jr. (ed.), Susanna Wesley: The Complete Writings (Oxford:
Oxford University Press, 1997), p. 107-109.
14 Compêndio dos símbolos, de nições e declarações de fé e moral, 621-621.
15
cf. Timothy George, Teologia dos reformadores (São Paulo: Vida Nova, 1993), p. 50.
16 cf. J. I. Packer, “Os puritanos”, Robin Keeley (org.), Fundamentos da teologia cristã (São Paulo: Vida, 2000), p.
313-314.
17 Cf., por exemplo, Adelar Heinsfeld, A inspiração de Clio: uma introdução ao estudo da história (São Paulo/Passo
Fundo: DPP/PPGH-UPF, 2013), p. 53.
18 cf. a tabela em Reginald Garrigou-Lagrange, Grace: Commentary on the Summa Theologica of St. Thomas, ch. 1,
em: https://www.ewtn.com/library/Theology/grace1.htm.
19 cf. J. LeGoff, Homens e mulheres da Idade Média, p. 60.
20 cf. 1 Clemente, 1.1; 6.1; 29.1; 46.4; 50.6-7.
21 cf. 1 Apologia, 28.2.
22 Para a soteriologia dos Pais da Igreja, cf. J. N. D. Kelly, Patrística (São Paulo: Vida Nova, 1994), caps. 13-14;
Jaroslav Pelikan, A tradição cristã, v. 1, cap. 6.
23 E mesmo calvinistas, como Steven J. Lawson, no irregular Pilares da graça, v. 2 (São José dos Campos: Fiel,
2013).
24 Filoso a e fé cristã (São Paulo: Vida Nova, 2009), p. 19.
25 Compêndio dos símbolos, de nições e declarações de fé e moral, 397.
26 Compêndio dos símbolos, de nições e declarações de fé e moral, 623.
27 Compêndio dos símbolos, de nições e declarações de fé e moral, 628. O leitor deve ter em mente que, muito
embora a tradição católica tenha aceitado certas formulações dos escritos tardios de Agostinho, os interpretou
dentro da doutrina sacramental-cristológica e do conceito de predestinação individual-corporativa, de modo que
Deus não predestinaria indivíduos que não estivessem ligados à igreja visível pelo batismo – e a noção de igreja
visível é uma doutrina essencial para a tradição católica. Além disso, sínodos como os de Orange, de Valença e
de Quierzy não foram ecumênicos (universais) e são, para tradição católica, interpretados pela autoridade dos
concílios ecumênicos.
28 O pastor luterano Daniel Branco, da Congregação Luterana da Reforma, de Fortaleza-CE, refutou vigorosamente
esta distorção, em dois textos que permanecem sem resposta, e que podem ser lidos no portal luterano
Catequese confessional: http://catequeseconfessional.blogspot.com.br/2015/08/luteranismo-calvinismo-e-
https://teologiabrasileira.com.br/sobre-arminianismo-calvinismo-e-o-uso-da-historia-do-pensamento-cristao/ 13/15
08/06/2020 Sobre arminianismo, calvinismo e o uso da história do pensamento cristão | Teologia Brasileira
arminianismo.html e http://catequeseconfessional.blogspot.com.br/2015/08/luteranismo-calvinismo-e-
arminianismo_22.html. Para um ótimo resumo das diferenças entre luteranos e calvinistas, cf. Brian W. Thomas,
Wittenberg vs. Geneva (Irvine: New Reformation 2015). De forma irênica, o autor trata das diferenças das duas
tradições quanto às doutrinas da expiação, predestinação, sacramentos e apostasia.
Todos os trechos de documentos confessionais aqui publicados são citados do Livro de Concórdia: as
29
con ssões da Igreja Evangélica Luterana (Porto Alegre/São Leopoldo/Canoas: Concórdia/Sinodal/Ulbra, 2006).
O título nas Obras Selecionadas de Martinho Lutero (São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1993), v. 4,
30
A citação de Bavinck, rejeitada por Silas Daniel como “tremenda distorção da história”, é: “Esse sinergismo (…)
32
foi rmemente rejeitado pelos ‘verdadeiros’ luteranos: Flacius, Wigand, Amsdorf, Heshusius e outros” (p. 364-
365).
Para uma exposição do pensamento de Lutero sobre a predestinação, cf. Paul Althaus, A teologia de Martinho
33
Lutero (Canoas/Porto Alegre: ULBRA/Concórdia, 2008), p. 291-303. Esta obra basilar para o estudo de Lutero não
é citada uma única vez nos textos de Silas Daniel.
Dogmática cristã (Canoas/Porto Alegre: ULBRA/Concórdia, 2004), p. 320, 322, 341, 413-417. Em linhas gerais,
34
como o pastor luterano Daniel Branco escreveu, em correspondência particular, “o calvinismo e o movimento
evangélico trabalham em categorias como o Ser/Ontologia/Lógica. Por isso, é mais Ocidental. O luteranismo
também trabalha com o não-ser e o vazio. Por isso, é mais Oriental/Místico. O esvaziamento ou aniquilamento
do antagonismo entre a pessoa humana e Deus vem da lei. A lei pode fazer a pessoa anular-se/autonegar-se
diante dos seus pecados, mas esse esvaziamento não salva. O salvo não apenas deixa de desagradar a Deus
(esvaziamento), mas deve agradá-lo positivamente (recebimento da fé). Em outras palavras, o processo de
esvaziamento não pode ser confundido com salvação, pois vem da lei, enquanto que a fé outorgada ao
esvaziado vem da graça. Não há decisão de salvar-se pelo esvaziamento. A lei pode levar o homem à auto-
anulação, mas isso nada tem a ver com a graça bíblia. Deus usa a lei de um modo e a graça de outro. A graça é
dada ao esvaziado pela lei sem que o mesmo tenha qualquer decisão na salvação. Desse modo, o salvo
objetivamente não vive em si mesmo, mas em Cristo. Ele tem duas vidas: a nova (em Cristo) e a velha (a do
velho homem). Ele pode, porém, voltar a si mesmo e sair de Cristo (perder a salvação). Mas voltar a Cristo não é
uma segunda salvação (no sentido de requerer que a substituição de Cristo seja repetida), pois é na nadi cação
(supressão de obras) que o salvo se torna um não-ser no ser de Cristo. A doutrina luterana aqui se assemelha à
doutrina ortodoxa da theosis”.
Curiosamente, a editora Re exão publicou no Brasil a obra editada por E. Gordon Rupp e Philip S. Watson,
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Luther and Erasmus: Free Will and Salvation, sem o texto do reformador alemão. O título nacional é,
simplesmente, Erasmo: livre-arbítrio e salvação.
Obras Selecionadas de Martinho Lutero (São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 2003), v. 8, p. 139.
36
Cf. o sábio alerta de Grant R. Osborne, 3 perguntas cruciais sobre a Bíblia (São Paulo: Vida Nova, 2014), p. 164:
37
“Não sabemos ao certo como determinar um dogma, especialmente como obtê-lo a partir das Escrituras; e não
sabemos como distinguir doutrinas centrais daquelas doutrinas sobre as quais devemos concordar em
discordar. Existem mais caçadores de heresias por aí do que jamais existiu na história recente, e ainda assim
existe menos consciência teológica na maioria das igrejas do que em qualquer outro período do último século. É
uma dicotomia estranha – temos mais material sobre a Bíblia e a teologia do que nunca, mais interesse em
estudos bíblicos, e ainda assim temos menos conhecimento da Bíblia e de teologia”.
William Ames, De conscientia et eius iure vel casibus: libri unique, IV.4.10, em: John Dykstra Eusden,
38
“Introduction” em William Ames, The marrow of theology, p. 7-8. Ainda que o “arminianismo de coração” (Roger
Olson, Teologia arminiana: mitos e realidades [São Paulo: Re exão, 2013], p. 23, etc.) seja uma interpretação
evangélica legítima, suas fraquezas intrínsecas terminam por, não raro, abrir as portas à teoria governamental da
expiação (Hugo Grotius), à negação da justi cação pela graça recebida por fé somente (John Fletcher, E. P.
Sanders, James D. G. Dunn), o teísmo aberto (David Basinger, John Sanders, Greg Boyd, Clark Pinnock) e a
defesa de algum tipo de purgatório (Jerry Walls). Especialmente os “arminianos de cabeça”, mas também
“arminianos de coração” e mesmo calvinistas têm pendido para o liberalismo teológico quando abrem espaço
para a noção de autonomia ou libertarianismo libertário. Talvez o exemplo mais premente seja Clark Pinnock.
Letters [of John Wesley], v. 4, p. 298.
39
J. I. Packer, Evangelização e a soberania de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2012), p. 13. Citado de Horae
41
Homileticae, Prefácio: I.vii s. A data desta conversa, segundo o Wesley’s Journal, foi 20 de dezembro de 1784.
The Works of John Wesley, ibid.
42
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08/06/2020 Sobre arminianismo, calvinismo e o uso da história do pensamento cristão | Teologia Brasileira
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