Você está na página 1de 5

Breve história do liberalismo católico

Nesta conferência, vamos falar de um tipo de liberalismo que se tornou de fato um inimigo
real: o liberalismo católico. Podemos dizer que o liberalismo em geral, como uma posição
na ordem metafísica, baseia-se principalmente no nominalismo - a idéia de que a única
realidade vem do indivíduo; isso cria para seus adeptos um obstáculo fundamental para a
compreensão de uma realidade diferente, por exemplo, a dos grupos da sociedade. Mas a
maioria dos liberais não chega a alcançar um entendimento desenvolvido sobre esse
assunto, porque eles estão presos ao que podemos chamar de questão principal, que é o
problema do conhecimento.
O liberalismo em geral sempre se apresenta como cético quando se trata do problema de
verdade; o proto-liberal é Pilatos, que no julgamento de Nosso Senhor lhe perguntou: "O
que é verdade?" e depois se afastou sem ouvir a resposta. O liberal não acredita que o
homem seja capaz de saber o que as coisas são realmente.
Outro desafio vem dos relativistas, que acreditam que não há realidade; que a realidade
muda, e por si mesma está em constante mutação. Portanto, aquele que crê compreender
ou pensa ter uma concepção verdadeira da essência da realidade apenas termina por
deformá-la.
Uma terceira variante do liberalismo é o subjetivismo. O subjetivista acredita que a
realidade varia segundo a percepção do sujeito, e não é determinada pelo objeto em si
mesmo. Daí o ditado: "Cada cabeça uma sentença" ou "Tudo depende do ponto de vista”.
A partir dessa negação da realidade e da idéia de que o homem possa conhecer o que as
coisas são, a antropologia liberal torna-se fundamentalmente individualista. O indivíduo é
a única realidade. Desse modo, quando surge a questão ética, se não há normas objetivas
para orientar a conduta humana, a decisão do indivíduo é a única regra que deve ser levada
em conta. Em princípio, essa falsa idéia até pode ser sustentada na teoria, mas enfrenta
problemas incontornáveis quando se pretende construir uma sociedade a partir dela.
Se todo homem vivesse como Robinson Crusoé em uma ilha deserta, ele poderia até certo
ponto fazer o que quisesse. Mas quando há muitos indivíduos livres, autônomos e
soberanos que precisam viver juntos, o problema começa a ficar mais complicado. Por
esse motivo, em geral, doutrinas políticas baseado no liberalismo, têm de resolver esse
enigma: Como homens criados livres, soberanos e autônomos, podem viver juntos? E, na
verdade, eles ainda não encontraram a solução.
Eles passaram do ideal hobbesiano, em que o homem renuncia totalmente a sua soberania
em prol do Leviatã, à famosa "quadratura do círculo" do Contrato Social de Rousseau, em
que - sob o mito de uma vontade geral - todo homem obedece a vontade geral, mas acaba
obedecendo apenas a si mesmo, cumprindo uma liberdade obrigatória.
Existe também o esquema de Kant, que é um pouco mais complicado, onde é preciso
admitir que existem limites para a liberdade, porque, caso contrário, não poderíamos
sequer exercer a liberdade que temos.
Ora, essas teorias liberais, que vêm se espalhando pelo mundo praticamente desde o século
XVII, tiveram uma influência muito grande dentro da Igreja, especialmente desde o
acontecimentos cruciais da Revolução Francesa. Até aquele momento, podíamos dizer que
as posições liberal e católica estavam claramente separadas. Esse acontecimento terrível,
que afetou profundamente não apenas a França, mas a Europa inteira e a América com
seus ecos e repercussões, foi a primeira tentativa de criar um estado que dispensasse
diretamente Deus e a religião.
Todas as tentativas anteriores enfrentaram problemas. Poderíamos dizer que as primeiras
tentativas de formar um Estado liberal vieram junto com o protestantismo. Mas essas
experiências protestantes - na Inglaterra, por exemplo - consistiram simplesmente em
separar a Igreja inglesa da romana, e transformá-la em religião do Estado. O rei tornou-se
a autoridade suprema da igreja na Inglaterra, como é até hoje. Nos territórios alemães,
sobretudo, o protestantismo também favoreceu essas religiões de Estado, não apenas por
uma questão de oportunidade, mas por causa de uma necessidade que podemos dizer que
provém da própria lógica do protestantismo. O protestantismo, no momento em que afirma
a livre interpretação da Bíblia como um ponto, faz de todo protestante um seguidor de
coração de uma religião particular. Eles não têm Magistério; não há autoridade.
Tal estado de coisas até pode funcionar nas questões religiosas. Mas quando é preciso
construir uma sociedade protestante, tudo se torna mais difícil.
Por isso, em todos os países protestantes, o rei teve de fundar sua própria igreja
protestante, para impedir a divisão do país em inúmeras seitas. Os Estados Unidos são a
exceção a isso, mas por outras razões. Isso foi o que aconteceu na Suécia, na Noruega, na
Holanda, na Alemanha…
A Revolução francesa, no entanto, trouxe o novo elemento do liberalismo.

Religião Civil
Alguns anos depois, Pio VII assinou sua famosa Concordata com Napoleão. Já escrevi
muito sobre o assunto, e não pretendo repassar todos os detalhes, mas basicamente a
primeira intenção da Revolução era seguir ao pé da letra o Contrato Social e criar uma
religião civil. Há um capítulo no livro de Rousseau que aborda muito superficialmente o
tema. De fato, na Argentina, na primeira tradução da obra, impressa por Mario Moreno,
em Buenos Aires, pouco depois da Revolução de Maio de 1810 (o estabelecimento da
primeira governo local na América do Sul) esse capítulo sobre religião civil foi omitido.
Moreno disse que o suprimiu porque "naquele ponto, o autor está delirando!" (Na verdade,
o trabalho inteiro de Rousseau é um delírio. Mas, tudo bem, é nesse ponto que isso é mais
evidente, e Moreno o suprimiu).
Mas o que exatamente Rousseau diz nesse capítulo? Rousseau tem um problema: para que
a “vontade geral” funcione, é preciso eliminar qualquer outro tipo de associação de grupo
entre seus cidadãos que não seja o Estado. Por quê? Porque se isso não acontecer, quando
as pessoas tiverem de votar para determinar o conteúdo da vontade geral, eles irão preferir
as idéias de suas corporação, de sua família, de seu grupo - de sua Igreja.
Rousseau viu que na França, naquela época, além do catolicismo, havia uma seita
protestante de relativa importância. Sua ideia então era simples: criar uma religião civil
que substituísse o cristianismo como ortodoxia pública. Foi o que se tentou na França.
Primeiro, com a famosa Constituição Civil do Clero, que fracassou. Foi uma tentativa de
“organizar” a Igreja: já que o catolicismo não podia ser suprimido diretamente, buscou-se
uma maneira dele ser diretamente controlado pelo governo.
Isso acabou por dividir a Igreja na França. Uma parte significativa do clero rejeitou a
Constituição, recusando-se a jurar; e daí surgiu a guerra épica da Vendéia, em que grande
parte da população francesa se insurgiu em defesa dos padres e bispos que se recusaram a
prestar juramento de submissão à Constituição Civil do Clero, e travou uma guerra contra
a Revolução que durou anos.
Quando Napoleão Bonaparte viu quão complicado o assunto se tornara, impôs uma
mudança, dizendo "Precisamos fazer um acordo diretamente com Roma" e assinou a
Concordata com o papa. Esta Concordata, embora tenha trazido a vantagem da reabertura
das igrejas e do retorno do culto público na França, no entanto, estabeleceu como condição
que os bispos que prestaram o juramento à Constituição fossem reconhecido pela Santa
Sé.
Esta situação permaneceu depois da queda de Napoleão e a restauração da monarquia. E
quando houve uma tentativa de retornar a uma ortodoxia católica mais forte, no século 19,
houve uma oposição radical dos que haviam aceitado a Constituição do Clero. E aqui, pela
primeira vez, o liberalismo católico vem à tona.
Nesse momento, surgem em cena um personagem importante, um padre católico chamado
Felicité de Lamennais, que em muitos de seus trabalhos e escritos sustentava o conceito
por ele resumido em uma frase: Estado livre, Igreja livre. Isto é, separação entre Igreja e
Estado, mas de um modo em que a Igreja tivesse absoluta liberdade para pregar, dar os
Sacramentos, designar seus ministros, sem a intervenção dos poderes políticos.
Lamennais expôs sua doutrina; e, é claro, uma época em que os papas cumpriam seu
dever, ele se viu condenado pelo Papa Gregório XVI na encíclica Mirari Vos, publicada
em 1834. No entanto, apesar da condenação, as idéias de Lamennais continuaram
circulando pela Europa e por todo o resto do mundo. Mais tarde, no século 19, após a
queda da monarquia francesa na revolução de 1848 — um momento de muitas revoluções
políticas em toda a Europa — houve um novo ressurgimento desse liberalismo católico,
encarnado principalmente na figura de Montalembert, outro pensador francês.
Mais uma vez, a Cátedra de Pedro os desafiou com o documento magnífico que foi a
Encíclica Quanta Cura do Papa Pio IX; e com o Syllabus, uma coleção de erros modernos
condenáveis. A partir desse momento, o Syllabus dos erros se tornou a bête noire do
liberalismo católico. Em muitos debates, inclusive na Argentina, na segunda metade do
século XIX, uma acusação comum contra os católicos era "Eles defendem o Syllabus!" —
um insulto que poucos eram capazes de suportar.

Legislação Católica
O século XIX prosseguiu e o novo Papa, Leão XIII, começou a executar uma política,
especialmente na França, mas também na Espanha e na Argentina, de uma certa aliança
com os liberais católicos. Isso passou para a história com o nome de Ralliement, uma
palavra difícil de traduzir, mas que pode ser traduzida como "tratado" ou "acordo". A idéia
de Leão XIII era distinguir entre a república, como estrutura política, e a republica como
legislação.
Assim, ele pediu aos católicos da França que rejeitassem a ideia da monarquia como a
única solução possível e aceitassem de boa fé o governo republicano, mas continuassem
lutando contra a legislação anti-católica. Isso é claramente um sofisma, uma confusão do
abstrato com o concreto. De fato, na doutrina política católica, em princípio, a forma de
governo é uma questão indiferente. Pode haver uma monarquia católica, bem como uma
aristocracia ou república católicas — por outro lado, qualquer uma delas pode igualmente
ser anti-católica. Mas isso é puramente abstrato. Concretamente, em cada nação, em
qualquer ponto definido da história, existem certas possibilidades políticas definidas — e
impossibilidades. Na França, naquele ponto do século XIX, a única república possível era
uma república maçônica. Na Irlanda do século 19, por outro lado, a única monarquia
possível era a monarquia protestante inglesa.
Este conceito provocou a divisão entre católicos. Houve quem continuasse a defender a
monarquia católica como a única solução possível, prática e concreta; e aqueles que
apoiaram a ideia da República.
No entanto, a política de Leão XIII estava fadada ao fracasso. Depois da queda de
Napoleão III, no final da Guerra Franco-Prussiana, os elementos jacobinos mais fortes - os
personagens maçônicos mais revolucionários - assumiram o controle do stablishment na
França e passaram a instituir uma série de leis completamente contrárias à Igreja, até que,
em 1905, finalmente chegou a conhecida lei da completa separação entre Igreja e Estado.
Nesta fase, São Pio X reinava como papa e, vendo os problemas da situação com clareza,
imediatamente interrompeu a política de aliança e rompeu com a facção liberal. Ele
também condenou a versão final do catolicismo liberal: le Sillon, um movimento fundado
por um pensador chamado Marc Sagnier. O movimento foi condenado em um documento
de São Pio X: Notre Charge Apostolique, em que o papa condenava de maneira claríssima
os erros do catolicismo liberal, daquela Democracia Cristã tão proeminente naquele
momento.
No século 20, na década de 1920, dois eventos muito importantes ocorreram. No México,
estourou a Guerra dos Cristeros -- na qual a intervenção papal de Pio XI foi deplorável,
porque ele ordenou aos católicos rebelados que desistissem do combate armado, o que os
levou a depor suas armas e a serem prontamente assassinados -- sem repercussões - pelo
governo maçônico que não depôs suas armas.
Na França, ocorreu outro evento importante: a condenação da Action Française e de
Charles Maurras. Maurras era um pensador interessante que fora positivista e discípulo de
Comte; não um católico, mas um homem de boa fé que amava seu país e a verdade. Seu
estudo objetivo das condições sociais o convenceu de que o catolicismo estava certo, o que
produziu um paradoxo interessante: no final do século 19, esse movimento
chamado Action Française, em um centro de estudos que eles criaram, promoveu um
simpósio sobre o Syllabus, ministrado por um padre cujo trabalho era ensinar o Syllabus.
Sobre o Syllabus, Maurras dizia que “não há nada neste documento que se oponha ao bom
senso”. Esse documento, inaceitável para os católicos liberais, foi aceito e defendido, e até
promovido por um agnóstico! Um paradoxo da história, de fato.
A Action Française foi condenada por Pio XI, o que levou ao desaparecimento, ou ao
menos à perda de influência, de um movimento político que questionava com veemência a
República francesa. Esse fato foi muito importante porque, acima e além do aspecto
puramente político da condenação, uma espécie de expurgo interno na Igreja desenvolvido
ao mesmo tempo, afastou todos os membros da Igreja que favoreciam ou pareciam
favorecer a Action Française.
Isso fez com que posições de influência nas universidades, dioceses etc., fossem
assumidas pelos personagens que estavam até ali, por assim dizer, nos bastidores por
serem suspeitos de modernismo. Personagens como Henry de Lubac, por exemplo, na
Companhia de Jesus, foram promovidos porque estavam dispostos a perseguir e atacar os
membros da Action Française. Padre Calderón emprestou-me um livro de que gostei
muito, de um autor contemporâneo chamado Philippe Prévost, L’Église et le Ralliement,
que nos dá uma descrição detalhada de todo esse processo.
Foi nesse momento que apareceu uma pessoa muito importante em nossa história, e que
acredito ser, no século XX, a figura mais importante para se compreender o catolicismo
liberal: Jacques Maritain. Ele seria o homem que proclamaria o liberalismo católico no
coração da Igreja e influenciaria profundamente o Concílio Vaticano II. Mas isto já é tema
para outra palestra.

(Professor Luis Roldán, traduzido a partir de Angelus Press - tradução: Permanência)

Você também pode gostar