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RESENHA

BURKE, Peter. Hybrid Rennaissance: culture, 157


language, architecture. Budapest, New York:
Central European University Press, 2016. 271p.

Renascimento híbrido:
cultura, língua e arquitetura, de
Peter Burke
FELIPE FREITAS DE SOUZA *

Este livro é resultado de uma série de


aulas em 2013, na Central European
University (Budapeste), focando o
Renascimento enquanto um longo
processo de hibridização cultural. Nos proposição do hibridismo cultural
exemplos para além da Europa, são enquanto prática no Renascimento: o
citados os críticos pós-coloniais: afinal, mito de sua “origem pura” é demolido.
fora da Europa e em suas colônias que o
processo de hibridização se manifestaria Em A Ideia de Hibridismo, indica-se
mais claramente. Um viés possível para que as discussões sobre hibridização
compreender-se o Renascimento estaria cultural são respostas às questões como
na investigação dos processos de trocas globalização, migrações e
culturais. multiculturalismo. Edward Said, Néstor
Canclini, Homi Bhabha, Fernando Ortiz
Burke amplia suas noções de e Gilberto Freyre são mobilizados para
hibridização indicando a possibilidade o entendimento do hibridismo cultural a
de hibridizações residuais, reativas e nível local. Mais que coexistência,
não-intencionais, especificando os usos haveria intensa interação cultural. É
dos termos tradução cultural e nesse capítulo que Burke aborda o
sincretismo de modo ímpar frente suas ecótipo (ecotype) enquanto variante
obras prévias. Se a ideia de hibridização local de uma tradição externa, como o
cultural pode ser criticada pela dialeto de uma língua. O conceito de
suposição de que encontraríamos tradução cultural é ampliado: ela seria
hibridizações culturais em qualquer uma ação mais consciente dos agentes
dimensão observada, o autor indica que sociais enquanto a hibridização seria um
deve-se pensar em sentidos centrais e processo relativamente mais
periféricos do processo, de maior ou inconsciente. Os encontros culturais, a
menor hibridização, em diferentes apropriação de “fragmentos culturais” e
momentos e domínios e com diferentes a integração desses fragmentos à
conteúdos a agentes. O autor aprofunda cultura-destino são exemplificados. O
o conceito de tradução cultural na autor chega mesmo a citar pessoas
híbridas, mediadoras entre culturas, provenientes de fora da Europa são
como diplomatas, mercadores e advindas do mundo islâmico, indicando 158
tradutores. que a troca intercontinental no tocante à
cultura visual praticamente se restringiu
Em A Geografia do Hibridismo, o autor
ao repertório muçulmano.
indica espaços nos quais a hibridização
é privilegiada: cortes, cidades Em Línguas Híbridas indica-se que as
multiculturais (principalmente capitais línguas europeias no Renascimento
ou portuárias) e fronteiras. As fronteiras foram enriquecidas por uma apropriação
entre mundos cristão e muçulmano e o ostensiva de palavras de outras línguas,
oceano entre a Europa e as Américas culminando em uma poliglossia (termo
são mais do que divisões: são espaços de Bakhtin). Houve ampla interação e
de trânsitos e fluxos. O próprio livro hibridização: palavras árabes, asiáticas,
poderia ser descrito enquanto uma africanas e americanas passaram,
narrativa sobre fronteiras que não são maioria pela primeira vez, a fazerem
somente bordas e limites, mas são parte das línguas europeias. O
prática e potencialmente territórios vocabulário europeu então ampliado
intermediários e zonas de contato. potencializaria outras relações
intralinguísticas e culturais. O “latim
Em Traduzindo a Arquitetura analisam- macarrônico” seria um expoente desse
se exemplos arquitetônicos europeus e processo, bem como a profusão de
americanos. A hibridização de estilos palavras árabes no espanhol.
visível em Veneza, por exemplo, se
deveria tanto a demora em terminar um Em Literaturas Híbridas, Burke sugere
edifício quanto ao trânsito de uma obra o texto escrito enquanto mídia híbrida.
para outra de artistas e trabalhadores Os gêneros seriam hibridizados: na
(com a presença de sujeitos detentores leitura de Burke, Maquiavel teria
de diferentes repertórios). Além disso, “construído um gênero híbrido,
temos a cristalização de estilos: mesmo parcialmente clássico e parcialmente
após a expulsão dos muçulmanos e Gótico.” (p.118) O romance Dom
judeus da Espanha em 1492, os estilos Quixote traria elementos árabes em sua
clássico, islâmico e gótico continuaram narrativa. O latim macarrônico e o
se mesclando. Já nas Américas, um grego seriam apropriados pelo francês
exemplo como a catedral de Cuzco de Rabelais. A teologia islâmica seria
1559, utilizando-se das ruínas do templo apreensível na Divina Comédia; São
do deus-sol Viracocha, expressa a João da Cruz teria se apropriado do
imposição aos e a assimilação, pelos sufismo em sua poética mística. Em
ameríndios, do Renascimento. Orlando Furioso teríamos um romance
de cavalaria e o deboche de tais
Já em Artes Híbridas, o grotesco
romances, ressaltando-se que os estilos,
renascentista (invocando os monstros
e não somente os conteúdos, eram
medievais) e os arabescos (a
hibridizados. Destaca-se a hibridização
assimilação de elementos estilísticos
ocorrida no México, ampliando o
árabes) serão exemplos de hibridização,
Renascimento para o Novo Mundo. Por
bem como as relações entre os estilos
fim, apesar dos conflitos sociais, as
clássicos e o gótico. A exportação de
interações culturais continuariam sendo
modelos europeus para o mundo é
exercidas.
apontada em suas relações e
imposições. O autor indica que as Em Música, Lei e humanismo a música
principais contribuições artísticas é definida como arte híbrida. O autor
afirma que a música do período não se Renascimento. As ideias de Filosofia
enquadrava no Renascimento como as Perene, a teologia híbrida de Marsilio 159
outras artes, além de que não temos Ficino e de Guillaume Postel
amplos registros dessa música. Todavia, caracterizariam a procura por uma fonte
alguns dos poucos registros são da sabedoria divina que teria se
exemplares: Mozart compõe Rondo alla propagado em todos os povos. Além
Turca, músicos astecas são levados para disso, a Reforma resultaria na interação
a Europa por Hernán Cortés e músicos entre católicos e protestantes. Ainda no
cubanos fundem estilos locais e cristianismo, a recepção das missões
europeus. Sobre a Lei, o autor indicará cristãs levaria a uma troca cultural
o sincretismo legal entre o direito local intensa e em hibridismos locais –
e a lei romana. A própria “lei europeia”, destaque para o caso brasileiro das
resultante de uma série de encontros santidades.
culturais, é um produto híbrido. Por fim,
No epílogo Contra-Hibridização, o
o dilema do humanismo cristão é
autor indica que o processo de
colocado: o dilema consiste em realizar hibridização é consciente ou
uma apropriação seletiva do
inconsciente por mais que se oponha a
conhecimento de outros povos, mas
ele. O “retorno às fontes” dos
mantendo o cristianismo como guia
humanistas é discutido, assim como a
para essa apropriação. O quanto o
intolerância religiosa. O Renascimento
próprio cristianismo não se teria se
espanhol é relatado enquanto exemplar
constituído nas relações então
de uma tentativa de purificação do
estabelecidas com outras religiões?
hibridismo com o mundo islâmico – o
Em Filosofias Híbridas, Burke índica a que, paradoxalmente, gerou novos
questão da compatibilidade e da hibridismos. A afirmação final do autor
incompatibilidade entre o cristianismo e soa uma provocação necessária: “É
a filosofia grega, o surgimento do difícil não se perguntar se os medos
neoplatonismo, o redescobrimento de conscientes ou inconscientes de
Aristóteles pelos europeus pela leitura mestiçagem não impediram, por muito
de Averróes (Ibn Rushd), bem como a tempo, a consciência da contribuição da
simbiose entre pensamento judaico e as mistura à criatividade e, mais
culturas árabes. A Medicina também especificamente, à apreciação dos
demonstraria o hibridismo entre elementos híbridos no Renascimento”
culturas. Enfim, o autor indica a (p.205).
textualização do conhecimento com a
profusão de obras literárias e científicas.
Recebido em 2016-12-29
Traduzindo Deuses é o último capítulo, Publicado em 2017-02-05
indicando que é inescapável a vidência
de interações entre crenças e práticas no

Estudos Islâmicos (2016) e membro do Núcleo


de Acadêmicos Islâmicos.

*
FELIPE FREITAS DE SOUZA é
Mestre em Educação Tecnológica pelo Centro
Federal de Educação Tecnológica de Minas
Gerais; aluno no Instituto Latino Americano de

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