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N otass o b rree a d r a m a t u r g i a

de Um corpo que não agüenta mais

M anaoel Moacir Rocha Farias Jr.

“Se moverá na areia se moverá no céu no ar sociais atuais, estimuladas pelas disposições cor-
no pó. Jamais senão no sonho belo não ter porais dos personagens beckettianos.
mais de um tempo que fazer. Corpo peque- “May B”, no caso, foi criada com o gru-
no bloco pequeno coração pulsando cinza só po que Maguy Marin fundou com Daniel
em pé. Terra céu confundidos, infinito sem Ambash em 1978, o Ballet Théâtre L’Arche,
relevo, corpo pequeno só, em pé. Na poeira com o intuito de integrar dança, teatro e circo
sem impulso outro passo em direção à lonju- (depois passou a ser uma companhia com seu
ra ele dará. Silêncio nem um ânimo mesmo nome e, atualmente, está sediada no Centro
gris em tudo terra céu corpo ruínas” (Beckett, Coreográfico Internacional de Rillieux-La-Pape,
1972, p. 12). França) Foi a peça que deu projeção internacio-
nal à companhia e a Marin, sendo remontada

A
s aproximações formais das últimas peças nos anos 90 e apresentada até hoje em dia. Já
de Samuel Beckett (dramáticas e não-dra- “Um corpo que não agüenta” mais é uma cria-
máticas), e de sua criação ficcional em pro- ção de Marta Soares (coreógrafa, bailarina e
sa com a dança por si só saltam aos olhos, professora) e um grupo de intérpretes-criado-
pois sua obra configurou corpos com uma res: Anderson Gouvêa, Carolina Callegaro, Cla-
precariedade de elementos compositivos simi- ra Gouvêa, Manuel Fabrício.
lares aos que, contemporaneamente, a dança A (dês) leitura de Marin parte de elemen-
cênica tem se visto às voltas, na busca por novas tos precisos pinçados em Beckett (do gestual e
movimentações e dessacralizações da exigência suas dinâmicas) e de certas sonoridades (vozes e
de um virtuosismo associado ao balé clássico. passos) para desenhar uma conversa lúdica com
Como exemplos disso temos duas distintas co- a própria linguagem da dança, pensando-a a
reografias, “May B” (por Maguy Marin, 1981) partir dos quadros de estatismo apreendidos em
e “Um corpo que não agüenta mais” (por Mar- Beckett e dando uma nova forma ao tom cômi-
ta Soares, 2007). Em comum, ambas as peças co/trágico dos seus clowns, abrindo-os à possi-
foram criadas a partir de proposições das coreó- bilidade de serem dançados e/ou interpretados
grafas às suas companhias, para discutir relações como partituras. As semelhanças com o traba-

Manoel Moacir Rocha Farias Jr. é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
ECA-USP.

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lho de Marta Soares são, além da proposta ini- conjunto de células organizáveis e autônomas.
cial, uma mesma forma de solucionar o que po- As imagens principais, que foram sendo incor-
deria ser enquadrado como “pessimismo”, a par- poradas como partituras, vinham de exercícios
tir da exploração de um potencial de ação no como “fingir-se de morto” ou “tornar-se imper-
mínimo movimento. Isso faz com que surjam ceptível”, com a formação de dinâmicas em
nesses trabalhos imagens que se comunicam, uníssonos ou de movimentos seguidos de pausa,
embora “Um corpo que não agüenta mais” se por meio da (auto-) observação de cada intér-
revele muito menos preocupado em provocar prete. Atentando para as qualidades sinestési-
nosso interesse pelo lúdico de suas formas, mas cas dos objetos de Lygia Clark e Hélio Oiticica,
por aquilo que é imprevisto na imobilidade, dentro do contexto das artes neo-concreta e
sem fazer uso de gestos espetaculares e por essa tropicalista brasileiras entre os anos de 1960 e
razão, além de sua recente estréia1, será objeto 1970, o grupo experimentou movimentos em
principal de nossas considerações. calças coletivas formando “esculturas” que reme-
“Um corpo...” foi concebida por Soares a tem às torções dos Bichos, de Lygia , e dos con-
partir da proposta de poor moviment (“mo- tatos com tecidos sobrepostos ao corpo, como
vimento pobre”) de Lisa Nelson, com quem fez acontece nos parangolés de Hélio.
workshops, e com a leitura de textos filosófi- Seu diálogo apropria-se também do en-
cos de: David Lapoujade (“O corpo que não saio de Gilles Deleuze (O esgotado) numa re pro-
agüenta mais”), Giorgio Agamben (“Homo posição de David Lapoujade, no texto O corpo
Sacer”), Roland Barthes (“Como viver junto”) que não agüenta mais, para citar apenas um dos
e Peter Pal Pélbart (“Vida Capital”), dentre ou- vários pensadores que permearam a concepção
tros, com os quais o universo de Beckett encon- desta peça. Este texto que inspira seu título, pa-
tra forte afinidade. rece tratar, junto com as etapas do processo, so-
Essa peça de dança se constrói a si mes- bre como se dá a presença de Beckett nesse con-
ma, na mobilidade paradoxal do aparente esta- texto de multiplicidade de referências, pois nada
tismo com qual os corpos se apresentam no es- aí parece querer ser considerado como centrali-
paço-tempo cênicos. Cria-se, desse modo, uma zador. As disposições corporais, espaciais e tem-
dramaturgia de micro-percepções, o que faz porais destacadas por Deleuze constituem uma
com que seu espectador desloque a atenção para vertente muito rica para associações que visam
o menor, e, por vezes, mais lento, gesto que apa- re combinar esses signos ou simplesmente usá-
rece e desaparece sem intenções fixas, discer- los para criar outra formas. Daí que certas apro-
níveis e/ou atribuíveis a um personagem, mas ximações e/ou cruzamentos com outras artes
como pura qualidade de movimento e presen- sejam tão mais férteis como objeto de análise,
ça. De acordo com Soares, durante o processo pois encontram no viés do experimentalismo
de ensaios havia um “filtro dramatúrgico” já nas beckettiano a potência de continuidade de seu
questões de composição colocadas pelos exer- projeto estético, além de um ponto de conver-
cícios de aquecimento e exploração de movi- gência com contextos diversos, como ocorre
mento que incluíam, em suas diversas fases, a com o dos coletivos teatrais reunidos na perfor-
privação do olhar. O material surgido das im- mance que tomou por alguns instantes uma pas-
provisações de poor moviment foi gerando um sagem subterrânea do Viaduto do Chá2 e que

1 Entre os dias 24/11 e 16/12/2007, no SESC Avenida Paulista, em São Paulo (SP).
2 Em Abril de 2008, numa passagem do Viaduto do Chá em São Paulo, os coletivos Teatro da Verti-
gem (Brasil), Lot (Peru) e Zikzira Teatro Físico (Brasil/Inglaterra) realizaram A última palavra é a pe-

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N otas sobre a dramaturgia de Um corpo que não agüenta mais

pôde através de uma leitura filosófica acurada sistência. Assim, “a potência do corpo (aquilo
como a de Deleuze, pôr a obra de Beckett em que ele pode) se mede pela sua exposição ao
diálogo com um outro tempo e um outro espa- sofrimento e às feridas”. (Lapoujade, 2002,
ço, os nossos. p. 88), observando certas atitudes corporais dos
A imagem do esgotado é inspirada, ba- personagens beckettianos, (comparando-as
sicamente, em alguns personagens da prosa àquelas presentes no trabalho da performer
beckettiana inicial (“Watt”, “Murphy”, Marina Abramovic), as quais podem sugerir a
“Molloy”, “Malone morre”, “Macmann”) e das seguinte aproximação:
peças televisivas e finais (“Quadrado”, “Nacht
und Träume”, “Que Onde”, “Trio de Fantas- “Somos como os personagens de Beckett, para
mas”), nas quais percebemos uma qualidade os quais já é difícil andar de bicicleta, depois,
mais radical de experimentação na escrita ao es- difícil de andar, depois, difícil de simplesmen-
gotarem-se, além das palavras e vozes, as ima- te se arrastar, e depois ainda, de permanecer
gens, sem perder a potência de silenciar/esgo- sentado. Como não se mexer, ou então, como
tar/combinar. Assim, “combinam-se variáveis de se mexer só um pouquinho para não ter, se
uma situação, sob a condição de renunciar a possível, que se mexer durante um longo tem-
qualquer ordem de preferência e a qualquer po? É, sem dúvida, o problema central dos
organização em torno de um objetivo, a qual- personagens de Beckett, uma das grandes
quer significação” (Deleuze apud Henz, 2005, obras sobre os movimentos dos corpos, mo-
p. 231). Ora sentados ora deitados (e esse po- vimento de si e entre os corpos. Mesmo nas
deria, para Deleuze, ser um critério de distin- situações cada vez mais elementares, que exi-
ção de tipos da obra beckettiana) são, em todo gem cada vez menos esforço, o corpo não
caso, imprestáveis. Essa galeria de danados re- agüenta mais. Tudo se passa como se ele não
monta tanto à imagética do Inferno de Dante pudesse mais agir, não pudesse mais respon-
quanto ao dito do personagem central de der ao ato da forma, como se o agente não
“Bartleby, o escrivão” de Herman Mellvile, “Pre- tivesse mais controle sobre ele. Os corpos não
feriria não o fazer”, cuja apatia diante do traba- se formam mais , mas cedem progressivamen-
lho leva-o de um escritório na Wall Street à te a toda sorte de deformações. Eles não con-
morte num cárcere. seguem mais ficar em pé nem ser atléticos”
As questões postas por Lapoujade giram (Lapoujade, 2002, p. 82).
em torno da potência corporal, partindo de
exemplos colhidos da prosa de Beckett. Sem ci- Com base, sobretudo, neste ponto, pode-
tar as fontes específicas, observamos nesse texto mos ver como a coreografia de Soares e de seu
duas “vozes” no mínimo, a do filósofo e a do grupo explora toda a potência daquilo que ce-
artista. Valendo-se da distinção entre matéria nicamente chama a atenção como negação de
(potência, ato virtual ou possível) e forma (de- todo gesto espetacular, como no caso do drama
terminação, ato puro), presente em Aristóte- descomposto em Beckett. O “menos é mais” é
les, enuncia que há na incapacidade de respon- incorporado, e ganha um sentido de negação
der às imposições formais uma qualidade de re- ao corpo virtuoso da dança clássica ocidental.

núltima. Uma “intervenção cênica”, com base no ensaio O esgotado do filósofo Gilles Deleuze, “alian-
do a isso a perspectiva de investigação do universo interpretativo, o grupo se apropria da criação a
partir da ‘experiência’ do corpo do ator e do estudo sobre os conceitos da performance” (Programa da
peça, 2008).

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Esse traço se espalha por toda a estrutura de Os intérpretes dessa coreografia não re-
“Um corpo...”. presentam os personagens em potencial, como
O espaço cênico está tomado por carpe- fazem os de May B, mas trazem suas qualidades
tes, há uma cadeira e uma caixa. O desenho so- como modo de experimentação e construção de
noro de Lívio Tragtenberg é pontual. Ao final vários tipos de cenas; o improviso e a quebra de
dos primeiros dez minutos quase nada aconte- um mesmo regime de movimento, a coreogra-
ce, a não ser uma série de deslizamentos e volu- fia composta pelo acaso e pela acomodação con-
mes de carpete que se enrolam, até que uma tínua, o que também está presente quando os
perna saia de uma das pontas do rolo. Algo vai bailarinos se amontoam dentro de uma caixa,
se revelando pelas posições fetais, um bailarino convocam a idéia de um processo sem forma,
saído de um dos rolos ou de um conjunto de de um corpo (coletivo e individual) múltiplo e
formas enroladas em calças comuns, atravessa o polimorfo. Esse processo de resistir à forma de
palco, como um animal em fuga. Não há, con- desenhar um grande gesto, ou forma que deter-
tudo, qualquer gesto que demonstre uma inten- mine uma alma para o corpo, sua “interiori-
ção de dançar um animal, mas apenas de sê-lo dade” como Lapoujade afirma (recorrendo para
“de maneira amorfa”. Assim, quando uma boca tanto às idéias afins de Nietzsche, Artaud,
encontra um pé, o faz sem nenhuma expressão Deleuze e Guattari) e investigar as potencia-
sentimental, perdendo o rosto sua eficácia e lidades de “corpos ruínas” é uma das principais
importância como figuração de um sujeito go- comunicações deste trabalho com o universo
vernado pela mente. de Beckett.

Referências bibliográficas

BECKETT, Samuel. Collected shorter plays. New York: Grove Press, 1984.
_______. Sin y El despoblador. Barcelona: Tusquets, 1972.
HENZ, Alexandre de Oliveira. Estéticas do esgotamento: extratos para uma política em Beckett e De-
leuze. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.
LAPOUJADE, David. O corpo que não agüenta mais. In: LINS, Daniel & GADELHA, Sylvio.
Nietzsche e Deleuze: o que pode o corpo. Rio de Janeiro, Fortaleza: Relume Dumará, SECULT-
CE, 2002.
MARTA SOARES e GRUPO. “Um Corpo Que Não Agüenta Mais”. Programa da peça, 2007.
MELLVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão – uma história de Wall Street. São Paulo: Cosac Naify,
2005.
PROGRAMA DA PEÇA. A Última Palavra É A Penúltima, 2008.

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RESUMO: O texto explora as afinidades entre o teatro de Samuel Beckett e dois espetáculos: “May
B” de Maguy Marin e “Um corpo que não agüenta mais” de Marta Soares. A análise é feita na
perspectiva do texto de Gilles Deleuze sobre as peças televisivas de Beckett, “O Esgotado”.
PALAVRAS CHAVE: Corpo, silêncio, esgotamento, dramaturgia, decomposição.

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