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FILOSOFIA-PERFORMANCE E-ISSN 2237-2660

Filosofia-Performance: uma introdução


Laura Cull Ó MaoilearcaI
I
University of Surrey – Guildford/Surrey, Reino Unido

RESUMO – Filosofia-Performance: uma introdução – Este artigo introduz a filosofia-


performance, não obstante o risco de contradição performativa que tal ato envolve. Primeiramente,
considera a filosofia-performance como um campo que questiona como a performance pensa e co-
mo o pensamento é performado (inclusive, especificamente como filosofia). A partir da não-filosofia
de Laurelle, dirige-se à filosofia-performance como método, recortando-a como um paradigma al-
ternativo, performativo, alternativo para a abordagem da filosofia da(s) arte(s) que, historicamente,
dominou abordagens para a estética. Este conclui por afirmar a chamada para o campo para a abor-
dar a ética-política nas dimensões da produção de conhecimento não apenas em termos disciplina-
res, mas também geopolíticos.
Palavras-chave: Filosofia-Performance. Performance. Teatro. Filosofia. Performatividade.

ABSTRACT – Performance Philosophy: an introduction – This article introduces performance


philosophy, despite the risk of performative contradiction such an act involves. First, it considers
performance philosophy as a field that questions how performance thinks and thought is performed
(including, specifically as philosophy). Drawing from Laruelle’s non-philosophy, it then addresses
performance philosophy as method, framing it as an alternative, performative paradigm to the phi-
losophy of the arts approach that has historically dominated approaches to aesthetics. It concludes
by affirming the call to the field to address the ethico-political dimensions of knowledge-production
in not only disciplinary, but also geopolitical terms.
Keywords: Performance Philosophy. Performance. Theatre. Philosophy. Performativity.

RÉSUMÉ – Philo-Performance: une introduction – Cet article introduit la philosophie de la


performance, malgré le risque de contradiction performative que comporte un tel acte.
Premièrement, il considère la philosophie de la performance comme un domaine qui remet en
question la manière dont la performance est pensée et pensée (en tant que philosophie). S'inspirant
de la non-philosophie de Laruelle, il aborde ensuite la philosophie de la performance en tant que
méthode, la présentant ainsi comme un paradigme alternatif et performatif de l'approche de la
philosophie des arts qui a historiquement dominé les approches de l'esthétique. Il conclut en
affirmant l’appel lancé sur le terrain pour aborder les dimensions éthico-politiques de la production
de connaissances en termes non seulement disciplinaires, mais géopolitiques.
Mots-clés: Philo-performance. Performance. Théâtre. Philosophie. Performativité.

Laura Cull Ó Maoilearca - Filosofia-Performance: uma introdução


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Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 10, n. 1, e92544, 2020.
Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/2237-266092544>
E-ISSN 2237-2660
Prólogo: Filosofia-Performance ‘em dois ou mais lugares ao mesmo tempo’1

Este artigo é uma resposta ao convite feito por Luciana Dias para que
eu assumisse a tarefa de apresentar a Filosofia-Performance (Performance Phi-
losophy): um campo emergente, interdisciplinar e internacional de pensa-
mento, prática criativa e pesquisa; aberto a todos os pesquisadores preocu-
pados com o relacionamento entre performance e filosofia em sentido am-
plo2. Isto é, embora o desenvolvimento do campo possa ser rastreado até a
identificação de uma ‘virada filosófica’ dentro dos Estudos do Teatro e da
Performance (por volta de 2008-2009) – no qual pesquisadores da área pas-
saram a ter um interesse crescente pela filosofia, se envolvendo com esta em
profundidade e foco ainda não vistos dentro do campo – posteriormente se
tornou claro que o crescimento de tal interesse pela relação entre perfor-
mance e filosofia era um fenômeno interdisciplinar maior, advindo não só
da Filosofia mas também de outras disciplinas como Dança, Música e Artes
Visuais, tanto quanto do Teatro e da Performance. Essa ‘virada’ se manifes-
taria não só em algumas publicações chave, como também num leque de
outras atividades incluindo conferências, festivais e edições especiais dedica-
das ao tema em revistas. Em 2012, fui integrante de um grupo formado por
11 pessoas que fundou a associação profissional e a rede de pesquisa, tam-
bém chamada Performance Philosophy network, em parte devido ao reconhe-
cimento do fato de que os últimos 15 anos testemunharam esse aumento
sem precedentes de interesse internacional e interdisciplinar na relação entre
performance e filosofia. Porém, ao mesmo tempo, o lançamento da Filoso-
fia-Performance foi também uma espécie de ato performativo em si mesmo,
na medida em que, simultaneamente, procurou trazer um novo campo à
existência por meio do ato de nomeá-lo como tal.
Introduzir o campo emergente da filosofia-performance é uma tarefa
complexa – não menos porque é, e tem sido desde o começo, um empreen-
dimento coletivo. Como meu colega Theron Schmidt observou, seria cer-
tamente um engano pensar que qualquer voz singular (tal como a minha)
pudesse encapsular ou falar pelo campo per se. Como tal, esta introdução
somente deve ser lida como uma introdução entre outras; um relato parcial
a ser considerado em conjunto com outros que possam perceber e articular
o campo – suas preocupações, contextos, intuições e limitações – de manei-
ras notadamente distintas e por meio de divergentes vocabulários. Embora

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talvez não seja preciso dizer, ainda parece importante reconhecer e reiterar,
explicitamente, que meu próprio relato ou perspectiva sobre a filosofia-
performance não é, de modo algum, representativa ou exaustiva; não se
propõe a ser definitiva, e não deve ser considerada como detentora de mais
autoridade do que relatos existentes em outros lugares ou ainda por vir3. De
fato, mantenho firmemente a visão de que a grande vitalidade do campo re-
side em sua própria multiplicidade, mutabilidade e abertura à autoria cola-
borativa em andamento (até mesmo através de uma coprodução que procu-
ra manter juntas, inclusive, posições de discordância e mutuamente exclusi-
vas, apesar de suas diferenças).
Há uma ironia em tentar se situar fora da filosofia-performance para
descrevê-la, uma contradição performativa aparente em oferecer uma expli-
cação para ou comentar sobre filosofia-performance dadas as críticas que eu
e outros temos tecido à abordagem desta como se fosse uma ‘filosofia da
performance’. Para outros, e decerto para mim mesma em outros contextos,
o trabalho mais interessante e importante é tentar fazer filosofia-
performance, para produzir um entendimento sobre filosofia-performance
por meio de sua prática. De fato, como é o caso em certos contextos de pes-
quisa artística, pode haver até uma impaciência com os caminhos pelos
quais as práticas de se ‘falar sobre X’ (seja a pesquisa artística ou a filosofia-
performance) podem parecer ter precedência sobre ‘realmente continuar fa-
zendo X’, na medida em que o último pode bem se provar mais instrutivo
ou ao menos, potencialmente, deter um caráter menos circular que o pri-
meiro. Minha ambivalência profunda ao escrever um artigo como este, en-
tão – que sempre parece correr o risco de postular uma ‘visão vinda do na-
da’ totalizante ou de contradizer performativamente a própria imanência do
campo, por procurar descrevê-lo – é compensada apenas pela contraperspec-
tiva de que talvez a filosofia-performance possa se beneficiar de uma abor-
dagem ‘tanto/quanto’: não apenas procurando sempre produzir-se de forma
consistente, mas também se envolver em encenações temporárias e provisó-
rias de (auto) observação – que deve ser entendida como parte de si mesma
e minimamente performativa à sua própria maneira4.
Ainda assim, sou grata à Revista Brasileira de Estudos da Presença por
me dar esta oportunidade de refletir sobre o campo neste momento em par-
ticular: quando parece que a principal organização e rede de pesquisa para o
campo, Performance Philosophy, passa por um importante período de mu-

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dança e autorreflexão crítica. E, de fato, a escrita deste texto também se dá
em um momento em que o próprio campo atingiu, talvez, um certo grau de
maturidade – de tal forma que poderíamos até nos permitir descartar a no-
ção de um campo ‘emergente’ em prol de um já ‘emergido’, se não fosse o
valor, para muitos, em continuar a considerar este como algo perpetuamen-
te emergente, em processo, necessariamente inacabado (como também, se
discute dentro dos Estudos da Performance e em outras áreas). Isto é, este
texto me forneceu um contexto bem-vindo para documentar um processo
(de novo, um dentre outros) do qual em Língua Inglesa podemos chamar
de taking stock (‘fazer um balanço’). Esta atividade, em si mesma, está pro-
pensa a expor alguns dos muitos problemas aos quais a filosofia-
performance pode querer se dirigir em termos do que realmente conta, do
que pode e do que não pode ser contado ou contabilizado nesses tipos de
‘balanço’. Minhas reflexões aqui, inevitavelmente, talvez deem mais peso ao
que já foi dito sobre filosofia-performance – na literatura produzida sobre o
tema desde seu surgimento, por exemplo – do que em como ela tem sido
multiplamente performada e encenada numa ampla variedade de formas,
que pode ser textual, mas, sobretudo, também como ela vem sendo “incor-
porada” [ou tem ganho corpo] através de eventos, interações digitais e ao
vivo, sons, imagens e por aí vai. Como uma série multilocalizada, internaci-
onal e contínua de eventos simultâneos de pensamento – que são ocasio-
nalmente documentados em texto ou em outras formas – alguém não pode
simplesmente “fazer um balanço” da filosofia-performance.

Filosofia-performance: (in)definição, (a)disciplinaridade & instituições


(alternativas)

O que é filosofia-performance?

Desde que surgiu pela primeira vez por volta dos anos 2011/2012, o
termo e o campo da ‘filosofia-performance’ alcançaram (se esta for a palavra
correta) um grau de reconhecimento – tanto institucional quanto mais am-
plamente comunitário – como uma área de pesquisa. Escrevendo em 2015,
meus colegas norte-americanos Wade Hollinghaus e Will Daddario (2015,
p. 51) descreveram a filosofia-performance como “ainda se consolidando
como disciplina, tentando determinar o que é e o que pode fazer”, enquan-
to Andrés Fabián Henao Castro a chama de “uma disciplina em seus pri-

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meiros devires” (Henao Castro 2017, p. 190). Apesar de sua infância, o
campo já possui uma associação profissional com 3000 membros de mais de
56 países diferentes, uma revista, uma série de livros e uma Conferência bi-
enal. Como tal, trabalhos recentes têm descrito a filosofia-performance co-
mo um campo que está ganhando ‘impulso pela Europa e América do Nor-
te’ visto que “[...] um número crescente de acadêmicos estão contribuindo
com seus pontos de vista de modo a dar suporte para abordagens inovadoras
em práticas de performance e pensamento” (Street; Alliot; Pauker, 2017, p.
5). De sua parte, Alex Pittman (2016) nota o modo pelo qual a filosofia-
performance opera contemporaneamente de forma “titular” em relação a
uma comunidade composta por “aqueles que identificam seu trabalho sob
esse título” (Pittman, 2016, p. 166). Tendo ou não sido enquadrados como
tal pelos seus autores, agora vemos alguns livros sendo descritos como traba-
lhos de ‘filosofia-performance’ (Pittman, 20165; Goulish, 2014). Existem
referências à filosofia-performance como um rótulo ou categoria que po-
dem, conquanto, ser usados, também, de forma retrospectiva – ela poderia,
ainda, ser usada para descrever figuras históricas ou práticas ‘avant la lettre’
(Lagaay, 2015).
Para começar pelos termos mais básicos – e consciente da resistência
contínua do campo em afirmar qualquer definição essencial de ‘filosofia-
performance’ per se – o campo atual da filosofia-performance pode, no en-
tanto, ser caracterizado, de forma inicial, de várias maneiras: por seus cola-
boradores, por suas principais preocupações e atividades – muitas das quais
têm sido facilitadas pela organização internacional também conhecida como
Performance Philosophy6. Colaboradores do campo – por exemplo – são in-
ternacionais e interdisciplinares, incluindo tanto acadêmicos como pesqui-
sadores trabalhando fora de contextos acadêmicos ou afiliações institucio-
nais, incluindo estudiosos independentes e praticantes freelancers7. Estes
englobam pesquisadores com uma extensa variedade de formações discipli-
nares e que trabalham com um amplo espectro de disciplinas: mais predo-
minantemente talvez com Filosofia, Estudos da Performance, Teatro, Dan-
ça e Música, mas também com Política, História da Arte, Estudos Cultu-
rais, Literatura e Escrita Criativa, e muitas outras. A esse respeito, a filoso-
fia-performance tem procurado dar um ‘lar’ para aqueles que se acharam
‘entre’ disciplinas como Filosofia e Performance, para artistas-filósofos e fi-
lósofos-artistas que possuam treinamento em ambas as áreas e que queiram

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continuar a praticar ambas (frequentemente diante de narrativas dominan-
tes a insistir que precisamos ‘escolher’, que precisamos nos ‘especializar’), e
para aqueles cujos trabalhos se movem entre disciplinas ou, por outro lado,
desafiam as classificações convencionais.
Enfatizando a natureza parcial desta “prestação de contas”, o campo
tem examinado estas questões em e através de múltiplas atividades e proje-
tos – um bom número deles iniciados pela rede Filosofia-performance (Per-
formance Philosophy network) desde 2012, mas muitos outros que agora po-
deriam ser interpretados como vinculados ao campo, porém, surgiram inici-
almente de forma independente. Atualmente, as principais atividades da re-
de são produzir uma série de livros, uma revista online de acesso aberto e
uma série de eventos bienais8. Um centro de pesquisas dedicado ao campo –
o Centro para Filosofia-performance (Centre for Performance Philosophy) –
foi fundado na Universidade de Surrey, no Reino Unido, em 2016.
Novamente, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, eu posso tam-
bém sugerir que dentre suas preocupações principais, pesquisadores do
campo investigam uma ampla variedade de problemas, inclusive (porém de
forma alguma limitado a) a questionar como ideias e práticas oriundas dos
campos da performance e da filosofia podem ser produtivamente conectadas
em formas que sejam revigorantes e potencialmente transformadoras para
ambos. Os pesquisadores de filosofia-performance estão engajados em ques-
tionar a natureza do ato de pensar em si mesmo; seja em termos de ‘pensa-
mento pós-ideacional’ (McKenzie), seja em pensar o pensamento para além
do Eu/sujeito do pensamento. A esse respeito, há preocupação quanto à na-
tureza da relação entre formas de pensamento que incluam conceitos, textos
e enunciados, mas também imagens, movimentos, sons, afetos, e objetos
materiais; como também explorações das “noções de performance como um
novo paradigma de práticas de conhecimento” (Street; Alliot; Pauker, 2017,
p. 7). Há pesquisadores investigando a relação entre escrita e performance,
seja escrita/ texto em performance, seja filosofia como escrita – inclusive
com considerações sobre a questão das mídias da filosofia e o papel futuro
do livro. Há preocupações com questões relacionadas à política do conhe-
cimento: conhecimento como meio de se ter domínio sobre o mundo; pos-
tular ideias sobre a especificidade local (site-specific) da produção do conhe-
cimento versus um conhecimento universal que é parte de um discurso mai-
or que sustenta estruturas opressivas de conhecimento / poder. O trabalho

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aborda como a prática performativa e filosófica pode sustentar a articulação
de alternativas para as políticas de identidade, inclusive através da conside-
ração dos relacionamentos entre diferenças sociais e ontológicas, explorando
a produção de si mesmo / de sua identidade por meio de ações performati-
vas, no que se refere a tensões entre o normativo e o experimental.
No meio desta miríade de preocupações, a filosofia-performance de-
tém um interesse particular nas relações entre forma, conteúdo e meio (me-
dium) no que se refere à filosofia, à teoria e ao pensamento. Como Anna
Street observou, ‘a questão do meio (medium) persiste no centro do desen-
volvimento desse empreendimento chamado Filosofia-Performance’ (Street;
Alliot; Pauker, 2017, p. 97) – juntamente com um desejo de se revisitar o
que permanece em muitos contextos como formas-padrão inquestionáveis
de como o pensamento é compartilhado – do congresso acadêmico ao livro.
A esse respeito, a Filosofia-Performance como organização tendeu a com-
partilhar com agrupamentos como o SenseLab no Canadá (ver Manning;
Massumi, 2014, p. 90-98), uma resistência ao ‘modelo de comunicação’ de
pensamento em favor de um modelo performativo – por exemplo, por abar-
car os ‘formatos sem papel’9. Esta questão sobre como a filosofia é perfor-
mada, inclusive as formas de ‘Teoria’ na idade da mídia inteligente têm sido
particularmente posta em primeiro plano por Jon McKenzie, que pergunta:
“Como performaremos ou faremos teoria no século XXI? Que papel pode ter
a Filosofia-Performance? E precisamos fazer filosofia pelas regras de sua tradi-
ção? Precisamos ficar presos ao livro e a escrita?10 Poderá a filosofia – assim
como a teoria – sobreviver à incorporação pelo graphe, pela plasticidade, pe-
la transmediação? Como poderão sobreviver?” (McKenzie apud Street; Alli-
ot; Pauker, 2017, p. 84, grifos meus). Isto é, pelo menos enquanto as edito-
ras acadêmicas de larga distribuição, no Reino Unido e na América do Nor-
te parecem, ao menos, estar se arrastando para repensar as possibilidades de
publicação na era digital11.
Nas abordagens dominantes da Filosofia, pelo menos na esfera anglo-
europeia, há poucas considerações sobre questões de forma. Como o especi-
alista em Platão, MM McCabe, observou recentemente, por exemplo, o sa-
ber em Platão tende a focar mais no suposto ‘conteúdo’ dos diálogos do que
em sua forma dramática12. Por sua vez, como enfatizado por Martin Pu-
chner, essa falta de atenção à forma habilitou o estereótipo continuado de
Platão como sendo simplesmente uma figura “anti-teatral” apesar do seu

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comprometimento contínuo com a exploração de ideias na forma teatral. O
campo da filosofia-performance, em contraste, tem sido um lugar no qual
pesquisadores, buscando investigar a relação entre a forma e o conteúdo fi-
losófico, começaram a se congregar. Colegas na Alemanha, na Áustria e na
República Checa têm talvez avançado em particular no nosso entendimento
destas questões: por meio de projetos como o Filosofia no Palco, em Viena.
Em muitos casos, essa é uma questão de pesquisadores oriundos da Filoso-
fia, ou lotados em departamentos acadêmicos de Filosofia, procurando
questionar como a filosofia é praticada, ensinada, disseminada e assim por
diante. Essas considerações têm sido proeminentes nos eventos bienais or-
ganizados pela rede Filosofia-Performance desde 2013. Originalmente refe-
rida como uma ‘conferência’ bienal, estes eventos têm se tornado crescen-
temente preocupados com questões de forma, formato e estrutura – procu-
rando abordar a própria ‘conferência’ como performance: a qual performa-
tivamente produz eventos do pensamento (ao invés de representar o pensa-
mento já feito em outro lugar), e se põe como um lugar de experimento de
como o pensamento pode ser performado para além dos formatos acadêmi-
cos tradicionais. O clamor aqui não é a rejeição do formato acadêmico pa-
drão de conferências/ comunicações como de algum modo necessariamente
pacificador ou autoritário – mas sim um chamado para que prestemos mai-
or atenção à forma adotada por modos de pensamento em particular, e para
que se considere um formato como o da ‘comunicação’, como um dentre
outros possíveis ao invés de um modelo padrão inquestionável.
Uma das minhas próprias preocupações principais na área tem sido
pôr em primeiro plano uma agenda metodológica: buscar questionar, tanto
em termos epistemológicos quanto ético-políticos, a primazia do paradigma
no qual a filosofia é aplicada à performance, que se torna, assim, um objeto
de estudo (seja via Filosofia, seja via Estudos Teatrais e/ou Estudos da Per-
formance). Como desenvolverei na sequência, gostaria de sugerir que uma
meta do campo deve ser abordar o encontro entre performance e filosofia
como sendo um encontro performativo, capaz de transformar nosso entendi-
mento de ambos os termos; mas também de demonstrar como implementar
tal filosofia-performance na prática. Como a performance pensa? Como po-
de a filosofia pensar ao longo da performance (como uma filosofia-
performance ao invés de uma filosofia da performance)? Como ela pode cri-
ar um novo pensamento a partir da performance ao invés de meramente

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aplicar conceitos prontos a ela? Como podemos praticar (como o pensador
contemporâneo francês François Laruelle poderia chamar) uma ‘igualdade
radical’ no pensamento? O que poderia significar ter uma ‘igualdade radical’
como demanda para a própria performance do pensamento? Dessa maneira,
como Street, Alliot e Pauker (2017) sugerem, a rápida expansão da filosofia-
performance e a ausência de uma linha temporal em seu projeto pode falar
por um senso compartilhado de urgência em torno da necessidade de rein-
ventar nossas práticas de conhecimento em relação às formas de pensamen-
to que tendem a ser desvalorizadas, marginalizadas ou excluídas – inclusive
o conhecimento baseado-em-artes13.
Claro que um interesse na relação entre performance e filosofia não é
algo novo em si mesmo. Como Nicolas Truong colocou, em entrevista re-
cente com Alain Badiou, “Desde seu nascimento conjunto na Grécia, teatro
e filosofia têm... vivido como um velho casal ao longo de 2.500 anos de his-
tória” (Truong apud Badiou, 2015, p. 24). Por vezes, esse tem sido um re-
lacionamento tenso, como no caso de Platão e o aparente paradoxo de que
uma das críticas mais pesadas ao teatro tenha justamente adotado a forma
teatral do diálogo para articular seu argumento, diálogos os quais seguiram
em frente a ser performados como trabalhos teatrais a sua maneira. Por ou-
tras, têm sido um caso de entusiasmo mútuo bastante desenfreado: como no
aceite Schopenhaueriano do teatro por Nietzsche – especificamente da tra-
gédia grega – como tendo a capacidade de fornecer uma intuição privilegia-
da da realidade metafísica e a subsequente recepção estática de Nietzsche
por dramaturgos modernos tais como Strindberg e Eugene O’Neill
(Kornhaber, 2016).
Nesse sentido, não estou sugerindo que estas questões – e em particu-
lar não quando tomadas isoladamente – sejam de algum modo exclusivas da
filosofia-performance. Ao invés, como sugeri de início, aqueles que se dedi-
cam à filosofia-performance podem fazê-lo paralelamente e conversando
com trabalhos em andamento em outros campos nos quais perguntas seme-
lhantes estão sendo feitas. E, no entanto, o que pode ser específico à filoso-
fia-performance é a oportunidade que o campo oferece para “reunir recur-
sos” em tais assuntos, mas também para chamar nossa atenção para as polí-
ticas e práticas de como essa “reunião” é performada: como diversos conhe-
cimentos podem entrar em contato um com o outro sem reproduzir antigas
hierarquias.

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A novidade aqui, talvez, seja o esforço de aproximar, de fazer conversar
entre si um conjunto de atividades, de outro modo, dispersas e, até agora,
de algum modo isoladas – com base no senso de que compartilham uma sé-
rie de questões sobrepostas, não apenas com o que os “filósofos de verdade”
tinham a dizer sobre teatro e performance ou sobre como as teorias filosófi-
cas podem nos ajudar a analisar as artes cênicas (embora sejam parte delas),
e também com:
• A definição destes termos chave: teatro, performance, filosofia, pensa-
mento;
• A natureza, função e formas possíveis ou modos de se fazer filosofia (ela
própria entendida como uma prática e potencialmente como uma práti-
ca performativa);
• Com as várias modalidades nas quais pode-se entender o ‘pensamento’
como tendo lugar – não apenas como o ato consciente na mente de um
sujeito humano intencional, mas em termos de um pensamento através
do corpo, ou do fazer-pensar da prática performativa, ou de uma ideia
mais impessoal de pensamento como aquilo que produz um sujeito ao
invés de ser autorado por um “eu” pré-existente, e até possivelmente de
um pensamento animal não-humano ou até mesmo de uma assim cha-
mada materialidade inanimada;
• A relação entre esses modos e o pensamento que contamos como ‘filosó-
fico’ – caso exista algo que diferencie o modo como o teatro e a perfor-
mance pensam em relação à filosofia; o que isso pode significar em ter-
mos de ‘performance como filosofia’.
A esse respeito, a Filosofia-Performance não é apenas sobre interdisci-
plinaridade para seu próprio bem, mas, a partir da posição de que pode ha-
ver algo conceitual e talvez até politicamente importante sobre habilitar a
pesquisa em performance para que esta contribua para debates mais amplos
em relação à nossa compreensão da natureza do pensamento, explorar mo-
dos alternativos de se relacionar com a filosofia, que não seja a posição um
tanto quanto diferencial em que a performance considera a si mesma como
mero objeto ou ilustração de teorias filosóficas existentes.
Em termos da organização, os colaboradores fundadores escolheram o
nome Performance Philosophy, de uma forma até deliberada, evitando a se-
paração (em língua inglesa) dos dois termos por um ‘e’ ou um hífen ou uma

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barra, visando – assim esperamos – deixar aberta a questão da natureza do
relacionamento entre elas14. Para alguns críticos, como Martin Puchner, este
gesto sinalizou uma ambição ao mesmo tempo ingênua e perigosa, a saber:
fundir ou unir performance e filosofia às custas de se reconhecer as diferen-
ças profundas e significativas entre elas. Exortando-nos a ter atenção ao vão
que as separa (ou Mind the gap15), Puchner disse:
O que torna o estudo do teatro e da filosofia interessante, até excitante, é o
próprio fato de que os dois são totalmente diferentes e irreconciliáveis. É o e
que faz toda diferença; é o vão [the gap] entre o teatro e a filosofia que torna
o estudo da relação entre eles interessante, e até possível, em primeiro lugar.
O estudo do teatro e da filosofia deve tomar como ponto de partida este
vão, e este vão deve permanecer à frente de nossa investigação (Puchner
2013, p. 543).
Contudo, eu argumentaria que muito depende do que queremos dizer
com ‘filosofia’ e ‘teatro’ ou ‘performance’ nesse contexto – como eles estão
sendo identificados tal que possam ser declarados como fundamentalmente
distintos. De sua parte, quando Puchner diz ‘filosofia’ e ‘teatro’, ele se refere
a ambos entendidos como ‘tradições intelectuais’ e ‘disciplinas acadêmicas’
em seus arranjos institucionais, nos quais, como ele sugere, a filosofia possui
substancialmente mais poder e prestígio arraigados a ela do que o teatro e a
performance. E decerto, aceito que o uso do termo ‘filosofia’ para designar
uma área acadêmica de estudo ou departamento institucional, tem uma his-
tória específica que pode ser contrastada com a história do uso do termo ‘te-
atro’, no mesmo contexto. De fato, claro que, em alguns contextos, os limi-
tes do que é considerado ‘filosofia de verdade’ ainda são rigorosamente poli-
ciados – embora isso também envolva a exclusão de algumas práticas mino-
ritárias dentro da filosofia como disciplina acadêmica, tanto quanto daque-
las originárias de outras disciplinas. Em outras palavras, não estou propondo
uma agenda imperialista equivocada de substituição da Filosofia e dos Estu-
dos da Performance – como disciplinas acadêmicas – pela Filosofia-
Performance como ‘um campo unívoco de pesquisa compartilhado’ (o que
parece ser a preocupação de Puchner). Pelo contrário, o que estou contes-
tando é a ideia de que ‘performance’ e ‘filosofia’ sejam redutíveis às suas his-
tórias institucionais; que somente o contexto acadêmico ou universitário
condicionem suas respectivas identidades. Performance e Filosofia são mui-
to mais do que isso. E, de fato, em parte por conta de seu excesso, não te-

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nho certeza de que elas tenham identidades ou essências de todo, tal que
pudéssemos fazer alegações duras e rápidas sobre sua distinção. E não estou
sozinha nesta perspectiva.

O problema com/das definições

Como observei de início, a filosofia-performance tem sido bastante re-


sistente a definições – seja para definir a si mesma ou em definir seus termos
agregados, ‘performance’ e ‘filosofia’. Ou, de novo, o campo não buscou
construir um conceito de filosofia-performance sobre a natureza da perfor-
mance ou da filosofia, pois reconhece que nenhum dos termos oferece algo
“estável ou determinado que possa atuar como base” (Cazeaux, 2017a, p.
34)16. Este senso de instabilidade é apenas aprimorado neste contexto multi-
língue17.
Em se tratando da filosofia, além das definições de caráter geral de filo-
sofia como a ‘investigação racional preocupada em estabelecer conhecimen-
to e verdade’, inúmeros filósofos têm procurado abordar a questão (filosófi-
ca) par excellence – ‘o que é filosofia?’ – retornando com respostas que vão
desde ‘a criação de conceitos’ (Deleuze) até a ‘reaprender a olhar o mundo’
(Merleau-Ponty). Por sua vez, John Ó Maoilearca nota como para:
[...] o filósofo analítico Ilham Dilman, a filosofia genuína preocupa-se com
o modo como pensamos, como estamos cientes de nosso ambiente, como fa-
lamos e nos comunicamos, com a natureza da linguagem, da matemática,
das ciências empíricas, da psicologia, da sociologia e, é claro, da própria filo-
sofia. Ela tenta ‘esclarecer’ esses tópicos, preocupando-se com ‘sentido ou
significado’ o tempo todo (Ó Maoilearca, 2019).
Mas sem que consenso algum emerja, parece que o fato de a filosofia
não ter nem um objeto definido nem uma abordagem específica para este
contribui para sua crise de identidade em andamento. De sua parte, Jacques
Derrida uma vez pontuou: “Devo dizer honestamente que agora, menos do
que nunca, eu sei o que é a filosofia ... É tão impossível dizer o que a filoso-
fia não é, quanto é dizer o que é” (apud Mullarkey, 2009, p. xvi). Por sua
vez, Judith Butler disse recentemente:
Tenho certeza de que não defino filosofia, mas aceito a filosofia como um
campo em que sua definição é constantemente contestada. Acho que talvez
me oponha a qualquer definição de filosofia, para que o campo de contestação
sobre seu significado e direção possa permanecer aberto. Então, para mim, a

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filosofia assume formas institucionais e extra-institucionais, disciplinares e ex-
tra-disciplinares, e parece não haver maneira de contornar essa situação. Nem
devemos tentar encontrar uma maneira de contorná-la. Os esforços para insti-
tucionalizar o que a filosofia deve ser produzem apenas ‘outra’ filosofia, aquela
pela qual é assombrada. Então, onde quer que haja uma definição de filosofia,
há vários fantasmas ativos em cena. Talvez seja importante, então, que a filo-
sofia se torne uma cena desse tipo, implicada em um problema de teatro (Bu-
tler apud Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 220).
Os pesquisadores em filosofia-performance também observaram as di-
ferentes maneiras pelas quais o termo ‘filosofia’ pode ser ouvido em diferen-
tes contextos nacionais, e as maneiras pelas quais isso pode impactar na re-
cepção do campo. A esse respeito, talvez possamos considerar adaptar a
abordagem de Sara Ahmed (2017) à questão do feminismo, perguntando a
nós mesmos o que ouvimos quando ouvimos o termo ‘filosofia’ (e por quê).
Mais comumente em meu próprio contexto, eu me pego tendo que lidar
com suposições de que a filosofia é um empreendimento seco, acadêmico,
preso a uma escrivaninha; algo praticado quase que exclusivamente por ho-
mens ocidentais brancos e a reforçar um cânone restrito de pensamento
produzido quase que exclusivamente por outros homens ocidentais brancos
(vivos ou mortos). E, de fato, dados os problemas em andamento com ques-
tões ligadas à igualdade e diversidade no campo profissional da Filosofia (pe-
lo menos no Reino Unido e nos EUA), algumas dessas suposições não são
infundadas.
Em termos de ‘performance’, isso se relaciona tanto à multiplicidade
quanto à natureza interdisciplinar e experimental da performance no con-
texto das artes, mas também se refere à expansão e aplicação do conceito de
performance para além das artes. Desde a virada performativa, e particular-
mente desde o trabalho de estudiosos de Estudos da Performance como Ri-
chard Schechner, argumenta-se que não há limite para os acontecimentos e
comportamentos que podem ser considerados ‘como performance’. Jon
McKenzie sugere que “performance será nos séculos XX e XXI o que disci-
plina foi para os séculos XVIII e XIX” (McKenzie, 2001, p. 18). De fato,
vale a pena notar que empresas e corporações, por exemplo, frequentemente
falam em ter uma filosofia, como a filosofia que rege o desempenho [ou a
performance]18 da empresa – significando algo como uma visão ou política
de desempenho no sentido do comportamento individual dos funcionários
e da organização. A performance [no sentido de desempenho] aqui alude à

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consecução de objetivos e metas de maneira eficaz e eficiente; o desempe-
nho é algo que pode ser medido, gerenciado e ter como resposta recompen-
sa ou punição, desde os extremos de um bônus até o impacto devastador de
uma avaliação de ‘baixo desempenho’. Como o trabalho de McKenzie mos-
tra, e como a experiência de todos nós em universidades cada vez mais cor-
porativas deixa claro, este sentido do termo, ‘Performance Philosophy’ [como
‘filosofia de desempenho’], não pode e não deve ser separado do sentido que
estou desenvolvendo aqui – embora se possa ter esperança que este venha a
ser tão crítico e autorreflexivo quanto.
A esse respeito, se houver algum consenso surgindo nos Estudos da
Performance, é o de que – como Shannon Jackson coloca – o termo per-
formance permanece ‘resolutamente impreciso’ (Jackson, 2011, p. 13). Ou
seja – enquanto alguns, como Marina Abramović, continuam a definir per-
formance e especificamente performance art de acordo com uma oposição
simplista ao teatro – onde o primeiro é real e o último falso – meu senso é
que a maioria dos pesquisadores está mais próxima da visão de RoseLee
Goldberg (2001) de que “qualquer definição estrita [de performance] nega-
ria imediatamente a possibilidade de performance em si”. Em outras pala-
vras, pode-se argumentar que é precisamente essa indefinibilidade ou uma
resistência à identidade e identificação, paradoxalmente, que define a per-
formance como tal. Nesse sentido, a falta de identidade ou essência não
precisa ser vista como algo ruim – nem para a filosofia nem para a perfor-
mance. Articulada positivamente, essa é simplesmente outra maneira de re-
conhecer suas multiplicidades ou pluralidades e suas contínuas transforma-
ções como processos e não como objetos; suas constantes mutações e auto-
diferenciações em relação a outros processos que encontram.
Essa recusa de definição, é claro, assim como esse propósito aparente
da filosofia-performance de se manter, em algum grau, como selvagem ou
mesmo como um campo aberto, deixará este exposto a críticas de modo si-
milar às críticas dos Estudos da Performance realizadas por figuras como
Gay McAuley (apud Schechner 2017)19. No entanto, a esse respeito, talvez
seja menos sobre a filosofia-performance querer acabar com as discussões de
definição e mais sobe procurar chamar a atenção para os dramas históricos e
contínuos de uma definição de performance. Lutas por definição estão
constantemente ocorrendo em uma variedade de palcos contemporâneos; as
múltiplas identidades de ‘performance’ e ‘filosofia’ são produzidas de forma

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performativa no contexto de uma variedade de terrenos entrecruzados –
acadêmico, profissional, artístico, público – de maneiras que, em graus vari-
ados, repetem e resistem às convenções / tradições / hábitos / rotinas que as
possam roteirizar. Como em todos os locais de produção de identidade, o
processo contínuo de se determinar o que conta como performance ou filo-
sofia, quem conta como performer ou filósofo, é uma luta entre uma miría-
de de formas de poder, operando em vários níveis – individual, coletivo,
institucional, social, e assim por diante. Portanto, quando perguntamos: “o
que é performance ou o que é filosofia?” (como o fazem tanto os campos da
Filosofia como dos Estudos da Performance), é menos uma questão de ten-
tar chegar a um consenso sobre a ‘essência’ ou as ‘condições necessárias e su-
ficientes’ e mais uma questão de observar como os processos de definição e /
ou como a dramaturgia política da produção de identidade estão tendo lu-
gar nos contextos particulares em que nos encontramos.
E assim como os Estudos da Performance antes dela, a filosofia-
performance tem sido resistente à noção de disciplinaridade. De fato, Jon
McKenzie sugeriu que: “Os desafios enfrentados pela Filosofia-Performance
ressoam com os enfrentados pelos Estudos da Performance nas décadas de
1980 e 1990: ou se tornar uma ciência integrada, uma disciplina – ou de al-
guma forma permanecer uma ciência revolucionária, um campo sempre
emergente” (McKenzie apud Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 123). Muitos
de seus defensores mais proeminentes veem na recusa rebelde dos Estudos
da Performance em ser “fixado”, em sua resistência a determinar seus pró-
prios limites como um campo como algo que é, na verdade, essencial para
sua identidade. Por exemplo, Diana Taylor afirma: “Considero a indefinibi-
lidade e a complexidade dos Estudos da Performance extremamente tran-
quilizadoras’, enquanto Lois Weaver descreve os Estudos da Performance
como ‘um porto seguro para aqueles que não conseguem seguir as regras”
(apud Schechner, 2017). Por seu lado, McKenzie continua com o aviso de
que: “Se a filosofia-performance procura intervir principalmente dentro da
academia, pode muito bem se tornar uma ciência normalizada por fazê-lo ...
Se a filosofia-performance se preocupar em legitimar-se por meio de formas,
métodos e infraestruturas tradicionais, estará em grande parte em confor-
midade com as práticas de conhecimento dominantes, em vez de desafiá-las.
Ou talvez possamos imaginar e praticar maneiras de se estar em dois ou
mais lugares ao mesmo tempo” (McKenzie apud Street; Alliot; Pauker,

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2017, p. 123). Da mesma forma, David Zerbib encoraja o campo a ‘tirar
proveito de uma certa autonomia institucional’ e a considerar parte de seu
papel e função propor “alternativas a instituições [existentes]” (Zerbib apud
Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 336).

Além da Aplicação

Uma área central de preocupação na filosofia-performance tem sido,


até agora, a articulação de críticas e alternativas ao paradigma da aplicação
na relação entre a filosofia e as artes. Por ‘aplicação’, queremos dizer: uma
tendência, dentro da filosofia da arte ou em campos relacionados como a
teoria da arte, em usar a obra de arte mais como um meio para ilustrar um
conjunto de ideias pré-existentes, do que gerar novas. Privilegiar uma ideia
dada do pensamento filosófico em detrimento do pensamento artístico, ao
invés de permitir que as artes expandam nossa compreensão da filosofia e
até do pensamento. Quando pensamos em aplicação, também podemos
pensar em: uma relação unidirecional entre filosofia e artes, na qual se en-
tende que um conceito muda a maneira como percebemos as artes, mas
pouca atenção recíproca é dada à capacidade de as artes mudarem o modo
como entendemos um conceito.
Por sua vez, podemos querer reconhecer que a aplicação arrisca um ti-
po de parasitismo que tem duas vias, na medida em que os artistas podem
usar a filosofia para adicionar peso conceitual à sua prática, ou adotar uma
abordagem ilustrativa da prática, que deposita pouca fé no processo criativo,
seja na forma ou no evento em si mesmo para gerar um pensamento inespe-
rado. Ou de novo, como Esa Kirkkopelto (2015) discutiu, mesmo que a fi-
losofia continue sendo um recurso muito útil para os artistas apoiarem a ar-
ticulação da performance – incluindo, especificamente, a própria noção de
performance como pesquisa, como um modo de pensar, modo de investiga-
ção ou mesmo como um tipo de filosofia em si – pode ser que a filosofia
continue a servir como autoridade legitimadora em tais discursos. Como
Kirkkopelto coloca:
Os artistas que se voltam para a filosofia e os filósofos arriscam-se, inerente-
mente, a permanecerem unilaterais: os ‘pensadores’ tendem a ser usados como
autoridades supremas, cujo papel no discurso é enquadrar a área do questio-
namento e definir sua orientação básica. Não há como criticar ou desafiar De-
leuze, Merleau-Ponty, Foucault, Dewey ou Wittgenstein através da prática

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humilde de alguém! Do ponto de vista do artista, no entanto, esse tipo de de-
limitação preliminar é profundamente comprometedora. Do ponto de vista
filosófico, por sua vez, a própria relação permanece em si mesma não-filosófica.
Quando, então, artistas-pesquisadores realmente pensam filosoficamente?’
[…] O mais importante é reconhecer a natureza genuína, em outras palavras a
posição filosófica, das perguntas que os praticantes apresentam para suas co-
munidades artísticas e acadêmicas, bem como para uma sociedade mais ampla
(Kirkkopelto, 2015, p. 6).
Nesse sentido, qualquer compromisso renovado dos filósofos com a
performance pode não ser recebido como motivo de celebração por si só; o
que importa (para profissionais e estudiosos da performance) é como esse
engajamento ocorre. E, de fato, eu gostaria de sugerir que há um consenso
crescente entre pesquisadores preocupados com a relação entre a filosofia e
as artes: de que os estudiosos devam encontrar alternativas para a instru-
mentalização mútua e as desigualdades disciplinares que advém do para-
digma de aplicação, i.e: dessa perspectiva de uma ‘filosofia da arte’, perspec-
tiva que, historicamente, dominou a estética e da teoria das artes. Seja em
relação à Música (Bowie, 2007), Cinema (Sinnerbrink, 2011; Mullarkey,
2009), Dança (Cvejić, 2015) ou práticas interdisciplinares de artes (Man-
ning; Massumi, 2014), filósofos e teóricos contemporâneos estão cada vez
mais exigindo uma filosofia que venha das artes, e não que seja sobre as artes,
na medida em que esta última tende a reproduzir as hierarquias entre a filo-
sofia e as artes como modos de conhecimento. No centro desse apelo, para
muitos, está a visão de que as próprias artes são filosóficas, podem fazer filo-
sofia ou podem contribuir de forma independente à filosofia, acima e além
de sua capacidade em servir como mera aplicação ou ilustração para ideias
filosóficas pré-existentes ou simples exemplos usados para justificar reivindi-
cações ontológicas.
Por exemplo, a crítica da aplicação é intrínseca ao modelo alternativo
de ‘pesquisa-criação’ defendido por Erin Manning e o SenseLab:
Dado o contexto de criação da pesquisa em que estávamos trabalhando, seria
crucial evitar não apenas o modelo de comunicação, mas também qualquer
paradigma de ‘aplicação’, seja na forma de resultados práticos das disciplinas
existentes de pesquisa e design aplicadas pelos artistas aos seus trabalhos em
seus próprios campos, ou na forma de estruturas conceituais aplicadas à arte
ou tecnologia por filósofos ou outros teóricos. O trabalho conceitual não
poderia adotar uma postura externa de descrição ou explicação. Teria que

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ser ativado de forma colaborativa no local, entrando na briga relacional co-
mo um fator criativo entre outros’ (Manning; Massumi, 2014, p. 90).
Da mesma forma, na filosofia da dança, Cvejić e outros (Kunst, 2003;
Clark, 2011) têm sido altamente críticos quanto às questões metodológicas
no tratamento da dança dado por Badiou e Ranciere20. Por exemplo, Cvejić
sugere que, nas filosofias de Badiou e Rancière, “a dança é relegada a uma
metáfora ou, pior ainda, a um tipo de condutor não-histórico para uma on-
tologia geral”21. Por outro lado, Cvejić também pede por uma “dança-
filosofia” (“dance-philosophy”), entendida como “um tipo de pensamento
que se erga de dentro da prática material da dança” (Cvejić, 2015, p. 18).
Diferentemente das abordagens filosóficas padrão da dança – como exem-
plificadas por Badiou e Ranciere – uma filosofia da dança seria aquela em
que “[...] a hierarquia epistêmica é invertida: a aposta não está mais no que
a filosofia poderia fazer pela dança, mas em como uma orientação experi-
mental radicalmente pragmática na dança oferece uma estrutura prática pa-
ra teorizar a percepção, a formação de conceitos e outras questões filosófi-
cas” (Cvejić, 2015, p. 18).
No entanto, o valor de uma abordagem metodológica ‘para além da
aplicação’ não é de modo algum acordado por todos que trabalhem ou con-
versem com a filosofia-performance. Por exemplo, o filósofo da arte Clive
Cazeaux (2017b) argumenta que a noção de escapar ‘do modelo de dois
termos no qual a filosofia é ‘aplicada’ à arte ou onde a arte é oferecida como
uma ‘ilustração’ da filosofia’ se sustenta em cima da suposição problemática
acerca da capacidade da arte em produzir sua própria filosofia. Como ele co-
loca, ‘a ideia de que é possível recorrer à própria condição imanente da arte
ou da filosofia’ para ir além da aplicação ‘baseia-se na noção de que qual-
quer sujeito tem sua própria condição’. Para Cazeaux (2017b):
[…] essa é uma concepção difícil de sustentar, dada a interação e o emprés-
timo que ocorre entre os sujeitos, se a base dessa interação é considerada his-
tórica, por exemplo, revoluções modernistas nas artes, ou a afirmação filosó-
fica de que qualquer conceito necessariamente se abre para o outro.
Por outro lado, ele propõe que partamos da premissa de que a arte, in-
cluindo performance e filosofia:
[…] já estão mutuamente implicadas e usam esse entendimento (a) para
tornar problemática qualquer tentativa de discutir arte e filosofia em termos
simples, binários ou imanentes, e (b) ‘desdobrar’ e extrair as implicações ati-

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vadas por uma obra de arte que é oferecida em um contexto de filosofia-arte
(Cazeux, 2017b).

A não-filosofia de Laruelle como um modelo para a filosofia-performance

A não-filosofia de François Laruelle parece um modelo especialmente


pertinente para a Filosofia-Performance, em parte, devido à maneira como
ele caracteriza a própria não-filosofia: não como uma teoria abstrata, mas
como uma prática experimental – e, especificamente, no caso de sua estética
fora do padrão, como uma arte. Experimentação é a chave para a não-
filosofia, como sendo “a maneira de pensar que não sabe a priori o que é
pensar” (Laruelle, 2012, p. 67) – e como aquilo que busca ir além da aplica-
ção do pensamento ao real, em favor de uma prática que afirme o real como
aquele que produz performativamente o pensamento. De fato, Laruelle ca-
racteriza o pensamento como “um estilo, uma postura” (Laruelle, 2013, p.
xxi), uma ‘posição’ corporal e uma questão de “comportamento” (Laruelle,
2013, p. 23), de uma maneira que sugere uma conexão com as artes corpo-
rificadas da performance.
Por sua vez, o trabalho de Laruelle visa democratizar ou igualar a rela-
ção que a filosofia tem com outras formas de pensamento, incluindo as ar-
tes. Seu projeto não-filosófico é uma tentativa de realizar uma extensão qua-
litativa da categoria de pensamento sem que nenhum tipo de pensamento se
posicione como sua forma exemplar que, portanto, está em posição de poli-
ciar a inclusão e exclusão ou o status relativo de outros pensamentos dentro
da categoria. A disciplina de Filosofia sempre procurou desempenhar esse
papel autoritário, afirma Laruelle. Para Laruelle, a filosofia padrão envolve o
gesto em que o pensamento se retira do mundo para ocupar uma posição de
autoridade ou poder em relação a ele. Em seu livro All Thoughts are Equal,
John Ó Maoilearca (2015) parte do trabalho de François Laruelle para in-
troduzir a ideia de ‘uma igualdade (ou democracia) no pensamento’ em si
mesmo: não um pensamento sobre algo ou uma ou teorização sobre igual-
dade e desigualdade, mas a noção de uma igualdade ou ‘democracia do pen-
samento’. Deixando de lado por enquanto as dúvidas que possamos ter so-
bre a aparente identificação de igualdade e democracia aqui (dadas as persis-
tentes desigualdades que as democracias reais parecem sustentar) o que essa
ideia significa? O que isso nos impele a pensar? Uma maneira de abordar is-
so é através da linguagem da imanência: considerar Laruelle e, de fato, o

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pensamento de Ó Maoilearca como um experimento nos tipos de imanên-
cia radical que também foram perseguidos por pensadores como Deleuze,
Nietzsche e Spinoza. Nesse caso, a noção de igualdade é ontológica e postu-
la uma unidade ou imanência fundamental que não admite hierarquia ou
separação entre a natureza de entidades ou seres. Nada é mais ou menos real
do que qualquer outra coisa, podemos acrescentar. E, no entanto, a própria
natureza dessa ontologia permanece deliberadamente indefinida ou não es-
pecificada em Laruelle. Essa filosofia da imanência não define a imanência
como diferença ou devir, como Deleuze o faz, por exemplo. Em outras pa-
lavras, Laruelle não nos permite dizer que todas as entidades são iguais por-
que são X ou porque têm X características ou qualidades compartilhadas. A
preocupação, ao que parece, é que essa posição ainda parece pressupor mui-
ta autoridade para a filosofia – esta se coloca como aquela que nos diz como
as coisas realmente são, como se ocupasse ainda uma perspectiva transcen-
dente fora desta realidade. Em contraste, Ó Maoilearca sugere que a noção
de igualdade de Laruelle é uma hipótese performativa, e não uma afirmação
ontológica. Mas se é performativa, então – podemos perguntar – o que esta
faz ou produz? Como esta atua?

Performance como Filosofia ou como a Performance Pensa

Em contextos artísticos (ou pelo menos naqueles com os quais estou


familiarizada), é amplamente incontroverso sugerir que as práticas artísticas
são formas de “pensamento” e / ou formas de conhecer. Graças em parte à
aceitação institucional da prática-como-pesquisa ou paradigma da pesquisa
artística em muitos contextos nacionais, a ideia de que as perguntas de ‘pes-
quisa’ podem ser investigadas e as descobertas compartilhadas em e como
uma performance ao lado de formas mais tradicionais de investigação e pu-
blicação está bem estabelecida. É claro que, muito antes de o termo ‘prática-
como-pesquisa’ (e conceitos relacionados) ser amplamente adotado, os pró-
prios artistas já sabiam que o que estavam fazendo era pensar através da per-
formance.
E, ainda assim, a ideia de que a performance pensa ou que se pode pen-
sar através da performance permanece ‘radical’ em outros contextos, muitos
deles filosóficos. Erin Manning e Brian Massumi (2014), por exemplo, sen-
tem como necessário afirmar explicitamente que: “A prática que é filosofia
não tem nenhuma reivindicação exclusiva do pensamento ou da composição
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de conceitos. Como toda prática, sua única reivindicação é de suas próprias
técnicas. Para nós, as técnicas da filosofia são técnicas de escrita” (Manning;
Massumi, 2014, p. vii). Por um lado, é claro, e dado os problemas de desi-
gualdade disciplinar no paradigma da aplicação, é um gesto muito bem-
vindo ouvir filósofos notarem enfaticamente que seus objetivos não é “dizer à
arte como pensar, ou dizer à dança como entender a si mesma” (Manning;
Massumi, p. 2014, p. viii) – como muitas outras filosofias da arte fizeram, in-
tencionalmente ou não. Por sua vez, eles dizem para si mesmos e para os ou-
tros: “Não basta escrever sobre dança. Como William Forsythe diz, dance esse
pensamento. Dance esse pensamento coreográfico por todo o ato de escrever
da filosofia” (Manning; Massumi, p. 2014, p. viii).
Por sua vez, é uma reinvindicação diferente dizer novamente que a
performance é ou faz filosofia – dado que o conceito de ‘filosofia’ tem uma
relação sobreposta, ainda que diferenciada, com os conceitos de ‘pensamen-
to’, ‘conhecimento’ e ‘pesquisa’. Falar em termos de performance como filo-
sofia pode significar indicar a capacidade das práticas performativas em le-
vantar questões filosóficas – incluindo aquelas que podem se relacionar a
áreas convencionais e reconhecidas da filosofia, como ontologia, metafísica,
epistemologia e ética.
Em certos contextos filosóficos, a noção de que a ‘performance pensa’
pode ser recebida com objeções: por exemplo, existem performers que pen-
sam, fazedores de teatro e performance que pensam e audiências que pensam,
mas não podemos dizer que a performance ‘em si’ (o que quer que isso pos-
sa significar) pensa. Por esse relato, o pensamento é um processo ‘interno’
que pertence a sujeitos, como filósofos e artistas. No entanto, filósofos co-
mo Nietzsche, Merleau-Ponty, Heidegger, Stiegler e Deleuze fazem parte de
uma tradição alternativa na filosofia que desafia essa visão de que o pensa-
mento se origine em um sujeito distinto, propondo, ao contrário, modelos
mais relacionais. Aqui, o pensamento é entendido como, por exemplo, um
evento performativo ou ‘encontro’ entre corpos humanos e não humanos,
ou como um processo que se estende além do corpo objetivo em formas de
pensamento afetivo (de acordo com uma versão mais corporificada da abor-
dagem da ‘cognição estendida’). Por sua vez, a pesquisa de performance
considerou exemplos como o modo de pensamento colaborativo que surge
entre dois ou mais performers no ato de criação da própria performance. Da
mesma forma, filósofos como Manning e Massumi não estão sozinhos em

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sugerir que as práticas criativas não são apenas uma manifestação externa de
um processo de pensamento que já aconteceu internamente, porque o pen-
samento ocorre através do corpo em movimento, nas relações entre os cor-
pos (incluindo os não humanos) e em contextos espaço-temporais específi-
cos. Como eles colocam, no contexto de uma resposta criativa à prática co-
reográfica de William Forsythe: “Não existe ter ideias. Você não tem ideias.
O corpo em si mesmo, com seu meio rítmico, é um noção-motora: um mo-
vimento do pensamento. Dance esse pensamento” (Manning; Massumi,
2014, p. 45).
A reinvindicação de que ‘a performance pensa’ ainda é recebida com ce-
ticismo em certos contextos; ou com a expectativa de que o termo ‘pensa’
apareça entre aspas pavorosas, denotando uma aceitação ou admissão de que,
se de fato a performance faz algo como pensar, então certamente não é o
mesmo tipo de pensamento que a filosofia faz. Dizer que os artistas pensam,
ou que os performers pensam, talvez seja menos controverso – potencialmente
incontroverso mesmo. Mas essa não é a mesma afirmação ou, pelo menos,
não esgota a natureza da reinvindicação que estou procurando explorar aqui.
Ou seja, com ou sem uma consciência do paradigma da pesquisa artística, fi-
lósofos e estudiosos de todas as disciplinas podem estar dispostos a apoiar a
ideia de que aqueles que fazem performance – e artistas em geral (deixando
de lado por agora a questão daqueles que podem ser vistos fazendo perfor-
mance fora do domínio das artes) – estão fazendo isso de forma pensativa, es-
tão usando a produção da performance como um meio de explorar, gerar e
comunicar ideias e assim por diante.
Em um nível, essa ideia do pensamento como tendo algum tipo de vida
própria, separada de nós, não nos parecerá tão estranha. Já sabemos que em
Nietzsche, em Artaud e em Deleuze, o pensamento não se fundamenta em
um ‘eu’, um si-mesmo unitário que constitui seu fundamento e sua origem.
Em vez disso, eles sugerem que o pensamento é algo que, de alguma forma,
passa por entre ou através de nós, que nos é imposto de fora, em vez de ser
gerado de dentro para fora ou, novamente, que o pensamento ocorre de em
formas variadas, em várias velocidades e em graus variados de consciência.
Desse modo, somos levados à conclusão de que, quando a própria per-
formance pensa, ela pensa a si mesma – as performances quebram e abrem o
próprio conceito de performance, incluindo os produzidos pela filosofia. E,
ainda assim, novamente aqui, talvez seja levantada a objeção de que, embora
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não haja problema – na verdade, é o lugar-comum perfeito – em dizer que a
performance pensa, não é o mesmo que dizer que pensa filosoficamente. Por
que devemos desejar erodir as diferenças entre como a performance pensa e
como a filosofia pensa? Não é melhor para todos cada um se manter naquilo
que são melhores – que os filósofos pensem através da criação de conceitos e
artistas pensem através da criação de afectos, como sugerem Deleuze e Gua-
ttari – desde que todos concordemos que nenhum tipo de pensamento é in-
trinsecamente melhor ou mais importante que qualquer outro? Talvez. Mas
o risco dessa visão é que ela deixa implicitamente a Filosofia (com F maiús-
culo) como a disciplina que detém autoridade sobre a natureza do pensa-
mento em geral, além de qualquer instância específica como arte ou ciência,
por exemplo. Arrisca-se, assim, a deixar a filosofia em seu lugar como a dis-
ciplina que afirma saber o que é arte e como ela pensa – sob o disfarce de es-
tética filosófica; assim como também se arrisca a deixar a Filosofia livre para
manter seu próprio senso de identidade, não importa a qual tema se atenha
– da filosofia do teatro e da performance à filosofia do futebol ou dos Simp-
sons. Nossa própria posição, é claro, também assume riscos – não menos
importante, o risco de que a reinvindicação de que ‘a performance filosofa’
pareça totalmente sem sentido, uma vez que recusamos a fornecer, anteci-
padamente, uma definição de filosofia (ou uma definição de performance,
nesse caso).

Conclusões: contribuições e críticas

Como parte desse “balanço geral”, vale a pena levar em conta tanto o
que se poderia dizer que o campo positivamente alcançou ou que ofereceu,
ao mesmo tempo que se reflete sobre suas limitações e sobre as perspectivas
trazidas por seus críticos (incluindo os atos internos de autocrítica do cam-
po). Do lado positivo, Kirkkopelto sugere que, no contexto da emergência
da pesquisa artística,
[...] a filosofia-performance abre um campo no qual a performance, os cria-
dores e os performers podem fazer contato com o pensamento filosófico sem
a defesa de disciplinas intermediárias e em diálogo igual com elas, aprender a
pensar em seus próprios termos e serem compreendidos pelos outros. É por
isso que poderia, e frequentemente também deveria, constituir a forma mais
concreta de pensar que 1) ocorre no nível da prática da performance, com
seus arranjos materiais, corporais e institucionais, e a referida luta ou jogo de
poder que esses arranjos implicam; 2) leva em consideração o amplo leque

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de pesquisas sobre essas questões, mas retorna repetidamente a essa discussão
no nível do meio artístico e 3) aplica esse meio de uma maneira que indique
tanto a possibilidade de mudança quanto uma maneira de realizá-la numa
relação crítica a uma determinada ordem institucional das coisas (Kirkkopel-
to, 2015, p. 5).
No entanto, em minha perspectiva, uma das críticas mais importantes
recebidas pela filosofia-performance, até agora, foi perceber de que modos
esta também acabou por participar do “apagamento epistemológico do sul
global” em termos das performances e filosofias que até então enfatizou”
(Henao Castro, 2017, p. 193-194). Por exemplo, em uma revisão bastante
justa e equilibrada de Encounters in Performance Philosophy (2014) – um dos
volumes inaugurais da série de livros Performance Philosophy – Andrés Fa-
bián Henao Castro observa que, justamente por citar principalmente a filo-
sofia continental europeia e performances euro-norte-americanas, “[...] a fi-
losofia, a performance e seu encontro permanecem predominantemente cir-
cunscritos na geografia do norte global, sem que tal circunscrição provoque
alguma autocrítica ou reflexividade metodológica”. E pelo menos em rela-
ção à minha própria fase inicial em tentar pensar sobre a filosofia-
performance, Henao Castro está correto ao sugerir que “o esforço para des-
fazer as desigualdades que organizam o encontro” entre performance e filo-
sofia como disciplinas foi, de fato, feito em grande parte às custas de não se
repensar todas as outras desigualdades presentes em suas histórias” (Henao
Castro, 2017, p. 193-194).
Essa perspectiva eurocêntrica está embutida, também, na própria nar-
rativa da relação entre filosofia e performance – a qual, frequentemente, é
citada como começando com a ‘antiga querela’ entre filósofos e tespianos na
República. Da mesma forma, as tendências universalizantes da filosofia oci-
dental já foram motivo de preocupação para os pesquisadores da perfor-
mance, focados em corpos particulares e nas operações de diferença social
que (em) formam sua experiência (DeFrantz, 2007, p. 189). Embora, cla-
ramente, não haja uma simples oposição entre Filosofia e Estudos da Per-
formance a esse respeito, se considerarmos críticas como a análise de Rus-
tom Bharucha acerca do etnocentrismo de Schechner no contexto de sua
prática teatral intercultural (Bharucha, 1984). De fato, Bharucha sugere que
o amplo espectro de Schechner é, em si mesmo, um gesto universalizante
que falha em levar em conta as diferenças culturais dentre diferentes tradi-

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ções de performance: em outras palavras, um gesto homogeneizador de apli-
cação e não uma extensão qualitativa ou mudança real na ideia de perfor-
mance tal como determinada pelas normas teatrais ocidentais (Bharucha,
1984, p. 12)22. E certamente, a relação entre identidade e diferença, repeti-
ção e inovação permanece filosoficamente não-resolvida no modelo de
Schechner.
Não se trata tão somente de reforçar a ideia humanista liberal de filo-
sofia como aquilo que defende “a emancipação cada vez maior dos margina-
lizados em atividades libertadoras (intelectuais)” de acordo com o reconhe-
cimento de alguma suposta “comunalidade” (Ó Maoilearca, 2019). Em vez
disso, essas críticas sugerem que um papel para a filosofia-performance, jun-
tamente com os muitos campos com os quais compartilha preocupações, é
considerar como apoiará ativamente uma real e contínua pluralização de
pensamento e equalização de conhecimentos; como praticará uma ética no
pensamento construída não na semelhança, mas na diferença, não na expan-
são quantitativa mas na mutação qualitativa.

Notas
1
Retiro esta frase da recente discussão de Jon McKenzie sobre a relação da filo-
sofia-performance com questões de institucionalização e, especificamente, legi-
timidade institucional (McKenzie apud Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 123).
McKenzie também usa essa noção para aludir à dupla tendência da performan-
ce como prática ao mesmo tempo normativa e de resistência: “A performance
refere-se, assim, às práticas mais normativas e às mais experimentais, até trans-
gressoras da vida contemporânea: está em dois lugares ao mesmo tempo. Co-
mo pensá-la? No entanto, esse borrão de instabilidade tem sido o núcleo ou o
cristal em torno do qual eu construí – e pratiquei – uma impossível teoria geral
da performance”. (McKenzie apud Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 85).
2
Para esta definição inicial, juntei várias definições existentes da filosofia-
performance, conforme apresentadas na introdução à série de livros sobre filosofia-
performance <https://www.palgrave.com/gp/series/14558>, na revista Performan-
ce Philosophy Journal <http: //www.performancephilosophy.org/journal> e na rede
Performance Philosophy <http://performancephilosophy.ning.com>.
3
Para outras introduções ao campo, leitores interessados podem procurar por
Inter Views in Performance Philosophy: Crossings and Conversations (2017) edi-

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tado por Anna Street, Julien Alliot, e Magnolia Pauker; por Encounters in Per-
formance Philosophy (2014) editado por mim e por Alice Lagaay; ou pela edição
inaugural da revista Performance Philosophy (2015) editada por mim, mas en-
globando contribuições de uma ampla gama de filósofos, artistas e acadêmicos.
Embora ainda um tanto eurocêntrico, o vindouro Routledge Companion to Per-
formance Philosophy, editado por mim e pela Alice Lagaay, trará algumas tenta-
tivas iniciais em direção a uma abordagem um pouco mais global.
4
E, no entanto, a preocupação permanece: este (tipo de) artigo, por si só, é pre-
cisamente o tipo de ato de institucionalização e autorização que McKenzie, por
sua vez, sugere que a filosofia-performance deve evitar?
5
Por exemplo, Pittman diz sobre The Undercommons (2013) de Fred Moten e
Stefano Harney: “Com seus modos insurgentes e cacofônicos de pensar que
pressionam tanto o senso comum do presente que eu não sei mais do que
chamá-lo senão de ‘filosofia-performance” (Pittman, 2016, p. 168).
6
Ao longo deste ensaio, usarei o termo ‘filosofia-performance’ (sem maiúsculas)
quando pretender indicar o campo, método ou ideia da filosofia-performance,
e usarei o termo ‘Filosofia-Performance’ (com maiúsculas) para indicar a orga-
nização ou rede de pesquisa com esse nome, fundada em 2012. Da mesma
forma, vou pôr o termo ‘Filosofia’ em letra maiúscula quando pretender me re-
ferir à disciplina e à ‘filosofia’ sem maiúsculas, a fim de indicar práticas filosófi-
cas em um sentido mais amplo.
7
Atualmente, a rede de pesquisa Performance Philosophy possui aproximadamen-
te 3000 membros de mais de 56 países diferentes, inscritos no site e na lista de
discussão.
8
De fato, os leitores podem ter uma noção de uma dimensão importante do que
a filosofia-performance é (reiterando que esta é muitas coisas) participando de
um desses eventos, assim como lendo um artigo que se propõe introdutório,
como este.
9
Por exemplo, para o primeiro evento do SenseLab, Dancing the Virtual, em
2005: “Foi proibida a apresentação de trabalhos já concluídos de qualquer ti-
po. Isso não significava que os participantes entrariam como folhas em branco.
Pelo contrário, foram incentivados a trazer tudo, menos o trabalho concluído.
Eles foram incentivados a apresentar todas as suas paixões, habilidades, méto-
dos e, principalmente, suas técnicas, mas sem uma ideia pré-determinada de
como elas entrariam no evento Dancing the Virtual” (Manning; Massumi,
2014, p. 97).

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10
Nota da tradução: Aqui foi usada uma expressão, And must one do philosophy by
the book?, que se mostra como um trocadilho intraduzível, uma vez que fazer al-
go by the book (pelo livro) tem sentido, em inglês, basicamente de seguir as regras.
Neste sentido, o autor questiona, ao mesmo tempo, se a filosofia precisa ficar
presa às regras de sua tradição tanto quanto ao livro/ escrita como formato.
11
Como McKenzie explica: “A mídia inteligente (Smart media) faz surgir gêneros
acadêmicos que incluem ensaios em vídeo, teoria comix, TED talks e dezenas
de outras formas de mídia. Esses gêneros complementam os gêneros acadêmi-
cos tradicionais de livros e artigos e emergem da cultura popular, dos negócios
e dos contextos acadêmicos. Em geral, trabalhar com mídia inteligente envolve
pensar em interatividade multimídia, apresentar-se em novos locais e envolver
novos públicos. Em um nível mais profundo, a mídia inteligente implica um
redesenho maciço de nossa experiência de conhecimento e uma reestruturação
de sua arquitetura subjacente, pois a mídia inteligente abre um novo espaço
para o pensamento” (McKenzie apud Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 86).
12
Tomo essas ideias de uma contribuição de MM McCabe para uma oficina re-
cente de filosofia-performance On Dialogue, co-organizado pelo Centro de Fi-
losofia-Performance, em Surrey e pelo Center for Philosophy and the Visual Arts
no King’s College London em abril de 2019.
13
Ver Street et al.: “Mais do que um mero experimento de pesquisa, este traba-
lho responde a uma urgência manifestada pela expansão da Filosofia-
Performance – uma urgência para reinventar práticas de conhecimento, a fim
de abordar e criar condições de possibilidade para o que é frequentemente
marginalizado no Discurso acadêmico ocidental: intuição, emoção, gestos, plu-
ralidade, discórdia. De todos os continentes e disciplinas, os textos aqui apre-
sentados celebram essa diversidade, convidando-nos a pensar e trabalhar juntos
por meio de atos performativos” (Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 21).
14
Nota da tradução: A miríade de significados implícitos no termo Performance
Philosophy torna sua tradução complexa em qualquer língua neolatina. Ao con-
trário da língua inglesa, na qual o hífen reduz a gama de significados possíveis,
em português este pode ter o efeito contrário: uma vez que o hífen possibilita
subtrair o da (of) da expressão filosofia da performance, acaba por manter, ao
contrário, a relação entre os termos e seus significados possíveis em aberto. A
respeito da escolha pela tradução de Performance Philosophy como Filosofia-
Performance, sugere-se consultar outro artigo presente neste número, intitula-
do Crise da Representação, Virada Performativa e Presença: possibilidades rumo a
uma Filosofia-Performance, no qual esta questão (da tradução) é aprofundada.

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15
Nota da tradução: Mind the Gap é uma expressão corriqueira nos metrôs e trens
dos países anglófonos, que pede aos passageiros extrema atenção ao vão entre o
vagão e a plataforma, de modo a evitar acidentes. Puchner (2013) usa essa frase
como um trocadilho para criticar o campo emergente, de modo a exortar uma
necessária separação (vão ou lacuna) entre os termos, a qual, em sua crítica, es-
taria sendo deixada de lado.
16
Aqui estou adaptando o útil trabalho que o filósofo britânico Clive Cazeaux
(2017a) realizou sobre o conceito de ‘pesquisa artística’ e sua relação com a de-
finição de arte em seu livro mais recente.
17
Da mesma forma, ao abordar a relação entre a Filosofia-Performance e o con-
texto francês, os editores da Inter Views observam que: “Nenhuma tradução
verdadeiramente equivalente da palavra ‘performance’ existe no idioma fran-
cês” (Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 6). No entanto, eles continuam sugerindo
que “[...] isso não vem ao caso, pois, como Derrida apontou em sua conversa
com Searle, o pensamento francês transborda de características performativas e
afinidades exuberantes às práticas artísticas e teatrais, enfatizando o meio por
sobre o conteúdo” (Street; Alliot; Pauker, 2017, p. 6).
18
Nota da tradução: Importante não perder de vista que, embora performance se-
ja uma palavra incorporada a nosso vocabulário, trata-se de uma palavra origi-
nalmente de língua inglesa, cuja tradução ao pé da letra seria, justamente, a de
desempenho.
19
Ver McAuley (apud Schechner 2017, p. 38): “Há uma tendência nos estudos
da performance de difundir cada vez mais a rede, aceitando uma gama cada vez
maior de práticas de performance como objetos legítimos de estudo. Embora
essa abertura tenha suas atrações, há problemas com a noção de um “campo
sem limites”; parece-me que, embora o entendimento do que se constitui co-
mo performance possa diferir de cultura para cultura ao longo do tempo, pre-
cisamos definir com algum cuidado o que queremos dizer com isso aqui e ago-
ra. Minha regra geral é que, para que uma atividade seja considerada perfor-
mance, ela deve envolver a presença ao vivo dos artistas e daqueles que a teste-
munham, que deve haver alguma intencionalidade por parte do artista ou da
testemunha ou de ambos, e que essas condições, por sua vez, requerem análise
do local e da temporalidade que permitem que ambas as partes estejam presen-
tes uma à outra, bem como o que pode ser descrito como o contrato de per-
formance entre elas, explícito ou implícito ”. Por outro lado, e como discuti
em relação à filosofia anglo-americana do teatro, também podemos observar as

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maneiras pelas quais mesmo essas tentativas mínimas de definição são circula-
res em relação aos contraexemplos.
20
Consultar a crítica de Cvejic sobre Badiou e Ranciere sobre a dança, princi-
palmente em termos de falta de envolvimento com a prática real da dança:
“Embora as opiniões de Badiou e Rancière sobre dança sejam diferentes na
medida em que seus projetos filosóficos são política e epistemologicamente di-
ferentes, eles compartilham um hábito metodológico familiar: sua abordagem
ignora as obras de dança, concentrando-se principalmente em fontes literárias
ou cinematográficas que mediam a dança ou o movimento corporal. Nos dois
casos, os escritos de Mallarmé sobre a figura da dança são uma referência signi-
ficativa (Mallarmé, 1956). Enquanto Rancière invoca ocasionalmente obras
concretas (a Dança de Lucinda Childs, de 1979, por exemplo), uma vez que
sua tese sobre o regime estético da arte deve situar-se historicamente com uma
pitada de exemplos analíticos, já para Badiou é como se a dança não existisse
empiricamente, nem a história da sua prática, nem suas obras, técnicas, nomes
ou corpos (os únicos nomes relacionados à dança que ele cita são Mallarmé e
Nietzsche). De fato, Badiou divulga explicitamente sua 'missão' de falar da
“dança, não em seus próprios termos, com base em sua história e técnica, mas
em dança tal como é recebida e protegida pela filosofia” (Badiou, 2015, 63, grifo
meu). A dança parece nada mais que um instrumento de um exercício filosófi-
co – uma nova ‘metáfora’ para sondar a ontologia subtrativa familiar de evento
e pensamento de Badiou. Portanto, somos obrigados a tomar uma decisão bi-
nária, assim como o evento de Badiou exige de seus sujeitos: ler este ensaio fi-
gurativamente, como um exemplo da concepção de arte e estética do filósofo,
divorciado de quaisquer preocupações históricas e práticas da arte da dança, ou
“levar a sério” a metáfora de Badiou e encarar a dança que resultaria de seus
axiomas. Em uma crítica recente a Badiou, Jonathan Owen Clark demonstrou
como medir o último argumento com o registro anterior, nomeadamente, a
teoria de Badiou do ponto de vista da história da dança com suas alegações de
uma “inestética”, revela alguns problemas em seus argumentos filosóficos
(Clark, 2011).
21
Erin Brannigan (2019) avança esses debates de maneiras intrigantes, procuran-
do encontrar o controverso ensaio de Badiou ‘em seus próprios termos ... para
evitar o tom indignado’ que ela localiza em outras respostas ao texto de Badiou
por pesquisadores de estudos de dança. “Se a dança é ‘instrumental’ para o es-
quema de filosofia da arte que Badiou está formulando, ou seja, sendo ‘incor-
porada’ às estratégias de uma filosofia da arte, o que há para a dança? O projeto

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de Badiou pode ser redirecionado para nossas próprias preocupações disciplina-
res? Por exemplo, se sua concepção de dança (extraída de relatos filosóficos pas-
sados e para seus próprios propósitos) é vista como desprovida de uma perspec-
tiva disciplinar, então qual é a ideia de dança que posiciona a dele como ‘erra-
da’?”.
22
Como Bharucha (1984, p. 12) coloca: “Subjacente ao método de Schechner
em aplicar modelos teóricos a diferentes tradições de performance está sua fé
em ‘universais’. Em Drama, Roteiro, Teatro e Performance, ele enfaticamente
afirma: ‘Acredito que performance e teatro são universais, mas que drama não
é’ (Schechner 1977, 60)”.

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Laura Cull Ó Maoilearca é chefe do Departamento de Teatro e Dança, Professora


Associada em Estudos de Teatro e diretora do Centre for Performance Philosophy
da Universidade de Surrey, no Reino Unido. É organizadora e fundadora da asso-
ciação profissional Performance Philosophy, editora da série de livros Performance
Philosophy com a editora Palgrave Macmillan e editora conjunta do Performance
Philosophy Journal lançado em 2015.
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6276-0131
E-mail: l.cull@gsa.surrey.ac.uk

Este artigo inédito, traduzido por Luciana da Costa Dias, também se encontra
publicado em inglês neste número do periódico.

Laura Cull Ó Maoilearca - Filosofia-Performance: uma introdução


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Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 10, n. 1, e92544, 2020.
Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/presenca>
E-ISSN 2237-2660
Recebido em 3 de maio de 2019
Aceito em 3 de outubro de 2019

Editor-responsável: Patrick Campbell


Editora-responsável: Luciana da Costa Dias

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tive Commons Atribuição 4.0 Internacional. Disponível em: <http://creative
commons.org/licenses/by/4.0>.

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