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A bioética e a revisão dos códigos de conduta

moral dos médicos no Brasil


José Eduardo de Siqueira

Resumo: O presente artigo pretende resgatar um pouco da história da construção dos códigos
deontológicos médicos à luz da reflexão bioética, enfocando as perspectivas que nortearam a
construção daqueles documentos. Introduz a discussão sobre a necessidade de reformular o
Código de Ética Médica atualmente em vigor no Brasil, apontando na bioética as razões
circunstanciais que sublinham essa necessidade.

Palavras-chave: Bioética. Código de ética. Código deontológico. Direitos humanos

É necessário esclarecer, inicialmente, que a ética ape-


nas pode ser concebida, na prática, ela se cria, se
transforma, não é dada a priori... ela é transmitida,
modificada,enriquecida a cada época,em cada
sociedade,ela se apresenta como um acordo do homem,
com sua consciência,com a sociedade e o mundo.
José Eduardo de Siqueira Etienne-Richard MBaya
Doutor em Medicina pela
Universidade Estadual de
Londrina (UEL), mestre em O Conselho Federal de Medicina (CFM), em decisão
Bioética pela Universidade do
Chile, professor de Clínica unânime dos membros de sua Diretoria e de seu Con-
Médica e Bioética da UEL, selho Pleno, composto por representantes de todas as
presidente da Sociedade
Brasileira de Bioética (2005- regionais estaduais, assumiu a corajosa atitude de pro-
2007), membro da Câmara mover uma revisão do atual Código de Ética Médica
Técnica de Medicina Paliativa
do CFM, membro da Comissão (CEM), vigente desde 1988. O CEM atualmente em
Nacional de Revisão do Código
de Ética Médica do CFM
vigor, elaborado após longo processo de debates, foi
redigido por ocasião da I Conferência Nacional de
Ética Médica, em novembro de 1987, com a participa-
ção de delegados médicos de todo o país e aprovado em
sessão plenária do CFM em 8 de janeiro de 1988.

Passados 20 anos, o CFM achou necessário reformu-


lar o documento com a finalidade de melhor atender a
condução ética dos novos e complexos dilemas morais
que o avanço científico na área médica nos apresenta
a todo momento. Tal decisão pode, sem sombra de

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dúvida, ser definida como corajosa, pois é presente em vários outros textos deixados
sabido que o Código de Ética Médica bra- por Hipócrates.
sileiro é reconhecido, por entidades médi-
cas congêneres, como bem elaborado Em Sobre a decência, assim se expressa o
modelo de código deontológico a ser pai da Medicina a respeito do comporta-
seguido. mento do médico perante seus pacientes:
faça o diagnóstico e o tratamento do enfer-
Para a reformulação do CEM foi consti- mo com calma e ordem, ocultando do mesmo
tuída uma Comissão Nacional de Revi- a maioria das coisas; dê ordens oportunas
são, coordenada pelo 1º vice-presidente, com amabilidade e doçura e distraia sua
Roberto Luiz d’Avila, e composta por atenção; repreenda-o, às vezes severamente,
conselheiros representativos de todas as mas outras o anime com solicitude e habili-
macrorregiões do país que, assessorados dade, sem mostrar a ele nada do que vai
por juristas, teólogos, filósofos e bioeticis- ocorrer nem do seu estado atual 2.
tas, terão a responsabilidade de elaborar
um documento capaz de responder aos Compreende-se melhor o conteúdo moral
novos dilemas que se impõem aos profis- do juramento hipocrático quando o perce-
sionais, o qual será apresentado para apre- bemos como expressão cultural da Grécia
ciação e debate, envolvendo todos os antiga, sociedade regida por uma lei natu-
médicos brasileiros. ral que reconhecia todas as manifestações
de vida como dependentes de preceitos
Paternalismo médico: glória e teleológicos divinos. O exercício da medi-
ocaso cina, portanto, era uma espécie de sacer-
dócio e os médicos seriam mediadores
O juramento hipocrático, talvez o mais entre os deuses e os homens.
antigo texto moral relacionado aos cuida-
dos de saúde que a humanidade conheça, Naquele contexto, os médicos faziam
é repetido a cada cerimônia de conclusão parte de uma categoria especial de pessoas,
do curso médico por todos os quadrantes juntamente com governantes, sacerdotes,
do mundo ocidental e apresenta a seguin- juízes e monarcas que, em certa medida,
te introdução: juro por Apolo médico, por eram homens divinos. A eles era permiti-
Asclépio, Higéia e Panacéia, assim como do, em determinadas circunstâncias, até
por todos os deuses e deusas dar cumpri- mesmo mentir. Em A república, Platão
mento na medida de minhas forças e, de afirma que: a verdade merece ser estimada
acordo com meu critério, o juramento e sobre todas as coisas... A mentira é algo
compromissos que seguem... A ênfase no que ainda para nada sirva aos deuses, pode
critério decisório particular do médico, des- ser útil aos homens, como na medicina.
considerando a opinião do paciente, está Está claro que deve ser reservada aos médi-

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cos... Portanto, a alguns dignitários da Respaldados por tais pressupostos histori-
polis grega seria lícito faltar com a verda- camente firmados, os códigos de ética ela-
de, entretanto nenhuma outra pessoa está borados pelas entidades médicas sempre
autorizada a fazê-lo 3. incluíam postulados afirmando que o exer-
cício da medicina era incompatível com a
Gracia relata que Galeno de Pérgamo, o concessão de plena autonomia aos pacien-
último médico filósofo, falecido no ano tes. O nexo da relação médico-paciente se
200 de nossa era, em seu livro Comentá- assemelhava ao de uma família, assumindo
rios ao livro das epidemias de Hipócrates o médico a figura do pai e o enfermo o
considera que se o enfermo não admira o papel de filho. Esse modelo assimétrico de
médico de algum modo como a um deus, relacionamento perdurou até o início do
não aceitará suas prescrições4. século XX, quando pacientes estaduniden-
ses passaram a acionar judicialmente os
Longa vida teve o paternalismo médico médicos que omitiam informações, impe-
sempre pautado pelo princípio de que o dindo-os de tomar decisões autônomas.
enfermo carecia de autonomia e era inca-
paz de tomar decisões, sendo sua única A partir daí a história passa a registrar
obrigação moral a obediência. Ao poder sentenças judiciais condenando médicos
decisório do médico correspondia-lhe ape- que não respeitavam as decisões de seus
nas o dever de acatar as orientações técni- pacientes. Paradigmática foi a emitida
cas do profissional. É de meados do sécu- pelo juiz Benjamin Cardozo no caso
lo XV o seguinte texto atribuído a Santo Schloendorf versus Society of New York
Antonio de Florença: se um homem enfer- Hospital, de 1914, relatado por Beau-
mo recusa os medicamentos prescritos por champ: cada ser humano em pleno juízo
um médico chamado por ele ou seus paren- tem o direito de determinar o que deve ser
tes, pode ser tratado contra sua própria von- feito com seu próprio corpo e um cirurgião
tade, do mesmo modo que um homem pode que realiza uma intervenção sem o consenti-
ser retirado contra sua vontade de uma casa mento do paciente comete uma agressão de
que está por ruir 5. cujas conseqüências é responsável 7.

É também relato de Gracia a referência Diante dessa nova realidade, os códigos de


aos direitos do paciente feita por Thomas ética profissionais passam a reconhecer o
Percival no início do século XIX: quando paciente como pessoa capaz de assumir
um paciente... faz perguntas que respondi- decisões autônomas e retiram da catego-
das sinceramente podem resultar em fatali- ria médica o poder de única guardiã da
dades, seria um grave erro revelar-lhe a ver- saúde pública. Como conseqüência, o tra-
dade. Seu direito à verdade é duvidoso ou dicional paternalismo da profissão perde
mesmo nulo 6. sustentação.

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Em 1973 é publicado o Código de Direitos seguinte afirmação: o médico deve tratar
do Paciente, da Associação Americana de com attenção, constancia e humanidade
Hospitais, dispondo que o paciente tem o todos os casos a seu cargo... À imbecilidade
direito de receber de seu médico as informa- e aos caprichos dos doentes deve conceder
ções necessárias para outorgar seu consenti- uma desculpa razoável.
mento antes do início de qualquer procedi-
mento e/ou tratamento7. Assim se expressou Em julho de 1931, por ocasião do pri-
Beauchamp sobre este Código: esse docu- meiro Congresso Médico Sindicalista
mento introduziu um quase revolucionário Brasileiro, é aprovado o Código de Deon-
afastamento da benevolência hipocrática. tologia Médica, que em seu artigo 4º
Quiçá pela primeira vez um documento estabelece que o médico, em suas relações
importante de ética médica obrigava o profis- com o enfermo, procurará tolerar seus capri-
sional, sob forma de direito, permitir ao chos e fraquezas. O capítulo V, Conferên-
paciente assumir o processo de tomada de cias Médicas, continha 22 artigos, dos
decisões e a reconhecer como seu, o direito a quais o de número 48 mereceu a seguinte
tomar a decisão final 8. redação: o médico conferente observará
honesta e escrupulosa atitude no que se refe-
A partir de então, todos os códigos de ética re à reputação moral científica do assisten-
passaram a incorporar esse novo paradig- te, cuja conduta deverá justificar, sempre
ma. O código vigente no Brasil, consolida- que não coincidir com a verdade dos fatos ou
do pela Resolução CFM 1.246, de janeiro com os princípios fundamentais da ciência;
de 1988, em seu artigo 56 proíbe aos médi- em todo caso, a obrigação do conferente será
cos desrespeitar o direito do paciente de deci- atenuar o erro... e abster-se de juízos e insi-
dir livremente sobre a execução de práticas nuações capazes de prejudicar o crédito do
diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso médico assistente10.
de iminente perigo de vida9.
Redação similar é mantida nos códigos que
Códigos de ética: da visão se sucederam: Código de Deontologia
corporativa à ética dos princípios Médica, de 1945, Código de Ética da
Associação Médica Brasileira, de 1953, e
O primeiro código de ética da modernida- o Código de Ética Médica elaborado pelo
de, produzido na segunda metade do sécu- Conselho Federal de Medicina em janeiro
lo XIX pela Associação Médica America- de 1965 11. Atravessamos, portanto, a pri-
na, é traduzido para o português e divul- meira metade do século XX com a codifi-
gado no Brasil pela Gazeta Médica da cação da ética médica centrada nos interes-
Bahia em 1867. Esse documento, com ses dos médicos e subestimando os valores
marcada influência da obra de Percival, morais da sociedade e das pessoas enfer-
traz em seu artigo 1º, parágrafo 2º, a mas, o que fez com que muitos estudiosos

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da matéria considerassem esses códigos identificando três grandes princípios con-
como regras de etiqueta que governavam o siderados essenciais para a realização das
inter-relacionamento entre os profissionais, mencionadas pesquisas: autonomia, bene-
visando manter suas prerrogativas12. ficência e justiça. Desses princípios, a
autonomia, entendida como a capacidade
Em 1974, o Congresso estadunidense, de cada pessoa atuar com conhecimento
preocupado com a ausência de controle de causa e sem coação externa para forne-
social sobre pesquisas realizadas em seres cer espontaneamente seu consentimento
humanos e reagindo a situações de fla- em participar de qualquer experimento,
grantes desrespeitos aos sujeitos dos expe- era o que mais se distanciava dos tradicio-
rimentos, constituiu comissão com a fina- nais princípios hipocráticos que até então
lidade de definir critérios destinados a eram os únicos critérios que determina-
proteger as pessoas submetidas a pesquisas vam os parâmetros éticos para a prática
médicas, iniciativa que ficou conhecida da medicina14.
como National Commission. À época, o
caso mais famoso e que gerou enorme per- Como decorrência do Relatório Belmont
plexidade pública foi o Tuskegee Study, são criados dois instrumentos para imple-
pesquisa realizada desde o início da década mentar as recomendações da comissão,
de 30 com negros do Alabama portadores utilizados até hoje em todos os centros de
de sífilis. Estima-se que 400 pacientes pesquisa. O primeiro, identificado como
foram deixados sem tratamento específico termo de consentimento informado, deve
por decisão dos médicos pesquisadores que ser assinado pelo sujeito da pesquisa após
desejavam melhor conhecer a evolução ter sido adequadamente esclarecido sobre
natural da doença. O estudo prolongou-se a metodologia e os objetivos do experi-
até 1972, com irreparável e injustificado mento. O segundo é o termo de decisões
sofrimento humano, já que a penicilina, de substituição, subscrito por pais ou res-
droga promotora da erradicação do Trepo- ponsáveis legais, quando constatada a
nema pallidum, agente etiológico da lues, incompetência da pessoa para manifestar
passara a fazer parte do arsenal terapêuti- sua própria vontade.
co a partir dos anos 1940 13.
No Relatório o princípio da beneficência
A National Commission estabeleceu como não é apresentado como ato de caridade,
objetivo fundamental a identificação de mas obrigação moral do pesquisador. O
princípios éticos básicos que norteariam a documento discrimina, ainda, a necessi-
experimentação em seres humanos nas ciên- dade de não se causar dano, maximizan-
cias do comportamento e na biomedicina 14. do os benefícios e minimizando os riscos,
Após quatro anos de reuniões periódicas o que caracterizaria o resgate do primum
publicou o histórico Relatório Belmont, non nocere da beneficência hipocrática.

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Com relação ao princípio da justiça, a de conhecimentos científicos fez com que
Comissão o interpretou como imparciali- Berlinguer, expoente da bioética européia,
dade na distribuição de riscos e benefícios... alertasse que a velocidade com que se passa
iguais devem ser tratados igualmente14. Sem da pesquisa pura para a aplicada é hoje tão
dúvida, essa orientação foi a mais prejudi- alta que a permanência, mesmo que por
cada em sua implementação, pois as auto- breve tempo, de erros ou fraudes pode provo-
ridades públicas responsáveis por viabilizá- car catástrofes 16. Nunca antes foram regis-
la habitualmente negligenciam suas res- trados na história da ciência tão extraordi-
ponsabilidades em assumir as decisões nários avanços em tão curto intervalo de
políticas necessárias para tanto. tempo e tão desamparados de adequada
reflexão ética16.
Em 1979, um ano após a publicação do
Relatório Belmont, Tom Beauchamp e Na verdade, a bioética, inicialmente per-
James Childress lançaram Principles of bio- cebida como modismo filosófico, assume
medical ethics, que rapidamente se trans- a condição de instrumento essencial para
formou no manual básico da ética dos tomadas de decisões relativas à saúde de
princípios. No famoso texto, os autores seres humanos e à preservação da vida no
transformaram em quatro os três princí- planeta. Nesse amplo leque de preocupa-
pios originais propostos no Relatório, ções encontramos desde a bioética de
estabelecendo uma distinção entre a bene- fronteira, que trata dos hodiernos avanços
ficência e a não-maleficência15. do conhecimento científico, até a bioética
do cotidiano voltada para as ações do dia-
Ao final do século XX a descoberta de a-dia dos profissionais de saúde16. Respal-
genes responsáveis por inúmeras doenças, da o crescimento da bioética o fato de as
informações advindas do Projeto Genoma populações da maioria das sociedades não
Humano, a tecnologia médica intervindo mais aceitarem a indicação de qualquer
cada vez mais no início e final da vida, a procedimento médico de investigação clí-
introdução de diferentes e sofisticados nica, assim como qualquer proposta tera-
métodos de fertilização humana artificial, pêutica sem que o sujeito interessado, no
as condutas terapêuticas facultando o pro- caso o paciente, decida, por sua própria e
longamento quase indefinido de variáveis espontânea vontade, concordar com a
biológicas vitais em pacientes terminais, conduta sugerida pelo profissional.
os transplantes de órgãos realizados com
segurança técnica e excelentes resultados, Segundo Jonsen, a grande acolhida da
além de inúmeros outros procedimentos ética dos princípios, particularmente pelos
terapêuticos, passaram a freqüentar o profissionais da área da saúde, deveu-se à
cotidiano das tomadas de decisões nas simplicidade e objetividade na aplicação
práticas clínicas. Essa incontida avalanche dos mesmos às situações clínicas rotinei-

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ras. Sistematizado de maneira objetiva, Sobre conferência médica, tema extensa-
caracterizava-se por ser um instrumento mente tratado nos diplomas anteriores, o
construído com linguagem acessível, CEM reserva um único e sucinto artigo,
muito distante das orientações emanadas o 64: é vedado ao médico opor-se à realiza-
de rebuscados argumentos filosóficos ção de conferência médica solicitada pelo
quase incompreensíveis para pessoas for- paciente ou seu responsável legal. Se nos
madas no modelo cartesiano de conheci- documentos anteriores previa-se a possibi-
mento (e voltado basicamente à imple- lidade de atenuar ou encobrir erros médi-
mentação da técnica), que sempre marcou cos, o atual coíbe incisivamente tal prática
os cursos universitários adstritos às ciên- no artigo 79: é vedado acobertar erro ou
cias biológicas17. conduta antiética de médico 9.

O Código de Ética Médica de 1988, Em suma, decorridos trinta e seis anos do


vigente até o momento, tem 145 artigos nascimento da bioética, percebemos quão
distribuídos em 14 capítulos − alguns eficaz foi a utilização do instrumental ofe-
inteiramente originais, como os que tra- recido pela ética dos princípios para pro-
tam dos Direitos Humanos, Doação e mover a cidadania na área da saúde. A
Transplante de Órgãos e Tecidos e Pesqui- relação profissional de saúde-paciente,
sa Médica − e é concebido com forte antes conduzida assimetricamente, passa
influência da ética dos princípios, refletin- a ser mais simétrica e horizontal, respei-
do também o processo de redemocratiza- tando o enfermo como pessoa apta a tomar
ção do Brasil após longo período de dita- decisões autônomas.
dura militar. Redigido durante a Primeira
Conferência de Ética Médica, realizada Além da ética dos princípios
no Rio de Janeiro em novembro de 1987,
foi aprovado e transformando-se em reso- A bioética foi introduzida no Brasil nos
lução do Conselho Federal de Medicina. anos 1980, com enorme influência da
ética dos princípios, mas ao final dos anos
O capítulo sobre Direitos Humanos incor- 90 a comunidade acadêmica passou a
pora quase integralmente a Declaração de reconhecer que, embora sendo instrumen-
Helsinque: o paciente é reconhecido como to útil para orientar algumas tomadas de
sujeito de direitos, competente para toma- decisões corriqueiras, o modelo mostrava-
das de decisões sobre condutas diagnósti- se insuficiente para dirimir dúvidas em
cas e terapêuticas. O artigo 46, por exem- situações clínicas mais complexas. Não
plo, veda ao médico efetuar qualquer proce- mais bastava o singelo exercício de aplica-
dimento médico sem o esclarecimento e o ção dos quatro princípios para conduzir a
consentimento prévio do paciente ou de seu contento dilemas morais como a interrup-
responsável legal 9. ção de gestação indesejada em adolescente

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ou a suspensão de medidas de suporte vital − Chile, Espanha, Inglaterra, Itália, den-
em pacientes terminais internados em tre outros países −, com co-orientação de
unidades de terapia intensiva (UTI). expoentes da bioética mundial. Essas ini-
ciativas demonstram claramente como
Essa percepção tardia sobre o âmbito de esse campo de conhecimento ganhou
atuação e os instrumentos da bioética, espaço privilegiado nas diferentes instân-
observada no país, deveu-se ao fato de cias preocupadas com a reflexão ética e a
que, diferentemente do ocorrido na Euro- adequada condução das tomadas de deci-
pa, cujos principais agentes promotores da sões clínicas frente a dilemas morais do
disciplina foram, desde sempre, filósofos e cotidiano dos profissionais médicos de
cientistas sociais, no Brasil houve influên- nosso país.
cia marcante de profissionais da área bio-
médica e os últimos dezesseis anos foram É possível apontar alguns marcos na pau-
férteis na incorporação de novos saberes latina incorporação de novas perspectivas
em nossa reflexão bioética. na reflexão ética ao longo da década de
90. Em 1993, instala-se no Hospital de
Contribuíram para essa transformação a Clínicas de Porto Alegre (HCPA) o Pro-
introdução de disciplinas obrigatórias ou grama de Apoio aos Problemas de Bioéti-
optativas na grade curricular de diferentes ca, embrião do primeiro Comitê Hospita-
cursos de graduação em Medicina e demais lar de Bioética criado no país. Tendo
carreiras da área da saúde. Além disso, como meta aprimorar o cuidado ao enfer-
cursos de especialização em Bioética foram mo e oferecer ao profissional de saúde
implementados em muitas universidades consultoria para a tomada de decisões
e, em 2004, teve início o primeiro progra- frente a dilemas morais, a área de ação
ma de mestrado, oferecido pelo Centro desse Comitê passa a incorporar ativida-
Universitário São Camilo de São Paulo, des de transmissão de conhecimentos de
exemplo seguido pela Cátedra Unesco de bioética para todo o corpo de funcionários
Bioética da Universidade de Brasília, no da instituição. De 1994 a 2002 o Comi-
mestrado e doutorado, em 2008. tê Hospitalar de Bioética do HCPA aten-
deu a 376 pedidos de consultoria e reali-
Além dessas iniciativas autóctones encon- zou programas de capacitação em privaci-
tra-se em andamento, atualmente, o pro- dade e confidencialidade a funcionários
grama de doutorado em Bioética, patroci- de diferentes áreas da instituição, como
nado pelo CFM em cooperação com a secretárias de unidades de internação e
Universidade do Porto, em Portugal. ambulatorial, responsáveis pelo arquivo
Diversos estudiosos desse campo têm con- de prontuários médicos, pessoal do fatu-
cluído sua pós-graduação em nível de dou- ramento e informática, ascensoristas e
toramento em universidades estrangeiras vigilantes 18.

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Em 1995 foi criada a Sociedade Brasilei- Sem a utilização das ferramentas desse
ra de Bioética (SBB) e, no ano seguinte, campo como instrumentos para as trans-
editada a Resolução 196/96, do Conselho formações das relações médico-paciente,
Nacional de Saúde, instrumento exem- a avaliação moral da prática clínica reduz-
plar, que dispõe sobre diretrizes e normas se a necessário, porém insuficiente, exer-
reguladoras de pesquisas envolvendo seres cício de aplicação de normas deontológi-
humanos 19. A partir dessa resolução é cas e códigos institucionais 20. Mostran-
instaurada a Comissão Nacional de Ética do-se atenta ao extraordinário progresso
em Pesquisa e o Sistema CEP/Conep, que da medicina, sobretudo no campo da bio-
com aproximadamente quatrocentos logia molecular e da manipulação gênica,
Comitês Institucionais de Ética em Pes- a bioética nutre permanente expectativa
quisa (CEP) atua como agente de contro- de que na prática clínica cotidiana a pes-
le social e cria nas instituições de ensino e soa humana seja privilegiada em sua uni-
pesquisa instâncias para a avaliação e dade biopsicossocial e espiritual. Em vir-
acompanhamento das pesquisas realizadas tude de tal expectativa compreende-se
no país. Instância competente e não mera facilmente que tanto o direito médico
aplicadora de normas deontológicas, a quanto os códigos deontológicos, para
Conep é reconhecida como colegiado que melhor contribuir na solução de proble-
pratica o mais autêntico exercício de refle- mas morais emergentes e complexos,
xão bioética20. devem ser revistos periodicamente.

Em novembro de 2006, o CFM edita a Em relação à construção do conheci-


Resolução 1.805/06, que faculta aos mento, a bioética apresenta-se como dis-
médicos limitar ou suspender procedimen- ciplina habilitada a promover novo
tos e tratamentos que prolonguem a vida do modelo de universidade, fazendo-a mais
doente em fase terminal, de enfermidade crítica e não permitindo que a institui-
grave e incurável, respeitada a vontade da ção se acomode às regras perversas
pessoa ou de seu representante legal 21. Essa impostas pelo mercado, mas cultive o
resolução deverá ser incorporada no novo aprender a aprender, a refletir e partilhar
Código, em substituição ao vigente artigo idéias inovadoras que busquem contem-
66, pois oferece mais adequado entendi- plar a plena cidadania. Tarefa nem sem-
mento sobre o significado da terminalidade pre fácil, já que diante do incontido cres-
da vida. cimento da tecnociência e da gestação de
sociedade que globaliza desordenada e
A reflexão bioética da prática clínica é injustamente variáveis econômicas, des-
sempre dinâmica e fundamenta-se no prezando valores humanos autênticos, a
olhar interessado, simultaneamente, na Academia perplexa se intimida, perma-
pessoa enferma e em toda a humanidade. necendo imobilizada e impotente. Faz-se

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urgente, portanto, aprender com o alerta médica é a de mostrar que as soluções de
de Adorno, que percebeu a filosofia se per- dilemas éticos cotidianos são revestidas de
mitir ser aterrorizada pela ciência por oca- verdades transitórias e sempre devem guar-
sião do Iluminismo. Tal circunstância dar respeito incondicional à dignidade do
permanece presente e consideramos que a ser humano enfermo. Mais ainda, que a
universidade moderna será julgada por aquisição de habilidades para as tomadas
sua capacidade de responder a esse impas- de decisões deve ser feita com humildade,
se adequadamente; aos desafios de har- tolerância e respeito ao pluralismo moral
monizar ciência, ética e sustentabilidade. presente na sociedade. É nesse espírito
Caso não tenha êxito nessa missão será que se pretende construir o novo Código
condenada pelo tribunal da história21. de Ética Médica, instrumento capaz de
responder com maior acuidade aos novos
Em suma, a maior contribuição que a bio- e aos velhos dilemas que impactam o dia-
ética pode oferecer à evolução da prática a-dia da profissão.
Resumen

La bioética y la revisión de los códigos de conducta moral de los médicos en


Brasil
El presente artículo pretende rescatar un poco de la historia de la construcción de los códigos
deontológicos médicos a la luz de la ponderación bioética, enfocando las perspectivas que
nortearon la construcción de aquellos documentos. Introduce la discusión sobre la necesidad de
rehacer el Código de Ética Médica actualmente en vigor en Brasil, apuntando en la bioética las
razones circunstanciales que subrayan esa necesidad.

Palabras-clave: Bioética. Código de ética. Código deontológico. Derechos Humanos.

Abstract

Bioethics and revision of moral conduct medical codes in Brazil


This paper aims to redeem a little of the history’s the building of medical deontological codes
in the light of bioethics reflection, focusing on the prospects that guided this construction of
those documents. It introduces the discussion about the need to rewrite the Code of Medical
Ethics currently in force in Brazil, pointing at the bioethics circumstantial reasons that underline
this need.

Key words: Bioethics. Code of ethics. Deontological code. Human Rights.

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Recebido: 25.11.2007 Aprovado: 3.12.2007

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José Eduardo de Siqueira − jtsique@sercomtel.com.br

Revista Bioética 2008 16 (1): 85 - 95 95

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