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Wilson Mesquita de Almeida

ESTUDANTES COM DESVANTAGENS ECONÔMICAS E

DOSSIÊ
EDUCACIONAIS E FRUIÇÃO DA UNIVERSIDADE

Wilson Mesquita de Almeida*

INTRODUÇÃO SEGMENTOS POPULARES E EDUCAÇÃO


SUPERIOR
O presente artigo discute a utilização dos
recursos e espaços de uma conceituada universi- Atualmente, ainda que por razões diferen-
dade por estudantes com desvantagens econômi- tes em cada país, há uma maior atenção sobre a
cas e educacionais.1 A problemática centrou-se na trajetória, até o ensino superior, de indivíduos
dinâmica da permanência vivida por um grupo de pertencentes a segmentos social e economicamen-
alunos com perfil distinto daquele tido como típi- te desprovidos. Na França, desde a pesquisa se-
co da USP. minal de Bourdieu e Passeron (1964), alguns estu-

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Em primeiro lugar, faço uma breve revisão diosos pesquisam a mudança ocorrida em um pe-
crítica da bibliografia sobre a trajetória de estudan- ríodo de trinta e cinco anos e procuram compre-
tes das camadas populares que chegam ao ensino ender a transição do “estudante herdeiro” para o
superior, a partir do diálogo com pesquisadores “novo estudante” proposto por Erlich (1998, 2004).
nacionais e estrangeiros. Em seguida, discuto al- O interesse volta-se para a compreensão das conse-
guns resultados da investigação, esperando con- qüências do grande crescimento de um novo tipo
tribuir para a reflexão sobre os debates atuais em de estudante, mais diverso e multifacetado em rela-
torno da inclusão social no ensino superior brasi- ção aos “herdeiros”, que mantinham certas caracte-
leiro. rísticas típicas marcadas pelo cultivo da erudição –
* Professor do Centro Universitário Nove de Julho literatura clássica, teatro, pintura, dentre outros –,
(UNINOVE) e Mestre pela Universidade de São Paulo. retratadas em Bourdieu (1988). Nesse sentido, hou-
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315. Cep: 05508-010 - Sao
Paulo, SP - Brasil. Telefone: (011) 30913724. ve um deslocamento do olhar para a vida cotidiana
wilmesq@gmail.com
1
Este artigo traz alguns resultados da minha pesquisa de dos estudantes – jornadas estudantis, modo de vida,
mestrado no Departamento de Sociologia da USP. Para a relação com o trabalho universitário, maneiras de
realização do trabalho, obtive auxílio da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). estudar, financiamento da vida estudantil com alo-

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ESTUDANTES COM DESVANTAGENS ECONÔMICAS ...

jamentos, alimentação, saúde, enfim, uma série de tratégias previamente definidas. Portes (2000) en-
atividades que levam alguns, às vezes de forma controu, como traços marcantes que ajudaram no
exagerada, a defender uma “sociologia dos estu- acesso, a presença de uma ordem moral domésti-
dantes” dentro do quadro das relações entre edu- ca, a atenção para com o trabalho escolar dos fi-
cação e sociedade (Bonnet; Clerc, 2001). lhos e a presença de professores responsáveis por
Os estudos dos países de língua inglesa es- orientá-los com as melhores opções para a garantia
tão mais centrados no acesso de estudantes – e de uma trajetória segura de escolaridade.
aqui, guardadas as diferenças, há uma possível Alguns dos estudos realizados, tanto no
aproximação com o contexto brasileiro2 –, já que Brasil quanto nos contextos francês e inglês, pro-
existe direção explícita do governo de ampliar a curavam chamar atenção para a permanência de
participação em pelo menos 50% dos jovens que estudantes oriundos das camadas populares no
estão na faixa de dezoito a trinta anos até o ano de ensino superior, ultrapassando o sentido usual de
2010, com a recomendação básica de que tais jo- propiciar condições mínimas para o não abando-
vens “necessitam ser recrutados de grupos no do curso. O que esses estudos propõem é uma
desfavorecidos, pois a participação entre jovens reflexão sobre o quê, efetivamente, esse estudante
oriundos de grupos da classe trabalhadora tem socialmente desfavorecido extrai de sua passagem
permanecido persistentemente baixa.” (Ross et al., pela universidade. Cumpre destacar o estudo de-
2003, p. 3). senvolvido por Villas Bôas (2001), em que a auto-
No Brasil, faz alguns anos, movimentos so- ra problematiza as desigualdades sociais na uni-
ciais, intelectuais, pesquisadores e gestores de polí- versidade. Além das dificuldades de acesso – res-
ticas públicas têm feito considerações sobre o aces- trições ao ingresso, hierarquia interna de carreiras
so restrito das camadas menos favorecidas da po- – há a emergência de distintas vivências e aprovei-
pulação ao ensino superior. Associado a tais dis- tamento do curso de acordo com as classes sociais
cussões, encontramos o debate atual sobre políticas às quais os indivíduos pertencem.
de ações afirmativas como cotas raciais e cotas soci- A pesquisa efetuada procurou deslocar o
ais, o qual tem dividido a opinião no país em pólos foco para a investigação de processos desiguais,
bem delimitados. Nesse quadro, pesquisas têm sido no nível de cada carreira, vivenciados pelos diver-
realizadas com o objetivo de melhor entender a luta sos indivíduos que nelas ingressam. Essas dife-
por acesso à universidade, sobretudo as públicas, renciações são produzidas mediante o
voltadas para esses segmentos.3 envolvimento com pesquisas, a apropriação de
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A partir das pistas teóricas abertas por Lahire equipamentos materiais, a realização de cursos
(1997), estudos foram realizados procurando com- extracurriculares, além de informações sobre pro-
preender o processo de chegada ao ensino superi- gramas de cunho formativo existentes no âmbito
or das camadas sociais desfavorecidas. Assim, da universidade. Procura-se integrar à análise do
Viana (2000) verificou os modelos socializadores acesso àquilo que poderia ser denominado, provi-
existentes nessas famílias. Como resultado, ao con- soriamente, de permanência efetiva, pois, além da
trário do “superinvestimento familiar” das cama- dimensão material apontada em vários estudos,
das médias, não havia, entre os entrevistados, es- incorpora discussões que perpassam fortemente o
trajeto do estudante: o que traz consigo em termos
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Em terras brasileiras, há uma proposta de aumento na de formação cultural valorizada pelo ambiente
faixa dos jovens de 18 a 24 anos – faixa considerada ideal
para a matrícula no ensino superior – para cerca de 30% universitário de que passa a fazer parte; a confron-
até o ano de 2010, conforme consta no Plano Nacional tação com métodos de ensino diferenciados, onde
de Educação. Atualmente, essa taxa encontra-se em tor-
no de 8 a 9%. podem ocorrer tensões, o aumento das tarefas es-
3
Há uma variedade de denominações para dar conta des-
ses grupos: camadas populares, jovens pobres, setores colares que exigem uma postura mais independen-
de baixa renda, jovens trabalhadores, dentre outras. te; os constrangimentos emocionais ao marcar uma

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entrada em um universo distinto, tecido por in- em São Paulo, é preciso ressaltar que alguns des-
tensas mudanças – um novo espaço que rompe ses pais foram fortemente socializados no ambien-
com relacionamentos mais sólidos até então exis- te rural.
tentes em níveis escolares anteriores, uma sociabi- Ao analisar a trajetória ocupacional pater-
lidade mais fragmentada com os colegas. Em suma, na, depreende-se que seus pais possuem modes-
procura-se percorrer as rupturas e rearranjos que tos recursos econômicos e exercem profissões de
ocorrem quando da entrada e vivência na univer- status relativamente baixo. Porém ocupam ou ocu-
sidade, o que requer a reestruturação de alguns param cargos que garantiram uma certa regularida-
referenciais na vida estudantil. de salarial, em categorias tais como metalúrgicos,
motoristas, serralheiro e mecânico de autos. A tra-
jetória ocupacional da mãe apresenta um quadro
ESTUDANTES COM DESVANTAGENS SOCIAIS4 mais precário em termos de valorização social das
profissões, sendo que o trabalho informal, sem
Dezessete indivíduos dos cursos de Geo- registro, foi a tônica: das que trabalharam fora, a
grafia, Letras, História, Ciências Contábeis e Físi- profissão de doméstica foi predominante, seguida
ca foram pesquisados. A presença masculina com- de costureira, lavadeira e cozinheira.
parece com onze alunos, seguida de seis mulhe- Quanto à escolaridade, há uma predomi-
res. A cor5 branca é predominante, perfazendo dez nância de baixa escolarização, tanto materna quan-
pessoas, seguida de parda com quatro, negra com to paterna. Um capital escolar elevado dos pais,
duas e, por fim, um indivíduo que se declarou embora seja um dos principais trunfos utilizados
índio. Catorze pessoas estão solteiras, duas estão no espaço educacional, por si só não é sinônimo
casadas, sendo que um dos estudantes é casado e de escolarização bem sucedida dos filhos. Assim,
possui uma filha de três anos. Todos estudaram é preciso tentar compreender como esses pais li-
em escolas públicas. davam com a educação dos filhos, que importân-
A grande maioria é composta de filhos de cia davam às tarefas escolares, se ajudavam ou não,
migrantes vindos de estados do Nordeste e do in- e que meios mobilizavam. A baixa escolaridade dos
terior de São Paulo. Somente dois informantes pais não lhes permitia dar auxílio nos deveres da
possuem pais nascidos na cidade de São Paulo. escola. Como diz Clara “... não tinham instrução
Destaca-se a situação particular de Robson, Caroli- para esse tipo de coisa”. A despeito disso, um ele-
na e Adauto: eles nasceram, respectivamente, no mento que marca o olhar interessado – na maioria

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Paraná e em Minas Gerais. É lícito supor que não das vezes da mãe – foi a “cobrança” de ir bem na
se trata de algo fortuito, uma mera coincidência. escola, ter resultados. Embora restrita a ver os bo-
Gomes (1992, p. 100) em seus estudos sobre a so- letins, ir às reuniões quando convocados, a maior
cialização no âmbito familiar dos grupos popula- parte dos pais demonstrava com essas atitudes suas
res, já encontrara que “... pais migrantes educam preocupações. Logo, um elemento que atravessa
os filhos, no meio urbano-industrial, em condi- todos os dezessete informantes é um ambiente fa-
ções assaz desvantajosas (...) educam os filhos para miliar favorável, marcado pelo desejo de que os
uma realidade que lhes é, ainda, desconhecida (...) filhos atingissem os vários níveis de escolaridade,
eles ainda estão em processo de adaptação e ajus- porém, feito de forma dialogada, nunca em termos
tamento ao novo meio (...) a metrópole que mal de imposição ou pressão. Assim, houve, para to-
conhecem”. Embora já residentes há algum tempo dos eles, uma estabilidade emocional. Ou seja, na
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ausência de um capital cultural no sentido que
Os nomes dos entrevistados são fictícios, para garantir o
anonimato. Bourdieu (1999) propõe, sobretudo aquele trans-
5
Informação obtida mediante autodeclaração. O IBGE mitido na fase de socialização primária, o mais
considera pretos e pardos de forma agregada, classifican-
do-os como negros. Mantive as denominações nativas. decisivo deles – capital cultural incorporado –, esses

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pais procuravam manifestar em suas relações com ve aos sábados e alguns domingos e feriados, como
os filhos uma conduta de valorização da escola. A é o caso de Carolina. Alguns trabalham desde muito
mãe de Mauro evidencia essa postura ativa “... ela cedo7 para seu sustento e ajuda no orçamento fa-
trabalhava em casa de família e ganhava muitos miliar.8 Em alguns casos, já constituíram suas
livros escolares. Lembro que tinha muita dificul- próprias famílias ou são responsáveis pelo orça-
dade nos primeiros anos em ditado. Ela pegava os mento da casa. Aproximam-se da definição feita
livros e me fazia treinar escrita.” por Hirano et al. (1987, p. 84):
Os irmãos tiveram presença marcante ao
servirem de modelos para alguns dos pesquisados. ... uma parte do alunado da USP apresentaria uma
condição institucional diferenciada, anterior à
Assim, quem formou culturalmente Gilberto – condição de estudante: é estudante sendo, antes
marcado pela ausência paterna desde cedo – foi de tudo, um trabalhador. Nesta situação, ele pode
ser responsável ou não pelo orçamento familiar.
um irmão que trabalhava como gerente de um res- Neste caso, ele pode ser pai ou apenas um mem-
bro dessa unidade familiar. [grifos meus]
taurante e “... tinha o hábito de trazer jornais para
casa. Foi quando aprendi a ler histórias em qua-
Logo, os alunos pesquisados podem ser
drinhos, esse meu irmão colecionava, e também
denominados trabalhadores-estudantes, possuin-
fazer palavras cruzadas”. Otávio sempre se
do uma dupla condição, ao combinar jornada lon-
espelhou na trajetória da irmã, que também fez
ga de trabalho e estudo à noite, diferenciando-se,
contabilidade na USP. Mauro também aponta seu
assim, de outros grupos de estudantes da USP:
irmão como referência fundamental: “... meu ir-
tanto em relação ao estudante dos anos sessenta,
mão mais velho estudou no Serviço Nacional da
que mantinha uma forte dependência econômica
Indústria - SENAI e ele sempre me incentivou a
da família, segundo a pesquisa de Foracchi (1965,
estudar. Num tempo em que ter um curso
1982), quanto de alguns grupos que somente se
profissionalizante era um fator de sucesso, isso me
dedicam aos estudos ou, mais decisivo para a si-
atraía para o estudo.”
tuação em tela, estão livres da necessidade inadiável
A trajetória no ensino fundamental também
de trabalhar para sobreviver.
possibilita um olhar mais apurado sobre algumas
Um outro aspecto explorado no decorrer da
clivagens entre os pesquisados. Alguns tiveram
investigação foi a “escolha” da universidade.Em
destaque no ensino fundamental, sendo vistos
outras palavras, por que a USP nos seus projetos e
como alunos-modelo: Antônio, Gilberto, Mauro e
desejos de vir a ser universitários? Em primeiro
Otávio. Os professores incentivavam Gilberto a
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plano, antes mesmo do prestígio e distinção dentro


prosseguir os estudos, pois o achavam bom alu-
do sistema de ensino superior brasileiro, é a
no. Antônio recebeu um prêmio entre os alunos
gratuidade das universidades públicas que aparece
do município de Francisco Morato,6 após ter tira-
como fator explicativo maior. Assim, devido às con-
do o conceito máximo durante todo o primeiro
dições financeiras desfavoráveis para suportar o
bimestre da 6ª série. Otávio era o “exemplo da es-
pagamento de um curso superior, a instituição pú-
cola”, aquele que tirava as maiores notas. Mauro
blica constitui local único no projeto de ser univer-
resume bem esse subgrupo “... a lembrança mais
sitário para esses indivíduos. Essa evidência per-
marcante é que me consideravam um gênio na es-
mite fazer objeções à afirmação corrente de que as
cola. Era uma coisa absurda: todos os professores
me conheciam, falavam de mim até em horários 7
A fala de Adauto resume bem a trajetória de alguns: “...
aos doze, treze anos, éramos [ele e irmãos] pequenos
em que eu não estudava.” homens”.
Todos os pesquisados, sem exceção, são tra- 8
Sposito e Andrade (1986, p. 11), em pesquisa sobre
alunos de cursos superiores noturnos, já haviam en-
balhadores, a maioria em tempo integral, inclusi- contrado tais características: “... para este aluno do cur-
so noturno, o trabalho é uma necessidade precoce, de-
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Município da Grande São Paulo. Possui os índices soci- terminado por motivos econômicos ligados às estratégi-
ais mais precários do estado de São Paulo. as de sobrevivência familiar.”

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camadas menos favorecidas ou “pobres” estão so- a qual muito dificilmente teriam a possibilidade
mente alocadas nas particulares e excluídas das de fazer um curso superior.
públicas. É exatamente o contrário: pelo fato de
ser gratuita, é lá onde o pobre, excluído,
desfavorecido, popular, de baixa renda, dentre INFORMAÇÕES, INCENTIVOS E IMAGEM
outras designações, pode ter guarida. Essa desco-
As informações e os incentivos para que ten-
berta confirma o que outras pesquisas já encontra-
tassem ingressar tiveram a participação de atores va-
ram sobre o perfil “menos privilegiado” do aluno
riados: irmãs, alunos da USP que na época ou eram
das universidades públicas, conforme podemos
professores de escola pública ou possuíam alguma
apreender do estudo de Sampaio, Limongi, Torres
ligação com a família dos pesquisados – namorados
(2000). Além disso, um outro elemento a destacar
e namoradas –, além de outras situações como ami-
aparece bem configurado na trajetória de Mauro:
gos, cursinhos comunitários e a Igreja.
trata-se da oferta de um tipo determinado de cur-
Os pais dos entrevistados não possuíam
so, caro em termos da infra-estrutura, que exige e
aquilo que Bourdieu (1999, p. 44) julgou como
que não oferece retorno rápido em termos de lu-
um dos elementos mais importantes na composi-
cro, o que acaba afastando o ensino superior pri-
ção do capital cultural, qual seja, um capital de
vado. Após concluir um curso tecnológico na Fa-
informações sobre a dinâmica do espaço escolar.
culdade de Tecnologia de São Paulo – FATEC (ins-
Assim, o desconhecimento da USP pelos seus pais
tituição pública que possui cursos superiores gra-
esteve presente em todas as dezessete trajetórias.
tuitos de graduação tecnológica), pensava em fazer
A partir dessa evidência, conclui-se que há uma
Física em uma escola técnica federal; entretanto,
diferença gritante em relação ao “grupo padrão”, o
curso de Física e no horário noturno somente se-
típico ingressante da USP, cujos pais possuem
ria possível na USP. A universidade pública apa-
informação prévia sobre os tipos e posições dos
rece como único refúgio possível
cursos. Embora esse aspecto não possa ser toma-
Eu nunca prestei vestibular para escola particu- do como elemento explicativo único, é evidente
lar. Vou estudar na USP, na Unesp ou em alguma que constitui um dos trunfos diferenciadores para
dessas universidades públicas. (Jonas)
compreender o ingresso e a vivência no ambiente
Eu ia falar que a minha vida é igual à do Mauro,
assim... Não tinha condições financeiras também, universitário por diferentes indivíduos
e aqui, fosse bom ou fosse ruim, teria que ser
aqui mesmo, porque era o curso que eu quero, Como os meus pais são ignorantes, no sentido de

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era o único lugar que eu poderia fazer gratuita- não ter educação, então por eles eu não fiquei
mente. (Ana) sabendo não” (Jonas).
Eu fazia cursinho e as pessoas me perguntavam: Essa pergunta como que eu fiquei sabendo da
mas você não vai tentar outra faculdade? Eu fa- USP, como eu vim parar aqui, eu também vivia
lei: não, não dá. Eu até falei assim: não, eu vou me fazendo porque ... é difícil responder. Eu ve-
passar. (Robson) nho de uma família que a minha avó teve quinze
Pensei ... e agora? ... Eu era pobre, e o único lugar filhos, então eu tenho uma porrada de primos e
que eu podia fazer era na USP. Nem me preocu- eu sou a única na faculdade, absurdo. Então, na
pei se a USP era boa ou não era. (Mauro) minha família, faculdade (...) USP, pública, é algo
... quero fazer faculdade, mas não quero pagar. que ninguém comentava. Para minha mãe, eu
(Marcos) terminando lá o segundo grau [ensino médio]
‘nossa, que maravilha, minha filha terminou a
escola!’ (Clara).
Dependem de serviços considerados básicos Meu pai também nem sabia o que era a USP.
para uma vida estudantil: livros e uso de computa- ‘Ahhh, fiz escândalo de madrugada. Ah, tá bom,
vai dormir, vai dormir!’. Caramba, eu não estou
dor na universidade aparecem como importantes. entendendo. Aí quando começaram a contar para
ele ‘Nossa! Você estuda na USP, a minha amiga
Ou seja, quando articulamos esse fato com a “esco- falou que é a melhor faculdade que tem’. Ah,
lha” motivada pela gratuidade acima delineada, agora, agora que você se deu conta...” (Lúcia)
pode-se concluir que há um reforço do papel que A universidade aparece como algo mágico,
representa a existência da instituição pública, sem mítico, inatingível, sagrado, marcando, nos pla-

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nos simbólico e objetivo, fronteiras entre os que se trata de uma ruptura total entre essas duas situ-
conseguem ingressar nesse espaço e os que não ações, pois a USP correspondeu, ainda que não
obtêm êxito. Fazer parte de um local prestigioso, totalmente, às expectativas, permanecendo, de certo
tendo reconhecimento familiar e social, aparece modo, com sua “aura”; contudo, as ressalvas apa-
como uma sensação de ter alcançado o sublime. recem, esmaecendo, assim, a imagem idealizada
Jonas expressa nos seguintes termos “... a família,
As pessoas pensam que só tem coisas boas... Não,
não sei por que, mas os cunhados dão tapinha nas tem os seus problemas. Quando entrei, eu vi os
costas ... Você se sente bem com você mesmo ... Se seus problemas, só que boa parte das expectati-
vas que eu tinha em relação à universidade se
sente melhor quando você passa na USP.” confirmou (...) Problemas de acesso a laboratóri-
Esse caráter sagrado da imagem uspiana pro- os, recursos humanos, então, a universidade tem
carências que, aos olhos de quem está de fora,
vocou vários efeitos ainda na fase anterior à entra- acha que não tem. Acha que tem tudo, lá tem
da. Um primeiro é o juízo sobre a quase impossibi- tudo (Jonas).
Eu achava que era tudo certinho, que tinha re-
lidade de acesso dos alunos oriundos da escola cursos (...) Eu faço Letras e a gente vê a biblioteca
pública. Esses julgamentos9 são emitidos tanto por têm muitos livros, tudo bem, variedade, só que
tem pouco em relação à quantidade de alunos ...
alguns professores atuantes na rede de ensino, quan- As salas lotadas. Eu faço Espanhol, então, às ve-
to por alunos. Embora exista uma desvantagem gri- zes, você precisa ver filmes, ouvir, etc., volta e
meia os aparelhos estão quebrados. Então, é esse
tante em termos de preparação para a disputa com tipo de coisa que acaba manchando assim, né,
certas escolas particulares – não todas, pois há uma aquela imagem que a gente tinha antes, que tudo
era perfeito (Ana).
heterogeneidade entre elas –, esses juízos servem
como catalisadores para afastar do horizonte das
camadas populares as vagas das universidades pú- ENTRANDO: ethos do esforço e esforço
blicas. Porém, em contrapartida, despertou a luta descomunal
para superar obstáculos e conseguir a vaga
Que elementos lhes permitiram ingressar na
Os professores sempre diziam ‘ah, porque alu- USP? Quando relacionamos a socialização no âm-
nos de escola pública, vocês, por exemplo, não
vão entrar na USP. Porque vocês têm um ensino bito familiar que tiveram, o percurso no nível fun-
péssimo, não sei o que...’ Aí eu fiquei curiosa
para saber por que eu não poderia entrar. (Ana) damental e a trajetória ocupacional desses estu-
As duas pessoas que estavam apresentando [alu- dantes, alguns fatores foram fundamentais.
nos da USP que eram monitores em programa de Ao contrário dos achados de algumas pes-
visita], era um homem e uma mulher. O monitor
quisas sobre trajetórias de indivíduos de baixa ren-
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falou ‘oh, aqui, vocês de escola pública, é bastan-


te difícil entrar aqui’. Aí, a monitora já corrigiu da que conseguiram chegar ao ensino superior, as
‘É, mas não é impossível. Então ficou aquele de-
safio, aquela idéia de universidade, enfim, espa- quais apontam formas distintas de investimento
ço público, aí, dessa forma, já comecei a traba-
lhar daquela série [sexta-série] até o vestibular pedagógico como centrais para explicação – com-
nesse objetivo de entrar. (Antônio) pra de livros, compra de material didático extra,
concessão de tempo para dedicação aos estudos,
A partir da entrada na universidade, uma aposta total no primogênito por ter mais discipli-
nova imagem começa a ser desenhada, marcando na e desse modo conseguir melhor adaptar-se aos
certa atenuação do caráter mágico acima delinea- estudos (Lahire (1997); Sousa e Silva (2003) –,
do. Essa ponderação é desenvolvida a partir da percebe-se que é um ambiente familiar calcado em
vivência concreta dos problemas existentes. Não um ethos do esforço e responsabilidade que pro-
duziu configurações nas quais o estudo teve con-
9
Podemos, a partir de uma reelaboração, fazer uma analo- dições de exercer algum tipo de atração para esses
gia com o estudo feito por Bourdieu e Saint-Martin so-
bre “as categorias do juízo professoral”, levando em con- estudantes. Além disso, merecem destaque: certa
ta que tais julgamentos são feitos para o caso em tela estabilidade emocional, com liberdade para trilhar
antes da entrada desse grupo de indivíduos. Consultar
Bourdieu (1999, p. 126 -185). caminhos vários, sem imposições das carreiras a

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seguir; papel ativo de pais – sobretudo das mães – ... é por intermédio do tempo necessário à aquisi-
ção que se estabelece a ligação entre capital eco-
em incutir o gosto pela leitura; uma postura curio- nômico e o capital cultural (...) o tempo durante
sa e atenta bem desenvolvida; experiência em pro- o qual determinado indivíduo pode prolongar o
seu empreendimento de aquisição depende do
cessos seletivos às custas de “vestibulinhos” e pro- tempo livre que sua família pode lhe assegurar,
ou seja, do tempo liberado da necessidade eco-
vas em cursinhos comunitários, além de base pré- nômica, que é a condição de acumulação inicial
via adquirida seja em escolas técnicas estaduais – (Bourdieu, 1999, p. 76).
que geralmente se destacam na rede pública de
ensino – seja em cursos tecnológicos, o que os Como se resolve ou, ao menos, tenta se re-
auxiliou no desempenho das provas, sobretudo solver tal ausência de tempo? “Cria-se” algum tem-
nas disciplinas do ramo de Exatas, as mais seleti- po em horários destinados a outras rotinas diárias
vas no vestibular que fizeram. Junto a tudo isso, – hora do almoço, período após expediente, den-
destaca-se um grande esforço, um esforço desco- tre outros. A conseqüência mais imediata é uma
munal, marcado por sacrifícios de naturezas di- nova postura frente às atividades universitárias. É
versas, como conciliar trabalho e estudos, estudar exigido do aluno um novo e diferente grau de or-
nas férias, aos sábados, fazer cursinho após jorna- ganização, para que consiga executar os deveres
da de trabalho integral, ler no ônibus, aproveitar o solicitados a contento. Com efeito, o controle do
pouco tempo que sobra para estudar, “não ter vida tempo configura-se como elemento crucial, sob pena
social”,10 para fazer trabalhos da faculdade no fim de ser “engolido” pela grande quantidade de tare-
de semana. É a confluência de tais aspectos que fas, conforme expressa Mauro
foi determinante para a entrada desses estudantes
na Universidade de São Paulo. Você tem que arrumar algum tempo – na hora do
almoço, das 24:00 às 6:00 hs (...) você tem que ter
um nível de organização que, às vezes, você não
está acostumado a ter: esse tempo eu vou usar
para estudar, esse tempo eu vou usar para a famí-
ESTUDANDO: dificuldades e “força interna” lia, esse tempo eu vou para o serviço. Eu vivo
numa corda bamba com o tempo.

Uma série de dificuldades, tanto de ordem


material quanto cultural, aparece na vida desse tipo A distância da moradia de boa parte dos
de estudante. A maior delas é a falta de tempo pesquisados – em bairros afastados e alguns em
para dedicação às tarefas exigidas – leituras para municípios da Grande São Paulo – também se con-
os cursos de ciências humanas e trabalhos e rela- figura como uma das grandes barreiras enfrenta-

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tórios para os cursos de Ciências Contábeis e Físi- das pelos estudantes. Alguns, como Lúcia e Cla-
ca –, o que acaba interferindo, de modo decisivo, ra, tiveram de mudar e passar a pagar aluguel para
na consecução de um curso mais pleno. Tanto Karl residirem nas proximidades da USP, sob pena de
Marx, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, em terem de desistir do curso.
que contrastava o reino da necessidade marcado Se as dificuldades materiais remetem a trans-
pelo trabalho alienado e o reino da liberdade, em porte, alimentação, dinheiro para xerox, aquisição
que o tempo livre apareceria como recurso indis- de livros, dentre outras, as dificuldades simbólicas
pensável, quanto Pierre Bourdieu, em suas refle- ou culturais11 são mais sutis, pois ligadas à socia-
xões sobre os liames entre capital econômico e ca- lização no ambiente familiar e à trajetória peculiar
pital cultural, possibilitam-nos elementos essen- do indivíduo, e lidam diretamente com a inserção
ciais para a compreensão da fruição dos estudan- acadêmica em termos de novas tarefas a serem fei-
tes dos segmentos desprivilegiados da população, tas: textos escritos em línguas estrangeiras, semi-
marcados pela obrigação de ter de trabalhar para nários, trabalhos científicos e leitura de textos
sobreviver.
11
Essa distinção é para efeito analítico, pois, na realidade,
10
Expressão de Ana. há combinações complexas entre as mesmas.

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ESTUDANTES COM DESVANTAGENS ECONÔMICAS ...

acadêmicos, para o que se exige a compreensão de


questões teórico-metodológicas, premissas do au- Wilson: será que vale a pena continuar, apesar do
tor, idéias centrais de um texto, teorias divergen- balanço que vocês fizeram dos pontos negativos
e positivos do fato de estudar na USP? (...)
tes, dentre outros pontos correlatos. Carlos: realmente, tem horas que você treme, mas
você tem que buscar uma força interna para con-
Tem professor que fala assim: ‘tenho um livrinho tinuar. Éééé [Concordância geral]. Tem hora que
que é bibliografia básica, só que tem um proble- bate aquele desânimo ‘nossa, não agüento mais,
minha, é em francês’. Então, é uma dificuldade não tenho vida social’. Mas, a gente sabe que é
muito grande, porque espanhol nós lemos mui- importante continuar (Carlos).
to, dá pra levar, mas francês, inglês, eu tenho
uma dificuldade enorme (Jonas).
Literatura portuguesa usa muito francês. Agora,
a gente está no Simbolismo, tem muito Mallarmé FRUIÇÃO: o tempo entre a elite e o trabalhador
[poeta francês], tudo em francês. Então, o profes-
sor estava dizendo ‘gente, vocês já deveriam sa-
ber francês’, e a gente achou um absurdo, porque A falta de tempo, devido à necessidade de
eles acham que, pelo fato de a gente estar na USP,
supõe que você sabe inglês, francês, espanhol etrabalhar, produz uma clivagem entre o estudante
tudo (Ana).
que tem tempo, posto que não trabalha, tido como
... Marcos: o problema, às vezes, é que você tem
dificuldades para acompanhar algumas matéri- um indivíduo que pode aproveitar a USP mais
as mais técnicas na Geografia. Wilson: Destrincha
plenamente e, por isso, fazer um curso melhor,
mais esses problemas para mim. Marcos: São
cálculos. Nós temos algumas dificuldades com aprender mais.12 Aqui, temos uma fronteira objeti-
cálculos, algumas dificuldades com relações va bem delimitada entre os alunos da USP nos
químicas. Existe uma deficiência, porque o en-
sino médio é muito deficiente. Eu entrei aqui termos de Lamont e Molnar (2002), a qual acarreta
com essa deficiência e eu passei no vestibular da
Fuvest, vestibular normal que nem todo mundo diferenças incontornáveis no plano simbólico. Um
(...) Sensoriamento Remoto, a professora fala que
episódio ocorrido no primeiro ano, descrito pela
não vai levar a gente pro computador, porque
tem aluno que não sabe mexer no computador. Ana, marca a tensão entre o tempo livre para reali-
zação de um bom curso, sugerido por uma docen-
Eu tive, muitas vezes, que pegar aquele livro do
ensino médio, estudar novamente pra entender
alguma proposta, alguns exercícios de Cartogra-te, e a situação real dos alunos, na qual reina o
tempo escasso, devido ao trabalho integral diário:
fia, daquilo que, aparentemente, é básico no cur-
so. Eu tive que voltar e analisar, porque eu não
estava acompanhando, faltava, então, um pouco “... a professora falou: ‘gente, se vocês querem fa-
de base (Antônio). zer um curso bom de letras, vocês não podem tra-
A leitura não é aquela que você faz corrida; são
balhar’. A sala toda quase vaiou a professora, por-
teorias e, às vezes, você tem dificuldade para
entender em português, ainda mais uma língua que quase todo mundo, à noite, trabalha”.
que você não conhece (...) Os valores embutidos
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numa palavra você desconhece (Clara). Adauto emite juízo análogo ao da Ana,
quando diz que a falta de base em línguas – outra
Dos dezessete estudantes, apenas dois de- chave que permite distinguir a “elite” do estudan-
sistiram: Isabela abandonou o curso de ciências te desprivilegiado – acaba interferindo em um
contábeis e foi em busca de seu desejo, que é fazer melhor desenvolvimento do curso.
medicina. Robson, após obter uma promoção no
emprego, optou por abandonar o curso de histó- O professor mostrou isso para a gente, na classe.
Ele falou: ‘olha, isso aqui em francês não tem
ria. Dada a situação desgastante na qual estão inse- nada a ver com o que é traduzido, a idéia que o
ridos, onde há uma frágil conciliação entre jorna- cara tá querendo passar aqui é totalmente outra’.
Então, pra quem sabe o francês, vai se dar me-
da de trabalho e alto nível de exigência em uma lhor, vai fazer diferença (...) Então, por isso que o
universidade de prestígio, por que não desistem professor diz: ‘Ah, tá bom, não precisa se preocu-
par porque a gente dá em português’, mas ele tá
dos cursos? O que os leva a seguir em frente? O dando ali o último recurso (Adauto).
esforço para driblar as dificuldades que surgem
transforma-se no combustível capaz de mantê-los
12
na direção de completar o curso, às expensas de “... aquelas pessoas que não trabalham, acabam tendo
mais vantagens, acabam sabendo mais, porque pode se
muitos sacrifícios. dedicar” (Ana).

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Wilson Mesquita de Almeida

Carolina aponta, de modo claro, a diferen- elemento central para equacionar de forma mais
ciação interna entre os estudantes uspianos, inde- equilibrada o que aqui chamo de fruição.
pendentemente dos cursos que freqüentam, reba-
tendo fortemente no uso diferente que os mesmos
fazem desse espaço: PAPEL DA UNIVERSIDADE

A faculdade, ela é feita pra quem não precisa Se as desigualdades educacionais são pro-
trabalhar. A faculdade te oferece muita coisa (...)
Quando a faculdade oferece esse tipo de coisa e duzidas, substancialmente, em outros âmbitos, até
você não pode participar, te deixa muito chatea-
da (...) Essa menina, que é estudante de História que ponto a universidade pode intervir? Qual o
no vespertino e também assiste aulas à noite, por seu limite? Parece que a universidade ainda está
exemplo, ela já fez Iniciação Científica, estava
num grupo de um professor. Tem um outro, que distante de entender a parte que lhe cabe na pro-
também faz parte do grupo dela, um garoto ma- dução e reprodução das desigualdades. Conforme
grinho alto, tá no grupo desse professor, fazendo
pesquisa. São pessoas privilegiadas, elas têm apontou Villas Bôas
uma possibilidade, elas estudam no vespertino,
elas têm a noite inteira para poder desenvolver
os grupos, as leituras, pra tudo, porque são pessoas ... nos depoimentos colhidos, é recorrente a evoca-
que não precisam trabalhar – não estou falando ção de uma entidade impessoal, a sociedade ou o
que as coisas são fáceis por esse motivo, não sei da sistema, cujo funcionamento precário distribui
vida particular de cada um, mas, a partir do mo- mal os bens de renda, educação, justiça, etc., para
mento que você não tem esse compromisso de ter justificar as desigualdades entre os alunos. Não se
que trabalhar para se manter... (Carolina) considera o fato de que a universidade também
seleciona e partilha (...) A resistência dos docen-
tes não é a de encarar as desigualdades sociais,
mas, sim, de percebê-las dentro da universidade
Há um subgrupo de alunos formado por (2001, p. 111).
Adauto, Gilberto e Marcos, que têm a possibilida-
de de uma maior fruição da universidade quando A indagação acima leva a discussão para
contrapostos aos que trabalham em tempo integral uma análise sobre um olhar mais interessado dos
e não moram na USP. Assim, tempo e distância órgãos universitários em relação a alguns pontos.
aparecem como elementos importantes para apre- Primeiramente, aquilo que poderia ser denomina-
ender a dinâmica do uso do espaço universitário do a recepção ao aluno ingressante, no sentido de
pelos pesquisados. Afastam-se da maior parte por uma comunicação e fornecimento de informações
morarem na USP. Por outro lado, aproximam-se sobre os serviços existentes, sobretudo para aque-
dos outros, pois, embora trabalhem meio período les que poderiam ser de elevado auxílio, para es-

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ou possuam folgas no trabalho, reclamam por não tudantes socialmente menos favorecidos. Ponde-
poderem ir às atividades existentes devido ao tra- rando que a USP possui diversos serviços e pro-
balho. Gilberto expressa claramente: gramas, diferenças entre suas unidades, além do
interesse do próprio estudante em procurar intei-
Eu tenho o privilégio de morar aqui, eu moro no
CRUSP (Conjunto Residencial dos Alunos da rar-se a respeito do que existe para ajudá-lo, as
USP) né? Então, aos poucos, eu fui conhecendo evidências empíricas apontam um problema de
tudo o que a USP oferecia (...) Eu uso regular-
mente. Tem tudo o que você queira fazer (...) Te- integração e maior divulgação institucional. Isso
nho grandes críticas, porque eles só fazem nos influencia fortemente a possibilidade de fruição
horários que a gente não pode freqüentar. Os
simpósios ocorrem durante o dia, horário em que dos estudantes desfavorecidos, que têm, assim,
eu trabalho.
uma oportunidade subtraída

Embora o tempo seja variável central, não é Lúcia: No meu primeiro dia de aula, vim lá de
suficiente como explicação, pois importaria saber Itaquera [bairro da zona leste paulistana, a USP
fica na zona oeste]. Não é possível, gente, não
como melhor empregá-lo. Em conseqüência, a for- mostram nem uma sala de aula pra gente, é com-
mação anterior do indivíduo, seu background, nos plicado.
Marcos: O que a USP te oferece quando você está
termos de Bourdieu, um habitus, aparece como aqui?

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ESTUDANTES COM DESVANTAGENS ECONÔMICAS ...

Lúcia: É... Na fase anterior ao ingresso foi decisivo o


Marcos: Neste sentido, as bibliotecas, como se
usam?. papel dos pais e irmãos, amigos, namorado (a) e
Lúcia: É muita informação para uma pessoa se professores – alguns dos quais alunos da USP –
virar sozinha... que serviram tanto como incentivadores e mode-
Marcos: É muita coisa pra você que está entran-
do. los a serem seguidos, quanto passando orienta-
Lúcia: A verdade é essa: eles fazem de tudo pra ções. Apesar das múltiplas configurações, há o tra-
você se virar sozinho. ço comum que permite ligá-los e diferenciá-los de
Clara: Acho que a comunicação é muito grave
aqui, por exemplo, você entra e ... como isso se outros segmentos sociais: a falta de um capital fa-
dá, como acontece, de boca a boca. ‘Ah, que é miliar de informações sobre a universidade.
isso, amigo? Isso é pra todo mundo? Como que eu
faço?’ Você não sabe. Elementos como um ambiente familiar com
Gilberto: A estrutura é muito grande, você nun- certa estabilidade emocional, um olhar atento de
ca tem acesso a tudo, você nunca sabe de nada.
Eu estou no terceiro ano e tenho certeza de que pais que valorizavam a educação como ferramenta
tem muitas coisas que eu não conheço na USP. para mobilidade social, o papel de mães em incu-
Mário: É, eu também. tir o hábito de leitura desde a mais tenra idade,
Gilberto: E vou sair daqui sem conhecer.
uma trajetória relativamente segura durante o en-
Clara: Sem usar, sem saber que existe...
sino fundamental e uma confluência de fatores na
fase pré-vestibular – experiência em processos se-
Ao examinar das evidências, percebe-se que
letivos, base prévia obtida em cursos técnicos e
um olhar mais atento para essas ocorrências seria
tecnológicos, autodidatismo – permitiram-lhes con-
muito salutar, pois, sem ele, há um reforço às de-
seguir a vaga. Subjacente a esses elementos, que
sigualdades sociais, ao não reconhecer as
são variáveis de acordo com as trajetórias em ques-
especificidades de determinado segmento dentro
tão, há algo que os une desde a socialização primá-
da prestigiosa USP. Em outros termos, não se re-
ria até a vivência na universidade: um esforço
conhece a luta de muitos em busca da consecução
incomum para enfrentar duros obstáculos que se
de um “curso decente”, apesar de todas as adver-
põem à vista. Até mesmo quando são emitidos jul-
sidades, como expressa Clara:
gamentos negativos sobre suas chances na disputa
pela vaga – o que geralmente afasta muitos indiví-
Acho que poderia se discutir... Se preocupar um
pouco mais, que a realidade de nossa cidade, de duos com condições sociais desfavoráveis -, esse
nosso estado, de nosso país, ainda é outra, e mui- aspecto concorre para instigar-lhes a provar que
ta gente aqui tem que driblar um monte de situ-
ações para conseguir levar o curso; deveriam são capazes, acabando por servir como trunfo para
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pensar um pouco mais nessas pessoas.


o sucesso no vestibular.
Se eles não possuem vantagens sociais, há,
contudo, uma marca que serve como fulcro
CONCLUSÃO explicativo para esse grupo. Nos três eixos do es-
tudo, encontramos esse molde: seja na socializa-
Embora os dezessete estudantes se aproxi- ção primária, tendo como referência pais e irmãos,
mem em muitos pontos, existem também, entre eles, nos seus próprios trajetos ocupacionais, na traje-
muitas diferenciações e singularidades que não nos tória de ingresso e, por fim, nas suas vivências na
permitem considerá-los como um bloco homogê- universidade, onde convivem com duras dificul-
neo em quaisquer dos questionamentos abordados. dades para levar o curso adiante. Em todos esses
É preciso ressaltar essa ocorrência, a qual aponta momentos estão imbricados valores como deter-
para a complexidade presente no estudo desse tipo minação, independência, responsabilidade, matu-
de aluno. Assim, há clivagens bem demarcadas, ridade, postura pró-ativa, luta, bem amalgamados,
desde o momento em que passaram a obter infor- pois regularmente acionados. E é justamente esse
mações sobre a Universidade de São Paulo. traço que os capacita para o trabalho autônomo, o

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Wilson Mesquita de Almeida

“se virar”, marca preponderante das exigências uma diferenciação no interior da USP, mediada por
cotidianas no espaço universitário em questão. dois aspectos cruciais: tempo disponível e distân-
Assim, é como se houvesse, para esses estudan- cia da universidade. Uma pergunta permanece: até
tes, uma correspondência entre um esforço e um que ponto esses trabalhadores-estudantes “passam”
espaço que o requer. Nos termos de Bourdieu (2002, pela USP, apropriando-se apenas de uma parte
p. 167), uma prática. pequena do amplo “currículo aberto” que ela pos-
Porém há limites em suas experiências, bem sui? Um “currículo” que varia desde o uso em
nítidos, quando se problematiza o processo de toda plenitude dos livros e periódicos de uma bi-
“escolha” dos cursos: estão afastados das carreiras blioteca, até o contato mais estreito com professo-
mais disputadas – o que gera desejos interditados res. Não há elementos suficientes para responder
e compensações nem sempre felizes – e, ressalta- essa questão a contento, porém, temos indicativos
se, percorreram um longo e custoso caminho para que podem ser úteis: dispor de mais tempo, a par-
chegar aos cursos que fazem. tir das evidências coligidas, não é suficiente como
Antes do ingresso, cultivavam uma visão explicação. Outros momentos ainda precisam ser
idealizada desse espaço. A vivência como aluno mais considerados, como a trajetória específica do
propiciou uma visão crítica, expressa nos proble- indivíduo, sua formação e predisposição para va-
mas práticos enfrentados em suas respectivas uni- lorizar determinados aspectos disponíveis em uma
dades de ensino e nas restrições ligadas aos limi- universidade pública.
tes objetivos impostos pela condição social, den- Por fim, se a universidade não pode ser con-
tre as quais se destaca a necessidade de trabalhar, siderada uma instância que, por si só, resolverá
ocasionando a escassez de tempo para dedicação diferenças sociais, as evidências apontam que se
aos estudos. Além disso, um convívio com difi- faz necessário, da mesma forma, repudiar a visão
culdades econômicas e simbólicas veio à tona: no que a quer neutra, pois, quando ela não olha de
nível material, desponta a distância do campus, a modo mais interessado para as desigualdades que
falta do aporte financeiro para compra e xerox de estão sobre seu terreno, acaba intensificando as
livros, a utilização de computadores somente na disparidades previamente existentes. Em decorrên-
universidade e a consideração do restaurante uni- cia, após a investigação realizada, cada vez mais,
versitário como espaço importante. Na dimensão pode-se concluir que a permanência no ensino
propriamente cultural, aparecem dificuldades superior deve ser entendida como uma interação
como a falta de domínio de línguas estrangeiras entre condicionantes estruturais da sociedade e as

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para leitura, como diferencial do ponto de vista do ações conjunturais que estão ao alcance, dentro de
aproveitamento do curso, e, também, obstáculos seus limites, das universidades. Os resultados
ligados a uma base conceitual requerida para dar encontrados apontam que os órgãos universitários
conta das leituras que envolvem o contato com te- poderiam ter uma postura mais ativa. Sem isso,
orias científicas. A universidade é um novo local talvez, o debate atual sobre uma maior inclusão
de estudos que requer a aprendizagem – muitas social no ensino superior pode estar encobrindo
vezes feita de modo penoso – de novos tipos de uma de suas dimensões mais centrais, qual seja,
tarefas escolares, na maioria das vezes desconhe- que o conhecimento a todos oferecido é mais satis-
cidas por esses estudantes, como a apresentação fatoriamente apropriado apenas por alguns, como
de seminários, relatórios e trabalhos, as quais, bem expressou Adauto “A facilidade é essa: você
quando relacionadas com o alto nível de exigên- ter as coisas aqui perto. Por outro lado, nem tudo
cia, pedem uma habilidade para administrar um que está aqui perto está a seu alcance”.
tempo que já é exíguo, devido à necessidade
inadiável do trabalho para sobrevivência. (Recebido para publicação em novembro de 2006)
Nesse bojo se insere a fruição, a qual enseja (Aceito em abril de 2007)

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ESTUDANTES COM DESVANTAGENS ECONÔMICAS ...

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