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DOSSIÊ
EDUCACIONAIS E FRUIÇÃO DA UNIVERSIDADE
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ESTUDANTES COM DESVANTAGENS ECONÔMICAS ...
jamentos, alimentação, saúde, enfim, uma série de tratégias previamente definidas. Portes (2000) en-
atividades que levam alguns, às vezes de forma controu, como traços marcantes que ajudaram no
exagerada, a defender uma “sociologia dos estu- acesso, a presença de uma ordem moral domésti-
dantes” dentro do quadro das relações entre edu- ca, a atenção para com o trabalho escolar dos fi-
cação e sociedade (Bonnet; Clerc, 2001). lhos e a presença de professores responsáveis por
Os estudos dos países de língua inglesa es- orientá-los com as melhores opções para a garantia
tão mais centrados no acesso de estudantes – e de uma trajetória segura de escolaridade.
aqui, guardadas as diferenças, há uma possível Alguns dos estudos realizados, tanto no
aproximação com o contexto brasileiro2 –, já que Brasil quanto nos contextos francês e inglês, pro-
existe direção explícita do governo de ampliar a curavam chamar atenção para a permanência de
participação em pelo menos 50% dos jovens que estudantes oriundos das camadas populares no
estão na faixa de dezoito a trinta anos até o ano de ensino superior, ultrapassando o sentido usual de
2010, com a recomendação básica de que tais jo- propiciar condições mínimas para o não abando-
vens “necessitam ser recrutados de grupos no do curso. O que esses estudos propõem é uma
desfavorecidos, pois a participação entre jovens reflexão sobre o quê, efetivamente, esse estudante
oriundos de grupos da classe trabalhadora tem socialmente desfavorecido extrai de sua passagem
permanecido persistentemente baixa.” (Ross et al., pela universidade. Cumpre destacar o estudo de-
2003, p. 3). senvolvido por Villas Bôas (2001), em que a auto-
No Brasil, faz alguns anos, movimentos so- ra problematiza as desigualdades sociais na uni-
ciais, intelectuais, pesquisadores e gestores de polí- versidade. Além das dificuldades de acesso – res-
ticas públicas têm feito considerações sobre o aces- trições ao ingresso, hierarquia interna de carreiras
so restrito das camadas menos favorecidas da po- – há a emergência de distintas vivências e aprovei-
pulação ao ensino superior. Associado a tais dis- tamento do curso de acordo com as classes sociais
cussões, encontramos o debate atual sobre políticas às quais os indivíduos pertencem.
de ações afirmativas como cotas raciais e cotas soci- A pesquisa efetuada procurou deslocar o
ais, o qual tem dividido a opinião no país em pólos foco para a investigação de processos desiguais,
bem delimitados. Nesse quadro, pesquisas têm sido no nível de cada carreira, vivenciados pelos diver-
realizadas com o objetivo de melhor entender a luta sos indivíduos que nelas ingressam. Essas dife-
por acesso à universidade, sobretudo as públicas, renciações são produzidas mediante o
voltadas para esses segmentos.3 envolvimento com pesquisas, a apropriação de
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A partir das pistas teóricas abertas por Lahire equipamentos materiais, a realização de cursos
(1997), estudos foram realizados procurando com- extracurriculares, além de informações sobre pro-
preender o processo de chegada ao ensino superi- gramas de cunho formativo existentes no âmbito
or das camadas sociais desfavorecidas. Assim, da universidade. Procura-se integrar à análise do
Viana (2000) verificou os modelos socializadores acesso àquilo que poderia ser denominado, provi-
existentes nessas famílias. Como resultado, ao con- soriamente, de permanência efetiva, pois, além da
trário do “superinvestimento familiar” das cama- dimensão material apontada em vários estudos,
das médias, não havia, entre os entrevistados, es- incorpora discussões que perpassam fortemente o
trajeto do estudante: o que traz consigo em termos
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Em terras brasileiras, há uma proposta de aumento na de formação cultural valorizada pelo ambiente
faixa dos jovens de 18 a 24 anos – faixa considerada ideal
para a matrícula no ensino superior – para cerca de 30% universitário de que passa a fazer parte; a confron-
até o ano de 2010, conforme consta no Plano Nacional tação com métodos de ensino diferenciados, onde
de Educação. Atualmente, essa taxa encontra-se em tor-
no de 8 a 9%. podem ocorrer tensões, o aumento das tarefas es-
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Há uma variedade de denominações para dar conta des-
ses grupos: camadas populares, jovens pobres, setores colares que exigem uma postura mais independen-
de baixa renda, jovens trabalhadores, dentre outras. te; os constrangimentos emocionais ao marcar uma
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entrada em um universo distinto, tecido por in- em São Paulo, é preciso ressaltar que alguns des-
tensas mudanças – um novo espaço que rompe ses pais foram fortemente socializados no ambien-
com relacionamentos mais sólidos até então exis- te rural.
tentes em níveis escolares anteriores, uma sociabi- Ao analisar a trajetória ocupacional pater-
lidade mais fragmentada com os colegas. Em suma, na, depreende-se que seus pais possuem modes-
procura-se percorrer as rupturas e rearranjos que tos recursos econômicos e exercem profissões de
ocorrem quando da entrada e vivência na univer- status relativamente baixo. Porém ocupam ou ocu-
sidade, o que requer a reestruturação de alguns param cargos que garantiram uma certa regularida-
referenciais na vida estudantil. de salarial, em categorias tais como metalúrgicos,
motoristas, serralheiro e mecânico de autos. A tra-
jetória ocupacional da mãe apresenta um quadro
ESTUDANTES COM DESVANTAGENS SOCIAIS4 mais precário em termos de valorização social das
profissões, sendo que o trabalho informal, sem
Dezessete indivíduos dos cursos de Geo- registro, foi a tônica: das que trabalharam fora, a
grafia, Letras, História, Ciências Contábeis e Físi- profissão de doméstica foi predominante, seguida
ca foram pesquisados. A presença masculina com- de costureira, lavadeira e cozinheira.
parece com onze alunos, seguida de seis mulhe- Quanto à escolaridade, há uma predomi-
res. A cor5 branca é predominante, perfazendo dez nância de baixa escolarização, tanto materna quan-
pessoas, seguida de parda com quatro, negra com to paterna. Um capital escolar elevado dos pais,
duas e, por fim, um indivíduo que se declarou embora seja um dos principais trunfos utilizados
índio. Catorze pessoas estão solteiras, duas estão no espaço educacional, por si só não é sinônimo
casadas, sendo que um dos estudantes é casado e de escolarização bem sucedida dos filhos. Assim,
possui uma filha de três anos. Todos estudaram é preciso tentar compreender como esses pais li-
em escolas públicas. davam com a educação dos filhos, que importân-
A grande maioria é composta de filhos de cia davam às tarefas escolares, se ajudavam ou não,
migrantes vindos de estados do Nordeste e do in- e que meios mobilizavam. A baixa escolaridade dos
terior de São Paulo. Somente dois informantes pais não lhes permitia dar auxílio nos deveres da
possuem pais nascidos na cidade de São Paulo. escola. Como diz Clara “... não tinham instrução
Destaca-se a situação particular de Robson, Caroli- para esse tipo de coisa”. A despeito disso, um ele-
na e Adauto: eles nasceram, respectivamente, no mento que marca o olhar interessado – na maioria
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pais procuravam manifestar em suas relações com ve aos sábados e alguns domingos e feriados, como
os filhos uma conduta de valorização da escola. A é o caso de Carolina. Alguns trabalham desde muito
mãe de Mauro evidencia essa postura ativa “... ela cedo7 para seu sustento e ajuda no orçamento fa-
trabalhava em casa de família e ganhava muitos miliar.8 Em alguns casos, já constituíram suas
livros escolares. Lembro que tinha muita dificul- próprias famílias ou são responsáveis pelo orça-
dade nos primeiros anos em ditado. Ela pegava os mento da casa. Aproximam-se da definição feita
livros e me fazia treinar escrita.” por Hirano et al. (1987, p. 84):
Os irmãos tiveram presença marcante ao
servirem de modelos para alguns dos pesquisados. ... uma parte do alunado da USP apresentaria uma
condição institucional diferenciada, anterior à
Assim, quem formou culturalmente Gilberto – condição de estudante: é estudante sendo, antes
marcado pela ausência paterna desde cedo – foi de tudo, um trabalhador. Nesta situação, ele pode
ser responsável ou não pelo orçamento familiar.
um irmão que trabalhava como gerente de um res- Neste caso, ele pode ser pai ou apenas um mem-
bro dessa unidade familiar. [grifos meus]
taurante e “... tinha o hábito de trazer jornais para
casa. Foi quando aprendi a ler histórias em qua-
Logo, os alunos pesquisados podem ser
drinhos, esse meu irmão colecionava, e também
denominados trabalhadores-estudantes, possuin-
fazer palavras cruzadas”. Otávio sempre se
do uma dupla condição, ao combinar jornada lon-
espelhou na trajetória da irmã, que também fez
ga de trabalho e estudo à noite, diferenciando-se,
contabilidade na USP. Mauro também aponta seu
assim, de outros grupos de estudantes da USP:
irmão como referência fundamental: “... meu ir-
tanto em relação ao estudante dos anos sessenta,
mão mais velho estudou no Serviço Nacional da
que mantinha uma forte dependência econômica
Indústria - SENAI e ele sempre me incentivou a
da família, segundo a pesquisa de Foracchi (1965,
estudar. Num tempo em que ter um curso
1982), quanto de alguns grupos que somente se
profissionalizante era um fator de sucesso, isso me
dedicam aos estudos ou, mais decisivo para a si-
atraía para o estudo.”
tuação em tela, estão livres da necessidade inadiável
A trajetória no ensino fundamental também
de trabalhar para sobreviver.
possibilita um olhar mais apurado sobre algumas
Um outro aspecto explorado no decorrer da
clivagens entre os pesquisados. Alguns tiveram
investigação foi a “escolha” da universidade.Em
destaque no ensino fundamental, sendo vistos
outras palavras, por que a USP nos seus projetos e
como alunos-modelo: Antônio, Gilberto, Mauro e
desejos de vir a ser universitários? Em primeiro
Otávio. Os professores incentivavam Gilberto a
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camadas menos favorecidas ou “pobres” estão so- a qual muito dificilmente teriam a possibilidade
mente alocadas nas particulares e excluídas das de fazer um curso superior.
públicas. É exatamente o contrário: pelo fato de
ser gratuita, é lá onde o pobre, excluído,
desfavorecido, popular, de baixa renda, dentre INFORMAÇÕES, INCENTIVOS E IMAGEM
outras designações, pode ter guarida. Essa desco-
As informações e os incentivos para que ten-
berta confirma o que outras pesquisas já encontra-
tassem ingressar tiveram a participação de atores va-
ram sobre o perfil “menos privilegiado” do aluno
riados: irmãs, alunos da USP que na época ou eram
das universidades públicas, conforme podemos
professores de escola pública ou possuíam alguma
apreender do estudo de Sampaio, Limongi, Torres
ligação com a família dos pesquisados – namorados
(2000). Além disso, um outro elemento a destacar
e namoradas –, além de outras situações como ami-
aparece bem configurado na trajetória de Mauro:
gos, cursinhos comunitários e a Igreja.
trata-se da oferta de um tipo determinado de cur-
Os pais dos entrevistados não possuíam
so, caro em termos da infra-estrutura, que exige e
aquilo que Bourdieu (1999, p. 44) julgou como
que não oferece retorno rápido em termos de lu-
um dos elementos mais importantes na composi-
cro, o que acaba afastando o ensino superior pri-
ção do capital cultural, qual seja, um capital de
vado. Após concluir um curso tecnológico na Fa-
informações sobre a dinâmica do espaço escolar.
culdade de Tecnologia de São Paulo – FATEC (ins-
Assim, o desconhecimento da USP pelos seus pais
tituição pública que possui cursos superiores gra-
esteve presente em todas as dezessete trajetórias.
tuitos de graduação tecnológica), pensava em fazer
A partir dessa evidência, conclui-se que há uma
Física em uma escola técnica federal; entretanto,
diferença gritante em relação ao “grupo padrão”, o
curso de Física e no horário noturno somente se-
típico ingressante da USP, cujos pais possuem
ria possível na USP. A universidade pública apa-
informação prévia sobre os tipos e posições dos
rece como único refúgio possível
cursos. Embora esse aspecto não possa ser toma-
Eu nunca prestei vestibular para escola particu- do como elemento explicativo único, é evidente
lar. Vou estudar na USP, na Unesp ou em alguma que constitui um dos trunfos diferenciadores para
dessas universidades públicas. (Jonas)
compreender o ingresso e a vivência no ambiente
Eu ia falar que a minha vida é igual à do Mauro,
assim... Não tinha condições financeiras também, universitário por diferentes indivíduos
e aqui, fosse bom ou fosse ruim, teria que ser
aqui mesmo, porque era o curso que eu quero, Como os meus pais são ignorantes, no sentido de
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nos simbólico e objetivo, fronteiras entre os que se trata de uma ruptura total entre essas duas situ-
conseguem ingressar nesse espaço e os que não ações, pois a USP correspondeu, ainda que não
obtêm êxito. Fazer parte de um local prestigioso, totalmente, às expectativas, permanecendo, de certo
tendo reconhecimento familiar e social, aparece modo, com sua “aura”; contudo, as ressalvas apa-
como uma sensação de ter alcançado o sublime. recem, esmaecendo, assim, a imagem idealizada
Jonas expressa nos seguintes termos “... a família,
As pessoas pensam que só tem coisas boas... Não,
não sei por que, mas os cunhados dão tapinha nas tem os seus problemas. Quando entrei, eu vi os
costas ... Você se sente bem com você mesmo ... Se seus problemas, só que boa parte das expectati-
vas que eu tinha em relação à universidade se
sente melhor quando você passa na USP.” confirmou (...) Problemas de acesso a laboratóri-
Esse caráter sagrado da imagem uspiana pro- os, recursos humanos, então, a universidade tem
carências que, aos olhos de quem está de fora,
vocou vários efeitos ainda na fase anterior à entra- acha que não tem. Acha que tem tudo, lá tem
da. Um primeiro é o juízo sobre a quase impossibi- tudo (Jonas).
Eu achava que era tudo certinho, que tinha re-
lidade de acesso dos alunos oriundos da escola cursos (...) Eu faço Letras e a gente vê a biblioteca
pública. Esses julgamentos9 são emitidos tanto por têm muitos livros, tudo bem, variedade, só que
tem pouco em relação à quantidade de alunos ...
alguns professores atuantes na rede de ensino, quan- As salas lotadas. Eu faço Espanhol, então, às ve-
to por alunos. Embora exista uma desvantagem gri- zes, você precisa ver filmes, ouvir, etc., volta e
meia os aparelhos estão quebrados. Então, é esse
tante em termos de preparação para a disputa com tipo de coisa que acaba manchando assim, né,
certas escolas particulares – não todas, pois há uma aquela imagem que a gente tinha antes, que tudo
era perfeito (Ana).
heterogeneidade entre elas –, esses juízos servem
como catalisadores para afastar do horizonte das
camadas populares as vagas das universidades pú- ENTRANDO: ethos do esforço e esforço
blicas. Porém, em contrapartida, despertou a luta descomunal
para superar obstáculos e conseguir a vaga
Que elementos lhes permitiram ingressar na
Os professores sempre diziam ‘ah, porque alu- USP? Quando relacionamos a socialização no âm-
nos de escola pública, vocês, por exemplo, não
vão entrar na USP. Porque vocês têm um ensino bito familiar que tiveram, o percurso no nível fun-
péssimo, não sei o que...’ Aí eu fiquei curiosa
para saber por que eu não poderia entrar. (Ana) damental e a trajetória ocupacional desses estu-
As duas pessoas que estavam apresentando [alu- dantes, alguns fatores foram fundamentais.
nos da USP que eram monitores em programa de Ao contrário dos achados de algumas pes-
visita], era um homem e uma mulher. O monitor
quisas sobre trajetórias de indivíduos de baixa ren-
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seguir; papel ativo de pais – sobretudo das mães – ... é por intermédio do tempo necessário à aquisi-
ção que se estabelece a ligação entre capital eco-
em incutir o gosto pela leitura; uma postura curio- nômico e o capital cultural (...) o tempo durante
sa e atenta bem desenvolvida; experiência em pro- o qual determinado indivíduo pode prolongar o
seu empreendimento de aquisição depende do
cessos seletivos às custas de “vestibulinhos” e pro- tempo livre que sua família pode lhe assegurar,
ou seja, do tempo liberado da necessidade eco-
vas em cursinhos comunitários, além de base pré- nômica, que é a condição de acumulação inicial
via adquirida seja em escolas técnicas estaduais – (Bourdieu, 1999, p. 76).
que geralmente se destacam na rede pública de
ensino – seja em cursos tecnológicos, o que os Como se resolve ou, ao menos, tenta se re-
auxiliou no desempenho das provas, sobretudo solver tal ausência de tempo? “Cria-se” algum tem-
nas disciplinas do ramo de Exatas, as mais seleti- po em horários destinados a outras rotinas diárias
vas no vestibular que fizeram. Junto a tudo isso, – hora do almoço, período após expediente, den-
destaca-se um grande esforço, um esforço desco- tre outros. A conseqüência mais imediata é uma
munal, marcado por sacrifícios de naturezas di- nova postura frente às atividades universitárias. É
versas, como conciliar trabalho e estudos, estudar exigido do aluno um novo e diferente grau de or-
nas férias, aos sábados, fazer cursinho após jorna- ganização, para que consiga executar os deveres
da de trabalho integral, ler no ônibus, aproveitar o solicitados a contento. Com efeito, o controle do
pouco tempo que sobra para estudar, “não ter vida tempo configura-se como elemento crucial, sob pena
social”,10 para fazer trabalhos da faculdade no fim de ser “engolido” pela grande quantidade de tare-
de semana. É a confluência de tais aspectos que fas, conforme expressa Mauro
foi determinante para a entrada desses estudantes
na Universidade de São Paulo. Você tem que arrumar algum tempo – na hora do
almoço, das 24:00 às 6:00 hs (...) você tem que ter
um nível de organização que, às vezes, você não
está acostumado a ter: esse tempo eu vou usar
para estudar, esse tempo eu vou usar para a famí-
ESTUDANDO: dificuldades e “força interna” lia, esse tempo eu vou para o serviço. Eu vivo
numa corda bamba com o tempo.
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numa palavra você desconhece (Clara). Adauto emite juízo análogo ao da Ana,
quando diz que a falta de base em línguas – outra
Dos dezessete estudantes, apenas dois de- chave que permite distinguir a “elite” do estudan-
sistiram: Isabela abandonou o curso de ciências te desprivilegiado – acaba interferindo em um
contábeis e foi em busca de seu desejo, que é fazer melhor desenvolvimento do curso.
medicina. Robson, após obter uma promoção no
emprego, optou por abandonar o curso de histó- O professor mostrou isso para a gente, na classe.
Ele falou: ‘olha, isso aqui em francês não tem
ria. Dada a situação desgastante na qual estão inse- nada a ver com o que é traduzido, a idéia que o
ridos, onde há uma frágil conciliação entre jorna- cara tá querendo passar aqui é totalmente outra’.
Então, pra quem sabe o francês, vai se dar me-
da de trabalho e alto nível de exigência em uma lhor, vai fazer diferença (...) Então, por isso que o
universidade de prestígio, por que não desistem professor diz: ‘Ah, tá bom, não precisa se preocu-
par porque a gente dá em português’, mas ele tá
dos cursos? O que os leva a seguir em frente? O dando ali o último recurso (Adauto).
esforço para driblar as dificuldades que surgem
transforma-se no combustível capaz de mantê-los
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na direção de completar o curso, às expensas de “... aquelas pessoas que não trabalham, acabam tendo
mais vantagens, acabam sabendo mais, porque pode se
muitos sacrifícios. dedicar” (Ana).
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Carolina aponta, de modo claro, a diferen- elemento central para equacionar de forma mais
ciação interna entre os estudantes uspianos, inde- equilibrada o que aqui chamo de fruição.
pendentemente dos cursos que freqüentam, reba-
tendo fortemente no uso diferente que os mesmos
fazem desse espaço: PAPEL DA UNIVERSIDADE
A faculdade, ela é feita pra quem não precisa Se as desigualdades educacionais são pro-
trabalhar. A faculdade te oferece muita coisa (...)
Quando a faculdade oferece esse tipo de coisa e duzidas, substancialmente, em outros âmbitos, até
você não pode participar, te deixa muito chatea-
da (...) Essa menina, que é estudante de História que ponto a universidade pode intervir? Qual o
no vespertino e também assiste aulas à noite, por seu limite? Parece que a universidade ainda está
exemplo, ela já fez Iniciação Científica, estava
num grupo de um professor. Tem um outro, que distante de entender a parte que lhe cabe na pro-
também faz parte do grupo dela, um garoto ma- dução e reprodução das desigualdades. Conforme
grinho alto, tá no grupo desse professor, fazendo
pesquisa. São pessoas privilegiadas, elas têm apontou Villas Bôas
uma possibilidade, elas estudam no vespertino,
elas têm a noite inteira para poder desenvolver
os grupos, as leituras, pra tudo, porque são pessoas ... nos depoimentos colhidos, é recorrente a evoca-
que não precisam trabalhar – não estou falando ção de uma entidade impessoal, a sociedade ou o
que as coisas são fáceis por esse motivo, não sei da sistema, cujo funcionamento precário distribui
vida particular de cada um, mas, a partir do mo- mal os bens de renda, educação, justiça, etc., para
mento que você não tem esse compromisso de ter justificar as desigualdades entre os alunos. Não se
que trabalhar para se manter... (Carolina) considera o fato de que a universidade também
seleciona e partilha (...) A resistência dos docen-
tes não é a de encarar as desigualdades sociais,
mas, sim, de percebê-las dentro da universidade
Há um subgrupo de alunos formado por (2001, p. 111).
Adauto, Gilberto e Marcos, que têm a possibilida-
de de uma maior fruição da universidade quando A indagação acima leva a discussão para
contrapostos aos que trabalham em tempo integral uma análise sobre um olhar mais interessado dos
e não moram na USP. Assim, tempo e distância órgãos universitários em relação a alguns pontos.
aparecem como elementos importantes para apre- Primeiramente, aquilo que poderia ser denomina-
ender a dinâmica do uso do espaço universitário do a recepção ao aluno ingressante, no sentido de
pelos pesquisados. Afastam-se da maior parte por uma comunicação e fornecimento de informações
morarem na USP. Por outro lado, aproximam-se sobre os serviços existentes, sobretudo para aque-
dos outros, pois, embora trabalhem meio período les que poderiam ser de elevado auxílio, para es-
Embora o tempo seja variável central, não é Lúcia: No meu primeiro dia de aula, vim lá de
suficiente como explicação, pois importaria saber Itaquera [bairro da zona leste paulistana, a USP
fica na zona oeste]. Não é possível, gente, não
como melhor empregá-lo. Em conseqüência, a for- mostram nem uma sala de aula pra gente, é com-
mação anterior do indivíduo, seu background, nos plicado.
Marcos: O que a USP te oferece quando você está
termos de Bourdieu, um habitus, aparece como aqui?
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“se virar”, marca preponderante das exigências uma diferenciação no interior da USP, mediada por
cotidianas no espaço universitário em questão. dois aspectos cruciais: tempo disponível e distân-
Assim, é como se houvesse, para esses estudan- cia da universidade. Uma pergunta permanece: até
tes, uma correspondência entre um esforço e um que ponto esses trabalhadores-estudantes “passam”
espaço que o requer. Nos termos de Bourdieu (2002, pela USP, apropriando-se apenas de uma parte
p. 167), uma prática. pequena do amplo “currículo aberto” que ela pos-
Porém há limites em suas experiências, bem sui? Um “currículo” que varia desde o uso em
nítidos, quando se problematiza o processo de toda plenitude dos livros e periódicos de uma bi-
“escolha” dos cursos: estão afastados das carreiras blioteca, até o contato mais estreito com professo-
mais disputadas – o que gera desejos interditados res. Não há elementos suficientes para responder
e compensações nem sempre felizes – e, ressalta- essa questão a contento, porém, temos indicativos
se, percorreram um longo e custoso caminho para que podem ser úteis: dispor de mais tempo, a par-
chegar aos cursos que fazem. tir das evidências coligidas, não é suficiente como
Antes do ingresso, cultivavam uma visão explicação. Outros momentos ainda precisam ser
idealizada desse espaço. A vivência como aluno mais considerados, como a trajetória específica do
propiciou uma visão crítica, expressa nos proble- indivíduo, sua formação e predisposição para va-
mas práticos enfrentados em suas respectivas uni- lorizar determinados aspectos disponíveis em uma
dades de ensino e nas restrições ligadas aos limi- universidade pública.
tes objetivos impostos pela condição social, den- Por fim, se a universidade não pode ser con-
tre as quais se destaca a necessidade de trabalhar, siderada uma instância que, por si só, resolverá
ocasionando a escassez de tempo para dedicação diferenças sociais, as evidências apontam que se
aos estudos. Além disso, um convívio com difi- faz necessário, da mesma forma, repudiar a visão
culdades econômicas e simbólicas veio à tona: no que a quer neutra, pois, quando ela não olha de
nível material, desponta a distância do campus, a modo mais interessado para as desigualdades que
falta do aporte financeiro para compra e xerox de estão sobre seu terreno, acaba intensificando as
livros, a utilização de computadores somente na disparidades previamente existentes. Em decorrên-
universidade e a consideração do restaurante uni- cia, após a investigação realizada, cada vez mais,
versitário como espaço importante. Na dimensão pode-se concluir que a permanência no ensino
propriamente cultural, aparecem dificuldades superior deve ser entendida como uma interação
como a falta de domínio de línguas estrangeiras entre condicionantes estruturais da sociedade e as
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