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Com raríssimas exceções, pode-se dizer que hoje não mais existem veículos com uma
linha editorial. Essa coisa quase extinta é bastante difícil de se definir e as pessoas
praticamente não percebem quando ela está lá. Inconscientemente, os leitores mais
sensíveis sabem que determinado periódico tem uma "cara" com a qual eles se
identificam – mas, se perguntados, não saberiam defini-la de maneira objetiva. É um
troço assim e tal...
Várias são as causas da atual situação. Quando o veículo é rico ou poderoso (ou as duas
coisas), sofre com as pressões e sacrifica inevitavelmente a linha editorial. Pegue
qualquer semanário de grande circulação ou qualquer diário dos mais importantes. No
primeiro caso, são as publicações de maior tiragem (e, portanto, de maior influência),
assim devem contemplar os interesses do Brasil inteiro. Literalmente. É o último ato do
governo, a guerra de blocos aliados, a empresa que financia a sua existência, o evento
de algum fulano famoso, a fofoca para derrubar inimizades, o disco do amigo do alheio, a
carreira jornalística da filha do interventor etc. – gente da qual a revista depende e à
qual tem de atender, prontamente, no balcão.
No caso dos diários, é basicamente a mesma coisa – com a diferença de que eles não são
mais tão lidos (e influentes) como antes e, com as oscilações de preço do papel
(importado), são quase todos deficitários. Com a ascensão do audiovisual no século 20
(cinema, televisão, vídeo), a mídia impressa de massa par excellence ficou sendo a
revista (ilustrada) e não mais o jornal. Não é uma questão de gosto; é fato. Logo –
apesar das pressões, que ainda são fortes –, os diários podem elevar o nível um pouco
mais e se sacrificar menos do que o normal. Alguns espaços são tão ou mais disputados
do que nas revistas (vide as colunas sociais), mas são focos isolados e não a regra geral.
Cena clássica
O editor tem de sambar para encaixar o quebra-cabeça onde todas aquelas pressões,
mais esta (física, do centímetro quadrado), são válidas. Fora isso, tem de agüentar as
injunções do marketing – para quem o deus-mercado ou o deus-pesquisa é o único a ser
louvado. Se o leitor de hoje, digamos, se fixa em celebridades, vamos espalhá-las por
toda parte. No contra-ataque, as assessorias de imprensa fazem seu trabalho – isto é,
tirando as pressões internas (do próprio veículo) sobre o editor, as empresas que
trabalham com divulgação empurram seus releases e têm de emplacar matérias, afinal,
para isso são pagas.
Sim, o quadro é caótico. Imagine, nesse contexto, a cabeça do pobre do editor, tendo de
contentar a todos. Gregos e troianos, às vezes. Claro, nem todos os editores nominais
editam de verdade. É bastante comum a figura do editor-celebridade, que, por mais que
você ligue na redação, ele nunca está lá – perdido entre eventos, viagens e almoços
intermináveis. E esses tipos são necessários; conferem glamour aos periódicos. Aí sobra
para o editor-assistente ou para o editor-adjunto, que é quem edita de verdade.
Resumindo a ópera, o leitor. O leitor abre, no outro dia, o jornal ou a revista e não
entende nada. O caderno ou a seção estão cada vez mais retalhados, coalhados de
notinhas, entulhados de adendos gráficos, sem respeito pelo projeto, numa balbúrdia que
em vez de captar a sua atenção só faz dispersá-la. Mais e mais. Por conseguinte, na
próxima edição, o veículo vai ter de gritar ainda mais para se comunicar com o leitor e,
novamente, vai ser tanto ruído e tanta estática que não vai conseguir nada... – e assim
caminha a humanidade.
Lógico que, quando eu não conhecia esse jogo todo, como leitor sensível, apenas podia
reclamar. Com o tempo, fui entrando nos meandros, ouvindo as confissões de editores
vários, e tirando minhas conclusões pessoais. Não é fácil.
Primeira sangria
Um exemplo prático: quando uma empresa (de cultura, que é a minha área) se dispõe a
anunciar, imagina anúncios em revistas e permutas em sites. Alguém lá atrás (e a
própria internet tem culpa) convencionou que ações na web são feitas de graça mas que,
para ações na imprensa impressa, é necessário pagar...
Outro exemplo prático: quando uma editora ou publicação em papel convida um site ou
autor da internet para colaborar, inicialmente, não pensa em pagar – afinal de contas, na
web, os projetos são majoritariamente colaborativos, no sentido de que a produção de
conteúdo, sobretudo em publicações independentes, é feita na base do investimento,
supondo uma remuneração ou um trabalho futuros, que compensem aquela aposta etc. e
tal... –, então, você vai cobrar?
Para complicar, paira a crença de que a internet deve, por definição, ser anárquica e que
ao editor resta apenas a imolação no "altar de sacrifícios" da liberdade de expressão.
Particularmente, não acredito nesses preceitos e nem rezo por essa cartilha. A mim me
parece suficientemente razoável que se eu acreditasse na consagração individualista dos
blogs e na orgia perpétua dos comentários, teria, há muito, desistido do Digestivo
Cultural (www.digestivocultural.com). Depois da primeira sangria aqui, em 2002, houve
uma grita geral no sentido de se proclamar o fim das revistas eletrônicas e a apoteose
dos blogueiros em fúria. Aconteceu, porém, que esses mesmos blogueiros, anos depois,
quiseram virar papel e, ao tomar contato com livros, revistas e jornais, lá estavam,
indefectíveis,... os editores.
Claro que o mundo não vai acabar. E claro que não penso que o jornalismo está morto. A
situação é, efetivamente, calamitosa na grande imprensa, para o editor. E não estou
afirmando isso por motivo de inveja ou porque quero que o circo lá pegue fogo. Estou
apenas retransmitindo pontos de vista de gente de dentro (insiders) – como Israel do
Vale, ex-editor-assistente do caderno "Ilustrada", da Folha. Israel, atualmente no
site Cultura e Mercado (http://culturaemercado.terra.com.br/), proclamou aos quatro
ventos, na televisão, que enxerga uma grande mídia inevitavelmente condenada à
"agenda" e à "promoção de produtos", e que avista uma internet promissora (hoje, a seu
ver, muito mais interessante, por exemplo, em matéria de jornalismo cultural – sua
área).
E para usar uma metáfora bastante comum na Grande Rede, é como se tivéssemos
voltado à era das grandes navegações. Virtuais... Uns poucos revelaram continentes e
ganharam fortunas. A maioria ficou à deriva e teve seu barco afundado. Outros
continuam... Descobrem uma ponta de terra, exploram, regressam à metrópole. Eu devo
ser um desses loucos. Algo me diz, contudo, que os ventos finalmente sopram a favor do
editor.
Disponível em [http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=316JDB005]
Acessado 14/02/2011