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Resumo: Este artigo se propõe a resgatar a memória da primeira Rádio FM do Estado do Rio
Grande do Norte, a 96 FM – Rádio Reis Magos, e refletir como suas experimentações, erros e
acertos contribuíram para o desenvolvimento do rádio FM local e delimitaram um espaço
referencial que se firmou como meio técnico-informacional no mercado radiofônico potiguar.
O presente trabalho propõe-se a fazer uma análise e identificação das linguagens específicas
usadas pela Rádio 96 FM como articuladoras de processos de vínculos identitários. Para tanto,
recorremos ao Estudo de Caso como metodologia para análise do recorte temporal que
compreende os últimos 29 anos (1981-2010), valendo-se, entre outras formas de abordagem
do objeto de pesquisa, da História Oral como procedimento para coleta de dados, uma vez que
não existem documentos que abordem a história da emissora em baila.
1 - HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Ed. Vértice/Editora Revista dos Tribunais, 1990.
sendo permeados por pontos de vista e idéias dos indivíduos com os quais nos relacionamos
em grupo.
Eu era adolescente, mas lembro bem. Esses homens, entre eles meu pai, se reuniam
e só falavam em conseguir uma rádio. Eram eles: Silvino Sinedino de Oliveira,
diretor administrativo do Diário de Natal; Afonso Laurentino Ramos, Aurino
Suassuna, e Gilson Felipe de Souza, ambos do Grupo Marpas – importante
concessionária de automóveis na época; Jairo Procópio de Moura, cartório do 1°
ofício de notas da Natal, Luiz Maria Alves, superintendente do Diário de Natal e
4
Expedito Mendes de Rezende, que chegou a trabalhar na rádio.
2 FM no Brasil 1970-1979: crescimento incentivado pelo regime militar. Comunicação & sociedade, São
Bernardo do Campo: Instituto Metodista de Ensino Superior, ano 12, n.20, p 144, dez. 1993.
3 Disponível em HTTP://www.campinafm.com.br.
4 SINEDINO, Michelle. Entrevista concedida a Silvio Henrique Felipe Ribeiro. Natal. 2010. Não publicado.
Após a liberação por parte do Ministério das Comunicações, no dia 28 de dezembro de
1981 entra no ar a primeira emissora FM do Rio Grande do Norte: a Natal Reis Magos, na
frequência de 96,7 MHz. Praticamente sem nenhuma estrutura física, a Reis Magos era
dividida em duas partes: a estrutura de transmissão, ou seja, o estúdio “A” e o estúdio de
gravação, que funcionavam ao lado dos estúdios da antiga Rádio Poti, no prédio dos Diários
Associados – e a estrutura de produção, que funcionava em uma sala do Edifício Cidade do
Natal, na Avenida João Pessoa.
A primeira equipe era formada por dois noticiaristas, Liênio Trigueiro (já falecido) e
Josenildo Caldas (ainda hoje na 96), e dois sonoplastas, Marco Araújo e Gilvan dos Santos.
Nos meses seguintes, Tim Kawasaki e José Eudo – ambos vindos do rádio AM natalense –
foram os primeiros locutores/apresentadores. Liênio Trigueiro e Josenildo Caldas passaram a
apresentadores em um segundo momento. Inicialmente, a programação musical, toda
comprada à Rádio Caetés de Recife – PE, era veiculada em fitas 1/4". Em 1983, Epitácio
Faustino e Passos Júnior são contratados pela Reis Magos para gravar, em rolos, a
programação produzida por Stênio Dantas e Ênio Sinedino, que larga o tráfego, dedica-se à
parte musical da rádio e insere as primeiras experimentações de programação local.
A rádio não produzia uma programação local. Nós recebíamos as fitas da Rádio
Caetés de Recife – PE. Minha primeira função foi tráfego. Eu buscava essas fitas
nos Correios e levava para a produção tocá-las alternadamente. Lembro-me que,
nessa programação da Caetés, algumas músicas eram conhecidas, mas outras
absolutamente desconhecidas. E isso gerava uma vontade de tocar músicas
conhecidas do público natalense, como o forró. Outro fator determinante para a
rádio produzir uma programação local é que eu observava que quando tocava
músicas de discoteca nas boates de Natal, um ou dois casais estavam dançando, mas
quando tocava forró o dancing enchia rapidamente. Eu pensei, e no rádio FM, será
que o forró também não será ‘reconhecido’? Foi ai que inserimos forró na
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programação.
Os primeiros anos da década de 1980, no que diz respeito ao rádio FM natalense, podem
ser considerados conservadores. Veiculava-se uma programação à base de música popular
5 SINEDINO, Ênio. Entrevista concedida a Silvio Henrique Felipe Ribeiro. Natal. 2010. Não publicado.
brasileira, música internacional e até música instrumental que remetia às primeiras
programações de rádio FM dos grandes centros do país. Segundo o programador Epitácio
Faustino, um dos mais antigos funcionários da emissora, os primeiros programas da 96 FM
foram “Isto é Samba, Isto é Nosso”, veiculado das 06:00 às 07:00h; “Estério Espetacular” (um
programa só com músicas instrumentais), veiculado das 12:00 às 13:00h e “MPB Especial”,
no ar das 17:00 às 18:00h. Os nomes desses programas denotam como era a postura do nosso
FM naqueles anos. Cabe lembrar que o momento inicial da freqüência modulada no Brasil
trazia consigo um rótulo de “rádio dos ricos”. A revista Veja, em dezembro de 1970,
exemplifica bem como era, nos primeiros anos, o FM brasileiro.
Só existem dois sons tão caros e tão bons: o do melhor gravador estereofônico e da
Difusora Frequência Modulada. Pelo tipo de ouvinte da Difusora, 10 milhões por
um bom gravador não é muito, afinal. Mas deixar o ponteiro nos 98,5 da Difusora
FM é bem mais fácil. A Difusora FM opera numa faixa onde não há concorrência.
As músicas são selecionadas para pessoas ricas e inteligentes. Os espaços
comerciais foram vendidos somente a 20 clientes: aqueles que têm o que dialogar
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com pessoas desse tipo. Sintonize a Difusora FM. Não custa um tostão.
É fato que, até 1986, a Reis Magos era a única emissora FM de Natal. O pioneirismo da
rádio, por si só, introduz naturalmente um conceito de referência em FM na capital potiguar.
Foram cinco anos ditando “o que se deveria fazer em frequência modulada” na cidade de
Natal. Somente em 1° de dezembro desse ano é que surge a segunda emissora FM, a Rádio
Cidade do Sol (94,3 MHz). Após seu surgimento, alguns profissionais da 96 FM, dois
locutores e um programador musical, são contratados pela a Rádio Cidade e aplicam suas
experiências adquiridas na nova emissora.
É neste mesmo ano que a Reis Magos transfere-se para um prédio próprio, na Avenida
Deodoro da Fonseca, no bairro de Petrópolis. Também é a partir daí que a rádio decide
produzir toda a programação em Natal. Ênio Sinedino, assume a direção artística, passa a ser
programador musical e ajuda a estruturar uma nova equipe. A rádio investe em equipamentos
de estúdio, amplia a discoteca e reformula a equipe de locutores. Passam a fazer parte da
6 A RÁDIO DOS ricos. Revista Veja, São Paulo: Abril, ano 3, n. 118, p.84-5, 9 dez. 1970.
grade de locução: Ricardo Motta, Fran Silveira, Gibson Melo, Neuzinha Farache, Flávio
Leandro, Jorge Luiz e Rô Medeiros, além de Josenildo Caldas e Tim Kawasaki, esses desde o
início da rádio.
Em uma dessas viagens ao sudeste, Ênio conhece Antonio Augusto Amaral de Carvalho
Filho, conhecido como Tutinha, dono e diretor da Rádio Jovem Pan de São Paulo. Com o
contato estabelecido, as influências do chamado rádio jovem inevitavelmente chegam a 96
FM. A partir de então, as vinhetas – em sua maioria cantada, os temas, a locução, as
promoções, tudo na rádio ganha um roupagem mais jovem. Mas as “falas” dos locutores e a
programação musical continuam direcionadas para todas as classes sociais. A 96 FM continua
falando para todos, mas, a partir de agora, de uma maneira mais jovem. É ai que surge o
primeiro slogan: “96 FM, Jovem Como Você”.
7 KAWASAKI, Tim. Entrevista concedida a Silvio Henrique Felipe Ribeiro. Natal. 2010. Não publicado.
Com uma produção musical focada no popular, mas com influências do rádio pop nas
vinhetas e na locução, a 96 FM estabelece uma nova definição artística a ser trabalhada na
emissora: um rádio popular com uma essência bastante jovem. Se, até então, rádio popular e
rádio pop estavam em extremos distantes, ou seja, tais modalidades caracterizando uma
dicotomia de segmentos radiofônicos específicos bem definidos, a 96 FM aproxima e mescla
esses conceitos gerando uma nova postura artística bastante aceita pelo mercado potiguar,
tendo em vista os bons índices de audiência conseguidos pela rádio durante toda sua
existência.
Paralelo a isso, conceitos de juventude, alegria, patriotismo, entre outros, foram inseridos
nas falas para produzir certos efeitos junto ao ouvinte e causar vínculos identitários.
Observam-se aplicações nesse sentido em, por exemplo, temas produzidos pela 96 FM. O
tema da copa do mundo de 2006, com duração de um minuto e nove segundos, diz na letra
“Vai meu Brasil com fome de bola, com muita raça e muita emoção, com toda ginga, com
todo riso que existe dentro do coração. Vai meu Brasil com muita alegria, esse caneco ta na
mão. Vai meu Brasil com peito, com garra, arrebenta seleção. Mostra essa força tão brasileira,
vai com coragem e decisão. Copa do mundo é na 96 FM”. Ao cantar esse tema, e isso é bem
provável – já que algo desse tipo é veiculado em média seis vezes ao dia durante os trinta dias
que antecedem o evento – o ouvinte “se insere” no clima do mundial de futebol e passa a
enxergar a possibilidade de uma boa campanha por parte da seleção brasileira de futebol. O
termo “meu Brasil” cantado no tema passa a ser entendido como o “Brasil” de cada ouvinte
específico. Havendo personificação da mensagem, é a seleção brasileira “de João”, “de
Lucas”, “de Maria”, etc. que vai à copa, e não somente a seleção do país ou a seleção “da 96”.
Outros vínculos identitários foram estabelecidos a partir do uso de vinhetas por parte
dos locutores da 96 FM. O precursor foi o locutor Flávio Leandro, que, em 1986, recebeu um
presente de seu pai, o escritor e publicitário Nei Leandro de Castro: uma vinheta gravada na
produtora de áudio Tape Spot do Rio de Janeiro, que cantava “Flávio Leandro – A Voz do
Som Maior”. Logo os demais locutores também produziram suas vinhetas e, com o uso
sistemático, passaram a ser mais facilmente reconhecidos pelo público ouvinte.
Na defesa dos Atos de Fala, Austin faz uma distinção entre enunciados performativos,
como sendo aqueles que realizam ações porque são ditos, e os enunciados constativos, que
realizam uma afirmação, confirmam algo. Dando seqüência a sua defesa dos Atos de Fala,
8 Austin, J.L. Quando dizer é fazer – palavras e ações. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990
Austin propõe separar os níveis de ação lingüística por meio dos enunciados surgindo assim
os atos locucionários que consistem em enunciar cada elemento lingüístico presente na frase;
os atos ilocucionários são aqueles que se realizam na frase, ou seja, refletem o
posicionamento do locutor em relação ao que foi dito; e por último, os atos perlocucionários
que por sua vez não se realizam na frase em si, mas pela frase, no caso, são os efeitos
causados pela mensagem.
Diante do exposto, vimos que dirigir ao público mensagens como “96, a FM” (afirma
que a única FM é a 96) e “96 FM, Jovem Como Você” (afirma que as outras rádios não
atendem ao seu perfil e/ou estado de espírito de ser jovem) caracterizam a presença dos atos
ilocucionário e perlocucionários agindo simultaneamente, pois essas mensagens não só
informam o nome da rádio com intuito de fixar a freqüência na memória do ouvinte como
também agem sobre o ouvinte provocando-o a permanecer na programação de maior
audiência porque teria uma identidade jovem.
Durante a execução deste trabalho, foi possível presenciar o início de um novo desafio
para a 96 e para o rádio FM potiguar. “Nós já estamos com um transmissor digital no ar desde
10
os primeiros dias de maio. Agora são ajustes e esperar a digitalização” .
9 Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística. Pesquisa realizada na cidade de Natal/RN, entre os dias
09 e 16 novembro de 2009.
10 Boy, Bill. Entrevista concedida a Silvio Henrique Felipe Ribeiro. Natal. 2010. Não publicado.
tanto no campo técnico como no campo da linguagem. Experimentações que se legitimaram
como uma forma vencedora de se fazer rádio em freqüência modulada.
REFERÊNCIAS
AUSTIN, J L.Quando dizer é fazer – palavras e ações. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990
BARBOSA FILHO, André (Org.); PIOVESAN, Angelo (Org.); BENETON, Rosana (Org.).
Rádio: sintonia do futuro. São Paulo: Paulinas, 2004
LE GOFF, Jacques, História e memória; tradução Bernardo Leitão ... [et al.] -- Campinas, SP
Editora da UNICAMP, 1990