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JOGOS DO SENSÍVEL NA HISTÓRIA DA MÍDIA: O CASO DA RÁDIO

IGUAÇU – AM 670

*Edgard Cesar Melech ¹

Resumo

Este artigo se propõe a analisar o fim arbitrário da rádio de maior audiência da cidade de
Curitiba no ano de 1977, bem como, entender e contextualizar esse fato através da
identificação de estratégias mobilizadas de processos estéticos enquanto experiências
políticas e midiáticas. Para a discussão teórica tomaremos a perspectiva de Jacques
Rancière, a partir do que ele determina como a partilha do sensível e das relações que
estabelece nesse campo de estudos, a fim de tentar estabelecer conexões e
temporalidades que ajudem no esclarecimento de um dos momentos mais importantes
da história da mídia paranaense.

Palavras-chave: história do rádio; regime militar; políticas de comunicação.

GAMES OF SENSITIVE IN THE MEDIA HISTORY: THE RADIO CASE


IGUAÇU - AM 670

Resume

This article aims to analyze the arbitrary order highest-rated radio of the city of Curitiba
in 1977, as well as understand and contextualize this fact by identifying mobilized
strategies of aesthetic processes as political and media experiences. For theoretical
discussion will take the prospect of Jacques Rancière, from what it determines how the
distribution of the sensible and the relationships you have in this field of study in order
to try to establish connections and time frames to help in clarifying one of the most
important moments the history of Paraná media.

Keywords: radio story; military regime; communication policies.

*Professor do Departamento de Comunicação da UNICENTRO/PR; doutorando em Comunicação e


Linguagens na UTP-PR; mestre em Comunicação Social pela UMESP; líder do grupo de pesquisa
NECCS da Unicentro. E-mail: edgardmelech@gmail.com
Introdução

O regime autoritário que governou o Brasil entre 1964 e 1985 causou forte impacto
sobre os meios de comunicação, obrigando as rádios e seus profissionais a enfrentarem
grandes dificuldades para sobreviver nesse período. Nesta perspectiva, pretendemos
relatar acontecimentos ocorridos em um contexto em que o rádio ainda era o único meio
eletrônico de comunicação, por isso capaz de levar multidões ao delírio, provocar
lágrimas e até mesmo catarse coletiva, sobressaindo enquanto mídia de entretenimento,
mas também um poderoso instrumento político e cultural.

Tudo começa quando uma concessão fora outorgada a um grupo de políticos e


empresários liderado pelo governador Moyses Lupion, que em 1947 fundou a Rádio
Sociedade Guairacá Ltda, ZYM-5, a quarta emissora do estado. Conhecida na época
como “a voz nativa da terra dos pinheirais”, deixou sua marca com uma programação
artística e jornalística regionalizada, conforme destaca o radialista Paulo Branco, que
ocupava na época o cargo de diretor da emissora:

Com transmissores no bairro do Guabirotuba e torre no Corte Branco (hoje


Atuba), os estúdios e a administração da emissora já ocupavam todo o andar
superior do amplo sobrado da Rua Barão do Rio Branco nº 167, esquina com a
José Loureiro, sobre as Lojas Hermes Macedo. No topo da escadaria de acesso,
no salão de recepção, tinha destaque a imagem-símbolo da ‘Voz Nativa da Terra
dos Pinheirais’: o cacique Guairacá, com o seu bastão, que se tornara célebre no
episódio em que expulsou os invadores do território paranaense com uma sonora
pancada no chão e a histórica frase: ‘Esta terra tem dono!’ (BRANCO, 2008).

Com investimento pesado em estrutura e produção cultural, a Rádio Guairacá alcançou


grande popularidade, e seu sucesso e prestígio foi ainda maior porque tinha uma
programação repleta de conteúdos regionais que agradavam os mais variados gostos:

O fato é que, seus 10kw de potência (uma fábula para a época) a nova emissora
já nasceu grande. Com uma programação eclética e ‘cast’ próprio – que incluia
locutores, apresentadores, noticiaristas, técnicos de som, produtores, equipe de
esportes, atores e atrizes, cantores, humoristas e até uma orquestra completa,
regida pelo maestro Bento Mossurunga - a ‘Voz Nativa da Terra dos Pinheirais’
mandava ao ar, pelos 560kc, música notícia e diversão, em programas de estúdio
(eram três) e de auditório, novelas, reportagens e jornadas esportivas. Uma de
suas principais estrelas era a dupla caipira Nhô Belarmino e Nhá Gabriela, que
fazia a festa aos domingos em ‘A Feira da Alegria’ (BRANCO, 2008).

Entretanto, o advento da TV no estado gerou um novo período na história da mídia


regional, minando a exclusividade radiofônica e alterando um quadro que até aquele
momento parecia estável. Nas décadas de 60 e 70 os grupos midiáticos declaradamente
apoiados por presidentes generais tiveram mais condições de crescer, enquanto de outro
lado expandiu-se o processo de enfraquecimento das emissoras regionais e a insolvência
daquelas que não tinham tiveram aval político para continuar suas atividades. No final
da década de 60 essa crise atingiu a Rádio Guairacá, que perdeu elenco, anunciantes e
acabou fechada.

Um recomeço de sucesso, mas perigoso

Após pouco mais de uma década o empresário e político Paulo Pimentel adquire os
direitos de concessão da Rádio Guairacá, que apesar de ter ficado bom tempo fora do ar,
deixara uma marca indelével junto ao público curitibano. Desse momento em diante a
emissora assumiu o título de Rádio Iguaçu AM 670, e passou a fazer parte de um grupo
formado também por emissoras de TV (que retransmitiam o sinal da TV Globo) e uma
rede de revistas e jornais impressos de grande circulação diária no estado.

O sucesso dessa “nova” rádio foi quase imediato, pois com uma programação que
pretendia atingir principalmente um público mais jovem, inovações nos programas
jornalísticos e musicais com vinhetas e chamadas eletrizantes, fazia seu conteúdo
destoar das concorrentes.

Desta forma, a criação da Rádio Iguaçú fez parte de uma estratégia que pretendia
reforçar o poder político regional do ex-governador e seus aliados. A aquisição dos
direitos da antiga Guairacá fora importante porque esta havia deixado profundas raízes
junto à população curitibana. Pouco tempo depois de reaberta assumiu a liderança da
audiência, na medida em que, num contexto político favorável, lançou projeto capaz de
conquistar os ouvintes com uma programação cuja proposta era ser atrativa e inovadora.
Tratou-se de um projeto de ascensão política que procurava além de ganhar mais
audiência, também a contar com o apoio das camadas mais jovens da população.

Este recém-criado veículo pretendia incorporar a popularidade da antiga Rádio


Guairacá, emissora que mantinha um auditório no centro de Curitiba para a realização
de programas populares nas décadas de 40 e 50. Além disso, ao desenvolver conteúdos
direcionados a uma faixa etária jovem, esta soube aproveitar as novas ondas musicais
das décadas de 60 e 70 e, apesar de já não contar com os famosos programas de
auditório, fez sucesso devido a uma programação incrementada por uma produção
técnica criativa, eficiente e relativamente avançada para uma época em que as AMs
ainda não haviam chegado à cidade.

Jogos do poder midiático – a conquista do sensível

Ao procurar-se entender e contextualizar a história do rádio no Paraná, mais


especificamente o fechamento arbitrário da Rádio Iguaçú, busca-se identificar formas de
disseminação de estratégias mobilizadas num processo estético enquanto experiência
política e midiática. A partir do problema discutido neste artigo, observa-se um jogo de
poder em que diferentes sujeitos assumem papéis de acordo com vínculos políticos,
econômicos ou pessoais.

Para isso serão consideradas perspectivas de Jacques Rancière, a partir do que esse autor
determina como “a partilha do sensível” e das relações que estabelece entre política e
estética, a fim de obter inter-relações que possam contribuir com a temática aqui tratada.

Para Rancière, a partilha do sensível é o sistema de evidências sensíveis que revela, ao


mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e
perspectivas:

Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado


e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares re funda numa
partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a
maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam
parte dessa partilha (RANCIÈRE, 2009, p.15).

Ao colocar-se em questão a história da Rádio Iguaçú e seu enigmático fim, observa-se o


início de um conflito entre várias forças que buscavam, de um lado, a manutenção de
poder enquanto estrutura midiática para suporte político e, de outro, a aniquilação de um
empresário que virara político de sucesso, fora o último e mais jovem governador eleito
através do voto direto após 1964, mas que também contava com o apoio de forças
políticas vinculadas ao governo vigente na época.

Para montar seu poderoso grupo de comunicação, então considerado o maior


conglomerado de mídia do sul do país, Paulo Pimentel obteve apoio e a ajuda inicial de
políticos influentes e empresários de sucesso, entre eles Roberto Marinho, que lhe
ofereceu a exclusividade da transmissão da Rede Globo no Paraná. Isso não foi
suficiente, no entanto, para manter fora de alcance velhos e novos inimigos políticos
influentes, entre eles alguns ex-amigos que tornaram-se depois seus maiores rivais.

De outro lado, o controle da esfera pública através de um poderoso grupo de mídia foi,
sem dúvida, um dos objetivos daquele empreendimento de Pimentel, que na época
detinha grande prestígio junto ao eleitor paranaense. Sua ascensão ao poder midiático
foi considerada vital para a conquista de reconhecimento político e para a possibilidade
de imposição de agenda, conforme observa Wilson Gomes quanto ao fato de que “os
sujeitos de pretensões e interesses em nosso tempo há muito se deram conta da
importância do debate público como forma de conquistar a parcela da opinião pública
influente” (GOMES, 2001, p. 75).

Assim, num período relativamente curto, a carreira desse político estivera intocável,
possibilitando que obtivesse maior poder empresarial, pois além de sua ascensão
partidária e eleitoral, montou um forte grupo de mídia, com os jornais O Estado do
Paraná, de circulação estadual, Tribuna do Paraná, de maior tiragem em bancas na
capital, e também o Jornal Panorama, em Londrina. Além destes, possuía duas
importantes emissoras de TV em Curitiba e Londrina, as maiores cidades do estado. A
incorporação da “Iguaçú” tornara-se um dos mais importantes passos políticos de
Pimentel.

Em paralelo, porém, o governo militar promovia uma ampla censura à imprensa através
do AI-5, decretado em 1968, e incentivava uma mídia agregada aos seus propósitos
enquanto ferramenta estratégica para a segurança nacional. Entre os objetivos nessa área
estavam o desenvolvimento tecnológico e a expansão das telecomunicações, mas ao
mesmo tempo outorgava emissoras para amigos e apadrinhados do sistema através de
políticos acostumados à prática do clientelismo.
Jogos do poder midiático – dúvidas e evidências

Jacques Rancière denomina a “partilha do sensível” como um sistema de evidências que


revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem
lugares e partes respectivas:

Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um grupo partilhado e


partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha
de espaços, tempos e tipos de atividades que determina propriamente a maneira
como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa
partilha (RANCIÈRE, 2009, p.15).

A proposta desta análise é buscar as evidências do caso “Rádio Iguaçú”, que sob uma
perspectiva estética e política, emergiram com maior intensidade após o general Ernesto
Geisel ter assumido a presidência (1974-1979), dando início a uma guerra de bastidores
pela conquista do espaço público midiático, quando novos e emergentes personagens
surgem na briga pela tentativa de tomar o poder daqueles desafetos do regime. Como
conseqüência, a Rádio Iguaçú acabou vitimada pelo empenho “sensível” daqueles que
esforçaram-se ao máximo para diminuir suas conquistas, intervindo junto ao general
para que lacrasse seus transmissores.

Pressionado por duas frentes políticas e empresariais poderosas, Geisel encontrou um


jeito “mais ameno” de resolver o problema, deixando apenas de renovar a concessão da
rádio através do Decreto nº 79925, de 24 de maio de 1977, quando agentes do governo
foram até a sede da emissora, em Curitiba, e lacraram seus transmissores. A decisão
presidencial, entretanto, provocou uma onda de sentimentos que tomou conta dos
curitibanos, provocando o que pode ser comparado a uma comoção popular pela forma
como uma importante e popular rádio foi drasticamente lacrada. Considerado o histórico
daquele veículo (Rádio Guairacá e depois Rádio Iguaçú) houve um processo de
sensibilização entre profissionais e muitos ouvintes. Paulo Pimentel, por sua vez, sofreu
outras outras perdas políticas e econômicas, passando a ter que receber agentes censores
em seus veículos impressos e também administrar perdas financeiras decorrentes da
fuga de anunciantes.

O triste fim de uma rádio popular


No dia em que seus transmissores foram lacrados, a Rádio Iguaçú transmitiu músicas
proibidas pelos censores do governo ditatorial, enquanto seus locutores choravam ao
narrar o fim da emissora. Jornais e telejornais noticiaram o fato com muitas restrições e
o público em geral não recebeu qualquer informação sobre os verdadeiros motivos que
levaram ao fechamento da emissora. Ficou, entretanto, a narrativa apresentada pela
própria rádio em seu último dia de existência, que ressaltou com bastante emoção o ato
violento de um regime militar. Reportagem veiculada pelo telejornal do Canal 7 de
Curitiba, na época Rede Manchete, apresenta o então diretor da Rádio Iguaçú, Euclydes
Cardoso, em que este faz o seguinte desabafo:

Desmanchamos uma programação que estava no ar e colocamos nas últimas


horas de vida da rádio Iguaçu, todas as músicas que sofriam censura, todas
aquelas que nós não podíamos programar diariamente, todas aquelas que o
Chico Buarque compunha assinando como Julinho da Adelaide, naquele dia elas
foram para o ar e provocou uma reação na cidade extraordinária (CARDOSO,
1990).

E ainda como item subjetivo, para reconfigurar ou alterar direta ou indiretamente o fato,
dando a este a aparência que lhe seria mais notória, mais sensível, uma última
mensagem foi transmitida pela rádio aos seus ouvintes:

Rádio Iguaçú, uma estrela brilhante que cortou o céu do som no Paraná. Um
cântico que ficou preso nas estrofes do silêncio. Rádio Iguaçú. Hoje nosso
prefixo está revestido com o crepe cinza da tristeza, da amargura. Hoje
anunciamos o silêncio do som Iguaçu. O som que foi música, que foi novidade,
que foi mensagem de paz, hoje silencia numa despedida que é só tristeza
(CARDOSO, 1977).

O dia final de uma emissora de rádio ganhou publicidade na medida em que os sujeitos
que determinaram esse fato partilharam, mais ou menos, dados e informações sobre o
acontecimento, manipulando o sensível, tornando obscuras, alterando ou criando novas
estratégias, e permitindo assim uma reconfiguração da própria realidade junto à
sociedade da época.

Surge daí a imagem de um veículo de comunicação vitimado pela ditadura militar e


perseguido pelos generais, conforme relata algum tempo depois Aramis Milarch, um
dos mais importantes jornalistas da história do Paraná:
Nunca mais Curitiba ouviu seus anúncios, sempre começando por um "na
Curitiba da Rua das Flores" ou "na Curitiba de Freire Maia". Nem Ivan Curi
dizer, no último noticiário, à meia-noite, o "é calmo o início da madrugada".
Mas se a tristeza e a indignação foi grande para a equipe de trabalho, logo
começaram as manifestações da população curitibana, principalmente entre os
jovens que compunham a maior faixa de audiência da Iguaçu. Estudantes de
comunicação da Universidade Católica do Paraná iniciaram um abaixo-assinado,
cartas de solidariedade eram enviadas a este jornal e na cidade, paredes e ruas
apareceram pichadas reclamando sua volta. Ninguém jamais se conformou com
a perda da Iguaçu, antiga Guairacá, que há 31 anos de existência, conseguiu se
tornar uma das emissoras mais bem equipadas do país, que naquele tempo já
tinha toda sua programação gravada em cassete. Em 68 foi incorporada à
organização Paulo Pimentel, sem nunca deixar sua proposta final, de levar à
população de Curitiba uma rádio capaz de competir com as melhores. E isto ela
conseguiu (MILARCH, 1991).

Os impactos gerados pela ação policial e política contra um veículo de comunicação


que, a priori, não fazia oposição declarada contra o sistema de governo, mas ao
contrário, parecia estar longe de ser considerado “de esquerda” ou “revolucionário”,
foram justificados através de posturas políticas que se esforçaram para, através da
manipulação dos fatos, polemizar a história e romper as categorias de evidência naquilo
que Ranciére (2009) define como “reconfiguração do sensível”.

Quanto a Paulo Pimentel, que também se insere nesse contexto enquanto um dos
principais personagens, teve sua imagem pessoal e política retratada pelo jornalista
Cícero Cattani, que postou em seu site as conquistas deste político e empresário,
notadamente ao fato deste ter sofrido enorme pressão para que se desfizesse de seus
veículos de comunicação:

Encarou os poderosos dos tempos de Médici e Geisel. Derrubou, por denunciar a


corrupção, o primeiro governador nomeado, Haroldo Leon Perez, e sofreu as
consequências, perdendo a Rede Globo para o grupo Cunha Pereira/Lemanski e
teve cassada sua rádio. Foi coagido a vender a TV Coroados, de Londrina, para
o grupo Martines, e fechar o jornal Panorama. (CATTANI, 2011)

Considerados os sujeitos detentores dos poderes envolvidos nesse conflito, que se


alternaram de posição para receber as recompensas e benesses, nota-se mais uma
evidente realidade, a de que nem todos receberam de forma igualitária sua cota nessa
partilha. Ao contrário destes sujeitos, técnicos, radialistas, redatores e locutores sempre
estiveram à margem do processo decisório. Muitos foram pegos de surpresa e,
emocionados, consideraram que a ditadura e a censura foram as verdadeiras e únicas
razões que motivaram o fechamento da emissora. No entanto, Euclydes Cardoso revela
ainda outros contextos para esse fato polêmico:
Ele (Paulo Pimentel) costumava dizer...ele tinha inaugurado as rotativas
novas...ele falava para todas as visitas: ‘Aqui é meu buncker. É daqui que eu
disparo meus canhões...’ E tanto cutucou as feras com vara curta que, um dia,
alguém vendo a outorga de concessão de funcionamento da rádio, percebeu que
a Iguaçú, antiga Guairacá, estava com a concessão prestes a vencer. Eu estou
presumindo que se pensou: ‘Como podemos ferir este homem? Vamos ferir
fechando esta rádio, sem a renovação da outorga’. E foi o que aconteceu.
(CARDOSO, 2012)

O mito e as meias verdades

O sensível se reconfigura e se poleminiza, mas, segundo Rancière “essas ‘políticas’


seguem sua lógica própria e repropõem seus serviços em épocas e contextos muito
diferentes” (2009, p.20). Sendo assim, muitos detalhes importantes que poderiam
constituir-se evidências esclarecedoras foram omitidos na época em que a Rádio Iguaçú
foi fechada e ainda nos dias atuais são praticamente desconhecidos. Apenas alguns
personagens, em posições decisórias, tiveram acesso aos documentos que registravam
oficialmente esses fatos, enquanto muitos outros indivíduos, indiretamente envolvidos,
possivelmente ficaram com os papéis de figurantes nessa história.

Também o público em nenhum momento teve acesso às informações e detalhes sobre


como as coisas de fato ocorreram. O ouvinte, fã de uma programação radiofônica
arrojada (nunca, entretanto, revolucionária) acabou por assimilar, no final, um novo
estilo que a rádio propôs em seu último dia de programação, quando tocou canções
censuradas. Foi esse último dia suficiente para que morresse a emissora e nascesse o
mito. Afinal, segundo Rancière, “o importante é ser neste nível, do recorte sensível do
comum da comunidade, das formas de sua visibilidade e de sua disposição, que se
coloca a questão da relação estética/política” (2009, pag.26).

Assim, o discurso estético no nível argumentativo, no processo de interpretação daquela


realidade, contribuiu para o nível de emotividade, também social, que embalou os
curitibanos durante os últimos e derradeiros momentos, conforme relato de Aramis
Milarch no Jornal O Estado do Paraná:

Eram 10h55m da manhã de sexta-feira. Nos olhos de quase trinta pessoas,


lágrimas. No coração, revolta. Morria uma voz. Uma voz que há mais de 30 anos
vinha levando o som à casa de milhões de paranaenses. Um som puro, da melhor
qualidade. Morria um ideal. Um ideal do Euclides, Castro, Paulo Branco, Tuiuti,
Paulo, Jane e tantos outros. Um ideal de propagar a música a todos,
principalmente entre os jovens. Um ideal ceifado pela espada cega de interesses
mesquinhos. Tão mesquinhos que nem se preocupam com o prejuízo de milhares
de jovens, que deixaram de ter em seus rádios os 670 khz. A Iguaçú não existe
mais. Aos irmãos da Rádio Iguaçú e aos seus familiares, a nossa solidariedade.
(MILARCH, 1991)

Em contrapartida a uma linearidade aparente, a interpretação comunitária desse fato


histórico, portanto, considera inúmeros e complexos fatores capazes de mudar/alterar
elementos essenciais primários, identificados na base do fato em si. Busca-se para isso a
explicação feita por Rancière do que seja a educação estética do homem, notadamente
quanto à idéia de dominação e servitude enquanto distribuições ontológicas: “É esse
modo de habitação do mundo sensível que deve ser desenvolvido pela ‘educação
estética’, para formar homens capazes de viver numa comunidade política livre (2009,
p.39).

A prática dessa política livre, aperfeiçoada por um tipo de partilha mais democrática dos
conteúdos sensíveis, no entanto, requer níveis de maturidade e democracia bastante
difíceis de ser praticados, haja vista todo tipo de estratégias utilizadas para camuflar,
esconder, manipular fatos históricos, notadamente em sociedades menos desenvolvidas.

Considera-se que seja natural à experiência democrática o fato de que a disputa política
se realize através de um processo de negociação argumentativa, cujo objetivo, segundo
Wilson Gomes, seja a produção da aceitação pela maioria de uma opinião apresentada e
sustentada por um sujeito, individual ou coletivo, participante de um debate aberto e
acessível (GOMES, 2001, p. 75).

Assim, se por um lado há um entendimento comunitário quanto ao “destino histórico”


da Rádio Iguaçú, de outro, também, é possível supor outras possibilidades. As formas
“oficiais” ficam à mercê dessas leituras que, uma e outra hora, são passíveis de
alteração, dependendo dos contextos e das realidades, e mesmo, dos modos de vê-las e
de reconfigurá-las. Nesse aspecto, Rancière observa que “...alguns marcos, históricos e
conceituais, apropriados à reformulação de certos problemas que são irremediavelmente
confundidos por noções que fazem passar por determinações históricas o que são a
priori conceituais e por determinações conceituais, recortes temporais” (2009, p.14).

Referências

BRANCO, Paulo. Em http://www.paulobranco.com/p/paulo-branco-idas-e-vindas-nas-


ondas-do.html. Acessado em 14/10/2014

CARDOSO, Euclydes. Em http://www.youtube.com/watch?v=uUL_d2NgZ6A .


Acessado em 23/11/2014

CATTANI, Cícero. Em http://cicerocattani.com.br/2011/12/10/legado-de-paulo-


pimentel/. Acessado em 10/10/2014

GOMES, Wilson. Opinião pública política hoje – uma investigação preliminar.


EDIPUCRS: Porto Alegre, 2001.

MILARCH, Aramis. Jornal O Estado do Paraná, 27/09/1991. http://www.millarch.


org/artigo/iguacu-que-deixou-saudades. Acessado em 30/08/2014.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução: Mônica


Costa Netto. São Paulo/ Editora 34, 2009.

SODRÉ, Muniz. Comunicação, um novo sistema de pensamento. EDIPUCRS: Porto


Alegre, 2001.

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