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O clero secular na África Centro-Ocidental:

problemas e perspectivas

ALEXANDRE ALMEIDA MARCUSSI*

Quando a expedição portuguesa capitaneada por Diogo Cão atingiu a foz do rio Zaire
em 1483, iniciou-se um duradouro, ainda que tenso, diálogo entre os universos simbólicos dos
portugueses e das populações centro-africanas. Neste processo, a adoção da religião católica
pelas populações locais desempenhou papel de destaque, tendo se iniciado quando Diogo Cão
decidiu seguir viagem levando consigo reféns africanos em troca dos oficiais que enviou para
o interior para entrarem em contato com o soberano máximo do Congo, Nzinga a Nkuwu. Os
congoleses levados a Portugal foram os primeiros centro-africanos a receberem o batismo.
Quando retornaram a sua terra natal, encontraram o rei do Congo disposto a iniciar contatos
religiosos com os forasteiros. Nzinga a Nkuwu foi batizado como João I em 1491, mas logo
abandonou a nova religião, sendo que a consolidação no Congo viria a esperar pelo reinado de
seu sucessor, Afonso I, que subiu ao trono em 1506 (HASTINGS, 1996; HEYWOOD;
THORNTON, 2007; HILTON, 1985).
Ao discutir a difusão do catolicismo na África Centro-Ocidental, a historiografia
aponta dois fatores essenciais. Em primeiro lugar, tem sido destacado para o protagonismo
das sociedades africanas no processo: o catolicismo se constituiu como sustentáculo
simbólico do poder político do rei no Congo e tornou-se dominante entre as linhagens da elite
(HILTON, 1985). A capital Mbanza Kongo, rebatizado com o nome católico de São Salvador,
não só pedia à Coroa portuguesa e até ao papa o envio de mais sacerdotes e missionários,
como também incentivou agentes locais de difusão da religião, tais como os catequistas
leigos, jovens de linhagens da nobreza que eram letrados e educados nos mistérios da fé, mas
que não possuíam ordens sacras, e que auxiliavam os sacerdotes ordenados ou pregavam a
doutrina no interior. Para Adrian Hastings (1996), os catequistas leigos foram o grande fator
de enraizamento do catolicismo na África Centro-Ocidental. Como sugeriu Thornton (2002),
sua atuação mesclava preceitos católicos e fundamentos cosmológicos centro-africanos, tendo
sido central para a cristalização de uma versão original da religião cristã mesmo fora dos

*
Doutorando em História Social no Programa de Pós-Graduação em História Social da FFLCH/USP. Esta
comunicação expõe resultados parciais de uma pesquisa financiada pelo CNPq e pela FAPESP.
2

domínios do reino do Congo, já que sua influência teria sido sentida até mesmo entre os
dembos, ao sul.
Por outro lado, a historiografia também destaca a atuação de missionários de diversas
ordens religiosas na difusão do catolicismo, com destaque para os jesuítas, até 1645, e para os
capuchinhos italianos, depois dessa data (ALENCASTRO, 2000; GONÇALVES, 2008). De
qualquer forma, mesmo a presença dos capuchinhos nas sociedades centro-africanas foi
dispersa, sendo insuficiente o número de missionários para cobrir um território tão extenso,
ainda mais tendo em vista a altíssima taxa de mortalidade dos europeus nas terras africanas.
Diante disso, fatores locais de enraizamento da religião teriam tido papel fundamental.
A difusão do catolicismo na África Centro-Ocidental tem implicações importantes
para os debates a respeito da formação das culturas afro-americanas. Modelos interpretativos
clássicos, como os de Herskovits (1991) ou Bastide (1971) pressupunham que os africanos
seriam portadores exclusivos de seus repertórios culturais “tradicionais”, e que só teriam
travado contato com a cultura europeia e com cristianismo na América – ou, no máximo,
durante a travessia atlântica. Hein Vanhee (2002), no entanto, evidenciou que a formação do
vodou haitiano teve uma importante contribuição dada pelo catolicismo centro-africano, uma
vez que ele já incorporava elementos africanos na crença cristã. Heywood e Thornton,
analogamente, argumentaram que o catolicismo centro-africano teria sido central na
conformação de uma “cultura crioula atlântica” no seio da qual os cativos centro-africanos
puderam adquirir uma ampla familiaridade com o mundo cultural europeu mesmo antes da
travessia atlântica (HEYWOOD; THORNTON, 2007). Assim sendo, o estudo do catolicismo
centro-africano torna-se premente para a compreensão dos processos de formação das culturas
afro-americanas, ainda mais se considerarmos o caso do Brasil, que recebeu expressiva
parcela de seus escravos da África Centro-Ocidental.
Sem subdimensionar a importância de agentes laicos centro-africanos (como os
catequistas leigos) e das ordens religiosas atuantes nas missões (em especial jesuítas e
capuchinhos), quero atentar para o papel desempenhado pelas instituições episcopais e pelo
clero secular nesse processo.1 O tema recebeu atenção bem menor nos estudos sobre o
catolicismo na África. Em primeiro lugar, por conta de uma dificuldade relativa às fontes:

1
Cabe esclarecer que clero se divide entre os sacerdotes pertencentes a ordens religiosas, chamados de
“regulares”, que respondiam aos superiores de suas ordens, e os chamados “seculares”, que não pertenciam a
ordens e respondiam diretamente aos bispos. As instituições episcopais, tais como paróquias e vigararias,
ficavam sob responsabilidade do clero secular.
3

devido à intensa correspondência entre os regulares e seus superiores na Europa, os registros


produzidos pelos missionários de ordens religiosas são bem mais abundantes – no caso
centro-africano, destacam-se os jesuítas e capuchinhos, que elaboraram extensos relatos de
suas experiências no continente africano. As fontes para a atuação do clero secular são mais
esparsas. A maior parte dos registros do cotidiano das instituições episcopais foi mantida
localmente, de modo que há material a se pesquisar no arquivo da Arquidiocese de Luanda,
mas o acesso é difícil, não apenas pelas dificuldades advindas da distância geográfica, mas
também pelo baixo grau de organização do acervo e pelas dificuldades burocráticas para se
fazer pesquisa na instituição.2 Em Portugal, a Mesa da Consciência e Ordens, órgão régio
responsável pela administração do Padroado, guarda registros de consultas que chegaram a
Lisboa, mas cala em relação aos assuntos locais, que prescindiram da deliberação
metropolitana. Na correspondência administrativa, alocada no Arquivo Histórico Ultramarino,
é possível encontrar comentários de oficiais da Coroa a respeito da atuação do clero, em
especial nas ocasiões em que havia atritos entre instituições eclesiásticas e administrativas, o
que era relativamente frequente. Por fim, os missionários queixam-se frequentemente do
comportamento do clero secular, fornecendo mais uma fonte, ainda que indireta. Vale
ressaltar que uma parte importante dessas fontes foi compilada por Antônio Brásio (2011) em
uma volumosa antologia denominada Monumenta Missionaria Africana, que, apesar do
nome, também inclui fontes a respeito do clero secular.
Pretendo aqui discutir, de forma breve, os principais problemas que encontrei ao
trabalhar com algumas dessas fontes. Em primeiro lugar, cabe indagar a respeito da
distribuição geográfica clero secular na África Centro-Ocidental. Por conta da adoção do
catolicismo pelo reino do Congo, a capital do reino era o local de irradiação do clero até pelo
menos o último quartel do século XVI. Contudo, o Congo não era dotado de sé episcopal
própria, de modo que a presença dos jesuítas deve ter sido mais intensa que dos seculares.
Depois da expedição militar de Paulo Dias de Novais em 1575, o clero secular instalou-se na
nova conquista de Angola com a função de dar assistência religiosa aos soldados e colonos
portugueses (RODRIGUES, 1938, tomo II, v. 2: 505-573).
Tanto no Congo como em Angola, os sacerdotes seculares respondiam inicialmente à
autoridade do bispo de São Tomé. Contudo, com as demandas crescentes do rei do Congo por

2
Por não ter pesquisado na instituição, eu não saberia informar quanto foi preservado das fontes relativas a
períodos anteriores ao século XIX, mas é bastante possível que boa parte desses registros tenha se perdido.
4

mais clérigos e com o aumento das necessidades espirituais da colônia de Angola, a diocese
de São Tomé foi desmembrada, criando-se uma nova diocese do “Congo e Angola” em 1596
(HASTINGS, 1996). O nome duplo é eloquente a respeito de sua hesitação geográfica.
Embora, de início, a diocese estivesse formalmente sediada em São Salvador, no Congo, a
maioria dos bispos residia em Luanda, capital da conquista portuguesa de Angola, bem como
seus funcionários da administração episcopal, tais como vigários-gerais, tesoureiros, chantres
e outros.
Em 1676, a sede do bispado foi oficialmente transferida para Luanda. A transferência
atendia a um conjunto de reivindicações. Em primeiro lugar, resolvia as preocupações com a
alta mortalidade do clero português no Congo. Como afirmou o deão da sé em
correspondência para o rei, datada de 1665, “alguns que quiseram residir [em São Sebastião]
foram mortos com feitiçarias e veneno, e, se chegaram a Congo, não viveram oito dias.”3 Essa
mortalidade, como se pode verificar do relato do deão, não se deve apenas e tão-somente às
doenças, mas aos atritos com as sociedades locais. O deão denunciava como responsáveis
pelas mortes dois cônegos “irmãos e muxicongos” – ou seja, pertencentes a uma das linhagens
da nobreza congolesa – chamados Simão de Medeiros e Miguel de Castro. Donde se
depreende que havia uma disputa pelo monopólio dos cargos episcopais entre a nobreza do
congo e os sacerdotes portugueses, então sediados em Luanda. De forma mais ampla, a
transferência da sede do bispado também refletia o grau cada vez maior de centralidade da
cidade de Luanda nos interesses portugueses relativos ao território centro-africano.
Os números do clero secular confirmam a centralidade de cidade de Luanda na atuação
episcopal. Segundo listagem elaborada em 1693 pelo governador de Angola, a diocese
mantinha ao todo 34 igrejas, sendo nada menos que 17 delas situadas em Luanda, enquanto as
outras 21 espalhavam-se por diversas regiões do interior, indo desde a catedral de São
Salvador até as igrejas dos presídios portugueses ao longo do vale do rio Kwanza. Para se ter
um parâmetro de comparação, as ordens religiosas mantinham ao todo 12 templos, pouco
mais de um terço do número de igrejas diocesanas, sendo 4 em Luanda e 8 em missões pelo

3
Carta do deão de Angola a Sua Majestade El-Rei, 29 jul. 1665, p. 555-556. In: MONUMENTA Missionaria
Africana: África Ocidental. Coligida e anotada pelo Padre António Brásio. Edição digital org. Miguel Jasmins
Rodrigues. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical/Centro de História de Além-Mar/Direcção Geral
de Arquivos, 2011, p. 675. DVD-ROM. Essa coletânea de fontes será referida, daqui em diante, simplesmente
pela abreviatura MMA. Todas as citações de fontes primárias são apresentadas com grafia modernizada e
pontuação adequada às normas atuais.
5
4
interior. Se considerarmos a distribuição dos cargos, a desproporção entre Luanda e o
interior se mantém. Segundo um rol do clero elaborado pelo governador em 1690, a diocese
contava com 29 padres que tinham sob sua responsabilidade alguma igreja, dos quais 12
residiam na cidade de Luanda. Essa listagem só incluía padres responsáveis por alguma igreja
(vigários, curas e cônegos), deixando de fora diversos outros ofícios episcopais, a maior parte
dos quais residente em Luanda. Havia ainda sacerdotes leigos que atuavam em diversas
regiões do interior e junto a sociedades centro-africanas sem terem uma igreja sob sua
administração. Seu número é difícil de mensurar, mas é de se supor que eles tenham sido
menos numerosos do que os seculares radicados em Luanda.
A centralidade do clero angolano na cidade de Luanda (o que valia tanto para os
seculares quanto para os regulares, por sinal) ecoa a conclusão de Luís Felipe de Alencastro
(2000: 155-187), segundo o qual houve uma reorientação da ação catequética dos dois lados
do Atlântico ao sabor de uma complementaridade entre as missões no Brasil e em Angola,
definindo um modelo de “evangelização numa só colônia, ou seja – no Brasil”. A
interpretação de Alencastro tem como limite o fato de considerar apenas a missionação
jesuítica, desconsiderando a forte atuação capuchinha junto às sociedades locais no século
XVII. Além disso, como veremos, a centralidade de Luanda para o projeto episcopal não
significou um abandono das atividades catequéticas, mas apenas uma reorientação de seus
alvos.
Uma das funções primordiais do clero secular era oferecer assistência religiosa para os
colonos e soldados portugueses e luso-africanos residentes em Luanda e nos presídios, o que
incluía rezar missas e ministrar sacramentos como o batismo, a confissão ou o casamento.
Nos presídios, também tinham a atribuição de atender às populações dos sobados avassalados,
como eram chamadas as comunidades ambundas sujeitas ao poder militar e diplomático
português, e cujas populações podiam ir aos presídios para obter assistência espiritual. Com o
tempo, porém, e com a consolidação do negócio escravista no porto de Luanda, os seculares
passaram a ter também outra atribuição fundamental: a catequese dos escravos, seja os que
fossem se embarcar para as Américas, seja os que fossem de propriedade dos colonos
portugueses na conquista.
A catequização dos escravos era um assunto de fundamental importância para os
discursos que sustentavam a legitimidade do império português e da escravidão africana.

4
MMA, Relação do governador dos religiosos e conventos existentes no Reino de Angola, 1693, p. 341-346.
6

Afinal de contas, a difusão da palavra de Cristo era a responsabilidade por conta da qual a
Coroa portuguesa obteve, do Papado, o direito administrar os territórios ultramarinos. A bula
papal Romanus pontifex, de 1455, tolerava a escravidão de infiéis e pagãos sob o pretexto de
que ela facilitaria a catequese (ALENCASTRO, 2000: 159). Ao longo do século XVII, esse
princípio viria a se transformar numa verdadeira doutrina sob impulso do pensamento
jesuítico, que argumentava que a escravidão atlântica era legítima na medida em que tirava os
africanos dos pecados de suas sociedades natais e os colocava sob os cuidados de senhores
cristãos, com os quais podiam se evangelizar para obter a salvação de sua alma
(ALENCASTRO, 2000; VAINFAS, 1986). O célebre décimo quarto sermão do Rosário,
proferido por Antônio Vieira em 1633 para uma audiência de escravos num engenho na
Bahia, é talvez a formulação mais célebre dessa ideologia jesuítica da escravidão. Permito-me
citar um longo trecho do sermão:

Oh se a gente preta tirada das brenhas de sua Etiópia, e passada ao Brasil,


conhecera bem quanto deve a Deus, e a sua Santíssima Mãe por este que pode
parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre e grande milagre!
Dizei-me: vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e
acabam a vida sem lume da fé, nem conhecimento de Deus, aonde vão depois da
morte? Todos, como já credes e confessais, vão ao Inferno, e lá estão ardendo e
arderão por toda a eternidade. E que perecendo todos eles, e sendo sepultados no
Inferno como Coré, vós, que sois seus filhos, vos salveis, e vades ao Céu? Vede se é
grande milagre da providência e misericórdia divina [...] e esta é a singular
felicidade do vosso estado, verdadeiramente milagroso. (VIEIRA, 1959, tomo XI:
301)

A catequese dos cativos, portanto, configurava-se como sustentáculo ideológico da


escravidão. O que não quer dizer que tenha sido tarefa de fácil execução. A atribuição recaiu
sobre o clero de Luanda depois de diversos experimentos. Os tempos e espaços pertinentes à
instrução religiosa derivaram de uma longa e tensa negociação envolvendo a Coroa
portuguesa, o clero secular e regular e os comerciantes de escravos. A primeira
regulamentação a respeito data de uma bula pontifícia de 1513, que delegava a
responsabilidade pelo batismo dos escravos ao vigário da Igreja de Nossa Senhora da
7

Conceição, em Lisboa5 – numa época em que o destino majoritário dos cativos ainda era o
Reino. No ano seguinte, uma ordem régia dividia essa responsabilidade com os senhores, que
teriam até 6 meses desde a data de aquisição dos escravos para garantir sua instrução
religiosa.6
Havia, porém, um risco não negligenciável de que os escravos desembarcassem
doentes em seus destinos e não pudessem receber o batismo antes de morrer. Para remediar o
problema, em 1516, o papa autorizou o batismo ainda bordo dos navios, na chegada, em teoria
para os escravos moribundos, caso no qual poderia ser ministrado mesmo sem instrução
religiosa prévia.7 Contudo, uma ordem régia do mesmo ano dava a entender que a totalidade
dos escravos devia ser batizada no ato do desembarque.8 Nada isso, porém, afastava o risco de
morte durante a travessia a bordo dos insalubres navios negreiros. Por isso, o local prioritário
de batismo e instrução religiosa foi sendo gradualmente transferido para os portos de origem
dos escravos. Já em 1556, foi instituído o ofício de catequista dos escravos em São Tomé,
cuja responsabilidade era a de ministrar o ensino religioso nas línguas nativas dos africanos9 –
o que, como se pode imaginar, nem sempre era tarefa muito factível, devido à
heterogeneidade linguística e étnica dos cativos. Em 1618, a catequese dos escravos antes do
embarque já era prática corrente também em Luanda.10
Isso não significa, porém, que o assunto estivesse definido de forma consensual.
Reclamava-se de que os batismos na África eram imperfeitos, e que os escravos chegavam à
América com noções excessivamente superficiais da doutrina cristã – por vezes nem sequer se
lembravam de terem sido batizados ou não entendiam o que isso queria dizer.11 A matéria foi
assunto de um longa consulta da Mesa da Consciência e Ordens, que, em 1623, definiu uma
sistemática para a instrução religiosa dos escravos, priorizando o batismo antes do embarque
nos portos africanos. Os escravos deveriam ser instruídos durante um período de dois meses
em suas línguas nativas, a fim de que melhor compreendessem o sentido do batismo.12

5
MMA, Bula do Papa Leão X a D. Manuel I, 07/08/1513, p. 275-277.
6
MMA, Baptismo dos escravos da Guiné, 24/03/1514, p. 69-70.
7
MMA, Bula “Preclara tue” de Leão X, 10/01/1516, p. 115-117.
8
MMA, Alvará ao vigário da Conceição de Lisboa, 15/07/1516, p. 130.
9
MMA, Alvará para o almoxarife de S. Tomé, 22/03/1556, p. 384.
10
MMA, Carta régia ao Desembargo do Paço, 11/09/1618, p. 327.
11
ANTT, Fundo Mesa da Consciência e Ordens, Secretaria da Mesa e Comum das Ordens, livro 304.
Colectânea de bulas, decretos, consultas e resoluções relativas à Mesa da Consciência e Ordens, elaborada por
Lázaro Leitão Aranha, 1731,fl. 29v.
12
MMA, Consulta da Junta sobre o batismo dos negros adultos, 27/06/1623, p. 125.
8

Essas condições eram virtualmente impraticáveis devido a diversos fatores inerentes


ao funcionamento do comércio de escravos. Em primeiro lugar, os cativos provinham de
muitas regiões diferentes e nem sempre falavam as mesmas línguas, o que exigia que os
catequistas deveriam ser versados numa ampla gama de línguas africanas se quisessem
cumprir inteiramente as determinações metropolitanas. Os missionários já tinham dificuldade
para dominar completamente o quimbundo e o quicongo, as duas línguas mais faladas pela
escravaria nesse período – que dirá das demais línguas faladas no interior distante. Em
segundo lugar, o prazo de dois meses para instrução religiosa nos portos esbarrava na forma
como os cativos eram comprados e embarcados. Para que os últimos escravos chegados ao
porto tivessem instrução religiosa adequada, seria necessário atrasar o embarque de outras
centenas de escravos que já esperavam nos barracões costeiros, o que complicaria a logística e
aumentaria os custos com mantimentos, além de suscitar oportunidades para rebeliões.
Com tudo isso em mente, a Mesa da Consciência e Ordens autorizou também o ensino
religioso a bordo dos navios, durante a travessia. Aproveitava-se para isso de um cargo
eclesiástico que já existia – o de capelão dos navios13 – e acrescentava-se às suas
responsabilidades a instrução religiosa e o batismo dos escravos que não tivessem sido
catequizados na costa. Cabia inicialmente ao cabido de Luanda, órgão administrativo do
bispado, selecionar os capelães entre os clérigos seculares, mas a seleção passou, com o
tempo, a depender de uma negociação direta entre os capitães dos navios e os sacerdotes
interessados. Ou seja: além de um sacerdote cuja função era catequizar os cativos nos
barracões antes do embarque, ainda havia outro que acompanhava a escravaria no navio
durante a travessia.14
Esses dois ofícios de catequese dos escravos eram ocupados, primordialmente, pelo
clero secular. Isso se explica, em primeiro lugar, pela divisão de atribuições entre instituições
eclesiásticas na costa africana. As missões mantidas pelas ordens religiosas tinham como
função precípua a cristianização e as relações diplomáticas com sociedades do interior
(GONÇALVES, 2008; SOUZA, 2012), de modo que cabia ao clero secular e ao episcopado a
maior parte das funções religiosas nos territórios sob administração direta dos portugueses,
como era o caso de Luanda e dos presídios. Essa orientação para os territórios da conquista se
intensificou nos anos 1670, com a transferência oficial da sede do bispado de São Salvador
13
O ofício já havia sido regularizado em 1613, mas seu primeiro regimento indicava como atribuição apenas a
assistência religiosa à tripulação dos navios. Cf. MMA, Regimento dos capelães dos navios, 1613, p. 164-166.
14
Mais detalhes podem ser encontrados em MARCUSSI, 2013.
9

para Luanda, ao mesmo tempo em que o volume de escravos embarcados no porto de Luanda
teve um aumento dramático. Pode-se dizer que esses dois fatores marcaram definitivamente a
reorientação do clero secular para assuntos relativos ao escravismo.
A ligação entre o clero secular e a catequese de escravos também se justifica pelo fato
de que os padres seculares costumavam ter maior familiaridade com as línguas africanas do
que os regulares. Os missionários normalmente eram sacerdotes regulares enviados dos
capítulos metropolitanos de suas ordens religiosas: Lisboa, no caso dos jesuítas, e Roma, no
caso dos capuchinhos. Apesar de haver uma orientação para que os missionários aprendessem
as línguas nativas, e apesar de já existirem, a partir de meados do século XVII, catecismos
para o quimbundo e o quicongo (ALENCASTRO, 2000, p. 158; SANTOS, 2008: 153), as
duas principais línguas da região costeira, não havia nenhum instrumento linguístico para as
demais línguas do interior, e o aprendizado dessas duas já não era tarefa simples. O clero
secular, por sua vez, contava com uma vantagem estratégica: em grande medida, ele era
composto por padres nascidos em Angola, que, portanto, já dominavam línguas africanas sem
a necessidade de manuais.
Os jesuítas também tentaram formar e recrutar missionários entre os nascidos na terra.
Nobres dembos e congoleses chegaram a adquirir ordens sacerdotais e ingressar na
Companhia de Jesus em colégios na Bahia, em Portugal e em Luanda, mas seu número era
escasso (LEITE, 1949, tomo VII: 270; MARCUSSI, 2012; SANTOS, 2008). Por outro lado,
os seminários de Luanda e do Congo foram responsáveis pelo ordenamento de grande número
de sacerdotes seculares nascidos na África, fossem filhos de colonos portugueses ou jovens
ambundos e bacongos.
Até o início do século XVII, os cargos ultramarinos costumavam ser ocupados por
padres seculares portugueses. Contudo, o clero português pouco se interessava por cargos em
territórios tão remotos, e muitos dos que os assumiam iam degredados para a África, não
constituindo modelos de bom comportamento. Havia sacerdotes providos com benefícios nas
conezias ultramarinas que nem sequer chegavam a sair de Portugal. Somava-se a esta evasão a
mortalidade dos portugueses na costa africana e seu deficiente domínio das línguas
africanas.15

15
Veja-se, a este respeito, o parecer elaborado em 1622 por Severim de Faria, pelo chantre da Sé de Évora, em
MMA, Apontamento de Manuel Severim de Faria sobre a fundação de seminários para a Guiné, 01/1622.
10

Por todos esses motivos, a formação de sacerdotes naturais da África surgiu como
solução para ocupar os cargos eclesiásticos do episcopado. O colégio jesuítico de Luanda
começou a educar os filhos dos colonos em 1605. Em 1622, mediante uma polpuda doação
particular, passou a manter também um seminário para formação de sacerdotes
(RODRIGUES, 1944, tomo II, v. 2: 570). No final da década de 1620, instituiu-se mais um
colégio jesuítico em São Salvador, no Congo, onde possivelmente também se ordenaram
sacerdotes.16 Mais versados na línguas locais e mais enraizados nos portos escravistas do que
os missionários europeus, os padres seculares nativos ocuparam, a partir do século XVII, boa
parte das atribuições relativas à catequese dos escravos que eram embarcados para o Brasil.
Havia constantes reclamações de missionários, oficiais da Coroa e mesmo de membros
do cabido acerca do comportamento do clero secular de Angola. Apesar de o comércio de
escravos ser vedado aos religiosos, eram frequentes as reclamações a respeito do
envolvimento de seculares com a venda de cativos. Em 1691, o governador Dom João de
Lencastre queixava-se ao rei de Portugal, afirmando que “os ditos capelães, [...] como sejam
pardos, e naturais deste Reino, se compõem de muitos vícios, e têm o seu principal exercício
de serem mercadores de escravos, sem tratarem do bem das almas”.17 A verdade é que
praticamente todos os setores da Igreja estavam de alguma forma envolvidos no comércio,
mesmo os missionários regulares, com exceção dos capuchinhos. No caso do clero secular,
contudo, é certo que suas atribuições na catequese dos escravos certamente ofereciam diversas
possibilidades de envolvimento no negócio negreiro.
O clero secular também era alvo de denúncias a respeito de sua leniência em relação
aos costumes supersticiosos das populações locais. Consultado pela Mesa de Consciência e
Ordens a respeito dos padres seculares, o governador Fernão de Souza afirmou em 1632: “são
mulatos, e alguns negros de pouco suficiência e idade, de que não se pode fazer a confiança
que convém, por serem inclinados a suas superstições.”18 Sobre os seculares atuantes no
interior, junto aos sobados, o governador afirmava que consentiam com que os sobas cristãos

16
O colégio tinha aulas de Latim, normalmente reservadas para os seminários, muito embora não constasse que
houvesse aulas de Casos de Consciência, outro componente curricular dos seminários. Cf. MMA, Carta do
padre Miguel Afonso ao geral da Companhia de Jesus, 22 ago. 1634, p. 301.
17
MMA, Carta régia ao governador de Angola, 10/03/1692, p. 241.
18
MMA, Informação de Fernão de Souza a El-Rei, 29/07/1632, p. 176.
11

mantivessem seus ídolos.19 Dom João Manoel de Noronha, mais incisivo, afirmava que os
seculares davam mau exemplo ao gentio, “usando dos seus mesmos ritos”.20
A conivência, ou até o envolvimento do clero secular com ritos gentílicos não chega a
surpreender completamente. Boa parte desses padres era natural da região, e muitos deles
inclusive haviam sido criados entre populações ambundas e bacongas, para as quais, como
argumentou Thornton (2002), era comum que a crença cristã se somasse às religiões
tradicionais sem eliminá-las. Vimos que os naturais da terra eram prezados por sua
competência nas línguas locais. Sua adesão, mais ou menos direta, às religiões tradicionais
não passava de outra face dessa mesma ligação cultural que mantinham com as sociedades
locais.
Tentei delinear aqui alguns dos problemas que emergiram de minhas pesquisas com
fontes relativas à atuação do clero secular em Angola. Seu envolvimento com a catequese dos
escravos a serem embarcados para a América e sua proximidade linguística e cultural são dois
aspectos interligados que merecem maior pesquisa e aprofundamento. Se é verdade que esses
padres constituíram, para muitos cativos, o primeiro contato aprofundado que tiveram com a
religião católica, sua familiaridade com os sistemas simbólicos e culturais das populações
africanas certamente facilitou o processo de tradução e adaptação do ensinamento católicos
para os escravos.21 A historiografia tem ressaltado o protagonismo das sociedades africanas na
adaptação do cristianismo e na formação de um catolicismo centro-africano distinto de sua
matriz europeia (THORNTON, 2002), mas também é preciso considerar a atuação deliberada
do clero secular, que usou sua familiaridade com as culturas locais para aproximar a
mensagem católica dos repertórios linguísticos e simbólicos dos africanos. Da mesma forma,
não me parece exagero dizer que a experiência religiosa dos africanos nas Américas e os
processos de formação de um catolicismo afro-americano devem muito à atuação desses
padres, que ofereceram, em muitos casos, a primeira ponte conceitual entre os universos
culturais africanos e o catolicismo. Para alcançarmos uma compreensão mais exata dos
processos de formação dessas novas formas “africanizadas” de catolicismo, parece-me
importante não apenas estudar a atuação dos missionários, mas também do clero secular.

19
MMA, Carta do governador Fernão de Sousa à Mesa da Consciência, 13/08/1625, p. 342.
20
AHU, Fundo Conselho Ultramarino, Angola, cx. 20, doc. 73, fl. 1.
21
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