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Leila Leite Hernandez

Alexandre Almeida Marcussi


ORGANIZAÇÃO

IDEIAS E PRÁTICAS EM TRÂNSITO


Poderes e resistências em África
(séculos XIX-XX)

São Paulo
2020
Capítulo 7.
Ensinar a liberdade: paradoxos da pedagogia anticolonial
em C. L. R. James e Frantz Fanon
Alexandre Almeida Marcussi

O que aqui aparece como orgulhosa reivindicação do sofrimento mostrará


sua face [...] sob a forma da resistência do amor-próprio, para tomarmos
esse termo em toda a profundidade que lhe deu La Rochefoucauld, e que
amiúde se declara assim: “Não posso aceitar a ideia de ser libertado por
outro que não eu mesmo.”
– Jacques Lacan, A agressividade em psicanálise –

Os nacionalismos anticoloniais do continente africano emergiram na


primeira metade do século XX a partir de uma ampla rede de conexões
políticas, intelectuais, culturais e geográficas entre espaços metropolitanos,
coloniais e diaspóricos, na escala global daquilo que Edward Said denominou
os “territórios sobrepostos” criados pelos impérios modernos.1 Em meio a
esses entrelaçamentos, boa parte do ideário que inspirou as independências
políticas das antigas colônias europeias na África foi elaborada por meio
de processos de apropriações, ressignificações, deslocamentos e traduções2

1. SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 302-431.
2. Emprego aqui o termo “tradução” no sentido que lhe dá Homi Bhabha, como um processo
de enunciação que, ao aparentemente “repetir” teorias ou ideias metropolitanas em contextos
coloniais, confere-lhes novos significados políticos. Veja-se BHABHA, Homi K. O local da cul-
tura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. Para uma reflexão semelhante a partir da noção de
“itinerância” da teoria, cf. SAID, Edward. “Reconsiderando a teoria itinerante”. In: SANCHES,
Manuela Ribeiro (Org.). Deslocalizar a “Europa”: Antropologia, Arte, Literatura e História na Pós-
-Colonialidade. Lisboa: Edições Cotovia, 2005, pp. 25-42.
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do pensamento político europeu, americano e asiático, realizados por


intelectuais e ativistas africanos e afrodiaspóricos.
Os escritos do século XIX e do início do século XX produzidos
por intelectuais afrodiaspóricos e autores africanos de territórios sob
dominação colonial europeia evidenciavam perspectivas críticas em relação
às assimetrias de poder e às práticas discriminatórias do racismo e dos
colonialismos europeus. Contudo, via de regra, esses críticos da hegemonia
branca e europeia idealizavam um desenvolvimento político e cultural para
as populações negras e colonizadas que era concebido, em larga medida,
a partir do modelo civilizatório euro-ocidental, com ênfase na educação
(em moldes predominantemente europeus) como forma de acesso ao
desenvolvimento e à dignidade. Poderíamos, nesses casos, falar em um
“antirracismo eurocêntrico”, que criticava as desigualdades engendradas
pela escravidão norte-americana e pela colonização da África invocando a
linguagem política e filosófica do pensamento ilustrado europeu.3 Ao longo
do segundo quartel do século XX, no entanto, começou a emergir mais
claramente a percepção de uma hegemonia cultural europeia associada
à dominação colonial, que se fez acompanhar por uma revalorização de
certas tradições africanas e por um movimento de rejeição, por parte de
muitos intelectuais africanos e afrodiaspóricos, daquilo que Aimé Césaire

3. Paul Gilroy caracterizou esses discursos como uma “política da realização” (politics of fulfilment)
que demanda o cumprimento das promessas universalistas ilustradas e modernas, sistematica-
mente negadas às populações negras durante a modernidade. Cf. GILROY, Paul. O Atlântico
negro: modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel Moreira. 2ª ed. São Paulo/Rio de
Janeiro: Editora 34/Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2012,
pp. 95-96. Para um exemplo eloquente dessa perspectiva, conferir DU BOIS, William Edward
Burghardt. As almas da gente negra. Trad. Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999.
Análises críticas dessa vertente de pensamento podem ser encontradas em APPIAH, Kwame
Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997,
pp. 19-51; MUDIMBE, Valentin-Yves. A invenção da África: gnose, filosofia e a ordem do conhe-
cimento. Trad. Fábio Ribeiro. Petrópolis: Vozes, 2019, pp. 169-225; MORENO, Helena Wakim.
Voz d’Angola clamando no deserto: protesto e reivindicação em Luanda (1881-1901). São Paulo,
2014. 376 p. Dissertação (Mestrado em História Econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. Um contraponto significativo aos discursos
que insistem no padrão cultural ilustrado e europeu são os textos do chamado “renascimento
cultural lagosiano” da passagem do século XIX para o XX, que exprimiam uma crítica ao co-
lonialismo britânico na Nigéria acompanhada de uma valorização da cultura iorubá. Para uma
análise desse movimento intelectual, conferir MATORY, James Lorand. Black Atlantic religion:
tradition, transnationalism, and matriarchy in the Afro-Brazilian candomblé. Princeton/Oxford:
Princeton University Press, 2005, pp. 38-72.
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denunciaria como o caráter “decadente” e “moribundo” da cultura europeia,4


e que Jean-Paul Sartre viria a condensar na expressão “humanismo racista”.5
O pensamento anticolonial africano de meados do século XX foi
marcado por significativas ambivalências, já que ele era ao mesmo tempo
fruto de um terreno cultural e intelectual compartilhado com a Europa e
também crítico do eurocentrismo e dos modelos civilizatórios europeus.
Apresentando-se como projetos políticos modernos, herdeiros (ainda
que também críticos) de linguagens conceituais ocidentais, os diversos
nacionalismos anticoloniais africanos tinham o desafio de imaginar processos
políticos de libertação e a criação de novas nações envolvendo populações
colonizadas africanas majoritariamente não ocidentalizadas. Uma das mais
candentes questões enfrentadas pelos nacionalistas africanos consistia em
saber como adequar esses projetos às realidades sociais e culturais africanas
– ou vice-versa.
Os paradoxos dessa posição liminar e intersticial do ideário
emancipatório africano revelaram-se de diversas maneiras. O que este estudo
pretende apresentar é uma comparação entre as diferentes soluções para
esse problema apresentadas por dois ativistas do nacionalismo anticolonial:
C. L. R. James (em seus escritos do final da década de 1930)6 e Frantz Fanon
(que escreveu entre 1952 e 1961). Levando em consideração a distância
cronológica e geográfica entre esses dois intelectuais, podemos analisar
comparativamente os desdobramentos distintos de suas ideias e projetos
políticos, ao mesmo tempo em que as convergências e continuidades entre
suas concepções poderão indicar alguns dos impasses ideológicos do
anticolonialismo africano de meados do século XX.

4. CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Trad. Anísio Garcez Homem. Santa Catarina: Letras
Contemporâneas, 2010, p. 15.
5. Para a noção de “humanismo racista”, conferir SARTRE, Jean-Paul. “Prefácio”. In: FANON,
Frantz. Os condenados da terra. 2ª ed. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 1979, p. 17.
6. Este capítulo retoma e aprofunda, em chave comparativa, algumas análises sobre os escritos de
C. L. R. James do período apresentadas originalmente em MARCUSSI, Alexandre A. “O antico-
lonialismo como tragédia: ‘Os jacobinos negros’ entre a História e a política”. Cadernos de História,
Belo Horizonte: PUC-Minas, v. 19, n. 30, pp. 95-122, jan.-jul. 2018.
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representAções dos colonizAdos nA obrA de c. l. r. JAmes e frAntz


fAnon

Embora estivessem ligados a um ambiente ideológico semelhante,


os dois intelectuais dos quais nos ocuparemos viveram e escreveram suas
obras em espaços e tempos bastante distintos. Cyril Lionel Robert (C. L.
R.) James nasceu em 1901 na ilha caribenha de Trinidad, então colônia da
Grã-Bretanha. Após lecionar Inglês e História em sua ilha natal, mudou-se
em 1932 para Londres, onde participou da fundação, em 1937, do Escritório
do Serviço Internacional Africano (International African Service Bureau, mais
conhecido como African Bureau), uma instituição que tinha como objetivo
articular lideranças anticoloniais nas colônias africanas e na Europa e difundir
suas pautas junto à opinião pública europeia.7 Foi durante esse período na
Europa, pouco antes de se mudar para os Estados Unidos e bem antes de
ter visitado o continente africano (o que ele viria a fazer apenas durante a
década de 1950), que James publicou a obra que servirá de foco para nossa
análise: Os jacobinos negros,8 um estudo historiográfico da revolução de São
Domingos, movimento político protagonizado por escravos9 entre 1791 e
1804, que resultou na abolição da escravidão e na independência do Haiti.
Frantz Fanon também era caribenho, mas de formação cultural
francófona. Nasceu em 1925 na ilha de Martinica, então uma colônia

7. MCINTOSH, Andrew. C.L.R. James and The Black Jacobins revisited. Society, Springer US, v. 40, n.
4, pp. 69-71, maio-jun. 2003; SANTIAGO-VALLES, William F. C. L. R. James: asking questions
of the past. Race & Class, Londres: Institute of Race Relations, v. 45, n. 1, 2003, pp. 61-78.
8. JAMES, Cyril Lionel Robert. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Do-
mingos. Trad. Afonso Teixeira Filho. 1ª ed. rev. São Paulo: Boitempo: 2010.
9. Há uma discussão terminológica na historiografia recente sobre a escravidão a respeito do em-
prego do termo “escravo(a)”, observando-se uma tendência a substituir, sempre que possível,
a palavra por “escravizado(a)”. Entende-se que este segundo termo enfatizaria a humanidade
dos indivíduos submetidos à escravidão, ressaltando a ideia de que o cativeiro não era uma con-
dição natural, mas que suas vítimas haviam sido transformadas em escravos(as) por estruturas
sociais de produção e reprodução da escravidão. Uma vez que o uso indiscriminado do termo
“escravizado(a)” pode trazer o risco de minimizar as importantes distinções entre cativos afri-
canos privados de sua liberdade (“escravizados” em sentido estrito) e aqueles já nascidos sob a
condição jurídica da escravidão, opto pelo emprego do termo geral “escravos” para designar a
totalidade dos indivíduos submetidos ao regime jurídico da escravidão, sem com isso implicar
qualquer conotação de desumanidade dessas pessoas. Para um balanço historiográfico sintético
acerca das diferentes posições sociais e estratégias de atuação de escravos africanos e nascidos
nas Américas, conferir: FARIA, Sheila de Castro. “Identidade e comunidade escrava: um ensaio”.
Tempo, Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, v. 11, n. 22, 2007, pp. 122-146.
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francesa. Na condição de veterano do exército francês (junto ao qual


combateu durante a Segunda Guerra Mundial), recebeu financiamento para
estudar na França, onde obteve seu doutorado em Medicina em 1951, com
especialização em Psiquiatria. Ocupou em 1953 o posto de psiquiatra-chefe
no hospital psiquiátrico de Blida-Joinville, na colônia francesa da Argélia,
no norte da África, e logo juntou-se à Frente de Libertação Nacional,
movimento nacionalista argelino, tornando-se um de seus principais
intelectuais e representantes diplomáticos. Morreu em 1961, apenas três
dias depois de receber em mãos o exemplar impresso da última obra que
publicou em vida, Os condenados da terra.10
Trata-se, portanto, de escritos ligados a circunstâncias históricas distintas:
os textos de James no período que aqui nos interessa foram elaborados a
partir de uma experiência metropolitana antes da Segunda Guerra Mundial,
do Congresso Pan-Africano de Manchester de 1945, do fortalecimento de
sindicatos e partidos nacionalistas africanos e dos processos de independência
política das colônias.11 Fanon, por sua vez, publicou boa parte de suas obras
enquanto participava diretamente da luta armada nacionalista na Argélia e
atuava como representante diplomático em diversas nações africanas recém-
independentes ou em processo de independência, defrontando-se na prática
com os dilemas da descolonização e da formação e consolidação dos novos
Estados africanos.
A despeito dos diferentes contextos geográficos, cronológicos e
políticos, é possível constatar analogias na representação que ambos
fizeram dos povos africanos. Iniciemos por James. Aparentemente, não
encontramos em Os jacobinos negros uma representação das sociedades
africanas colonizadas, já que o livro aborda a independência do Haiti, muito
antes da implementação do colonialismo europeu na África. No entanto,
James analisou a revolução do Haiti do final do século XVIII como um
precedente histórico para os nacionalismos africanos do século XX, como o

10. As informações biográficas sobre Fanon foram extraídas de GORDON, Lewis R. What Fanon
said: a philosophical introduction to his life and thought. Nova York: Fordham Univeristy Press,
2015, passim.
11. Para uma análise panorâmica desses processos, veja-se o último capítulo deste volume, de autoria
de Leila Leite Hernandez. Além disso, conferir LE CALLENNEC, Sophie. “Os caminhos da
emancipação”. In: M‘BOKOLO, Elikia. África negra: História e civilizações: Tomo II: Do século
XIX aos nossos dias. Colab. Sophie Le Callennec e Thierno Bah. 2ª ed. Trad. Manuel Resende.
Lisboa: Edições Colibri, 2011, pp. 456-545.
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próprio autor afirmou em prefácio escrito na década de 1980: “Como será


visto de maneira geral, e particularmente nas suas três últimas páginas, o
livro foi escrito tendo em mente a África e não o Caribe.”12
A obra sugeria um paralelo entre os escravos haitianos do século XVIII
e os colonizados africanos do século XX: “os milhões de negros da África
e os poucos dentre eles que foram educados são tão excluídos naquela vasta
prisão hoje [em 1938] quanto os negros e os mulatos de São Domingos no
século XVIII.”13 Sendo assim, é lícito procurar na representação que James
fez dos “negros e mulatos de São Domingos” uma sugestão sobre a maneira
como ele entendia a situação dos povos africanos sob o regime colonial do
século XX. Não só a representação que fazia dos haitianos, mas também
sua descrição do continente africano no século XVIII encontra-se marcada
pelas imagens da África colonial:

A vida tribal foi destruída e milhões de africanos sem tribos foram jogados uns
contra os outros. [...] A violência e a ferocidade tornaram-se as necessidades
para a sobrevivência, e foram a violência e a ferocidade que sobreviveram.
Os crânios sorridentes na ponta de estacas, os sacrifícios humanos, a venda
dos próprios filhos como escravos: esses horrores foram o produto de uma
intolerável pressão sobre os povos africanos [...]14

Não é difícil ler na passagem transcrita acima, extraída de Os jacobinos


negros, um eco da célebre descrição que o romancista Joseph Conrad fizera,
em 1899, da selvageria criada pelo colonialismo europeu na África, por meio
de cenas que incluíam as “cabeças cravadas nas estacas” fincadas no chão do
entreposto colonial visitado pelo protagonista da novela Coração das trevas.15
O texto de Conrad teve ampla circulação e calorosa recepção nos meios
anticoloniais britânicos16 e certamente era conhecido por James, que falava
sobre o século XVIII, mas pensava no XX.

12. JAMES, C., op. cit., p. 12. SANTIAGO-VALLES, W., op. cit., enfatiza que a análise histórica de
Os jacobinos negros foi concebida para ilustrar e iluminar posturas e estratégias a serem adotadas na
luta pan-africanista e anti-imperialista dos anos 1930.
13. JAMES, C., op. cit., p. 340.
14. Ibid., pp. 21-22.
15. CONRAD, Joseph. Coração das trevas. Trad. Sergio Flaskman. São Paulo: Companhia das Letras,
2008, p. 92.
16. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “Persistência de trevas”. In: CONRAD, Joseph. Coração das
trevas. Trad. Sergio Flaskman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 155-179.
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À destruição da vida social africana, causada pelo comércio de


escravos, somavam-se ainda as influências negativas da escravidão haitiana
sobre os africanos levados à América como cativos. Em primeiro lugar, para
James, o trabalho forçado os tornara indisciplinados e despreparados para
empreender voluntariamente um trabalho agrícola produtivo. Após o fim
da escravidão em São Domingos, teria sido necessário “transformar uma
população de escravos, após anos de indisciplina, em uma comunidade de
trabalhadores livres.”17 Sem uma liderança firme para tanto, havia o risco
de que “os negros pudessem se dedicar ao cultivo de um pequeno terreno,
produzindo apenas o bastante para as suas próprias necessidades”,18 o que
seria, na concepção de James, incompatível com as demandas da construção
de uma nova nação independente e em plena campanha militar contra a
França napoleônica.
Além da inaptidão para o trabalho, os ex-escravos do Haiti ainda
carregariam, segundo James, as sequelas de sua parca escolaridade. Apesar
de o autor ter mencionado “a extraordinária agilidade intelectual e a
vivacidade espiritual”19 dos negros e negras haitianos, ele os caracterizou
como “uma massa atrasada e ignorante”20 e se referia a eles como os
“semisselvagens escravos de São Domingos”.21 No pensamento de James,
o estado “atrasado” de desenvolvimento dos haitianos parecia refletir não
apenas as deformações suscitadas pela escravidão, mas também o caráter
supostamente mais primitivo das próprias sociedades africanas das quais eles
eram oriundos, como fica sugerido na menção às “necessidades primitivas
dos africanos da costa dos escravos”.22 Em suma, James parecia subscrever a
suposição – que ele atribuía ao líder revolucionário Toussaint L’Ouverture –
de que “uma população de escravos, recém-chegados da África, não poderia
integrar-se à civilização por si mesma.”23 Fazia-se necessário, portanto, um
amplo trabalho de educação e civilização dos africanos no Haiti para garantir
sua emancipação.

17. JAMES, C., op. cit., p. 222.


18. Ibid., p. 222.
19. Ibid., p. 31.
20. Ibid., p. 185.
21. Ibid., p. 223.
22. Ibid., p. 176.
23. Ibid., p. 264.
218 IDEIAS E PRÁTICAS EM TRÂNSITO

Podemos supor que James estendesse o mesmo julgamento às


populações colonizadas africanas do século XX que não haviam recebido
uma educação ocidental. Numa descrição que se referia aos escravos
haitianos do século XVIII, mas poderia bem se aplicar aos colonizados
africanos do XX, o autor afirmou:

[...] um pequeno grupo deles aproveitava essa posição para se educar, adquirir
um pouco de cultura e aprender tudo o que pudesse. Os líderes das revoluções
foram geralmente aqueles que tiveram a capacidade de lucrar com o benefício
da cultura do sistema que combatiam, e a revolução de São Domingos não foi
uma exceção a essa regra.24

Para James, “o benefício da cultura do sistema que combatiam” parecia


indispensável para levar a bom termo a luta contra o imperialismo europeu.
Na revolução de São Domingos do século XVIII, esse benefício estaria
associado às ideias jacobinas da Revolução Francesa, lidas e apropriadas
pelas lideranças revolucionárias haitianas. Nas lutas anticoloniais do século
XX, por sua vez, a contribuição cultural europeia residiria na adoção do
socialismo, como James esclareceu em um artigo publicado em 1939:

Os negros na África estão presos e golpeiam as grades continuamente. É o


proletariado europeu que possui a chave. Permitam que os trabalhadores da Inglaterra,
França e Alemanha digam: “Levantam-se, ó filhos da fome” tão alto quanto os
revolucionários franceses gritaram Liberdade, Igualdade e Fraternidade e qual
força no mundo poderá deter aqueles negros? Qualquer um que conheça algo
sobre África entende isto.25

Na perspectiva de James, no final dos anos 1930, ficava subentendido


que os “semisselvagens” africanos não poderiam, sozinhos, organizar sua
própria luta pela liberdade contra o colonialismo. Assim como havia cabido ao

24. Ibid., p. 33.


25. JAMES, Cyril Lionel Robert. “A revolução e o negro”. In: ALFONSO, Daniel Angyalossy;
PABLITO, Marcello (Ed.). A revolução e o negro: textos do trotskismo sobre a Questão Negra.
São Paulo: Edições Iskra, 2015, pp. 33-34 (grifos meus). O artigo foi publicado nos EUA sob o
pseudônimo de JR Johnson, devido ao fato de que James se encontrava, à época, na condição de
imigrante ilegal, com visto expirado.
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jacobinismo e à Revolução Francesa “despert[ar] os escravos adormecidos”26


de São Domingos, seria papel da Quarta Internacional socialista convocar os
colonizados africanos (bem como os negros caribenhos e norte-americanos)
e organizar internacionalmente sua luta contra o colonialismo e o racismo:

Os negros que compreendem claramente a situação devem se juntar a esse


partido [a Quarta Internacional]. Os trabalhadores nunca conseguirão triunfar
sem um partido poderoso e com uma visão clara. [...] Homens e mulheres negras
de todos os países, na América, no Caribe, na África, a Quarta Internacional os
convoca a lutar por sua própria libertação, por plenos direitos sociais, políticos
e econômicos nos Estados Unidos, pela independência da África e a formação
de estados negros naquele continente.27

A ideia de uma “convocação” (externa e compulsória, portanto) para


“lutar por sua própria libertação” sugere bem os paradoxos da noção de
autonomia e liberdade africana imaginada por James. Oriundo das Antilhas
e escrevendo na Europa, James parecia empregar em relação às populações
africanas um certo tom de superioridade cultural, semelhante àquele que
Frantz Fanon denunciaria na atitude geral dos antilhanos negros em face aos
africanos.28 Seria de se supor, portanto, que o próprio Fanon tivesse outra
concepção dos africanos colonizados, com quem ele conviveu diretamente
durante vários anos. A despeito de uma alteração significativa de tom,
porém, a representação que o psiquiatra martinicano fazia dos africanos
trazia algumas convergências importantes com a de James.
Para Fanon, os colonizados negros (fossem africanos ou antilhanos)
viviam em um estado psicológico de alienação inevitavelmente provocado
pela situação colonial. Para os “evoluídos”, como eram chamados no mundo
colonial francês os colonizados ocidentalizados, sua autoimagem ideal seria
produzida a partir do parâmetro corporal da raça branca, resultando daí o
esfacelamento da consciência corporal e sua substituição por uma forma

26. JAMES, Cyril Lionel Robert. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Do-
mingos. Trad. Afonso Teixeira Filho. 1ª ed. rev. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 80.
27. JAMES, Cyril Lionel Robert. “Porque os negros devem se opor à guerra”. In: ALFONSO, Da-
niel Angyalossy; PABLITO, Marcello (Ed.). A revolução e o negro: textos do trotskismo sobre a
Questão Negra. São Paulo: Edições Iskra, 2015, p. 88.
28. Cf. FANON, Frantz. “Antillais et africains”. In: Œuvres. Paris: Éditions La Découverte, 2011,
pp. 704-712 (tradução minha). Todos os excertos de obras em línguas estrangeiras citados aqui
foram traduzidos por mim.
220 IDEIAS E PRÁTICAS EM TRÂNSITO

de autoidentificação patológica do sujeito negro.29 No caso dos africanos


afastados dos centros urbanos da colonização europeia, a situação colonial
teria conduzido a um estado de fossilização cultural aguda. Fanon referiu-
se a essas populações como um “povo [...] distribuído em círculos irreais,
esse povo sujeito a um terror indizível, mas feliz de se perder numa
tormenta onírica”, iludido “com histórias da carochinha” e entregue a uma
religiosidade irracional e supersticiosa e a “lutas tribais” e “fratricidas” nas
quais ele descarregava seus impulsos violentos (reações à violência estrutural
da situação colonial) sem direcioná-los ao alvo adequado, que seriam
os colonizadores.30 Essa imagem, contudo, não correspondia à cultura
tradicional africana que teria existido antes da colonização: na verdade,
a cultura dos africanos sob o regime colonial já seria o resultado de um
processo de “deformação” cultural:

A montagem do sistema colonial não ocasiona por isso a morte da cultura


autóctone. Pelo contrário, a observação histórica revela que o objetivo almejado
é mais uma agonia continuada do que um desaparecimento total da cultura
preexistente. Essa cultura, outrora viva e aberta ao futuro, fecha-se, congelada no
estatuto colonial, mantida nos grilhões da opressão. Ao mesmo tempo presente
e mumificada, ela depõe contra seus membros. Ela de fato os define sem apelo
possível. A mumificação cultural ocasiona uma mumificação do pensamento
individual. [...] É assim que se assiste à configuração de organismos arcaicos,
inertes, que funcionam sob a vigilância do opressor, calcados caricaturalmente
sobre instituições antes fecundas.31

A vida cultural dita “tradicional” das populações africanas nas


colônias europeias consistiria, para Fanon, em um conjunto de manifestações
culturais, instituições e figuras de autoridade controladas e muitas vezes
instituídas pelo próprio poder colonial, como no caso dos “djemaas
cabilas nomeados pela autoridade francesa [que] não são reconhecidos

29. Idem. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
30. Idem. Os condenados da terra. 2ª ed. Pref. Jean-Paul Sartre. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, pp. 41-44.
31. Idem. “Racisme et culture”. In: Œuvres. Paris: Éditions La Découverte, 2011, p. 718. Este ensaio
de Fanon, originalmente uma comunicação verbal de Fanon no I Congresso dos Escritores e
Artistas Negros de 1956, foi incluído na antologia póstuma Em defesa da revolução africana.
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pelos autóctones”.32 O autor descreveu essas manifestações culturais como


produtos de um processo de “encapsulação” e “objetificação” da vida
cultural africana pelo poder colonial, que assim desumanizava os africanos e
os aprisionava em estereótipos culturais. É verdade que Fanon ainda admitia
a existência, em algumas zonas distantes ou ocultadas do poder colonial, de
manifestações ainda autênticas e vivas das culturas africanas:

A cultura do povo dominado é esclerosada, agonizante. Nenhuma vida circula


ali. Mais precisamente, a única vida existente está dissimulada. A população
que normalmente assume, aqui e ali, alguns pedaços de vida, que conserva
significações dinâmicas das instituições, é uma população anônima. No regime
colonial, trata-se dos tradicionalistas.33

O dinamismo da cultura dos “tradicionalistas” seria, no entanto,


uma exceção na situação colonial, prevalecendo a condição “mumificada”
ou “esclerosada” da vida cultural. A isso somava-se, para Fanon, um segundo
fator de alienação da consciência dos colonizados: uma compreensão das
necessidades da luta anticolonial que teria sido distorcida pelo colonialismo.
Segundo o martinicano, as massas espoliadas africanas só conseguiam
conceber suas demandas no interior dos quadros de um “maniqueísmo”
criado pelas relações coloniais, que instituíam fronteiras rígidas e dicotômicas
entre brancos e negros, metropolitanos e “indígenas”. O maniqueísmo da
colonização “desumaniza o colonizado”,34 que só saberia expressar seus
desejos numa linguagem limitada e alienada:

32. Ibid., p. 718. Os djemaas eram unidades administrativas indiretas na Argélia, instituídas pelo poder
colonial e administradas diretamente por lideranças berberes indicadas. Para uma análise sobre
o papel das lideranças africanas nomeadas pelos governos coloniais franceses na África, conferir
MABEKO-TALI, Jean-Michel. Considerações sobre o despotismo colonial, e a gestão centrali-
zada da violência no Império colonial francês. Varia Historia, Belo Horizonte: UFMG, v. 29, n.
51, pp. 745-770, set.-dez. 2013.
33. FANON, Frantz. “Racisme et culture”. In: Œuvres. Paris: Éditions La Découverte, 2011, p. 724.
Aos “tradicionalistas” mencionados no excerto (que nunca chegam a ser identificados muito
claramente no texto), Fanon opõe os intelectuais urbanos de educação ocidental que aderem a
movimentos de “retorno” às raízes culturais africanas, tais como a Négritude. O argumento de
Fanon, neste caso, é o de que esses intelectuais não estariam imersos em culturas africanas vivas
e dinâmicas, de modo que o “retorno” proposto seria artificial, e as culturas supostamente tradi-
cionais revalorizadas seriam apenas uma caricatura fossilizada.
34. Idem. Os condenados da terra. 2ª ed. Pref. Jean-Paul Sartre. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 31.
222 IDEIAS E PRÁTICAS EM TRÂNSITO

O olhar que o colonizado lança para a cidade do colono é um olhar de luxúria,


um olhar de inveja. Sonhos de posse. Todas as modalidades de posse: sentar-se
à mesa do colono, deitar-se no leito do colono, com a mulher deste, se possível.
O colonizado é um invejoso. O colono sabe disto; surpreendendo-lhe o olhar,
constata amargamente mas sempre alerta: “Eles querem tomar o nosso lugar.”
É verdade, não há um colonizado que não sonhe pelo menos uma vez por dia
em se instalar no lugar do colono.35

Para Fanon, esse “olhar de inveja” estava muito longe de oferecer uma
atitude adequada à luta anticolonial, que devia destruir toda a estrutura
maniqueísta da colonização em vez de apenas trocar os lugares entre colonos
e colonizados, mantendo intactas as fronteiras sociais e econômicas. O
colonizado “invejoso”, que queria tomar à força o lugar do colono, pode
ser comparado à representação que Fanon fez do antilhano colonizado
emigrado para a França que desejava, patologicamente, tornar-se branco
como reação à discriminação racista.36
O problema da alienação dos africanos, para Fanon, não se encerrava
com o fim do governo colonial e com a independência, mas estendia-se
para o processo de formação das novas nações independentes. Sem uma
consciência clara dos desafios e das demandas da luta de libertação, os
africanos corriam o risco de se deixar iludir pelos discursos nacionalistas de
uma burguesia nativa parasitária, que desejava simplesmente “transferir aos
autóctones favores ilegais herdados do período colonial”, em vez de “ordenar
o Estado em função de relações sociais novas”.37 Assim sendo, para que fosse
possível promover um processo de libertação efetiva, seria imprescindível
que o nacionalismo puro e simples fosse aprofundado, enriquecido, e se
convertesse em “consciência política e social, em humanismo”.38 É nesse
sentido que podemos entender o lamento de Fanon em um de seus últimos
relatos, escrito durante uma missão diplomática em 1960, num momento
em que as independências formais iam se realizando rapidamente:

35. Ibid., p. 29.


36. Cf. Idem. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008, pp. 53-
82.
37. Idem. Os condenados da terra. 2ª ed. Pref. Jean-Paul Sartre. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 126.
38. Ibid., p. 167.
Leila Leite Hernandez • Alexandre Almeida Marcussi (organização) 223

O colonialismo e seus derivados não constituem, para ser sincero, os inimigos


atuais da África. A curto prazo, este continente estará libertado. De minha parte,
quanto mais eu adentro as culturas e os círculos políticos, mais se impõe a mim
a certeza de que o grande perigo que ameaça a África é a ausência de ideologia.39

Tanto em Fanon quanto em James, portanto, é possível apreender uma


representação dos povos colonizados que tornava difícil imaginar como
eles poderiam, sozinhos, assumir para si as responsabilidades da luta pela
própria libertação. Para James, em consonância com teses evolucionistas,
os africanos viveriam em um grau de desenvolvimento cultural mais
rudimentar, de modo que faltaria às massas dos colonizados o acesso à
cultura e à civilização (que podiam ser observadas apenas em uma pequena
elite ocidentalizada). Para Fanon, já não se tratava de uma questão de “atraso
cultural”. O próprio colonialismo e o racismo teriam se encarregado de
deformar a consciência do colonizado, nublando seu olhar e tornando-o
vítima de um tradicionalismo fossilizado e inerte, e de um maniqueísmo
redutor. O resultado, no entanto, era semelhante: as massas africanas,
“semisselvagens” ou “mumificadas”, necessitariam de um esforço de
formação e esclarecimento cultural e ideológico antes de poderem obter, de
forma autônoma, sua liberdade. Fazia-se necessária, pois, uma “pedagogia
da liberdade” cujos termos convém analisar.

trAgédiA e espontAneidAde nA pedAgogiA revolucionáriA de JAmes e


fAnon

Para James, convencido como estava do papel de liderança a ser


assumido pela Quarta Internacional e pelos intelectuais socialistas localizados
na metrópole no processo de descolonização da África, a questão parecia
ser mais simples do que para Fanon. Isso não significa, contudo, que não
restassem algumas perplexidades relevantes. Mais uma vez, sua análise da
revolução de São Domingos é indicativa dos prospectos – e riscos – que
o autor imaginava para a África do século XX. Como vimos, durante o
processo da independência haitiana, tratava-se de “transformar uma
população de escravos, após anos de indisciplina, em uma comunidade de

39. Idem. “Cette Afrique à venir”. In: Œuvres. Paris: Éditions La Découverte, 2011, p. 867.
224 IDEIAS E PRÁTICAS EM TRÂNSITO

trabalhadores livres.”40 Para isso, teria sido imprescindível a liderança firme


de Toussaint L’Ouverture, que James representou como uma personalidade
que sintetizou em si todos os elementos da revolução. Assim, é na avaliação
de James sobre a trajetória e as ações de Toussaint – modelo heroico da
libertação negra – que poderemos encontrar um veredito do autor sobre
as estratégias mais adequadas para a luta anticolonial. E, na medida em
que Toussaint era representado pelo autor como um “herói trágico”,41 sua
trajetória assinalava tanto os acertos quanto os erros da revolução haitiana.
James não hesitava em evidenciar o caráter autoritário e rigoroso do
governo provisório de Toussaint L’Ouverture, que instituiu regimes de
trabalhos forçados para os ex-escravos libertados e preservou o modelo de
exploração econômica baseado em latifúndios monocultores, a maior parte
dos quais de propriedade de brancos e de uma elite mulata. Mas não se
encontrava aí, para James, o “equívoco” de L’Ouverture, já que a manutenção
dos lucros agrícolas seria uma necessidade imperiosa diante da exigência
de manter um exército para resistir aos franceses e diante dos desafios de
reconstrução econômica do país: “A garantia decisiva da liberdade seria
a prosperidade da agricultura. Era a palavra de ordem de Toussaint.”42
Fazia-se necessário, para tanto, um processo de “esclarecimento” de uma
população que, recém-saída da escravidão, não podia ver com bons olhos a
manutenção de um regime de trabalhos forçados:

E em todas as proclamações que [Toussaint L’Ouverture] fazia, em todas as


leis e em todos os decretos que instituía, salientava os princípios morais, a
necessidade do trabalho, o respeito à lei e à ordem, o orgulho por São Domingos
e a veneração à França. Procurava elevar o povo a um certo entendimento acerca
das tarefas e responsabilidades da liberdade e da cidadania. Era a propaganda de
um ditador; mas ela não se baseava nos propósitos pessoais ou nos interesses
mesquinhos de uma classe que oprime a outra. Seu governo, como a monarquia
absoluta em sua época progressista, equilibrava-se entre as classes, mas o seu
governo tinha raízes na preservação dos interesses dos trabalhadores pobres.43

40. JAMES, Cyril Lionel Robert. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Do-
mingos. Trad. Afonso Teixeira Filho. 1ª ed. rev. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 222.
41. Ibid., pp. 264-265.
42. Ibid., p. 222.
43. Ibid., p. 227.
Leila Leite Hernandez • Alexandre Almeida Marcussi (organização) 225

Tendo em mente a necessidade de esclarecer as massas sobre as “tarefas


e responsabilidades da liberdade e da cidadania”, Toussaint L’Ouverture
instituiu um sistema educacional do povo em moldes franceses, concebido
como um projeto de civilização dos ex-escravos haitianos. Segundo James,
Toussaint “estava ansioso para ver os negros adquirirem o comportamento
social das melhores classes de brancos com os seus modos de Versalhes.”44
Para isso, ainda nas palavras do autor,

Instituiu escolas nas quais os negros recebiam educação elementar e aprendiam


a história grega e a romana. Mandou filhos de negros e mulatos à França para
serem educados numa escola especial que a República criara para eles. Anunciou
que não pagaria salário a quem não soubesse assinar o nome. E assim, em todas
as casas de Le Cap, podia-se ver homens e mulheres negros, alguns com até
cinquenta anos de idade, aprendendo a ler e a escrever. Nos distritos rurais, os
trabalhadores suplicavam a Sonthonax [governador colonial francês] para que
lhes trouxessem até mesmo crianças europeias que soubessem ler e escrever.
Os negros reconheciam a sua ignorância e queriam aprender com os brancos;
ser guiados por homens da França, homens como Laveaux e Sonthonax; ser
ensinados por crianças brancas. Tudo o que queriam era ver-se livres para
sempre do medo da escravidão.45

A pedagogia da libertação descrita por James no caso de São


Domingos redundava, como se vê, em uma espécie de tutela cultural da
metrópole francesa sobre os libertos da colônia. Até mesmo as crianças
europeias eram tidas como mais preparadas para uma vida civilizada do
que os “semisselvagens” ex-escravos, que, como supõe James, ansiavam
ardorosamente pelo esclarecimento fulgurante de uma liderança francesa
ilustrada. Quando transpomos o mesmo raciocínio para pensar sobre a
situação das colônias africanas no século XX, essa liderança seria fornecida,
para James, pelo socialismo internacional e pelo proletariado europeu, e
absorvida por meio das camadas ocidentalizadas das populações colonizadas.
No encerramento de Os jacobinos negros, James vaticinou a esse respeito:

44. Ibid., p. 226.


45. Ibid., pp. 166-167.
226 IDEIAS E PRÁTICAS EM TRÂNSITO

Os negros da África [em 1938] são mais avançados e preparados do que eram
os escravos de São Domingos. [...] Do povo que se esforça em agir surgirão
os líderes; não dos negros isolados no Guy’s Hospital ou na Sorbonne, dos
diletantes do surrealismo ou dos advogados, mas dos calmos recrutas de uma
força policial negra: o sargento do exército nativo francês ou da polícia inglesa,
aquele que se familiariza com as táticas e estratégias militares ao ler um panfleto
perdido a respeito de Lenin ou Trotski, como Toussaint que lia o padre Raynal.46

O paralelo entre a interpretação da revolução de São Domingos e o


prospecto das lutas anticoloniais africanas não poderia ser mais claro. Se as
ideias ilustradas francesas haviam inspirado a revolução haitiana no século
XVIII, o socialismo europeu faria o mesmo em relação aos nacionalismos
anticoloniais na África do século XX. A modernização, o treinamento na
disciplina militar e policial metropolitana e a leitura do pensamento político
radical europeu do século XX, portanto, seriam as chaves de acesso dos
colonizados africanos à liberdade, e aquilo que os tornava “mais avançados e
preparados” do que haviam sido os escravos da época da revolução haitiana.
Contudo, ironicamente, havia uma ponta de desconfiança de James na
capacidade do progressismo europeu de cumprir suas promessas radicais de
igualdade. Na interpretação do autor, a adesão incondicional de Toussaint
L’Ouverture ao jacobinismo e à civilização francesa, que fora sua maior
força no processo de inserir São Domingos na civilização, teria sido também,
tragicamente, sua maior fraqueza. Isso porque Toussaint confiou cegamente
nos governadores coloniais franceses mesmo quando parecia evidente o
intento de Napoleão de reescravizar os haitianos, o que levou à captura,

46. Ibid., pp. 341-342. James faz referência aqui ao “Abade Raynal”, como era conhecido o jesuíta
Guillaume Thomas François Raynal (1713-1796), intelectual francês associado à ilustração e
autor da obra História filosófica e política dos assentamentos e do comércio dos europeus nas duas Índias, pu-
blicada em 1770 e mais conhecida como História das duas Índias. A obra de Raynal fazia menção
a um “Spartacus negro” que acabaria com a escravidão, e James imaginou, hipoteticamente, que
Toussaint L’Ouverture pudesse ter sido inspirado por essa passagem da obra – o que exigiria que
o líder haitano tivesse ignorado sistematicamente as passagens racistas do livro. Laurent Dubois,
em discussão sobre a circulação atlântica de ideias no contexto da Revolução Francesa e da revo-
lução haitiana, sugeriu que os revolucionários haitianos se apropriaram seletiva e criativamente
das ideias ilustradas, radicalizando seu sentido e seu conteúdo antiescravista, que era moderado
nos autores franceses. Cf. DUBOIS, Laurent. Luzes escravizadas: repensando a história intelec-
tual do Atlântico francês. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes,
ano 26, nº 2, pp. 331-354, 2004. James, por sua vez, entendia o processo de forma mais unilateral,
dando maior peso às ideias francesas do que ao protagonismo intelectual dos haitianos.
Leila Leite Hernandez • Alexandre Almeida Marcussi (organização) 227

encarceramento e morte do líder revolucionário haitiano na França. Eis aí,


para James, a “tragédia” de um herói que se entregou aos ideais e valores de
uma civilização francesa que, ao fim e ao cabo, não esteve à altura de suas
promessas de liberdade. Da narrativa da revolução haitiana como “tragédia”
emerge, talvez, o questionamento: será que o socialismo europeu do século
XX viria a ser mais fiel aos anseios das massas africanas do que o fora a
França napoleônica em relação aos haitianos? O prognóstico, aparentemente
positivo e otimista, a respeito do papel de liderança a ser exercido pelos
organismos europeus na libertação da África, nublava-se com a ponderação
do ceticismo trágico de James.
É justamente esse ceticismo em relação ao papel a ser desempenhado
pelo pensamento europeu e pela liderança ocidentalizada que vemos
expresso, de forma mais enfática, nas teses de Fanon sobre a libertação
anticolonial. O martinicano buscou em seus escritos algum outro suporte
ideológico e cultural para o anticolonialismo, para além das ideias políticas
europeias. Para ele, eram evidentes os limites do pensamento político
europeu para as necessidades da luta anticolonial. Fanon mostrou-se, por
exemplo, profundamente desconfiado em relação ao papel que podia
ser desempenhado pela esquerda francesa na guerra de libertação da
Argélia, argumentando que a interferência metropolitana implicava um
condicionamento externo do movimento de independência argelino,
contradizendo assim as próprias reivindicações de autonomia política da
Frente de Libertação Nacional argelina:

Desde 1956, os intelectuais e os democratas franceses dirigem-se periodicamente


à FLN. Na maior parte dos casos, trata-se ora de conselhos políticos, ora
de críticas em relação à fisionomia da guerra de libertação. Essa atitude da
inteligência francesa não deve ser interpretada como fruto de uma solidariedade,
interna em relação ao povo argelino. Esses conselhos e críticas se explicam pelo
desejo, que não pode ser facilmente reprimido, de guiar, de orientar até mesmo
o movimento de libertação do oprimido.47

47. FANON, Frantz. “Les intellectuels et les démocrates français devant la révolution algérienne”.
In: Œuvres. Paris: Éditions La Découverte, 2011, pp. 759-760.
228 IDEIAS E PRÁTICAS EM TRÂNSITO

Aqui, os grupos progressistas da metrópole não figuram como fonte e


farol da luz da civilização a guiar os passos cambaleantes de um povo incapaz
de se organizar autonomamente. Pelo contrário, Fanon afirmava que até
a esquerda comunista francesa da década de 195048 estaria essencialmente
comprometida com um discurso de dominação colonial ou neocolonial:

A esquerda comunista, por sua parte, enquanto proclama a necessária evolução


dos países coloniais em direção à independência, exige a manutenção de
vínculos especiais com a França. Tais posições manifestam claramente que
mesmo os partidos ditos extremistas consideram que a França detém direitos
na Argélia e que o abrandamento da dominação não deve necessariamente se
acompanhar do desaparecimento de todos os vínculos. Essa disposição de
espírito se apresenta sob a forma de um paternalismo tecnocrático, de uma
chantagem para a regressão.49

Aquilo que James encarava como uma imprescindível orientação


ocidental dos povos negros em direção à civilização (mesmo que
pressentisse seus contornos trágicos), Fanon descrevia sem meias-palavras
como paternalismo, chantagem e neocolonialismo. Era preciso, pois, buscar
alhures uma solução para o “perigo da ausência de ideologia” na África.
Em relação a essa questão, podemos distinguir duas dimensões da
reflexão fanoniana. A primeira, essencialmente otimista, corresponde às
teses de Fanon sobre as virtudes da espontaneidade revolucionária africana
e o potencial transformador da luta anticolonial sobre a cultura nacional.
Se era verdade que a cultura dos colonizados se encontrava “mumificada”
e que sua consciência havia sido deformada pelo “maniqueísmo” do
colonialismo, também era verdadeiro, para Fanon, que esses entraves
ideológicos poderiam ser superados de forma espontânea pela própria
práxis revolucionária. Ao participarem diretamente da luta anticolonial, os
colonizados viriam a adquirir clareza de percepção e de consciência, e suas

48. Enquanto James emprega o termo “socialista” para designar a atuação da Quarta Internacional e
dos partidos europeus de inspiração marxista, Fanon prefere o adjetivo “comunista” ao se referir
ao Partido Comunista Francês, motivo pelo qual os dois termos assumem, nesta análise compa-
rativa, sentido próximo, fazendo referência geral às diversas correntes do pensamento marxista
europeu de meados do século XX.
49. Ibid., p. 767. Para a análise de uma orientação semelhante do Partido Comunista Português em
período pouco anterior a esse em que Fanon escreve, veja-se o capítulo de Helena Wakim More-
no, neste volume.
Leila Leite Hernandez • Alexandre Almeida Marcussi (organização) 229

manifestações culturais poderiam readquirir um caráter dinâmico e aberto à


transformação e à ressignificação.

A mobilização das massas, quando se efetua por ocasião da guerra de libertação,


introduz em cada consciência a noção de causa comum, de destino nacional,
de história coletiva. [...] A violência ergue o povo à altura do líder. Daí essa
espécie de reticência agressiva com relação à máquina protocolar que os
jovens governantes se apressam a montar. Quando participam, na violência, da
libertação nacional, as massas não permitem que ninguém se apresente como
“libertador”. Mostram-se ciumentas do resultado de sua ação e abstêm-se de
confiar a um deus vivo seu futuro, seu destino, a sorte da pátria. Totalmente
irresponsáveis ontem, pretendem hoje tudo compreender e tudo decidir.
Iluminada pela violência, a consciência do povo rebela-se contra toda pacificação.
Os demagogos, os oportunistas, os mágicos enfrentam daí em diante uma
tarefa difícil. A praxis que as lançou num corpo-a-corpo desesperado confere
às massas um gosto voraz do concreto. A empresa da mistificação torna-se, a
longo prazo, praticamente impossível.50

A tese fanoniana do poder purificador e ideologicamente positivo


da prática revolucionária é ilustrada de forma modelar por sua análise da
guerra de libertação argelina, publicada em 1959 na obra O ano V da revolução
argelina.51 Instância após instância, Fanon tentou mostrar nesse estudo que
a luta anticolonial promovia o dinamismo cultural e a modernização da
cultura nacional, ao mesmo tempo em que fazia os argelinos superarem os
preconceitos e os traços irracionais herdados da colonização. Em primeiro
lugar, seria possível observar a modernização dos costumes tradicionalmente
observados nas relações de gênero: à medida que as mulheres adquiriam
papel ativo na revolução, libertavam-se da obrigação de usar seus véus (que
não eram convenientes em algumas ações revolucionárias) e os empregavam
seletivamente, inclusive como forma de ocultamento em relação ao olhar
do colonizador, rejeitando tanto uma ocidentalização completa do vestuário
quanto um culto irracional e retrógrado da tradição cultural. Paralelamente,

50. Idem. Os condenados da terra. 2ª ed. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 1979, pp. 73-74.
51. FANON, Frantz. “L’An V de la révolution algérienne”. In: Œuvres. Paris: Éditions La Découver-
te, 2011, pp. 259-418. A obra foi republicada, na edição francesa de 1972, com o título Sociologie
d’une révolution.
230 IDEIAS E PRÁTICAS EM TRÂNSITO

sua conquista do espaço público e sua posição de igualdade em relação aos


guerrilheiros homens alterava as hierarquias internas à família muçulmana
tradicional e conservadora.52 As necessidades da luta anticolonial faziam os
colonizados abandonarem sua antiga desconfiança em relação à medicina (vista
antes como recurso de controle do colonizador) e buscarem, eles próprios,
formação médica.53 As necessidades práticas da luta e da comunicação militar
levavam o povo a adotar os modernos meios de comunicação, tais como
o rádio, antes repudiado por ser apenas a caixa de ressonância da voz do
colonizador.54 Finalmente, a luta de argelinos árabes e berberes junto com os
franceses ou descendentes de franceses que se identificavam à nação argelina
e às demandas do povo eliminava o racismo e o maniqueísmo da consciência
do colonizado.55 Gênero e família, ciência, tecnologia e humanismo: eis os
campos da reviravolta que a luta nacionalista teria promovido, “regenerando”
a consciência argelina outrora deformada pela situação colonial.
O papel das lideranças nesse processo é significativamente minimizado,
como fica claro na análise sobre o uso do rádio pelos combatentes. Antes
da luta armada, o rádio era repudiado pelos argelinos como representante
da voz do colonizador, mas essa percepção mudou com as transmissões
ilegais da rádio da Frente de Libertação Nacional (FLN), a La voix de l’Algérie
combattante (“A voz da Argélia combatente”). Os argelinos começaram a ouvir
as transmissões diárias para se informarem a respeito das pautas anticoloniais
e das notícias dos combates. A princípio, pareceria se tratar, nesse caso, da
difusão unilateral de um discurso oficial dos dirigentes da FLN para uma
formação didática da opinião popular e para uma incorporação do povo sob
o signo e o entendimento impostos pelo partido: “O argelino que deseja
viver ao mesmo nível que a revolução tem finalmente a possibilidade de
ouvir uma voz oficial – a dos combatentes – a lhe explicar o combate, lhe
narrar a história da libertação em curso, incorporá-lo enfim à nova respiração
da nação.”56

52. Ibid., pp. 271-301.


53. Ibid., pp. 353-376.
54. Ibid., pp. 303-330.
55. Ibid., pp. 377-407. Logo se nota que, apesar de repudiar o controle que os intelectuais de es-
querda franceses queriam exercer sobre a FLN, Fanon nunca questionou a pertinência da adesão
sincera de alguns franceses à causa nacionalista, desde que ela fosse horizontal e não implicasse
uma tutela imperialista.
56. Ibid., p. 319.
Leila Leite Hernandez • Alexandre Almeida Marcussi (organização) 231

A transmissão de informações, contudo, não implicava para Fanon um


paradigma de comunicação vertical, em que caberia aos dirigentes da FLN
o papel de emissores de uma propaganda oficial e, ao povo argelino, o mero
papel de receptores passivos da “voz combatente”. Pelo contrário, Fanon
concebia o processo como uma forma de coautoria. Isso porque o governo
colonial francês tentava encobrir a transmissão da Voix de l’Algérie com
ondas radiofônicas conflitantes e interferências, tornando a transmissão
quase inaudível na maior parte do tempo. Fanon descreveu o papel ativo
desempenhado pelos ouvintes, que procuravam frequências alternativas
para ouvir trechos da transmissão ou que passavam horas diante do aparelho
tentando ouvir fragmentos de informações. Sobre essa mensagem quebrada
e inaudível, mas ainda assim esperada com ansiedade e ouvida com atenção,
Fanon afirmou:

Mal compreendida, coberta por uma interferência incessante, obrigada a se


deslocar de frequência duas ou três vezes no curso de uma mesma transmissão,
A voz da Argélia combatente não é, quase nunca, ouvida de forma linear. É uma
voz cortada, descontínua. [...] Nessas condições, clamar ter ouvido A voz da
Argélia é, num certo sentido, alterar a verdade, mas é sobretudo a ocasião de
proclamar sua participação, pelo avesso, na essência da revolução. É fazer
uma escolha deliberada, ainda que não explícita nos primeiros meses, entre a
mentira congênita do inimigo e a própria mentira do colonizado, que adquire
subitamente uma dimensão de verdade.
Essa voz, frequentemente ausente, fisicamente inaudível, que cada um sente
elevar-se em si, fundada sobre uma percepção interior que é a da Pátria,
materializa-se de maneira irrecusável. Cada Argelino, de sua parte, emite e
transmite a nova linguagem. A nova modalidade de existência dessa voz evoca,
em mais de um sentido, a da revolução: atmosfericamente presente, mas não
objetivamente, em pedaços separados.57

Toda pretensão de didatismo e de unilateralidade se esvai, aqui onde


Fanon aludia àquela que era a tecnologia de comunicação de massas por
excelência: o rádio. Nem mesmo nesse caso a comunicação se faria vertical:
não se tratava do partido formando o povo, mas do povo formando a
si mesmo numa dinâmica em que a mensagem nacional era completada,

57. Ibid., pp. 320-321.


232 IDEIAS E PRÁTICAS EM TRÂNSITO

ressignificada e retransmitida por cada ouvinte, transformando a “mentira”


do colonizado (sua invenção) na “verdade” da nação, “atmosfericamente
presente” e nunca objetificável.58
A interpretação sobre A voz da Argélia combatente marca aquele que
talvez seja o ponto alto da concepção espontaneísta de Fanon sobre a luta
de libertação. Contudo, esta convive nos escritos fanonianos com uma
concepção menos otimista da revolução, que pressupunha a necessidade de
uma pedagogia ideológica complementar à espontaneidade revolucionária.
Isso porque, como vimos, era preciso reformar a consciência do colonizado,
deformada pelo maniqueísmo patológico da situação colonial. Psiquiatra
por formação e prática clínica, Fanon via a necessidade de conduzir os
sujeitos alienados para sua libertação, já que a percepção dos colonizados se
encontrava tão distorcida pelo colonialismo; sua alienação, tão encravada no
domínio psicológico do inconsciente, que eles não se libertariam por conta
própria. Clínica e revolução se complementavam:

Surge, então, a necessidade de uma ação conjunta sobre o indivíduo e sobre


o grupo. Enquanto psicanalista, devo ajudar meu paciente a conscientizar seu
inconsciente, a não mais tentar um embranquecimento alucinatório, mas sim a
agir no sentido de uma mudança das estruturas sociais. [...] meu objetivo será,
uma vez esclarecidas as causas, torná-lo capaz de escolher a ação (ou a passividade)
a respeito da verdadeira origem do conflito, isto é, as estruturas sociais.59

A ponderação sobre o inconsciente “alucinatório” do colonizado torna


problemática a formação espontânea da consciência nacional descrita em O
ano V da revolução argelina. Se os argelinos “inventavam” a mensagem nacional
que ouviam pela rádio, o que garantiria que essa invenção não viesse a ser
a alucinação do alienado, ainda preso à psicose da situação colonial? Seria
necessário que a terapia desnublasse a percepção inconsciente do colonizado,
habilitando-o então a agir por conta própria e decidir, daí em diante, seu
destino.

58. Veja-se também a análise feita por GIBSON, Nigel. “Jammin’ the airwaves and tuning into the
revolution: the dialectics of the radio in L’An V de la révolution algeriénne”. In: GORDON, Lewis
R.; SHARPLEY-WHITING, T. Denean; WHITE, Renée T (Ed.). Fanon: a critical reader. Ox-
ford/Cambridge, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1996, pp. 273-282.
59. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008,
pp. 95-96.
Leila Leite Hernandez • Alexandre Almeida Marcussi (organização) 233

Esse momento clínico, dirigido, de reforma da consciência dos colonizados


pode ser visto claramente na última obra escrita por Fanon, Os condenados da
terra, de 1961. Apesar de Fanon ter se mantido organicamente vinculado à
Frente de Libertação Nacional e à luta anticolonial argelina até o final de
sua vida, sua última obra olha com uma lúcida desconfiança para o processo
político revolucionário em curso, entrevendo seus impasses e relativizando
as certezas do programa partidário que ele expressara de forma tão otimista
dois anos antes, em O ano V da revolução argelina. Nesse sentido, o “estilo
tardio” dos últimos escritos de Fanon refletia a posição paradoxal de um
intelectual politicamente engajado e, ao mesmo tempo, um “exilado” – na
acepção que Edward Said confere a esta expressão, ou seja, a de um intelectual
deslocado do comprometimento imediato com instituições e movimentos
partidários, que desnaturaliza de forma desconfortável os processos políticos
e aponta para impasses e aporias sem que necessariamente se declare capaz
de fornecer-lhes respostas claras e programáticas.60
Esses impasses ficam especialmente evidentes na análise que Fanon
apresenta a respeito das “fraquezas da espontaneidade” e das relações entre
a cidade e o campo em Os condenados da terra. Para ele, a população rural das
colônias africanas seria a portadora das demandas efetivamente radicais da
luta de libertação, em contraste com o caráter politicamente mais moderado
e conservador dos setores sociais urbanos. A concepção sindicalista e
proletária das lideranças socialistas urbanas, de formação metropolitana,
teria sua radicalidade mitigada na medida em que defendia benefícios para
um proletariado urbano que, na sociedade colonial, constituía uma espécie
de classe privilegiada, inserida em uma economia urbana parasitária cuja
existência demandava a exploração contínua da população rural. Fanon
ressaltava o caráter inadequado, externo, até mesmo colonial da ideologia
partidária urbana para a luta de libertação: “A noção de partido é uma noção
importada da metrópole.”61

60. SAID, Edward W. “Exílio intelectual: expatriados e marginais”. In: Representações do intelectual: as
Conferências Reith de 1993. Trad. Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp.
55-70. A noção de “estilo tardio” é usada também por Edward Said para se referir a obras inte-
lectuais ou artísticas que recusem conciliações e sínteses reconfortantes, insistindo em apresentar
como irresolvidas as contradições. Cf. Idem. SAID, Edward W. Estilo tardio. Trad. Samuel Titan
Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
61. FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2ª ed. Pref. Jean-Paul Sartre. Trad. José Laurênio de Melo.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 90.
234 IDEIAS E PRÁTICAS EM TRÂNSITO

Portanto, seria apenas com a integração das massas rurais que a luta
ganharia seu caráter verdadeiramente revolucionário. Contudo, o povo
dos campos careceria de orientação ideológica para identificar seu inimigo,
escolher as estratégias de ação adequadas à sua libertação e construir um
projeto político igualitário para a nação independente, que não redundasse
em mera substituição da burguesia colonial metropolitana pela burguesia
autóctone. Fanon assinalava a necessidade de orientar a ação camponesa:

Uma vez mais recaímos nessa obsessão que gostaríamos de ver partilhada
pela totalidade dos homens políticos africanos: a necessidade de esclarecer o
esforço popular, de iluminar o trabalho, de desembaraçá-lo de sua opacidade
histórica. Ser responsável num país subdesenvolvido é saber que tudo repousa
definitivamente na educação das massas, na elevação do pensamento, no que se
chama um tanto precipitadamente politização.62

Na concepção fanoniana, o processo seria realizado por meio de uma


fecundação recíproca entre a cidade e o campo. A partir de um determinado
ponto de agudização da luta política nas cidades, os militantes mais radicais do
proletariado urbano seriam expulsos dos partidos nacionalistas moderados
e perseguidos politicamente, buscando asilo e proteção nas aldeias rurais,
onde ajudariam o campesinato africano a “elevar” sua consciência ao estado
propício para a mobilização revolucionária. Esse campesinato, por sua vez,
uma vez tendo aderido à luta de libertação, viria a radicalizar o reformismo
moderado do partido urbano. As massas rurais seriam responsáveis pelo
direcionamento ideológico “espontâneo” da revolução uma vez que tivessem
sido politizadas pelos intelectuais urbanos e tivessem iniciado sua práxis
libertadora e desalienante. É como se o proletariado urbano, apesar de
moderado em suas posições políticas, pudesse fornecer a ignição inicial
de uma explosão da consciência revolucionária camponesa que, de outro
modo, não poderia ocorrer, visto que os camponeses ainda estariam presos
nos condicionamentos criados pela cultura colonial. Uma vez iniciado o
processo, porém, ele seguiria de forma espontânea à medida que a práxis
desalienasse os sujeitos políticos revolucionários.

62. Ibid., p. 161.


Leila Leite Hernandez • Alexandre Almeida Marcussi (organização) 235

Todas essas explicações, essas sucessivas iluminações da consciência, essa


marcha na via do conhecimento da história das sociedades, só são possíveis
no arcabouço de uma organização dos elementos revolucionários vindos
das cidades no início da insurreição e daqueles que chegam aos campos
no desenrolar da luta. Este núcleo é o que constitui o organismo político
embrionário da insurreição. Mas, por seu lado, os camponeses que elaboram
seus conhecimentos em contacto com a experiência revelar-se-ão aptos a dirigir
a luta popular. Instala-se uma corrente de edificação e enriquecimento recíproco
entre a nação em estado de guerra e seus dirigentes.63

Diferentemente de James, Fanon julgava as ideologias europeias como


externas e inadequadas às sociedades africanas, mas reconhecia também
a necessidade de educar as massas camponesas por meio da difusão de
ideias oriundas dos militantes urbanos politizados e ocidentalizados – as
quais, portanto, só podem ser consideradas como igualmente “externas” às
populações rurais. Tratava-se, portanto, de uma espécie de “espontaneidade
limitada”, que implicava uma centralidade das ações da massa camponesa na
direção das táticas e dos objetivos políticos da luta de libertação, desde que
essa massa tivesse sido previamente educada por elementos externos a ela.
As análises de Fanon sobre a “grandeza” e as “fraquezas da
espontaneidade” remetem à contribuição dada pela intelectual polonesa Rosa
Luxemburgo, no início do século XX, para a discussão sobre os métodos
revolucionários na tradição marxista europeia.64 Luxemburgo analisou
as relações entre o caráter espontâneo e a natureza politicamente dirigida

63. Ibid., p. 117.


64. Convém esclarecer que não há menção direta a Rosa Luxemburgo nos escritos de Fanon e que
não se encontra, na listagem das obras constantes de sua biblioteca pessoal, nenhum escrito da
autora. Cf. KHALFA, Jean. “La bibliothèque de Frantz Fanon”. In: FANON, Frantz. Écrits sur
l’aliénation et la liberté: Œuvres II. Ed. Jean Khalfa e Robert Young. Paris: Éditions La Découverte,
2015, pp. 585-655. Isso não significa, contudo, que Fanon não tenha tido acesso a textos da
autora (que não fossem de sua propriedade) ou não tenha entrado em contato com a discussão
do luxemburguismo por vias indiretas, como por meio da obra de Lenin (abundante em sua
biblioteca) ou de Lukács. Há autores com os quais Fanon dialoga explicitamente em suas obras
(como Jacques Lacan, por exemplo) que não constam de sua biblioteca, e é notória a escassez de
referências bibliográficas no estilo de escrita do autor, especialmente em suas últimas obras. De
todo modo, o que se está tentando argumentar aqui não é uma influência direta de Rosa Luxem-
burgo sobre Frantz Fanon, ou uma continuidade linear entre as concepções de espontaneidade
de ambos. Pelo contrário, o que importa destacar é a forma como a situação colonial exigia, para
Fanon, que o problema fosse pensado em termos diferentes daqueles que haviam sido postula-
dos por Luxemburgo em relação ao contexto europeu.
236 IDEIAS E PRÁTICAS EM TRÂNSITO

dos movimentos socialistas na Alemanha e na Rússia, enfatizando a ideia


de espontaneidade e o conceito de “autodireção” das massas proletárias,
embora nunca tenha rejeitado por completo a importância de uma direção
partidária.65 As ideias defendidas por Luxemburgo não são inteiramente
consistentes ao longo do tempo, prevalecendo ora a ideia de que “a massa”
deveria dirigir o movimento político após ser educada e esclarecida pelos
partidos políticos66 – posição semelhante à de Fanon em Os condenados da
terra –, ora a defesa do papel de liderança do partido em relação a uma massa
que se politiza espontaneamente, de forma prévia, por meio da práxis direta
das greves67 – o que parece mais próximo da concepção de desalienação
espontânea de O ano V da revolução argelina.
Como vimos, Fanon passou a ver com crescente ceticismo a ideia
de uma desalienação espontânea em um mundo colonial marcado pelo
maniqueísmo e pelas neuroses do colonialismo, insistindo na necessidade
de educação prévia das massas camponeses “mumificadas”. A direção da
luta de libertação, no entanto, não poderia sob hipótese alguma ser deixada
a encargo dos partidos urbanos, cujas demandas seriam excessivamente
conciliatórias com a estrutura social do colonialismo em comparação
com a radicalidade do campesinato. Nesse sentido, seria necessário que o
partido acolhesse as massas rurais para que estas, de fato, dirigissem a luta.
A educação e a formação política inicial adviriam dos membros urbanos
mais radicais do partido, exilados para o campo, mas a direção posterior da
luta deveria ser realizada pelas massas camponesas previamente esclarecidas.
A diferença crucial entre as situações russa e alemã avaliadas por
Luxemburgo e o contexto colonial africano analisado por Fanon é que,
no último caso, a ideologia revolucionária dos partidos urbanos não seria
apenas uma força potencialmente antidemocrática, mas seria de fato externa
à sociedade rural. Na verdade, essa ideologia teria mesmo um caráter
colonialista, comprometido com as demandas de um proletariado urbano
cuja existência social dependia da exploração dos campos pela cidade
colonial. As reivindicações das classes econômicas urbanas, num certo

65. Cf. GUÉRIN, Daniel. Rosa Luxemburgo e a espontaneidade revolucionária. São Paulo: Perspectiva,
1982.
66. Cf. LUXEMBURGO, Rosa. “Massas e chefes”. In: GUÉRIN, Daniel. Rosa Luxemburgo e a espon-
taneidade revolucionária. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 81
67. Idem. Greve de massas, partido e sindicatos: (1906). Trad. José Reis. São Paulo: Kairós Livraria e Edi-
tora, 1979, pp. 59-60.
Leila Leite Hernandez • Alexandre Almeida Marcussi (organização) 237

sentido, davam continuidade à estrutura colonial de exploração econômica


do campesinato. Sendo assim, os partidos urbanos seriam incapazes, sem
uma “retrofecundação” por parte das massas camponesas, de promover o
fim da condição colonial dessas sociedades.
As oscilações entre um caráter mais espontaneísta e outro mais
vanguardista ou dirigido da luta de libertação anticolonial não chegam a
ser harmonizadas ou eliminadas na obra de Fanon, antes apresentando-
se continuamente como uma tensão irresolvida. Talvez essa fosse uma
tensão impossível de ser resolvida dentro das premissas do pensamento
fanoniano, dada a resistência do martinicano em reconhecer nas culturas
rurais africanas, “mumificadas”, uma fonte espontânea e independente de
reflexão crítica sobre a condição colonial. Sendo assim, a organização de
uma rebelião que pusesse em marcha a práxis libertadora teria forçosamente
de advir dos intelectuais das cidades, prontos primeiro a ensinar as massas
rurais para depois serem ensinados por elas.

considerAções finAis

Vinte e três anos e o mar Mediterrâneo separam as reflexões de C. L. R.


James em Os jacobinos negros (1938) das palavras derradeiras de Frantz Fanon
em Os condenados da terra (1961). James compôs seu clássico historiográfico
na Europa, antes da afirmação enfática das pautas independentistas pelas
lideranças políticas africanas. Não surpreende, portanto, que não tenha
conseguido enxergar com clareza o protagonismo dos agentes políticos
africanos, insistindo em uma liderança euro-ocidental exercida pela Quarta
Internacional socialista no processo de libertação do continente africano.
Fanon, por sua vez, não apenas elaborou suas reflexões num momento
posterior, de acirramento das lutas anticoloniais, como de fato escreveu de
dentro do furacão, como participante direto da luta armada na Argélia na
segunda metade dos anos 1950. Sua visão, portanto, inclui uma percepção
muito mais clara do papel desempenhado pelos colonizados no processo de
sua emancipação política.
Isso nos ajuda a contextualizar historicamente o contraste entre as
noções de liderança revolucionária de James e Fanon. O primeiro imaginava
um projeto de educação das massas africanas e afrodiaspóricas em moldes
ocidentais – embora o processo fosse pintado com as tintas da tragédia.
O segundo, por sua vez, apostava em uma espontaneidade rural africana
238 IDEIAS E PRÁTICAS EM TRÂNSITO

ampliando a limitada consciência revolucionária das cidades – embora ainda


sublinhasse a necessária intervenção dos intelectuais ocidentalizados para
iniciar o processo. Num e noutro caso, reconhecem-se os mesmos elementos
do processo de emancipação anticolonial: o papel mobilizador das ideologias
políticas ocidentais e os riscos de imposição de uma concepção eurocêntrica
e imperialista de libertação. Contudo, a ênfase e o foco parecem estar
trocados: enquanto James enfatizava o primeiro aspecto, Fanon buscou
ressaltar o segundo.
O que surpreende, no entanto, não são os contrastes, mas as
convergências entre as ideias de ambos acerca dos vínculos da liderança
anticolonial com a cultura europeia, os quais apontam para os “territórios
sobrepostos” nos quais a resistência anticolonial emergiu a partir de uma
fecundação recíproca entre ideias europeias, diaspóricas e africanas. Mais
que isso, a noção persistente de uma suposta necessidade de “correção”
da consciência dos colonizados, a ser realizada pelos ativistas de formação
ou influência europeia, é eloquente a respeito da relação de desconfiança
que muitos intelectuais pan-africanistas mantinham com as culturas rurais
africanas e da confiança que depositavam no pensamento político radical
europeu como fonte exclusiva de reflexão e oposição racional à exploração
do colonialismo.
Subsistia, ao longo do período que separa James de Fanon, uma
concepção de emancipação e de desenvolvimento social e político que só
podia ser concebida em termos convergentes com a modernidade ocidental
– premissa a que Lewis Gordon deu o nome de “euromodernismo”68 –
e que implicava a necessidade de um esforço de educação ocidental das
sociedades colonizadas. Essa persistência de uma noção didática de
emancipação converge com o que Achille Mbembe afirmou sobre princípios
teleológicos subjacentes ao pan-africanismo, tanto antes quanto depois da
Segunda Guerra: “os nacionalismos africanos do pós-guerra substituem o
conceito de ‘civilização’ pelo de ‘progresso’. Mas é para melhor desposar
as teleologias da época.”69 Persistia, subterrânea, mas conduzindo a
proposição das ações políticas, uma percepção segundo a qual a superação
do colonialismo precisaria, de alguma forma, primeiro reproduzir os passos
da modernidade europeia, para depois disso poder transcendê-la e superá-

68. GORDON, L., op. cit., p. 87.


69. MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014, p. 155.
Leila Leite Hernandez • Alexandre Almeida Marcussi (organização) 239

la dialeticamente. A filosofia da história que informava as reflexões de


James e Fanon, portanto, não estava inteiramente liberta daquele paradigma
eurocêntrico de pensamento histórico que Dipesh Chakrabarty denominou
“historicismo”, e que consiste em imaginar que a modernização dos espaços
coloniais e periféricos do capitalismo global só pode ocorrer como repetição
de processos culturais e políticos já transcorridos antes na Europa. Para
Chakrabarty, essa noção de tempo redunda na atribuição de um caráter
“pré-político” às culturas rurais e não ocidentais, as quais precisariam
supostamente passar por uma ocidentalização para que se convertessem
em sujeitos políticos modernos.70 Tornava-se impossível, pois, imaginar
qualquer forma de racionalidade política aos sujeitos colonizados que não
fosse “semisselvagem” ou “mumificada”.
Os paradoxos que pudemos observar nas ideias de James e Fanon
a respeito desse tema – uma aceitação tácita da tese “euromodernista”
concomitante com uma desconfiança em relação à adequação dessa
modernidade europeia às sociedades africanas – revelam alguns dos impasses
e desafios do pensamento libertário africano do século XX nesse vasto
espaço intercontinental em que ele se desenvolveu. As turbulências sociais e
políticas das décadas subsequentes às independências dos Estados africanos,
sem excluir outros fatores ligados à condição neocolonial de suas estruturas
políticas e econômicas, seriam decorrências históricas desses complexos
desafios e do persistente descompasso entre as elites políticas que lideraram
as independências e as vastas populações rurais que se distribuíam, ainda em
grande medida incógnitas, pelos territórios recém-descolonizados.

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