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acontecimentos do período. Ele destaca O autor então lança uma
que o período 1945-64 foi de democracia ideia polêmica, contestando a tese da
limitada. O autoritarismo se manifestava inevitabilidade da resistência ao golpe.
em muitos aspectos que remontam à Segundo ele, Jango era bastante popular e
primeira república e principalmente as forças de que dispunham as esquerdas,
à ditadura varguista. É nesta que ele nas instituições, sindicatos, movimentos
localiza um importante elemento para populares e nas próprias Forças Armadas
compreender a ditadura que se seguiu: o não eram desprezíveis. Para ele, a esquerda
nacional-estatismo, caracterizado por um que apoiava Jango se rendeu por não saber
Estado forte tanto no que diz respeito ao o que fazer quando a tática conciliatória não
desenvolvimento econômico (ainda que funcionou mais. No capítulo seguinte, o autor
não necessariamente na distribuição de inclusive aponta que essa paralisia poderia
renda) como no controle social. Apesar ser motivada por até parte das lideranças
de ter perdido fôlego na década de reformistas estarem contaminadas pelo
1950 o nacional-estatismo ainda tinha medo de uma revolução. Por isso também
adeptos tanto à esquerda como à direita. que Reis observa que ainda que de fato
tenha havido apoio dos EUA ao golpe, não
Ao assumir o poder, João Goulart
se deve superestimar sua participação sob
“poderia [...] numa frente popular que
risco de minimizar a importância das forças
se esboçara na resistência ao golpe [do
golpistas internas. A influência externa
parlamentarismo], dispor de condições
se dava, de acordo com o autor, mais no
para retomar o nacional-estatismo popular
sentido de um medo por parte das forças
já entrevisto no último governo Vargas”5.
golpistas de que os recentes movimentos
As greves e movimentações populares
socialistas e nacionalistas na África, Ásia
que haviam crescido na campanha
e principalmente em Cuba pudessem
legalista (movimento para assegurar o
inspirar ações mais radicais dentro do Brasil.
direito de Goulart assumir a presidência)
incorporavam ao nacional-estatismo uma Dando prosseguimento, Reis
até então inédita participação popular – o descreve como nos primeiros anos da
que também radicalizou o discurso, exigindo ditadura procurou-se romper com o
reformas mais profundas e deixando nacional-estatismo, estratégia que fracassou,
mais de lado o tom conciliatório varguista. indicando que este elemento da cultura
política perpassava todo o espectro político.
Reis descreve, contudo, que Jango
estava nos primeiros meses de governo No campo da oposição começaram
apegado à tradição conciliatória, mantendo a se formar três grandes correntes: a
a desconfiança da direita e ao mesmo tempo moderada, formada pelo MDB, apoiada pelo
decepcionando a esquerda. “Depois de PCB clandestino e setores golpistas agora
longos meses de hesitação, armadilhando insatisfeitos, defendendo uma transição
no impasse de uma correlação de forças pacífica à democracia nos moldes pré-64;
equilibrada, Jango [em março de 64] movimento estudantil, mais radical, queria o
resolveu aceitar os conselhos de partir fim imediato da ditadura, mas sem maiores
para a ofensiva”6, em meio ao aumento da definições; organizações revolucionárias
pressão pelas reformas de base. A resposta clandestinas, se entrelaçavam com os
conservadora não tardou com as marchas estudantes, viam a luta armada como a
da Família com Deus pela liberdade única saída e não queriam só a derrubada
e finalmente com o golpe de Estado. da ditadura, mas do capitalismo.
5 REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do
golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, Porém, Reis destaca que se
p. 32.
6 Ibid., p. 39.
houve de fato resistência, também
houve muita indiferença ou até apoio suas posições num enfrentamento de vida ou morte
com o regime, como queriam as esquerdas radicais9.
ao regime, de modo que a oposição não
era, para ele, de fato tão poderosa. Ainda
assim, para evitar que se organizassem, O quinto capítulo do livro analisa
o governo emitiu em 1968 o AI-5. o governo Geisel (1974-79). No plano
econômico, apesar da crise do petróleo,
Assim, chega-se ao quarto capítulo.
não seria ainda o momento do abandono
Com a repressão a níveis extremos, a
do nacional-estatismo. “Já no plano político,
esquerda revolucionária considerou que
haveria afinidades com os propósitos do
se concretizava o que Reis denominou
primeiro governo castelista, materializadas
“utopia do impasse”, chegando a hora de
na perspectiva de restabelecer um estado
radicalizar a luta. De acordo com essa lógica,
de direito autoritário. Tratava-se de
o impasse se refere à uma situação na qual
institucionalizar e superar o estado de
políticas conciliatórias não seriam mais
exceção, o regime ditatorial vigente”10, ação
uma opção viável, restando às esquerdas
tomada também em função da pressão
somente a revolução – por isso, segundo o
internacional, ainda que “no interior do
autor, muitos desses grupos revolucionários
bloco que sustentava a ditadura, forças
viam até com certo otimismo a conjuntura,
conservadoras e sua expressão mais
pois teria eliminado a via conciliatória.
radical, os aparelhos de segurança,
Reis, contudo, apesar de ter sido em sua
não viam com bons olhos a distensão
juventude parte dessas organizações, as
e se prepararam para combatê-la”11.
critica por estarem distantes da população
e se mostrarem incapazes de fazer uma Como resultado, foi um
leitura mais precisa da sociedade. Esta período marcado por ambiguidades. A
“assistiu a todo esse processo como se fosse gradual abertura, (a qual culminaria
uma plateia de jogo de futebol”7. Podiam na revogação do AI-5 na passagem de
até torcer para um ou para outro lado, mas 1978 para 1979) conviveu com uma
não eram participantes. Efetivamente, o brutal repressão ao PCB e PC do B e o
crescimento econômico do que viria a ser emblemático assassinato de Vladmir Herzog.
o chamado “milagre econômico” aliado
A segunda metade da década
a propaganda, fazia do governo muito
de 1970 também marcou o início da
popular junto a população, especialmente
rearticulação dos movimentos sociais, ainda
no interior. Por isso ele destaca que, se
que de início tentassem passar a imagem de
de fato a primeira metade da década de
reivindicações apolíticas. Essa rearticulação
1970 pode ser descrita como os “anos de
também se deve ao fato da economia já
chumbo”, foi para muitos também os “anos
não apresentar resultados tão satisfatórios,
de ouro”8. Ainda que o crescimento tenha
com inflação e desvalorização salarial.
sido desigual, ele agradava a setores médios
influentes suficientes para amortecer uma Ao final deste capítulo, Reis indica
possível insatisfação popular. A maioria outra ideia controversa. Para ele, com o fim
da população parecia disposta a ignorar a do AI-5 estava revogado o estado de exceção,
tortura, desde que que ela atingisse somente não constituindo-se mais uma ditadura;
àqueles que considerassem marginais “conformara-se um estado de direito
e ocorresse longe da vista da sociedade. autoritário”12. Assim, para Reis a ditadura
iniciada em 1964 termina em 1979, havendo
Nem todos, certamente, apreciavam a ditadura e seus então um período de transição para um
métodos truculentos, considerados “excessivos”, e muitos
deles tomariam parte, em momentos seguintes, da onda regime democrático que se inaugura com
oposicionista que varreria as metrópoles. Mas é provável
que considerassem uma exigência alta demais arriscar 9 Ibid, p.88.
10 Ibid, p.98.
7 Ibid, p.77. 11 Ibid, p.101.
8 Ibid, p.91. 12 Ibid, p.123.