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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS

CÂMPUS CORA CORALINA


MESTRADO EM ESTUDOS DE LÍNGUA E INTERCULTURALIDADE

PATRÍCIA MENDANHA BERNARDES

LÍNGUA E CULTURA EM ALTO RELEVO: ANÁLISE DIACRÔNICA DE


PRONOMES DE SEGUNDA PESSOA DO SINGULAR

CIDADE DE GOIÁS
2020
PATRÍCIA MENDANHA BERNARDES

LÍNGUA E CULTURA EM ALTO RELEVO: ANÁLISE DIACRÔNICA DE


PRONOMES DE SEGUNDA PESSOA DO SINGULAR

Linha de pesquisa 1: Estudos de língua e


interculturalidade
Artigo apresentado à Universidade
Estadual de Goiás/Câmpus Cora Coralina
como exigência da disciplina de Língua e
Cultura, sob a orientação do Prof. Dr. Eleone
Ferraz de Assis.
Orientador: Prof. Drª. Marília Silva Vieira.

CIDADE DE GOIÁS
2020
LÍNGUA E CULTURA EM ALTO RELEVO: ANÁLISE DIACRÔNICA DE
PRONOMES DE SEGUNDA PESSOA DO SINGULAR

Patrícia Mendanha Bernardes (POSLLI – UEG)1


Eleone Ferraz de Assis (UEG, UERJ, SELEPROT)2

RESUMO

Este estudo teve como objetivo fazer uma análise das relações existentes entre a variação
diacrônica do uso de vossa mercê e a forma pronominal de segunda pessoa você, na
perspectiva Sociolinguística Laboviana (1972 e 1996) com as teorias sobre cultura,
identidade, linguagem e língua, na cidade de Goiás. A método usado foram amostras das
variáveis vossa mercê e você de entrevistas com falantes dessa comunidade de fala e de
recortes de jornais antigos coletados da Hemeroteca Digital do estado de Goiás. Como
fundamentação teórica foram usadas leituras sobre Variação Linguística (LABOV, 1972 e
1996), e sobre teorias de cultura e língua (LARAIA, 1986), (MATTOSO CÂMARA JR,
1972). Esta pesquisa tem como objetivo ver se existe relação entre cultura/língua com a
variação diacrônica da forma vossa mercê na cidade de Goiás. Como resultado verificou-se
que que existe que a identidade de um povo se constrói a partir de sua relação com a cultura e
essa por sua vez, se expressa através de referenciais linguísticos a língua. Assim fica evidente
que a mudança da forma de tratamento vossa mercê, para você e hoje para o cê se deu pelas
mudanças culturais, identitárias e que resultou em mudanças na língua.

Palavras-chave: Língua. Cultura. Variação diacrônica. Vossa mercê e você.

ABSTRACT

This study aimed to make an analysis of the existing relationships between the diachronic
variation in the use of your mercy and the pronominal second person form you, in the
Sociolinguistic Labovian perspective (1972 and 1996) with the theories about culture,
identity, language and language, in the city of Goiás. The method used were samples of the
variables of your mercy and you from interviews with speakers of this speech community and
clippings from old newspapers collected from the Hemeroteca Digital in the state of Goiás. As
a theoretical foundation, readings on Linguistic Variation (LABOV) , 1972 and 1996), and on
theories of culture and language (LARAIA, 1986), (MATTOSO CÂMARA JR, 1972). This
1
Graduada em Letras (Português/Inglês) e mestrando pelo Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Língua,
Literatura e Interculturalidade – POSLLI, no câmpus Cora Coralina da Universidade Estadual de Goiás. Atua
como professor de Língua Inglesa na rede pública de educação do estado de Goiás. E-mail: Graduado em Letras
(Português/Inglês) e mestrando pelo Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Língua, Literatura e
Interculturalidade – POSLLI, no câmpus Cora Coralina da Universidade Estadual de Goiás. Atua como professor
de Língua Inglesa na rede pública de educação do estado de Goiás. E-mail: patriciabernardes@yahoo.com.br
2
Possui Pós-doutorado em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Goiás (2016), doutorado em
Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2014), mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade
Católica de Goiás (2008) e graduação em Letras: Português/Inglês pela Universidade Estadual de Goiás (2002).
Atualmente é Professor professor adjunto - Des IV - nível I da Universidade Estadual de Goiás onde atua no
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Língua, Literatura e Interculturalidade e na graduação em
Administração, Direito e Letras. É pesquisador do Grupo de Pesquisa Diretório CNPQ - Seleprot - da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Língua
Portuguesa. E-mail: leo.seleprot@gmail.com.
research aims to see if there is a relationship between culture / language and the diachronic
variation of the form of your mercy in the city of Goiás. As a result, it was found that the
identity of a people is built from its relationship with culture and this in turn is expressed
through linguistic references to the language. Thus, it is evident that the change in the way of
treating your mercy, for you and today for you, was due to cultural and identity changes,
which resulted in changes in the language.

Keywords: Language. Culture. Diachronic variation. Your mercy and you.

1 INTRODUÇÃO

A comunidade de fala pesquisada nesse artigo é a cidade de Goiás, antiga capital do


estado de Goiás, que é uma cidade histórica com características coloniais com os seus
casarões, museus, igrejas, entre outros. Goiás, que anteriormente chamava-se Vila Boa,
também era escravocrata, com os senhores de escravos, com isso pode-se perceber, que a fala
e a escrita dessa comunidade eram influenciadas por características portuguesas em todas as
áreas, como na moda, leituras, fala, escrita, e o uso de vossa mercê e suas variantes.
O presente trabalho tem a pretensão de proceder uma análise das relações existentes
entre cultura, identidade e linguagem, na Cidade de Goiás, partindo da perspectiva
sociovariacionista de Labov (1972 e 1996), com a variação diacrônica do uso da forma de
tratamento vossa mercê e com a forma pronominal de segunda pessoa você. Para tanto
procuramos identificar o uso dessas variáveis por meio de entrevistas com falantes desta
comunidade de fala e com recortes de jornais antigos coletados da Hemeroteca Digital do
estado de Goiás.
Sabendo que a identidade de um povo é marcada pelo modo como eles vivem,
conversam, suas atividades de trabalho, entre outros. É neste sentido, que se faz necessário
uma compreensão sobre a cultura e linguagem, observando o uso da forma vossa mercê, você
e suas variantes nos jornais e nas entrevistas com os informantes desta cidade, para assim
melhor compreender se a linguagem foi influenciada pela cultura e se a variação da forma de
tratamento foi influenciada pela cultura. Sendo que essas entrevistas foram feitas com 24
falantes da cidade de Goiás, estratificados de acordo com as variáveis sexo/gênero, idade (25
a 35 e 36 a 50) e escolaridade (médio e superior).
O desenvolvimento desse artigo será fundamentado no aparato teórico acerca da teoria
Variacionista de Labov (1972 e 1996), e sobre cultura, identidade e linguagem, e para tal
usaremos para a fundamentação conceitos de Laraia (2001) e Mattoso Câmara Jr. (1972).
Sendo que o artigo será dividido em a introdução, a fundamentação teórica de cada teoria
(Variação linguística, identidade, cultura, língua e linguagem), a análise dos dados e depois a
conclusão.
A pesquisa proposta é relevante na medida em que venha a contribuir para novas
pesquisas sobre a relação cultura, linguagem, identidade com a variação da forma vossa
mercê. Sendo que o objetivo geral desta pesquisa é analisar a relação cultura, linguagem e
identidade com a variação da forma vossa mercê na cidade de Goiás.
Contudo, as entrevistas dos informantes e os recortes dos jornais da Hemeroteca
Digital deram suporte para o desenvolvimento desta pesquisa sobre o uso de vossa mercê e
você em Goiás.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Esse trabalho é fundamentado no aparato teórico da teoria Variacionista de Labov


(1972 e 1996), e na teoria da cultura, identidade, linguagem e língua, e para tal usaremos para
a fundamentação conceitos de Laraia (2001), Mattoso Câmara Jr. (1972), Labov (1971 e
1996) e Menon (2006), como é abordado nos itens seguintes.

2.1 Variação Linguística

A Teoria da Variação Sociolinguística, segundo Weinreich, Labov e Herzog (1968),


nasceu em um momento sócio-histórico em que a Linguística tinha sido influenciada pelas
ideias de Saussure no início do século XX, e por Chomsky na década de 60. Pois tanto
Chomsky quanto Saussure, privilegiavam os estudos focados em fatos internos das línguas. E
foi a partir das pesquisas de William Labov (1996) que a Sociolinguística se estabeleceu
como teoria e método para investigação da língua em uso, dando ênfase tanto para os fatores
externos quanto para os internos da língua. Labov diferentemente de Saussure e Chomsky
considera que a língua só tem sentido num contexto social.
A Sociolinguística Variacionista segundo Labov (1996, 1968, 1972) é a teoria que
explica e descreve a língua, estabelecendo assim uma relação entre os contextos sociais e
linguísticos, a medida que concebe a língua de fato social. Labov busca a estrutura
heterogênea da língua falada por uma comunidade ou grupo social. Seu foco de interesse não
são as formas regulares da língua, mas as variantes - formas alternativas de se dizer a mesma
coisa, permitidas pela própria estrutura da língua e motivadas por condicionamentos externos.
Entende-se que, sob a perspectiva diacrônica você e cê são resultados da
gramaticalização da expressão vossa mercê, que significa vosso favor, vossa graça, que era
usado para se referir ao rei ou a rainha, assim este era um item lexical, que devido a variação e
as mudanças linguísticas passou por um processo de gramaticalização, sendo então
considerado um pronome de tratamento, que é usado hoje para se referir a uma pessoa mais
próxima.
Contudo, hoje ainda continua este processo de variação, pois antes era usado vossa
mercê, hoje é você, mas que está caminhando para a forma cê, processo este que está sendo
analisado como cliticização do pronome (VITRAL 1996, 2006b; RAMOS, 1997), conforme
se vê na escala: ítem lexical -> ítem gramatical -> clítico -> afixo flexional (HOPPER e
TRAUGOTT, 1993), e isso devido a cultura que também vai sendo alterada por vários fatores
externos, como sociocultural.

2.2 Identidade

Identidade é um conjunto de caracteres próprios, que podem diferenciar pessoas,


animais, plantas e objetos uns dos outros. Há diversas definições para identidade (individual,
coletiva, verdadeira, falsa, entre outras). Sendo que, a principal definição de identidade é que
ela se define na oposição, nas diferenças. A identidade e a diferença são dois valores que ao se
oporem, acabam possibilitando a conceituação. Assim, a identidade só existe na relação com a
sua negação, uma vez que ela existe e se define a partir daquilo que ela não é.
A identidade é construída a partir das representações que um grupo social faz do
mundo, ou seja, a identidade de um determinado grupo ou comunidade social se constitui a
partir de mecanismos simbólicos de representação do mundo e também das relações dos seres
dentro deste mundo. Identificar elementos representativos de um povo é uma forma de
verificar como um ser humano se relaciona com o mundo e com os demais seres, criando
assim horizontes culturais dentro deste grupo específico.
Observa-se o uso da forma de tratamento vossa mercê no trecho do jornal abaixo,
como uma marca de identidade:

Texto 1: Texto sobre vossa mercê retirada do jornal da Província de Goyaz – 1876

Fonte: Hemeroteca Digital - Jornal Suplemento ao Correio Oficial n.34 – 10 de maio de 1876.

No trecho acima do jornal Suplemento ao Correio Oficial de 1876, da cidade de


Goyaz, verifica-se o uso da forma Vossa mercê que era uma forma de tratamento, usada para
se referir aos reis em Portugal, como uma relação de superior/inferior. Como o Brasil é uma
colônia portuguesa, que tinha uma identidade portuguesa, aqui o uso de vossa mercê era a
mesma que em Portugal. Vossa mercê significava “vosso favor”, “vossa graça” para se referir
ao rei, “mercê” significava “graça”e “favor”. Mas que devido as mudanças ocorridas na
língua, uma vez que ela é heterogênea, esta forma foi mudando para outras variantes,
(vossuncê3, vassuncê4, vosmecê, vosmicê, você, entre outras) essas mudanças também
ocorreram em função das mudanças culturais como costumes, como o uso de vossa mercê se
vulgarizou, passando de tratamento honorífico a um tratamento comum, e de tratamento
comum a vulgar.
Observa-se com isso que a forma de tratamento vossa mercê se vulgarizou, passando
de tratamento honorífico a um tratamento comum, e de tratamento comum a vulgar. Como
afirma Menon (2006):

Sobrevivem ainda a Senhoria e a Alteza. Cria-se a Excelência (Lei Filipina de


1597), que vai ser, posteriormente, no séc. XVIII a catapulta para outra revolução
social, como foi a do Senhorio no período arcaico [...] A excelência, com a expansão
do uso concedida pela lei de 1739, passa a ser um marcador social tão importante
como a construção do escudo da família ou o título ou o cargo recebido. É a marca
linguística da diferença social. (MENON, 2006, p. 125).

Devido a essa vulgarização do uso de vossa mercê, que os reis rejeitaram o pronome
“mercê” e começaram a utilizar outra forma de tratamento como Majestade, e também
Senhoria e Alteza, posteriormente criou-se Excelência, que foi muito importante, pois
Excelência era considerado como uma marca social, uma característica, uma diferença social,
3
Vossuncê – é usado como característica caipira, citado em (Basto, 1931; apud. Gonçalves, 2008:85);
(Nascentes, 1956:119-121; apud. Peres, 2006:103).
4
Vassuncê - é usado como característica caipira, livro de Cora Coralina “A moeda de ouro que o pato engoliu”.
Editora Global, 2006, e também é citado em (Basto, 1931; apud. Gonçalves, 2008:85); (Nascentes, 1956:119-
121; apud. Peres, 2006:103).
uma identidade que se referia aos reis.
No trecho do jornal abaixo, observa-se o uso de Vosmecê e você, como relação de
superior/inferior:

Texto 2: Ocorrência de vosmecê

Fonte: Hemeroteca Digital - Jornal Voz do Povo, n. 108 – 12 de julho de 1929


Verifica-se no trecho do Jornal Voz do Povo de 1929, o uso de Vosmicê e você por
falantes de Goyaz, observa-se que a uma identidade com relação a esse uso, em que Vosmecê
é usada para se referir à alguém superior e você para se referir ao inferior, que é uma
identidade local da época conforme apresentado no trecho do jornal.
Assim, podemos perceber que mudanças culturais e sociais de um povo afeta a sua
identidade e linguagem, pois há variações que com o tempo se tornam em mudanças
características desse povo, como pode-se se perceber com o uso de vossa mercê em Goyaz no
século XVIII, XIX e que vai sendo alterado ate ter o uso de você.

2.3 Cultura

Cultura é um conjunto de atividades, como modo de agir, costumes, linguagem e


atitudes de um povo. A cultura é um processo em constante evolução, em que o homem se
adapta às condições do meio transformando assim a realidade. É um conjunto de fenômenos
materiais e ideológicos que caracterizam um grupo étnico ou nação (língua, costume, rituais,
religião, culinária, etc), que estão em constante processo de mudança.
Laraia (2001) afirma que ainda persistem as discussões sobre o conceito de cultura,
que para uma melhor compreensão desse conceito significa a compreender a própria natureza
humana, tema este de incansável reflexão humana. Assim sendo, observa-se que a
manifestação cultural se faz muito importante para um povo, pois é por meio dessa
manifestação que um grupo expressa sua existência, pelos seus costumes, rituais, língua, etc.
A cidade de Goiás era habitada pelos índios Goyazes e colonizada pelos bandeirantes
paulistas como Bartolomeu Bueno, que vieram a procura de ouro. Assim, pode se observar
que em esta local tinha uma cultura, rituais, língua e costumes indígenas, mas que a vinda dos
bandeirantes para este lugar houve grandes mudanças, pois os bandeirantes tinham outros
costumes, rituais, língua e costumes, que acabaram por intervir na cultura local, e na
identidade dos mesmos. Conforme afirma Laraia (2001), que o sistema cultural está em
contínuo processo de mudança.
Segundo Laraia (2001), o sistema cultural está num contínuo processo de modificação,
que o contato, geralmente, estimula a mudança mais brusca e rápida que a interna, sendo que
esta última a mudança é mais lenta e quase imperceptível, e para que seja observada é
necessário que haja dados diacrônicos. Que por meio dos destes é que se pode observar as
mudanças ocorridas em um povo.
No trecho do jornal abaixo mostra o uso forma pronominal você e vossa majestade:

Texto 3: Ocorrência de Vossa Magestade

Fonte: Hemeroteca Digital – Estado de Goiás n.34 – 21 de janeiro de 1892.

Pode se observar a cultura imperial e colonial presente em Goiás, por meio do trecho
do jornal Estado de Goiás de 1892, em que O imperador D. Pedro II dialoga com Deodoro, e
para esse dialogo o imperador usa a forma você para se referir a Deodoro, já Deodoro usa
vossa majestade para se referir ao imperador. Assim, verifica-se que a cultura se constrói no
decorrer do tempo e das relações interpessoais.

2.4 Língua e Linguagem

A linguagem permeia-se de ideologias e apresenta uma forte crítica social, por meio da
qual podemos estabelecer uma intrínseca relação do homem com o meio, nos reportando a
uma visão sociológica. Neste intento, a cultura de um povo mostra-se interligado com a
língua, uma vez que a língua é parte da cultura. Nas palavras de Câmara Jr. (1972, p. 269),

Assim, a LÍNGUA, em face do resto da cultura, é – o resultado dessa cultura, ou sua


súmula, é o meio para ela operar, é a condição para ela subsistir. E mais ainda: só
existe funcionalmente para tanto: englobar a cultura, comunicá-la e transmiti-la. Isto
opõe naturalmente a língua ao resto da cultura, ou cultura stricto sensu, e cria uma
ciência independente para estudá-la – a linguística em face da antropologia, que
estuda todas as outras manifestações culturais. (CÂMARA JR., 1972, p.269)

Linguagem é a forma de como um povo se comunica e se expressa, e está se


estritamente relacionado com a cultura desse povo e a língua é o resultado dessa cultura
conforme afirma Câmara Jr. Como por exemplo na cidade de Goiás, que é uma cidade
histórica e colonizada na época do império, no século XVIII, observa-se que devido a este
contexto a população dessa cidade que é religiosa, tradicional, o povo desse lugar pretendia se
identificar com a capital Rio de Janeiro, com os costumes, língua, rituais religiosos, moda,
entre outros, mesmo sendo uma cidade localizada no interior do país, o que pode ser
verificado com a língua deste povo.
A relação do homem com sua realidade e sua consequente transformação nada mais é
do que uma manifestação cultural, que se diferencia das manifestações culturais dos demais
grupos. Este processo de transformação dos meios que se encontram à sua disposição é um
processo de construção cultural. É neste contexto que em a cultura muda e com isso a
linguagem também muda conforme as circunstancias sócio culturais que ocorrem com o
tempo no local e com o povo que reside neste lugar.
Segundo Câmara Jr. (1972, p. 53), “a língua é uma parte da cultura, mas uma parte que
se destaca do todo e com ele se conjuga”. Assim, a função da língua é expressar cultura para
permitir a comunicação. O intercâmbio cultural se dá por meio da língua, já que ela se faz
presente na própria essência da atividade cultural. É neste contexto, que ao observamos a
mudança diacrônica da forma vossa mercê para a forma você, o homem expressa sua cultura,
simbolizando e exteriorizando em forma de linguagem sua relação com a cultura,
consequentemente, construindo sua identidade.
A língua é analisada por três perspectivas diferentes: estruturalismo, pós-
estruturalismo e pela sociolinguística.
No estruturalismo Saussure (1967, p. 51) afirma que “A língua é um produto social da
faculdade da linguagem, um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social
para permitir a prática dessa faculdade pelos indivíduos”. Ele diferencia a língua da fala.
Sendo que a língua tem uma característica social, é um sistema de signos que exprimem
ideias; é social, abstrata, psíquica e coletiva, é constituída por um código de regras e
estruturas que todo indivíduo assimila da comunidade de que faz parte.
Saussure (1967) atribui à fala a característica de individual, instável, dinâmica,
passageira, efêmera. É o modo de usar a língua por cada indivíduo. A fala é heterogênea,
física. É a maneira pela qual o indivíduo que fala “utiliza o código da língua para expressar
seu pensamento.” (SAUSSURE, 1967, p. 57).

A língua é um tesouro depositado, através da fala, na memória dos indivíduos


pertencentes a uma mesma comunidade; é um sistema gramatical, virtualmente
existente em cada cérebro, ou, mais exatamente, nos cérebros de um conjunto de
indivíduos. (SAUSSURE, idem).

Podemos assim acrescentar que língua é um repertório constituído pelas possibilidades


que são oferecidas aos seus utilizadores.
Na perspectiva gerativista aborda a linguagem de um modo geral, segundo Chomsky
(1997) “o estudo da forma e do significado, o estudo da estrutura da linguagem, todas as áreas
da fonologia, morfologia, sintaxe, semântica, pragmática, etc.”
Chomsky defende a ideia de que a linguagem faz parte de nosso patrimônio genético,
isto é, ela é inata. O linguista afirma que o ser humano já nasce dotado de um mecanismo que
lhe possibilita aprender qualquer língua, e para que isso ocorra é necessário que o indivíduo
seja exposto a falantes de uma ou mais línguas.
Já na perspectiva sociolinguística a língua recebe enfoque específico, ela varia em
conformidade com a classe social a que os indivíduos pertencem. A língua não é homogênea e
passa a ser estudada no seio das comunidades urbanas. Com os estudos da dialetologia e da
geografia linguística sobre a variação diatópica, concluíram que as línguas variam na sua
existência, de um lugar para outro.
Na sociolinguística as línguas variam de uma classe social a outra, no interior de uma
mesma comunidade de fala. A língua é concebida, então, como algo heterogêneo, que está em
contínua mudança. As variações da língua passam a ser estudadas, não somente tendo em
consideração as diferentes classes socioeconômicas, mas também, constata-se que a língua
varia de acordo com a faixa etária, com o gênero, com o interlocutor, com o assunto etc. A
língua viva, em processo de fala, a língua oral, investigada em contextos múltiplos e variados
assume a maior importância.
Verificando as concepções sobre a língua, podemos concluir que na perspectiva
sociolinguística a língua é vista dentro de uma proposta dialógica, assim sendo concluímos
que ela é parte da cultura, que devido a tantas mudanças a forma de tratamento que no século
XVII era vossa mercê hoje é você pronome de segunda pessoa e a sua variante cê.

3 METODOLOGIA

Este trabalho constitui de uma pesquisa bibliográfica e qualitativa, com amostras das
entrevistas com falantes na cidade de Goiás com os pronomes de segunda pessoa do singular
você e cê, que compreendeu 24 informantes estratificados de acordo com sexo (masculino e
feminino), escolaridade (ensino médio e superior) e idade (20 a 35 e 36 a 50) e também foram
usados recortes de jornais antigos coletados da Hemeroteca Digital do estado de Goiás, para
assim fazer a análise da relação da variação diacrônica da forma de tratamento vossa mercê e
do pronome você com a cultura e a língua.

3 RESULTADOS E ANÁLISE DOS DADOS

Sabe-se, que a forma “vossa mercê” foi utilizada primeiramente em Portugal e depois
é que se migrou para o Brasil com a vinda dos portugueses para cá. Assim, observa-se que
existe várias teorias e estudos sobre esse percurso, mas o ponto em comum entre eles é que
reconhecem que existe alterações fonéticas entre “vossa mercê” e “você”.
Verifica-se também que “Vossa Mercê” surgiu na primeira fase do século XVIII,
tendo o seu declínio no final desse século. Sendo que essa forma de tratamento “Vossa
Mercê” substituiu o pronome de tratamento “vós”, empregado para se referir à figura real ou
aos membros da nobreza. O uso do pronome “vós” caiu em desuso no final do século XIX,
conforme afirma Lopes (2003), passando a ser usado vossa mercê como forma de tratamento
honorífica.
No Brasil do sec. XIX a forma “mercê” era considerada como forma de tratamento
oficial e cerimonioso que era utilizada por coronéis, tenentes, capitães, alferes e majores
(resolução de 2 de agosto de 1842 e aviso de 3 de agosto de1842), segundo Nascente (1950).
Já Santos Luz (1956, p. 310) constata que o primeiro registro da forma “vossa mercê”
se deu, em 1331, em textos escritos pertencentes à corte de caráter honorífico, e que a forma
tenha desaparecido em 1490. Sendo que com relação ao primeiro uso de “vossa mercê”,
Menon (2006, p. 108) contesta, Luz (1956), pois encontrou exemplos mais antigos com o uso
de “vossa mercê”, que os já mencionados por ele. Segundo a linguista:

[...] em um dos textos da coletânea de documentos relativos à cidade de Évora (com


datação da “Era de 1324. Anno 1280”, concordata entre El-Rei Dom Dinis e o
Concelho d’Évora, encontramos ocorrências de merece (com o verbo pedir por
merece e já com a forma de verbo ‘suporte’ pedir merece) e 2 de vos(s)a mercê.
(PEREIRA, 1998, p.32-34)

Menon (2006, p. 114) afirma que “vossa mercê” não era empregada somente aos reis
como forma de tratamento honorífico. Como pode observar no texto a seguir que é de uma
carta do Bispo D. Garcia de Menezes, dirigida ao “Senhor Secretário” (provavelmente
secretário do rei): “Senhor. Huma carta vossa me foi dada a que não respondo mais cedo com
fadigas de doença, e assy lhe tenho muito em mercê o que me diz na sua carta [...] e quanto he
o que vossa mercê diz que eu tenho levado mais do que havia de levar [...]” (MENEZES,
1463, p. 85), nesse trecho podemos observar palavras que com o tempo foram mudadas como
“huma”, que hoje é escrito “uma” sem a letra “h”, “assy” que se escreve hoje “assim” sem a
letra “y” e com “m” no final, também verifica-se o uso do pronome “vossa” pelo rei para se
referir ao seu secretário, e “mercê” que se refere a graça, e aqui o rei se refere ao secretario
usando “vossa mercê”, que é o usa da relação de superior para inferior.
No recorte do livro de Cora Coralina observa-se o uso de “vossuncê”:

Texto 4: Trecho do livro de Cora Coralina – uso de vassuncê.


Fonte: Livro de Cora Coralina “A moeda de ouro que um pato engoliu”.

Nesse trecho do livro “A moeda de ouro que um pato engoliu” da escritora goiana
Cora Coralina observamos o uso da variação da forma “vossa mercê” para a forma
“vassuncê”, que é característica do caipira, ou seja, é a identidade do falar caipira, sendo que
“vossa mercê” era uma forma de tratamento formal.
Luft (1957, p.202-203), afirma que a forma “você” no Brasil é usada como uma forma
de tratamento familiar, entre iguais, amigos, ou de superior a inferior, sendo usado em outro
contexto era desconsideração ou falta de respeito. Como pode ser observado abaixo nesta
amostra da entrevista com falantes da cidade de Goiás.

(01) você pode estar indo é na praça a tarde tomar um sorvete um picolé ali no
coreto você pode ir assistir uma missa ne então assim. (GOFS45- Analice)

Conforme Luft (1957) afirma observamos o uso do pronome de segunda pessoa


“você” para se referir a uma pessoa íntima, próxima. Assim observamos que devido as
mudanças culturais e identitárias da cidade de Goiás e da sua população, houve grandes
mudanças na linguagem e na língua como antes era vossa mercê e hoje é usado você e está em
processo de mudança para forma cê, isso devido as mudanças culturais e identitárias dessa
comunidade de fala.
Em consequência ao declínio e a variação de “vossa mercê” é que foram surgindo
outras variantes morfofonológicas como, “vossancê” e “você”. Que conforme Menon (1995,
p.95) afirma, essa mudança é o processo de pronominalização da locução nominal de “vossa
mercê” resultando no pronome “você”. Como pode ser observado no exemplo abaixo:

Vossa mercê -> vosmecê -> vosmicê -> vossancê -> vossuncê -> você

Observa-se que há uma mudança diacrônica na forma vossa mercê, sendo esta
mudança ocorrida devido a circunstancias socioculturais, pois a cultura muda, assim há
mudança na língua, na identidade, entre outros. Sendo que, Goiás é uma cidade da época do
império, e que tem uma identidade tradicional, por isso usava-se a forma vossa mercê e que
teve mudanças no decorrer dos anos como foi citado no exemplo acima, e que ainda continua
em processo de mudança com a forma cê.
Por meio de entrevistas com falantes na comunidade de fala na cidade de Goiás, pode-
se verificar o uso do pronome de segunda pessoa você e de sua variante cê, conforme as
amostras abaixo:

(02) é menos exaustivo aqui... cê consegue fazer as coisas cê produz só que assim
mais tranquilo cê num tem aquela coisa sabe é mais assim não é tão cansativo
mais cê consegue produzir ao mesmo tempo (GOFS20 -Amanda)

(03) acho que sim talvez é você não tenha feito alguma atividade (GOMC28
-Tácio)

(04) por exemplo cê vai em Goiânia só de você sair na porta da rua cê já tá


pagando (GOFS20- Amanda)

(05) por exemplo cê coloca quarenta menino numa sala de aula professor também
não dá conta (GOFS41-Andrea)

(06) aqui em Goiás não... cê anda pra todo lado cê num precisa de gastar
(GOFS41-Andrea)

Nas amostras acima verifica-se a mudança linguística ocorrida com o uso das formas
pronominais “você” e “cê” pelos falantes da cidade de Goiás, essas mudanças se deram
porque a cultura sempre se transforma, ou seja, ela está sempre em processo de mudança e a
linguagem acompanha esta mudança e a língua como é heterogênea, ela sempre está em
processo de mudança e é o resultado das mudanças culturais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa foi apresentada a relação da variação diacrônica da forma vossa mercê
e você na cidade de Goiás com a cultura, linguagem, língua e identidade desse povo, foram
usadas para fazer a análise desse fenômeno as entrevistas dos falantes da cidade de Goiás e
recortes de jornais antigos; para assim poder verificar se esta mudança ocorreu devido as
mudanças culturais e de identidade nessa cidade.
O que pode ser observado no decorrer da pesquisa é que esse processo de mudança de
vossa mercê até os dias atuais se deu através das mudanças ocorridas na cultura na cidade de
Goiás no decorrer dos anos, como nos costumes, rituais, fala, escrita entre outros, e também
pelas mudanças ocorridas na identidade, pois quando ocorre uma mudança no sistema
cultural, há também mudanças na identidade e na linguagem, como foi observado nessa
pesquisa.
No século XVIII esta comunidade de fala tinha uma cultura e identidade própria da
época e das pessoas que os colonizaram, os bandeirantes, e com Portugal, pois o Brasil era
colônia de Portugal, mas com o passar dos anos essas características foram mudando, pois
outros costumes foram sendo agregados, como dos indígenas que aqui viviam e dos escravos
que para cá vieram.
Portanto, percebemos que que a identidade dos vilaboenses se constrói a partir de sua
relação com os costumes, rituais, hábitos e língua. Enfim, a identidade se constrói a partir da
cultura e esta, por sua vez, se expressa através de referenciais linguísticos a (língua). Assim
fica evidente que a mudança da forma de tratamento vossa mercê, para você e hoje para o cê
se deu pelas mudanças culturais, identitárias e como resultado houve mudanças na língua.

REFERÊNCIAS

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CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. 1972. Língua e cultura. In: Carlos Eduardo Falcão Uchôa
(sel. e introdução.) Dispersos de J. Mattoso Câmara Jr. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
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LABOV, W. The logic of nonstandard English. Philadelphia: University of Pennsylvania


Press, 1969.

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1972.

LABOV, W. Padrões sociolingüísticos. Trad. Marcos Bagno; Maria Marta Pereira Scherre;
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LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro:
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MENON, O. P. S.; LOREGIAN-PENKAL, L. Variação no indivíduo e na comunidade:


tu/você no Sul do Brasil. In: VANDRESEN, P. (Org.). Variação e mudança no português
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SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006. Coleção Primeiros
Passos.

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