Ebook Educacao Literaria Parte4

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA


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CURSO
“EDUCAÇÃO LITERÁRIA”
COM PROFESSOR CLÍSTENES FERNANDES

AULA 04 - SINOPSE

Até onde se sabe, a sociedade atual alcançou o maior desenvolvimento

tecnológica da história da civilização. No entanto, se tais invenções nos

permitiram avançar em muitos aspectos, também obliteraram o acesso

àquilo que existe de imutável e perene nos seres humanos.

Nesta aula, aprendemos como as três potências da alma estão relaciona-

das ao fato de sermos contadores de histórias e o quanto estas guardam

chaves para nossa sobrevivência, mesmo no mundo moderno.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

Ao final desta aula, espera-se que você saiba: o que é a educação

tradicional; para que a literatura é feita; o que muda e o que não muda

na humanidade; do que trata a literatura; quais são as três potências de

nossa alma e como trabalham em conjunto; de qual necessidade surge

a literatura; qual a relação da ciência com a cultura; a importância do

“como se fosse”;

BONS ESTUDOS!
INTRODUÇÃO

Meu nome é Clístenes Hafner Fernandes, eu trabalho no Instituto

Hugo de São Vítor de Porto Alegre, no qual ensinamos artes liberais ou edu-

cação clássica. A educação clássica pode ser chamada assim ou de outras

maneiras, mas o importante é que se trata de uma educação mais tradi-

cional.

2. O MUTÁVEL E O IMUTÁVEL

Educação tradicional não é sinônimo de palmatória, mas sim

de levar tudo aquilo que foi feito de bom durante a história da cultura

inteira, principalmente da cultura ocidental inteira, como algo perene, e

entender que os valores explícitos na Grécia Antiga há três mil anos, não

deixaram de ser valores, não deixaram de ser valiosos.

Inclusive a palavra “valores” é um pouco complicada, o melhor é dizer

virtudes quando tratamos disso. Enfim, há certas coisas que são perenes

durante a história da cultura inteira e que muitas vezes hoje, por nós termos

tanta tecnologia, por nós termos tantas facilidades materiais, que não tín-

hamos até cem, duzentos anos atrás, não damos a devida atenção.

2.1. POR QUE SOMOS OS MESMOS?

A humanidade viveu de uma forma muito semelhante até uns duz-

entos anos atrás, quando começamos a ter todas essas facilidades mate-

riais. E acabamos por esquecer que existem coisas que independem desse

conforto material, que independem da tecnologia. Uma mentira é sempre

uma mentira, independente se a pessoa que a profere tem um Iphone

último modelo ou não tem celular. Se a pessoa anda de carro ou de carroça,

a mentira é sempre uma mentira, a verdade é sempre a verdade, são coisas

que não mudam nunca. As pessoas continuam se apaixonando, as pes-

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soas continuam odiando umas às outras, as pessoas continuam cantando,

desde sempre. Pode ser que agora gravemos isso e façamos um bom uso

da tecnologia, mas há certas coisas que não mudam. Mudam as formas,

mas as matérias são mais ou menos as mesmas.

Essa aula pertence ao nosso curso de formação literária, mas não

como nós estudamos na escola, em que o professor diz simplesmente:

“Veja, essa época é o período barroco da literatura, em que os expoentes

brasileiros são Gregório de Matos Guerra e Antônio Vieira. A literatura do

período colonial, anterior a essa, era mais de catequese”. O professor fica

dando pontos do que se trata cada período. Às vezes, para falar do bar-

roco, ilustra com um poema, dois, e um trecho de algum sermão do Padre

Antônio Vieira.

2.2. PARA QUE LITERATURA?

Nós ficamos ouvindo falar sobre a literatura, mas não vivemos a

literatura. E é para isso que esta foi escrita, para ser vivida. A forma que

nós temos é a leitura, mas aquilo é uma vivência espiritual, não somente
no sentido religioso. Toda vez que usar a palavra “espiritual”, não estou

falando da espiritualidade religiosa, mas sim de espírito no sentido mais

lato, no sentido de alma. Alma, em latim, é anima. Em português, transfor-

mou-se na palavra “alma”. Em grego, chamamos isso de psiché. O espírito,

por sua vez, chamamos de sopro, justamente porque é algo imaterial e nós

temos essa consciência.

O fato de eu estar aqui falando e vocês compreendendo, pelo menos

em parte, o que estou dizendo, independe da tecnologia que estamos

usando. Eu poderia estar falando para qualquer pessoa há três mil anos,

porque o espírito é o mesmo. Então, o que não muda, é o espírito. A matéria

sempre muda. Aquilo que é invisível, aquilo que não explicado por nen-

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huma lei da física, não.

Como explicar através da ciência a “Divina Comédia”? Como sai um

poema desses pelas leis da física, pela lei da gravitação, pela lei da termod-

inâmica? Essas leis não explicam. Não tem nenhum princípio científico

ou material para explicarmos essas coisas. E isso não muda. Nossa com-

preensão da matéria, muda. A compreensão do espírito, não.

Não podemos dizer que hoje estamos muitíssimo mais evoluídos do

que Homero estava, em mil antes de Cristo. Ou, ainda, mais evoluídos que

Virgílio, que viveu no tempo de Cristo. A compreensão que nós temos do

espírito é a mesma. Depende de um esforço diário de lutarmos por com-

preender essa vida psíquica, essa vida espiritual.

2.3. DO QUE TRATA A LITERATURA

Eu não sou médico, não sou neurologista, eu sou professor de lín-

guas, de literatura. Pode parecer estranho eu estar falando de psique,

mas é disso que trata a literatura. Alguém poderia objetar: “Mas a litera-

tura trata, por exemplo, da Guerra de Troia, como é o caso da ‘Ilíada’, não da

psique humana”. Não, é da psique humana sim. Quando diz que o exército
dos gregos foi muito corajoso em uma batalha, uma das leituras que posso

fazer é a seguinte: e eu mesmo? E a minha alma inteira, não é como um

exército grego? Não é como um conjunto de forças, como são os vários

soldados, e forças antagônicas, como são dois comandantes que divergem

entre si sobre uma estratégia que tenham que tomar? Então, eu preciso

simplesmente saber: eu vou comer hambúrguer ou salada? E aí eu tenho

dois generais dentro de mim que querem se sobressair um ao outro. Um

diz “hambúrguer” e o outro diz “salada”. Às vezes, são três generais. E nesse

concílio de generais, eu fico confuso, sem saber o que fazer. Eu travo uma

batalha interna e, muitas vezes, uma guerra civil. Mas quando esses gen-

erais se unem, eu consigo ir lá e derrotar Troia. E as minhas forças todas são

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projetadas num ponto específico e eu consigo derrotar Troia.

Essa leitura que acabei de fazer é mais ou menos a que sempre se

fez com relação à Bíblia. Lendo a Bíblia, o Ocidente aprendeu a ler qualquer

coisa. Quando eu leio que “O povo de Israel se esqueceu de Deus”, posso

pensar: “Eu não pertenço ao povo de Israel, eu estou bem tranquilo. Isso

é uma história da Antiguidade”. Beleza. Li a história, sei citá-la, mas não é

isso que está falando. O que esse excerto quer dizer é que a minha alma se

esqueceu de Deus, ou a alma do meu amigo, ou de qualquer outra pessoa. O

povo de Israel entrou em conflito com outro povo, os filisteus. A minha alma

não entra em conflito com outras almas? E dentro da minha alma também

não há essa guerra civil? A minha alma não faz viagens como Odisseu fez,

saindo de Troia depois da Guerra até chegar em casa, percorrendo um per-

curso muito difícil, tendo vários problemas, sendo atacado, naufragando?

Tantas vezes, a minha alma não faz viagens?

E aí nós vemos os principais temas da literatura: guerras e viagens.

Normalmente, é isso. Estamos falando de guerras e viagens. Dentro desses

dois temas, aborda-se casos de amor e de ódio. A literatura basicamente é

isso. E a nossa vida, também.

3. AS POTÊNCIAS DA ALMA

Depois dessa breve introdução, quero que façamos uma reflexão

dentro dessa ideia. Nós vivemos num mundo altamente tecnológico e

cheio de confortos, e a literatura nos ensina a imaginar as coisas, o que é

extremamente importante porque, segundo a escola perene de filosofia,

desde Platão e Aristóteles, na verdade, digo filosofia, mas de pensamento,

de cultura inteira, desde a Antiguidade, passando por toda a Idade Média e

entrando na Modernidade, existem três potências na nossa alma: a von-

tade, a inteligência e a imaginação.

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Tudo que nós fazemos, inclusive pensar, refletir, aprender, tomar

decisões, envolve essas três potências. Essas três potências não são expli-

cadas pelas leis da física e nem nada disso, mas todo mundo, parando para

pensar um pouquinho, consegue perceber que precisa imaginar e racioc-

inar. Quando esquecemos de usar a inteligência e ficamos só com a imag-

inação, usamos a expressão “eu estou viajando”. A inteligência serve para

isso.

Contudo, a inteligência sozinha não tem o que fazer. Só com a

inteligência, sem imaginação, nós não conseguimos. Para isso ficar mais

claro, vejamos o seguinte exemplo: “Eu vou tomar uma atitude inteli-

gente, eu vou sair de guarda-chuva hoje porque olhei para o céu e vi

que pode chover”. Eu precisei imaginar a chuva, eu precisei me lembrar

de como é ruim estar molhado andando na rua. E a memória pertence

à imaginação. E aí eu tomei uma decisão inteligente através da minha

vontade. Então: eu me lembro, eu penso, eu imagino, eu consigo sentir o

quão desagradável é ao rememorar essa sensação que já tive, de estar com

os pés e a cabeça molhados na chuva, e aí eu tomo uma decisão inteligente.

Para isso, usei a imaginação, a vontade e a inteligência.

Sem entrar na questão de como era o homem das cavernas, imagina

a ti mesmo, em tempos imemoriais, solto numa ilha, tal como a experiência

do Robinson Crusoé, tal como o primeiro dos homens. Quem foi o primeiro

dos homens? Não sabemos e, por enquanto, não vamos entrar nessa

questão. O ponto é: o primeiro dos homens, solto numa ilha. O que ele pre-

cisa fazer?

Por si só, esse homem não é como um animal. Ele não consegue

simplesmente procurar comida, dormir e, no dia seguinte, procurar comida

e dormir novamente. Nós não somos assim, até porque não sobrevivemos

desta forma. Se comermos qualquer coisa, como carne crua, nosso apa-

relho digestivo não consegue digerir muito bem e ficamos doentes. Isso

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funciona assim desde sempre. Nós não podemos simplesmente deitar no

chão e dormir. Nós não aguentamos. Não podemos dormir sob a nossa

própria pele, precisamos de um lugar confortável. Precisamos estar numa

temperatura x, que o nosso corpo não fornece. Portanto, necessitamos de

roupas, de casas. Não podemos ficar pegando vento.

Os outros animais podem. Eles até se escondem um pouco, mas a

gente não consegue fazer isso. E, para caçar, não é só sair correndo e abo-

canhar um animal. Também não podemos colher e ingerir grãos, como

milho, trigo e cevada, crus. Nós não conseguimos digerir esses alimentos.

Precisamos fazer algo com eles.

E é por isso que nós temos inteligência, imaginação e vontade, que

é o que diferencia nossa alma da do resto dos animais. Aristóteles diz que

o homem é um animal, mas é um animal racional. O que isso significa?

Ser racional significa ter inteligência, imaginação e vontade. E aí con-

struímos o que chamamos de cultura, porque sem isso, não vamos a

lugar nenhum.

4. A CULTURA

Eu proponho que vocês pensem sobre: se hoje você fosse um náu-

frago, o que faria? Você pode pensar: “Eu já sei como construir uma cabana.

Eu vi como fazer isso em filmes”. É isso mesmo. Você já viu no filme que tem

que construir uma cabana. Nós também sabemos qual é o princípio para

começar a fazer uma fogueira, para poder cozinhar alimentos e comer algo

mais saudável, que não vai fazer mal. Nós levamos todas essas informações

conosco para uma ilha deserta e conseguimos, deste modo, sobreviver. Nós

vamos ter a nossa cabana, vamos ter o nosso canto com fogo para cozinhar

os alimentos, vamos dar um jeito de fabricar roupas e vamos vivendo a vida

usando essa técnica toda de sobrevivência. E isso já é a cultura.

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O homem sobrevive porque tem cultura. O homem não estava ali

sobrevivendo e uma hora surgiu a cultura. Não, o homem, desde que

é homem, precisa de cultura. O homem é o homem culto. Não sabemos

se, como no desenho animado, o homem batia na cabeça da mulher com

um porrete e saía arrastando-a pelos cabelos. Não temos nada que nos

diga isso. Não tem nenhuma evidência. No entanto, sabemos de uma coisa:

que o homem fazia ferramentas, que se protegia, que construía abrigos, ou

mesmo morava numa caverna, que cozinhava os alimentos, que já tinha

animais domésticos, como o cão, algo encontrado em qualquer sítio arque-

ológico. Além disso, sabemos que esse homem já tinha cultura.

E para além disso, para além de fazer fogo para cozinhar, ter ferra-

mentas para caçar, ele também desenhava na parede. E isso não é sobre-

vivência. Ninguém precisa desenhar na parede para sobreviver. Por que

diabos nós fazemos isso? E nós, na ilha deserta, por que gostaríamos de

fazer isso? Vocês não se veem, em algum momento, desenhando na parede

para deixar aquele ambiente mais bonito? Ou, ainda, não veem surgindo

a seguinte ideia: “Eu cacei um javali enorme e vou guardar os dentes dele,

vou colocá-los na porta da minha casa”.

Quem não faria isso? Todo mundo faria isso. É o normal. Esses dentes

são um troféu. Eu preciso deles para sobreviver? Não. Então, existe essa

cultura da sobrevivência e existe uma cultura que vai além disso, que é

essa cultura de desenhar na parede, de por as presas do javali em cima da

entrada. Isso que estamos sozinhos. Mesmo assim, já gostaríamos de ter

isso, de mostrar para nós mesmos que somos capazes de caçar o javali.

4.1. O SURGIMENTO DA LITERATURA

Mas eis que nós não estamos sozinhos, estamos com mais dez

náufragos. E eu caço um javali. Foi super difícil. E eu vou comê-lo com

meus amigos e nós vamos dormir. É isso que acontece? Nós comemos e

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pronto, amanhã temos que caçar de novo? Essa é a vida? Não. Eu vou ter

que contar a história de como foi caçar esse javali. Desde a narrativa

mais reta, como “Eu saí por aqui, fiquei de espreita atrás da pedra. Ele

veio e eu tinha minha lança”, em que vou contar esses fatos, até - e isso

todos nós fazemos - contar tudo que senti. Eu posso dizer coisas como “Eu

fui apoderado de uma coragem impressionante quando tive que caçar o

javali” ou “Eu senti muito medo, mas o fato de saber que pessoas dependiam

de mim para comer essa semana fez com que eu superasse esse medo”.

Você vai contar coisas que não são visíveis, coisas que são internas.

E disso aí, dessa necessidade, nasce a literatura. É uma necessi-

dade. Ninguém vai conseguir caçar um javali ou ninguém vai conseguir

pescar um peixe sem contar a história depois. Pescador não é contador de

história? Porque não vale a pena pescar sem contar a história da pescaria.

Não vale a pena nada.

4.2. POR QUE CONTAR HISTÓRIAS É IMPORTANTE?

Contar a história é tão importante, ou quase tão importante, quanto


comer o peixe. Eu preciso, para sobreviver. Para sobreviver, eu preciso

contar as histórias de como isso aconteceu. E vejam que, numa história,

tem algo bastante objetivo, que são os fatos de como as coisas aconte-

ceram, mas tem toda a visão do caçador ou do pescador de como aquilo

aconteceu.

E, às vezes, os movimentos internos da alma, de medo, de coragem,

de alegria, por ter conseguido aquilo, são muito mais importantes do que

o fato de comer o javali, porque eu pego a carne do javali, engulo e pronto,

amanhã tenho que caçar de novo. Agora, o que acontece dentro desse

caçador é muito mais importante. E ele não tem palavras para descrever

o que se passa dentro dele. E aí ele começa a usar outras coisas. Ele vê

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animais que são covardes e animais que são fortes. E, em vez de contar a

história dele mesmo caçando, conta a história de um leão. Mas ele con-

segue, porque imagina, pensar na coragem de um leão. Mais do que isso,

consegue pensar “como seria o homem se fosse tão intrépido, tão corajoso

como o leão?”.

Com isso, cria uma figura que não existe. Ele juntou dois seres, um

leão e um homem. Um homem nunca vai ser tão intrépido quanto um leão.

Não é que o homem seja covarde, mas, como tem um pouco inteligência,

percebe que determinados atos não vão funcionar. Ele decide não se

embrenhar em uma corrida para pegar um gnu porque vislumbra que

determinadas partes dessa trajetória serão meio perigosas. O leão vai, se

esfola, não quer nem saber. O homem não faz isso. Ele não se embrenha

nos espinhos para pegar uma presa. O leão faz, não está nem aí. Nós, não.

Se vemos espinhos, paramos e não prosseguimos.

Mas essa pessoa imagina como seria um homem que se metesse

nos espinhos. Seria um homem muito heroico, não seria muito inteligente,

mas seria heroico. Como seria o homem que pegasse, sem nenhuma fer-

ramenta, cobras, sem ter medo de ser mordido? Assim, cria outras figuras

que são impossíveis de existir, mas que fazem todo sentido de serem imag-

inadas, como, por exemplo, alguém que luta com um leão ou que pega

serpentes, como é o Hércules.

O Hércules é só uma história da carochinha. E é exatamente isso. Nós

precisamos de histórias da carochinha, nós precisamos de mitos para

sobreviver, assim como precisamos de comida. Nós não conseguimos

simplesmente contar os fatos banais, como são, mas precisamos tecer

louvores ao fruto da nossa imaginação. Eu sei que tenho coragem, por

mais diminuta que esta seja. E eu tenho inteligência para fazer uma oper-

ação matemática e multiplicar essa coragem por dez, por cem, por mil. Eu

posso imaginar como eu seria mais corajoso e chegar à conclusão de que

pegaria cobras sem medo, de que lutaria com leões e monstros marinhos.

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Eu enfrentaria o próprio Deus, se fosse necessário. Eu não faço isso, mas

uma história de alguém fazendo isso é muito interessante e todo mundo

quer ouvir.

Vocês querem ouvir hoje a história de como acordei, fui escovar os

dentes, fui no banheiro e depois fui tomar café da manhã lá no hotel? Para

que ouvir algo assim? Que porcaria de história é essa? Isso não interessa

para nada. Agora, vocês querem saber da história do Hércules, que acorda

com várias serpentes na sua cama e consegue estrangulá-las todas, mesmo

sendo um menino de alguns meses? Isso aí é interessante. Todo mundo

quer ouvir essa história, saber o que vai acontecer e como isso é possível.

Quando eu ouço a história de um sujeito que acordou, foi ao banheiro

e depois foi tomar café da manhã, esqueço-a no dia seguinte. A história do

Hércules, por outro lado, eu nunca mais esqueço, até porque vou ficar con-

tando-a. Assim como a piada boa, que contamos e aí nunca esquecemos,

há histórias que contamos com prazer e, do mesmo modo, as pessoas as

escutam com prazer.

Portanto, através do nosso exercício imaginativo, acho que ficou

provado que temos essa necessidade de contar histórias. Nós percebemos

que temos essa necessidade e todas as pessoas também a têm, nem que

seja de contar para si ou para duas ou três pessoas. Pode ser que não seja

um grande contador de histórias, escritor e tudo isso, mas todo homem

tem em si uma necessidade de contar histórias.

Dentro dessa nossa vida de sobrevivência, exercitando a nossa

imaginação e acabamos nos perguntando: por que isso é assim? por que

há certas épocas do ano em que há peixes e em outras, não? Eu começo

a observar e perceber que no verão há certos tipos de peixe e depois, no

inverno, não há. Mas as coisas têm que ter um porquê e nós precisamos

deste para sobreviver. Pode ser que não seja a causa mais imediata e

científica possível, mas precisamos de um porquê.

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Por exemplo, você está na roça visitando uma avó sua que cresceu

lá. Você diz a ela que vai plantar umas florzinhas e ela lhe responde que

aquele não é o momento, que é preciso esperar duas semanas, porque a lua

está minguante. Você fica curioso e pergunta qual a relação entre ser lua

minguante e plantar. E ela responde simplesmente “Porque está lua min-

guante, tem que plantar quando está lua crescente”. Você fica pensando

“E daí?”, mas tem um porquê, é porque está lua minguante. Você ignora a

orientação, planta e a flor não nasce.

A explicação científica não é essa da senhora, mas é uma explicação

e, provavelmente, vai contar alguma coisa como “A lua minguante está

diminuindo. Se você botar a semente agora, a semente, em vez de crescer

e botar, vai diminuir e crescer para dentro da terra. Então não adianta. A flor

vai estar dentro da terra, não vai sair para fora”. Normalmente, é uma expli-

cação assim. O cientista pode te dar uma explicação exata de por que só

há certas épocas boas para plantar certas sementes, mas é muito provável

que você se esqueça dessa explicação daqui a um tempo. Por outro lado, a

explicação da senhora, que diz que a planta nasce para dentro, você pensa

“que coisa maluca!” e nunca mais se esquece, e nunca mais vai plantar flor

em lua minguante. Isso aí é cultura. A ciência também é. A ciência é um

pedaço da cultura. Mas essas coisas assim, da senhora lá da roça, também

funcionam.

5. O PORQUÊ

E nos perguntando os porquês das coisas, a pergunta que sempre

surge e que não quer calar é: qual é o porquê geral? Qual é o porquê dos

porquês? Por que existe algo e não o nada? E isso não somos nós, tec-

nológicos, de Iphone e Internet 5G, que nos perguntamos, isso é qualquer

um, em qualquer tribo. Podem ser os índios mais isolados, podem ser aborí-

genes. Em qualquer sociedade antiga, a história principal que uns contam

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para os outros e a pergunta que não quer calar é: por que existe alguma

coisa e não o nada? O texto mais influente na cultura ocidental é “Teogonia”,

do poeta Hesíodo. Nesta obra, Hesíodo realmente explica as coisas.

5.1. TEOGONIA

Na Bíblia, no início do Gênesis, está escrito que, no princípio, era o

caos. E o caos não tinha forma alguma, mas dele surgem o Céu, a Terra, o

Amor e as profundezas. Porque o Amor estava junto do Céu e da Terra, estes

começaram a ter filhos. Só que o Céu não saía de cima da Terra, pois o Amor

estava ali, muito presente. E os filhos, antes de nascer, eram empurrados de

volta para o ventre da Terra pelo próprio Céu. Em grego, céu é Uranos. Hoje,

chamamos de Urano. É o deus Urano. E a terra, em grego, é Gé ou Gaia,

chamam de deusa Gaia. O céu empurrava os filhos para dentro da Terra e aí

não havia espaço. Porque o céu não saía de cima da Terra, não havia espaço

para os filhos deles.

Até que um dos filhos, Krónos, que é o tempo, castra o pai, o Céu, e

este, por dor e por não ter mais o que fazer em cima da Terra, afasta-se dela.

O efeito do Amor, de Eros, não estava mais ali. O Céu se afasta da Terra e isso

possibilita que os filhos deles saíam do ventre da Terra. E quando o tempo

começa, também começa a existir o espaço.

A história se desenvolve. Essa é a primeira geração de Krónos e os

seus irmãos. E Krónos engole todos filhos que tinha com Reia, sua irmã,

afinal, o tempo engole tudo, não é? Tudo que nasce vai sendo engolido

pelo tempo. Até que, quando nasce Zeus, décimo segundo filho, Reia dá

uma pedra em seu lugar para Krónos engolir e conserva Zeus escondido.

Zeus cresce e, depois, vai lutar contra o seu pai, o tempo. E quem vence o

tempo, não morre. Quem vence o tempo é imortal. Zeus liberta todos os

seus irmãos da barriga do tempo e esses são os deuses do Olimpo, que

venceram todas as batalhas e agora reinam sobre o universo inteiro. Depois,

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vai surgir o homem e tudo isso.

Podemos pensar: “Que história da carochinha, não é nada disso, é o

Big Ben. Não é o caos que existia no início. Primeiro é o Big Ben”. Beleza,

não tem problema nenhum.

5.2. OVÍDIO

Eu quero ler para vocês o que Ovídio escreveu nas “Metamorfoses”,

na tradução de Manuel du Bocage, maior poeta da língua portuguesa.

Ovídio se baseou nas obras “Teogonia” e “Os Trabalhos e os Dias”, ambas de

Hesíodo.

Antes do Mar, da Terra, e céu que os cobre

Não tinha mais que um rosto a Natureza:

Este era o Caos, massa indigesta, rude

E consistente só n’um peso inerte.

Das cousas não bem juntas as discordes,

Priscas sementes em montão jaziam;

O sol não dava claridade ao mundo.

Nem crescendo outra vez se reparavam

As pontas de marfim da nova lua.

Não pendias, ó terra, dentre os ares,

Na gravidade tua equilibrada,

Nem pelas grandes margens Anfitrite

Os espumosos braços dilatava.

Ar, e pélago, e terra estavam mistos:

As águas eram, pois, inavegáveis,

Os ares negros, movediça a terra.

Forma nenhuma em nenhum corpo havia,

E neles uma cousa a outra obstava,

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Que em cada qual dos embriões enormes

Pugnavam frio e quente, úmido e seco,

Mole e duro, o que é leve e o que é pesado

Um Deus, outra mais alta Natureza,

À contínua discórdia enfim põe termo:

A terra extrai dos céus, o mar da terra,

E ao ar fluido e raro abstrai o espesso.

Depois que a mão divina arranca tudo

Dos enredado montão, e o desenvolve,

Em lugares diversos, que lhe assina,

Liga com mútua paz os corpos todos.

Súbito ao cume do convexo espaço

O fogo se remonta ardente, e leve;

A ele no lugar, na ligeireza

Próximo fica o ar; mais densa que ambos

A terra puxa os elementos vastos,

Da própria gravidade é comprimida.

O salitroso humor circunfluente

A possui, a rodeia, a lambe e aperta

Assim, depois que o Deus (qualquer fosse)

O grão corpo dispôs, quis dividi-lo

E membros lhe ordenou. Para que a terra

Não fosse desigual em parte alguma,

Por todas a compôs na forma de orbe.

Ao mar então mandou que se esparzisse,

Que ao sopro inchasse dos forçosos ventos,

E orgulhoso abrangesse as louras praias;

À mole orbicular deu fontes, lagos,

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Rios cingindo com oblíquas margens,

Os quais, em parte absortos pelas terras,

Várias, que vão regando, ao mar em parte

Chegam, e recebidos lá no espaço

De águas mais livres, e extensão mais ampla,

Em vez das margens assalteiam praias.

O universal Factor também dissera:

“Descei, ó vales, estendei-vos, campos

Surgi, montanhas, enramai-vos, selvas!”

Como o Céu repartido à destra parte

Tem duas zonas, à sinistra duas,

E uma no centro mais fogosa que elas,

Assim do Deus o próvido cuidado

Pôs iguais divisões no térreo globo,

Ele é composto de outras tantas plagas;

Aquela que das mais está no meio

Em calores inóspitos se abraza;

Alta neve enregela, e cobre duas;

Outras duas, porém, que entre elas ambas,

O Nume situou, são moderadas,

Misto o frio, e calor. Fica iminente

A estas o ar, que assim como é mais leve

O peso d’água que da terra o peso,

Tanto mais peso coube ao ar que ao fogo.

Deus ordenou que as névoas, e que as nuvens

Errassem no inconstante, aéreo seio;

Que os ventos o habitassem, produtores

Dos penetrantes fios, que estremecem,

E os raios, os trovões, que o mundo aterram;

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Mas o supremo autor não deu nos ares

Arbitrário poder aos duros ventos:

Bem que rebentem de encontrados climas,

Resistir-se-lhes pode à fúria apenas,

Vedar que em turbilhões lacere o mundo:

Tanta é entre os irmãos a desavença!

Ovídio põe em forma de luta todos os elementos da Terra. É bem

diferente do que Hesíodo fala, mas Ovídio dá uma resposta a essa pergunta:

de onde veio tudo? Ovídio diz que tem que ter tido uma luta. Foi uma luta?

Não interessa. Por que Ovídio diz que foi uma luta? Porque ele conhece as

lutas. Ele vive no Império Romano, no tempo de Augusto, no qual reinava

a paz. Politicamente, é o tempo da pax romana. E Ovídio enxerga a paz

também na natureza. Há as montanhas, as estações do ano, os dias passam.

Tem a época do frio, tem a época do calor e os animais e as plantas se loco-

movem muito bem dentro disso. É tudo paz na natureza. A guerra é junto

aos homens.

Ovídio sabe que, para haver paz, como há na política de Roma, foi

preciso muita guerra. Foi preciso que um único homem detivesse o poder

sobre tudo. Augusto é o primeiro Imperador. Após o assassinato de Júlio

César, que era uma espécie de ditador, houve o período do triunvirato e,

depois, o primeiro Império, que é o Império de Octaviano Augusto. Ele real-

mente estabelece a paz. Por dezessete anos, não há nenhuma guerra em

Roma e conflitos internos. Eles estão defendendo as fronteiras, mas isso não

é guerra. Dentro do Império, reina a paz, assim como há paz na natureza. E

Ovídio responde: como é possível que haja paz na natureza? Só é possível

se outrora houve guerra, assim como aconteceu no Império Romano em

que, no início, eram vários povos disformes, até que um único desses povos

começou a organizar tudo através da conquista dos demais, da criação de

uma burocracia e a construção de infraestrutura, para que, passados muitos

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séculos, fosse possível viver em um Império de paz estabelecido.

Detalhe: Ovídio é rival de Augusto, ele deixa-o de fora do livro e é exi-

lado por isso. Enfim, ele diz que no início era assim também. Os elementos

todos estavam misturados, não se sabia o que era água, o que era terra, era

um caos. Não só o mundo, mas o universo. A palavra latina mundus significa

o universo de todas as coisas, o conjunto de todas as coisas. Orbe é Terra. O

mundo todo era um caos. Nós não sabíamos o que era seco, o que era frio,

o que era úmido, o que era quente. Esses estados todos e toda matéria, o

líquido, o gasoso e o sólido, eram indistinguíveis entre si. Era um caos.

E, a partir de uma luta, cada um começa a se separar e a se organizar,

como o povo que define uma fronteira. Todos estavam vivendo juntos, mas

eles decidiram separar o território e criar um limite para dividi-lo, chamado

fronteira. Nós vemos fronteiras entre o mar e a terra. Vemos fronteiras entre

a terra e o ar. Quando fazemos uma viagem, se vamos de Porto Alegre até

Fortaleza, por exemplo, vemos inclusive fronteiras de temperatura, frio e

quente. Nós percebemos essas fronteiras. Isso aí tudo se percebe. E o que

ele faz? Ovídio trata a história política, que é muito fácil de contar, porque

conhecemos os efeitos, pois há pessoas que viveram isso e esses eventos

vão sendo registrados, para explicar o surgimento do mundo, aquele

“como se fosse” de que falei. Provavelmente, no princípio, era esse caos

e de tantas guerras, lutas e disputas foi sendo organizado por um deus. A

coisa foi indo e aí se formou a natureza toda, todo o cosmos.

5.3. O “COMO SE FOSSE”

A palavra-chave aqui é o “como se fosse”. A natureza é como se

fosse um império dos deuses. Nós temos aqui o Império dos homens. No

Império Romano, temos as províncias bem organizadas, cada uma com seu

governador. A natureza é assim também, cada um tem o seu governador. As

águas são governadas por Netuno. Os céus são governados por Júpiter. As

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profundezas são governadas por Ades ou Pluto. Ades para os gregos, Plutão

para os romanos. Zeus para os gregos, Júpiter para os romanos. Poseidon

para os gregos, Netuno para os romanos. E no Olimpo também acontecem

concílios e assembleias.

Logo no começo de “Os Lusíadas”, de Camões, vemos essa assembleia

reunida. Júpiter ou Zeus pergunta: “Vocês decidiram qual vai ser o destino

dos portugueses?”. Vênus responde que eles têm que conseguir chegar até

a Índia. Vênus, que sempre foi muito afeita ao povo romano, gosta também

dos portugueses, porque são bravos nas armas e no amor. Essa é a visão de

Camões. E na língua na qual, quando imagina, com pouca corrupção, crê

que é a latina. Vênus via as pessoas falando português e dizia “O que eles

falam é quase latim”. Então ela gosta muito dos portugueses. Mas Baco,

também chamado Dionísio, não gosta. E eles estão decidindo diante de

Zeus o destino dos portugueses. Zeus afirma que Vênus e Marte, o Amor e

a Guerra, estão com a razão e podem ajudar os portugueses a chegarem à

Índia, mas Baco vai atrapalhar ao máximo tudo que os portugueses fazem

para que não cheguem.

Isso não é uma decisão política? E não é assim que a política fun-

ciona? As pessoas se reúnem no parlamento para discutir as ideias e certas

propostas são votadas. No caso de “Os Lusíadas”, temos o voto de Vênus e

Marte a favor e o de Baco, contra. Assim, os primeiros ganharam a disputa.

O juiz determina que está decidido, mas Baco aceita? Não, ele persiste na

sua ideia. E na vida política também é assim. Quando o sujeito não ganha na

disputa, faz todo o possível para desrespeitar as decisões e levar seu plano

adiante. Já que não conseguiu na legalidade, prossegue na ilegalidade.

Isso foi escrito para dar uma explicação de por que certas navegações

são prodigiosas e outras, não. Por que Vasco da Gama conseguiu chegar lá,

mas houve outros que não conseguiram? O que acontece? Bom, é como se

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fosse uma decisão política, diz o Camões. Essa é uma das leituras que nós

podemos fazer. Então é como se fosse. Como se fosse é a chave para nós

entendermos quase tudo na vida, porque se nós não temos analogia,

que é fazer esse “como se fosse”, não vamos a lugar nenhum. Nós precis-

amos de analogias, nós precisamos pensar nesse “como se fosse”.

5.4. TALES DE MILETO

Mas eis que surge na Grécia mesmo, onde Hesíodo tinha escrito

isso, onde havia toda essa mitologia, lá por 600 a.C., uns sujeitos que são

chamados de filósofos. Eles afirmam que essa história de Hesíodo não é

bem assim. Eles entendem que este dá certas causas, mas acreditam que

as coisas têm que ser mais simples, pois acham sua explicação muito com-

plexa. Para eles, é muito bonito o que Hesíodo disse do Céu e da Terra juntos

pelo Amor, e a castração do Céu pelo Tempo e que, com o tempo, vem

também o espaço, só que este engole tudo. Eles acham isso muito bonito,

mas dizem que, no princípio, não é o caos.

E eles perguntam a Tales de Mileto o que era no princípio de todas as

coisas. E o Tales responde que era água. Com isso, Tales conseguiu dar uma

explicação mais fácil, mais feia também, mais sem graça, para a mesma

coisa. Só que ele não disse que era água. Ele disse dessa forma, mas nós não

conseguimos acreditar que um sujeito tão inteligente fosse responder isso.

Tales era um grande empresário. Ele ficou famosíssimo e rico

mesmo porque conseguiu, por cálculos astrológicos, prever um tempo de

abundância numa grande colheita de oliva. Ele mediu as temperaturas,

calculou e percebeu que, no ano seguinte, a oliva renderia muito. Sendo

que, no anterior, a colheita havia sido muito ruim e as pessoas não tinham

produzido quase nada. Tales comprou a preço de banana todas as prensas

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que existiam na Jônia e as guardou em casa. Todo mundo considerou-o

louco por ter feito isso, justamente porque, no ano anterior, a colheita de

oliva havia sido péssima. E aí veio uma grande colheita, uma abundância

de oliva e ele fica muito rico, porque tinha o monopólio das prensas e só ele

podia fazer azeite.

E esse é o homem que disse que, no princípio, era água. Como água?

E Tales dizia: “Não vê como é a água? A água às vezes é revolta, quando

há uma tempestade no mar, às vezes, é plácida, assemelhando-se a um

espelho. A água tem essa capacidade de movimento e de voltar a estag-

nação. A terra não tem isso, a terra não é assim”. Ele diz: “A água pode ser

líquida, pode ser sólida e pode evaporar e ficar gasosa. As coisas que têm

na terra não são assim? Essa mesa é sólida. A água que tem dentro do

copo é líquida e o ar que nós respiramos é gasoso. E o resto tudo pode ser

encaixado ou ser um misto disso. Por exemplo, a nossa carne, que é meio

sólida, meio líquida”.

Então, no princípio, era algo e esse algo era como se fosse água. Isso

não é muito diferente do que disseram Hesíodo e Ovídio. Qual é a diferença

de dizer que, no princípio, era água e que, no princípio, era o caos? Não

tem quase nenhuma diferença. Mesmo Tales sabia que não era água, que

não há como da água surgir pedras. Existe o gelo, que é um tipo de pedra,

mas todas as demais não têm água em si. Há muitas coisas que têm água,

mas há vários elementos que não têm. E também tem o fogo, que não se

parece nem líquido, nem gasoso, nem sólido. Tales diz que é algo como a

água. Assim como, no princípio, houve uma batalha dos elementos todos

como há batalhas entre os romanos e os cartagineses, entre os romanos e

os gauleses. Para se estabelecer esse império de paz que é a natureza, foi

necessário haver uma batalha.

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5.5. QUEM DETERMINA A LÍNGUA?

Se eu olhar fixamente para uma realidade, eu não consigo

entendê-la. Eu preciso imaginar. Quem me ensina a imaginar são outros

imaginadores, digamos assim. E para que nós consigamos conversar

uns com os outros, nós precisamos de uma língua, que é dada por esses

imaginadores.

E assim voltamos àquele primeiro princípio, àquele homem principal,

àquele náufrago, que está ali com seus amigos. Suponhamos que cada um

deles pertence a uma cultura diferente, cada um fala uma língua diferente.

Eles vão acabar por assumir uma língua única, de um deles - provavel-

mente, vão criar uma língua nova - e, com certeza, será a língua daquele

que mais conta histórias. Essa é a língua mais atraente e mais fácil de

ser aprendida. Não vai ser a do melhor caçador ou do melhor pescador.

Não, vai ser do melhor contador de histórias. Assim como nós assumimos

a língua de Camões, que é o nosso melhor contador de histórias, e os

gregos assumiram a língua de Homero, que era um grande contador de

histórias. E essa língua é o principal instrumento da nossa sobrevivência,

já que a nossa sobrevivência depende da nossa cultura.

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