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RESUMO
O presente trabalho tem como desafio anunciar uma possível análise da novela
A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Narrativa que pode ser lida como
possuidora de um viés polifônico, plurissignificante, assim dito na terminologia
de Bakhtin, em que a relação de alteridade está sempre presente, mesmo que
sub-repticiamente. A questão do foco narrativo é um dos pontos altos da novela.
Surpreendente e inovador, revela a sensível capacidade inventiva de Lispector
ao congregar o duplo, ou seja, o outro da própria personagem. A relação com
o outro está na entrelinha do discurso que opta pela relação dúbia, que não
se constitui apenas masculina, mas apresenta, em vários momentos, a outra
face: a contraparte de um ser feminino. Tal leitura possibilita-nos vislumbrar, no
engendramento da teia ficcional, quão ilimitável é a combinatória de signos e os
modos de articulação em uma narrativa.
Palavras-chave: Alteridade. Polifonia. Discurso. Dubiedade.
RÉSUMÉ
Le presente travail a comme le but montrer une possibilité d`analise sur A hora
da estrela, du Clarice Lispector, qui peut être lit comme poliphonique aussi
plurisignification, selon Bakthin,et, ce que concerne les différences, elle sont
toujours présents.La question du centre de la narrative est un point haut du
texte surprenant et nouveaux, registre la sensibilité et la capacité de créer de
Lispector au moment de dire le double,ça veut dire, l`autre face du personnage.
La relation avec l`autre est caché dans le discour que veux la relation double
qui n`est que masculin, mais présente, dans plusieurs moments, l`autre partie:
la partie d`être féminin. Cette lecture possibilite regarder, dans le texte ficcional,
les possibilités de signe et la façon d`articulation dans la narrative.
Mots-clés: Différences. Poliphonique. Discour. Double.
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Mestranda em Letras pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora.
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pelo menos o que escrevo não pede favor a ninguém e não imploro socorro:
agüenta-se na sua chamada dor com uma dignidade de barão” (LISPECTOR,
1998, p. 17).
Os adjetivos seco/úmido, nos dois últimos fragmentos mencionados,
formalizam a dicotomia: a imagem masculina, ao suportar com “[...] dignidade
de um barão” a dor, e a subestimada pieguice feminina. O narrador admite que
escrever o que escreve qualquer outro escreveria, “[...] mas teria que ser homem
porque escritora mulher pode lacrimejar piegas [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 14).
A complexa escolha de foco narrativo, em A hora da estrela, revela,
mesmo que sub-repticiamente, um viés polifônico na narrativa, visto que há
uma mixagem de vozes tanto da autora quanto do narrador e da protagonista,
porque se acham imbricados, explicitando real dependência um do outro para
sua existência. Sozinhos são incompletos e impotentes, e Márcia Guidin reitera
tal leitura ao dizer:
Agora não é confortável: para falar da moça tenho que não fazer
a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco,
só cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de
vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me por no nível
da nordestina. (LISPECTOR, 1998, p. 19)
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Ela me acusa [...], é que realmente não sei o que me escapa, te-
nho um personagem buliçoso nas mãos e que me escapa a cada
instante querendo que eu o recupere [...]. (Ela me incomoda tanto
que fico oco. Estou oco desta moça. E ela tanto mais me incomo-
da quanto menos reclama [...]) [...] Uma palavra dela eu às vezes
consigo mas ela me foge por entre os dedos. (LISPECTOR, 1998,
p. 17-29).
Observa-se que Rodrigo padece por não possuir total domínio sobre a
nordestina ao afirmar que, embora seja sua criação, ela possui seus mistérios.
Contudo, é a sua interioridade que sempre lhe escapa, por isso, indaga o sentido
de existência de Macabéa e sua tosca manifestação de vida: “Por que escrevo
sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem?” (LISPECTOR, 1998, p. 21),
“Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra?” (LISPECTOR, 1998, p. 26).
Nessa verdadeira viagem, põe a nu a sua imagem de escritor, tentando construir,
“[...] a partir do limo de uma personagem-formiga [Macabéa] e de sua própria
pessoa-gigante-de-consciência, uma estrela-pessoa [...]” (LISPECTOR, 1993,
p.12). Procurando uma verdade que lhe ultrapasse, um ser ralo, inócuo, inútil,
uma peça solta, é acolhida pelo olhar cuidadoso do escritor que se acha perdido,
desconfiado, incomodado. Macabéa é a suposta causa de seu sofrimento, de
suas angústias, mas a diferença fundamental entre a nordestina e Rodrigo é que
ele reconhece sua existência e tenta explicitá-la, explicá-la, reconstituí-la através
de relatos, de fragmentos da história do outro. Buscando solucionar todos esses
impasses, dá forma e destino a si próprio e à moça; põe fim à existência de
Macabéa e, conseqüentemente, ao seu existir: “Macabéa me matou. Ela estava
enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu
sei porque acabo de morrer com a moça.” (LISPECTOR, 1998, p. 86). Rodrigo
percebe-se ser um ser mortal: “Meu Deus, só agora me lembrei que a gente
morre. Mas – eu também?!” (LISPECTOR, 1998, p.87). Esse fragmento aponta
para uma grande coincidência no que diz respeito a escritor/personagem e
também à possível reversibilidade entre os dois seres, já que pode ser feita uma
troca de posição sem que haja perda de função.
Para que esse estudo se fundamente, é importante a análise de Benedito
Nunes, já abordado por Guidin (1996), ao afirmar que o texto clariciano é “[...]
um jogo de encaixe narrativo[...]”,
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Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconhe-
ço, já que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei
no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça
nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste.
(LISPECTOR, 1998, p.12)
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REFERÊNCIAS
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 22. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1993.
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