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A queda do

lenina pomeranz

Muro de Berlim.
Reflexões vinte
anos depois

queda do Muro de Berlim ocor-­

reu há vinte anos, cercada de

simbolismos; mas, a não ser por

vozes isoladas, não se ques-

tiona o que veio depois dela.

O primeiro desses simbolismos está asso-

ciado à ideia de liberdade. Caído o muro, não só se

reuniriam as famílias alemãs, por ele arbitrariamen-

te separadas, mas se teriam eliminado ao mesmo

tempo todos os obstáculos à livre circulação das

pessoas, dando aos homens a possibilidade de ir

e vir quando lhes aprouvesse. O muro, entretanto,

representando a falta de liberdade própria dos

regimes do socialismo real, deixou de ser associado


LENINA POMERANZ a esses regimes para tornar-se, atualmente, objeto
é professora
associada, livre- concreto e virtual da discriminação resultante das
docente da FEA-
desigualdades sociais, da separação dos pobres e
USP, pesquisadora
visitante do IEA- deserdados do mundo capitalista. Temos muros
USP e membro do
Conselho Acadêmico de concreto separando os palestinos que buscam
do Grupo de Análise
da Conjuntura trabalho em Israel, mexicanos que buscam trabalho
Internacional do
Instituto de Relações nos EUA e brasileiros favelados no Rio de Janeiro
Internacionais da
USP.
que expandem seus barracos. Os argumentos
são variados – terrorismo, narcotráfico, meio
ambiente –, mas, conquanto possam expressar
problemas efetivamente existentes, objetivamente
os muros barram pessoas que buscam uma vida
melhor na parte desenvolvida do planeta. Não
menos obstáculo à liberdade de ir e vir são a
política anti-imigratória da União Europeia, que
deporta africanos que arriscam suas vidas para
ali aportar, e as veladas restrições ao movimento
dos emigrantes dos países do Leste Europeu,
recém-ingressados na comunidade europeia. São
os muros virtuais.
O segundo simbolismo está associado ao
fim do socialismo real, ao que seria uma vitória
do capitalismo sobre o socialismo, no que se
convencionou chamar, durante o período Khru-
shev na URSS, de concorrência pacífica entre os
dois sistemas. Convenção, naturalmente, porque
essa concorrência não foi nada pacífica, desde o
surgimento do Estado socialista. De todo modo,
a queda do muro representou de fato, e não só
simbolicamente, o marco inicial da derrocada do

sistema do socialismo real, podendo ser incluída


na avalanche que se abateu no Leste Eu- marcado por agitações operárias em todo
ropeu no final da década de 80, e à qual se o mundo e na própria Rússia, como ainda
sucedeu o desmoronamento da URSS, em pela guerra mundial em que se envolveu
dezembro de 1991. a Rússia czarista. O que permitiu aos lí-
São ainda bastante controvertidas as deres revolucionários russos considerar a
discussões sobre o porquê de a experiência sua revolução como parte e primeiro elo
de construção de um sistema alternativo ao da revolução mundial, ainda que a Rússia
capitalismo ter terminado, depois de déca- não fizesse parte da constelação dos países
das de funcionamento. E não propriamente desenvolvidos, nos quais se daria a revo-
nos países europeus do Leste, onde sua lução, segundo as teorias marxistas; e, ao
implantação se deu, de forma impositiva, mesmo tempo, levar em conta os problemas
como resultado da Segunda Guerra Mun- trazidos pela guerra, o descontentamento
dial, mas na URSS, onde sua implantação com a falta de suprimentos e alimentos às
se deu como resultado da Revolução de tropas, formadas por grandes contingentes
Outubro e cujo modelo foi reproduzido nos de camponeses, estes, por sua vez, sedentos
referidos países. Há que se fazer, nesse sen- de terra.
tido, considerações e reflexões sobre o tema, Como se sabe, a revolução esperada no
sem que elas sejam reduzidas de maneira resto do mundo não ocorreu, e a construção
simplista aos embates da Guerra Fria. O do socialismo internacionalmente cedeu
colapso do socialismo real precisa ser en- lugar à construção do mesmo em um único
tendido em sua complexidade, envolvendo país, que passou, com isso, a ser também o
fatores relacionados com sua configuração alvo da guerra do mundo capitalista contra
e seu modo de funcionamento, mas também a ameaça socialista. Na guerra civil desen-
com fatores externos, relacionados com a cadeada por tropas brancas, estas foram
oposição à sua existência e à sua influência apoiadas por tropas estrangeiras1, levando
sobre o resto da humanidade. os bolcheviques a uma difícil condição de
Foge aos objetivos e limites deste artigo sobrevivência; além da ocupação dos Urais,
a discussão mais ampla desses fatores. Cabe, da Sibéria e do norte do Cáucaso pelas tropas
porém, indicá-los de alguma forma, e tentar brancas, os alemães ocuparam a Ucrânia,
ver como se entrelaçam, na delimitação do e a Polônia invadiu o território russo em
impacto histórico que exerceu a URSS em 1920. Aarão Reis Filho (2003) refere-se
todo o – embora breve – século XX, segundo ainda a desembarques de tropas inglesas
Hobsbawm (1995). em Murmansk e Arkhangels ao norte, de
As reflexões podem começar com a con- tropas francesas em Odessa, no Mar Negro
formação que assumiu o sistema socialista, e, um pouco mais tarde, a tropas japonesas
após a Revolução de Outubro, e as condições e norte-americanas em Vladivostok, no
que levaram a ela. Em outros termos, cabe Extremo Oriente.
refletir sobre como se conjugaram esses fa- Com isso, a situação parecia desespera-
tores internos e externos para caracterizar o dora, e não somente em termos militares.
sistema e assegurar-lhe a trajetória de êxitos Os bolcheviques detinham apenas 10%
e fracassos em sua evolução e em seu desa- do suprimento de carvão, 25% das fun-
parecimento. Na controvérsia que cercou o dições de ferro, menos de 50% das áreas
funcionamento da URSS ao longo de toda a produtoras de grãos e menos de 10% das
sua existência, antepondo ideologicamente fontes de açúcar do antigo Império Rus-
os seus defensores e os seus detratores, so. A paz, acordada em Brest-Litovsk, e
foram sempre subestimados os fatores de a distribuição de terras aos camponeses,
ordem histórica que condicionaram a sua que constituíram as primeiras medidas do
formação e funcionamento. Alguns deles novo poder soviético, não impediram que a
parecem, entretanto, fundamentais. guerra civil se prolongasse até 1921 e que
1 Ver Gregory e Stuart (1986),
de onde são também extraí-
Em primeiro lugar, a Revolução de o país fosse tomado pela insuficiência de
dos os dados que seguem. Outubro ocorreu num período não só alimentos ao longo desse período, já que

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o camponês, na impossibilidade de obten- guiu à guerra civil, terminada com a vitória
ção de bens de consumo industriais, seja dos bolcheviques, foi a instituição da Nova
por sua indisponibilidade propriamente, Política Econômica (NEP), com políticas
seja pela inflação de seus preços, preferia radicalmente diferentes das vigentes durante
consumir sua produção ou estocá-la para a fase anterior, do comunismo de guerra. A
melhores tempos. requisição forçada de grãos foi substituída
Tudo isso levou às políticas do cha- por um imposto, cobrado inicialmente em
mado “comunismo de guerra”, que deu espécie e posteriormente em dinheiro, sobre
a conformação do novo poder soviético o excedente do produto agrícola sobre as
em sua primeira fase: requisição forçada necessidades de subsistência do produtor;
de grãos, nacionalização da indústria, a nacionalização industrial restringiu-se às
eliminação do comércio privado e sua grandes empresas, consideradas estratégi-
substituição pela distribuição física de bens, cas para o comando da economia; houve
com consequente eliminação das transações a volta das transações comerciais, através
monetárias e controle semimilitar dos tra- do mercado; a reintrodução da moeda e sua
balhadores industriais. Há historiadores que estabilização.
veem nessas políticas razões ideológicas, Tratava-se de reconstruir a economia
considerando-as como resultado do desejo devastada pela guerra e modernizar o país,
dos bolcheviques de suprimir etapas para a de maneira a eliminar o atraso em que se
construção do socialismo. A história, porém, encontrava frente aos países desenvolvi-
não ratifica essa posição, pois o que se se- dos da época, e criar assim as bases que,

Arthur Lins, 2005

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de acordo com as teses marxistas, seriam serem alcançadas. Segundo Poch-de-Feliu
necessárias para a construção do sistema (2003) a burocracia recrutada nesse período
socialista. era mal preparada. Ela foi, entretanto, instru-
Também os métodos de controle e admi- mental para cumprir disciplinadamente as
nistração da economia foram distintos nos diretrizes emanadas do centro num primeiro
dois períodos descritos: no primeiro caso, momento e constituiu posteriormente a base
diretivas do centro e cumprimento discipli- em que se assentou o surgimento da segun-
nado delas; no segundo caso, funcionamento da economia, da economia subterrânea da
do mercado e administração indireta, através corrupção, que é flagelo arraigado ainda
das cifras de controle como indicadores hoje na Rússia já capitalista3.
para a tomada de decisões descentralizadas Foi nesse momento que se estabeleceu,
pelas empresas. com a vitória de Stalin, na intensa e violenta
Os resultados alcançados com a NEP fo- luta pelo poder no partido, decorrente da
ram extraordinários, levando à reconstrução morte de Lenin, o período do terror que
da economia devastada pela guerra civil, marcou a sua gestão à frente do país, e
em alguns poucos anos: em 1928, a indús- que levou o sistema soviético a ser por ele
tria, a agricultura e os transportes tinham caracterizado, a despeito das mudanças que
alcançado e superado os respectivos níveis sofreu posteriormente à morte do ditador,
de produção de 1913. Era, porém, preciso especialmente o chamado degelo khrushe-
definir os rumos do futuro desenvolvimento viano, que marcou o fim dos gulags e criou
do país, e a discussão que se travou entre condições para o surgimento da dissidência
as diferentes frações do Partido Comunista ao regime. No planejamento da economia,
teve como referência fundamental a defesa foram também tentadas mudanças, no
da jovem nação socialista, especialmente sentido de dar-lhe maior flexibilidade e,
depois do rompimento de relações diplo- com isso, maior eficiência. Entretanto, até a
máticas pela Inglaterra. O futuro, com perestroika e a glasnost de Gorbachev, que
a invasão do país pelas tropas nazistas, tinham por objetivo flexibilizar a economia
durante a Segunda Guerra Mundial, e o e democratizar o sistema, todas essas tenta-
deslanche da Guerra Fria imediatamente tivas foram frustradas por se depararem as
ao seu final, só veio confirmar a correção propostas de reformas descentralizadoras
dessa percepção. com a resistência da liderança e da buro-
Para isso, era fundamental, por sua vez, cracia partidária que temia ser alijada do
2 Ver ampla discussão sobre promover rapidamente a modernização do comando do sistema, mas que se revelou
essa estratégia e suas resul-
tantes em termos do funcio- país, com financiamento não inflacionário. incapaz, por razões que alguns historiadores
namento do sistema econô- O modelo que saiu vitorioso da discussão atribuem aos seus interesses de classe no
mico do socialismo real em
Brus e Laski (1989).
resultou na chamada estratégia soviética de poder, de descentralizá-lo politicamente e
modernização2, que pressupôs: rápida indus- de ajustá-lo economicamente ao novo nível
3 De certo modo, a segunda
economia ou economia trialização, através de maciço investimento de desenvolvimento do país e às mudanças
subterrânea podem ter se em nova capacidade produtiva, com esse tecnológicas e econômicas introduzidas
constituído como forma de
os dirigentes das empresas investimento sendo obtido da acumulação com a globalização no cenário internacio-
fugirem à rigidez e inflexibili- forçada do setor agrícola através da sua nal. E a URSS passou a apresentar taxas
dade do sistema de coman-
do da economia, expresso coletivização; crescimento não equilibrado decrescentes de crescimento, ao mesmo
no planejamento diretivo, entre setores, com os recursos disponíveis tempo em que cresciam os dispêndios com
se forem consideradas as
sendo dirigidos àqueles considerados os a defesa, alimentados pela Guerra Fria.
inflexibilidades do sistema
de planejamento discutidas “motores do desenvolvimento”, leia-se Esse ajustamento foi tentado em meados
em Brus e Laski (1989). E indústria pesada, com marcado sacrifício dos anos 80 por Gorbachev, com a sua
foram instrumentais para
retardar a crise do sistema dos setores produtores de bens de consumo; perestroika e sua glasnost4, mas já estava
(ver Andreff, 1993). e planejamento diretivo centralizado, com fora de época e, no processo conflituoso em
4 A nova política externa, o qual se expandiu a burocracia necessária que se realizou, acabou por levar ao fim da
proposta por Gorbachev,
será vista adiante, quando
à implementação dos planos quinquenais URSS e do sistema do socialismo real em
se tratar da Guerra Fria. em que se definiam as metas econômicas a que se assentava.

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Transformação da revolução socialista da globalização. A forma de integração e
internacional em revolução socialista em interação institucional vigente, expressa
um único país e atrasado econômica e na formação dos vários grupos integrados
socialmente em relação aos países indus- de países e no comando dos organismos
trializados, hostilidade do mundo capita- internacionais, revela a desigualdade da
lista, guerras e corrida armamentista, como distribuição de poder entre os países, dife-
fatores externos; terror e controle totalitário renciando aqueles que detêm o comando real
da economia e da sociedade, que dele bus- do sistema no plano internacional. Não se
caram escape em organizações paralelas e trata, porém, de um sistema estático em sua
na dissidência, poder partidário e estatal evolução, observando-se um movimento
burocratizado e amplamente corrupto, por maior participação de países que têm
planejamento centralizado ineficiente, como se adiantado no processo de crescimento
fatores internos, o que conseguiu o sistema mais recente, nas disputas internacionais.
do socialismo real? O que não elimina a manutenção de um
Sem dúvida nenhuma, pelo menos três contingente de países marginalizados do
grandes realizações: a rápida industriali- processo de desenvolvimento como bolsões
zação e modernização de um país retarda- da pobreza internacional e objeto das ações
tário, num processo que serviu de modelo da chamada ajuda internacional de socorro
inspirador para os países libertados do jugo aos seus habitantes.
colonial e desejosos de sair do atraso em que Por outro lado, as inovações tecnológi-
se encontravam através do planejamento; cas da informática e das comunicações, além
segundo Archie Brown (2007), estava na das inovações organizacionais das empresas
disputa por esse Terceiro Mundo, a Guerra delas decorrentes, criam problemas sociais
Fria entre os dois sistemas, capitalista e de difícil enfrentamento, como o desempre-
socialista; a vitória sobre o nazifascismo go da mão-de-obra não ajustada a elas, a
na Segunda Guerra Mundial, na qual o seu terceirização e a precarização das relações
papel foi fundamental; a difusão dos ideais de trabalho, levando à marginalização de
de justiça e igualdade social em todo o grandes contingentes populacionais, inclu-
mundo, influenciando, inclusive, segundo sive nos países desenvolvidos, e à busca
alguns estudiosos, o desenvolvimento da de oportunidades de trabalho através da
social-democracia. Há em todas essas rea- imigração. É visível, nesse quadro, a gran-
lizações os seus senões: o custo material e de concentração de riqueza e a crescente
humano do processo de modernização, os desigualdade social.
milhões de mortos na guerra contra o nazis- Não são menos importantes no processo
mo e, contrariando os ideais de igualdade, de expansão econômica capitalista global
a existência de grupos privilegiados na os efeitos sobre o meio ambiente, em cujas
URSS, dos quais surgiram, na nova Rússia soluções se defrontam os países mais e me-
capitalista, os novos proprietários, inclusive nos responsáveis pela poluição causadora
os magnatas conhecidos como oligarcas, em desses efeitos6.
detrimento da grande massa da população O fim do socialismo real, fechando um
empobrecida no processo de transformação capítulo em torno da experiência de um
sistêmica do país. Não se pode, porém, negar sistema alternativo ao capitalismo, em fun- 5 À exceção de alguns países
que foram realizações. ção do embate contra ele movido e de suas que abraçam o modelo do
Com o fim do socialismo real, o sistema deficiências internas no plano econômico
socialismo real. A China, em
função das transformações
capitalista se torna único5, ainda que dis- e político, produziu um vácuo ideológico por que passa a sua eco-
tinto em seus níveis de desenvolvimento nas forças que lutam por um mundo melhor, nomia e de sua inserção
internacional, é aqui incluída
e em suas formas de organização social mesmo entre aquelas que se opunham ao no mundo capitalista.
nos diferentes países, tornando evidentes modelo soviético. O capitalismo, mesmo 6 Cabe ressalvar que os danos
a concentração da riqueza em alguns deles com todo o seu dinamismo, não parecer ser ao meio ambiente foram
também, e em considerável
e a diferença de interesses geopolíticos e capaz de preencher esse vácuo, a busca pela medida, realizados na URSS,
econômicos entre as nações, a despeito criação desse mundo melhor, mais iguali- bastante criticada por isso.

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tário e mais justo. A dúvida que permanece terminado em 1989, quando o bloco socia-
é se o socialismo, sem adjetivos, enquanto lista deixou de existir. Sendo uma guerra
perspectiva de organização social, pode vir ideológica, sob o ponto de vista ideológico,
a transformar a utopia em realidade. segundo Brown (2007), a Guerra Fria teria
O terceiro simbolismo associado à queda terminado ainda em 1988, quando Mikhail
do Muro de Berlim é o de que ela representa
o fim da Guerra Fria. O termo é geralmente
Arthur Lins, 2005
associado ao fim da corrida armamentista
em que se transformou o embate entre os
dois sistemas, existente, porém, desde a
constituição do Estado socialista (Malinko-
vitch, 2008; Vizentini, 2004). Esse embate
teria assumido uma feição diferente com
os resultados da Segunda Guerra Mundial
e os entendimentos havidos entre as gran-
des potências nas conferências de Yalta
e Potsdam, referendando a formação de
blocos de países em áreas de influência: dos
países ocidentais, liderados pelos Estados
Unidos, e dos países da Europa do leste,
liderados pela URSS. Com isso, o embate
entre os dois sistemas, que caracterizou
todo o desenvolvimento mundial no período
do pós-guerra até o fim da URSS, passou
a apoiar-se na capacidade militar de cada
bloco, expressa nas respectivas alianças e
instituições militares de defesa, e definiu os
rumos da Guerra Fria, inclusive estimulando
a corrida armamentista.
A despeito dessa corrida, não houve
guerra, no sentido bélico do termo, devido
aos entendimentos para evitar um desastre
nuclear, não obstante o esforço despendido
por ambos os blocos, especialmente pelos
países líderes, em desenvolver novos ar-
mamentos que neutralizassem contingentes
superioridades armamentistas de cada lado.
E foi nesse sentido que se associou a vitória
do capitalismo à impossibilidade material
da URSS de acompanhar a corrida arma-
mentista, depois da ameaça de Reagan de
levá-la ao espaço, através do seu programa
Guerra nas Estrelas.
Há, entretanto, nas discussões acadêmi-
cas sobre a Guerra Fria, quem a avalie como
uma guerra ideológica entre os dois sistemas
(Brown, 2007). Nesse caso, a Guerra Fria
teria começado com a tomada da Europa
do leste pela URSS, na forma da obtenção
do poder pelos partidos comunistas de
cada país, dominados por Moscou; e teria

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Gorbachev, na 19a Conferência do Partido mico e político. Em outros termos, quando a
Comunista realizada no verão daquele ano, URSS, nas palavras de Mikhail Gorbachev,
e posteriormente em célebre discurso na renunciou ao uso da força militar, para
ONU, afirmou ser direito de cada povo de manter os regimes comunistas nos países
qualquer país escolher seu sistema econô- do Leste Europeu7. E com isso conduziu à
derrubada dos dirigentes comunistas nas
revoluções pacíficas que se seguiram nos
principais países do bloco leste-europeu.
Eliminado o sistema socialista, teria sido
eliminada a Guerra Fria.
A política para terminar a Guerra Fria,
entretanto, foi definida por Gorbachev
(s.d.) ainda antes, refutando no prefácio ao
seu livro Perestroika. Novas Ideias para o
Meu País e para o Mundo, a ideia de que
a perestroika e os fins com ela pretendidos
para enfrentar os problemas econômicos do
país teriam condicionado as propostas de
paz da URSS, mesmo admitindo serem ne-
cessárias condições externas normais (leia-
se, sem guerra) para o progresso interno
da mesma. Além disso, entre os princípios
políticos anunciados no livro (Gorbachev,
s.d., pp. 160 e 162) se colocam os de que o
mundo do “nosso tempo” é “contraditório,
mas inter-relacionado, interdependente
e essencialmente uno”, “a guerra nucle-
ar não pode servir de instrumento para
atingir objetivos políticos, econômicos,
ideológicos ou quaisquer outros” e de que
a única via que pode garantir a segurança
das nações são as decisões políticas e o
desarmamento.
É nesse contexto que se situa a afirma-
ção de que

“[…] a segurança internacional repousa no


reconhecimento de que todas as nações têm
direito à escolha de seus próprios caminhos
de desenvolvimento social, na recusa a qual-
quer interferência em assuntos internos de
outras nações, no respeito que deve nortear as
relações internacionais e, ao mesmo tempo,
na análise objetiva e autocrítica de toda a 7 Segundo Brown (2007),
sociedade. Qualquer nação pode fazer sua já em começos de 1985,
Gorbachev teria dito a
opção, seja pelo capitalismo, seja pelo socia- dirigentes comunistas da
lismo, no legítimo exercício de seus direitos Europa do leste, que não
deveriam esperar mais in-
de soberania” (Gorbachev, s.d., p. 165). tervenções soviéticas para
mantê-los no poder, caben-
do a eles manter ou ganhar
Historicamente, o que se observou de a confiança de seus próprios
fato foi que nos países do Leste Europeu povos.

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e na própria Alemanha se entendeu que a A essa descrição feita por Putin, acres-
URSS não interferiria militarmente nos centem-se as tentativas de inclusão da
movimentos que se esboçassem contra o Geórgia e da Ucrânia como membros na
sistema, e esses movimentos rapidamente Otan e as recentes operações militares dessa
levaram às revoluções pacíficas de derru- organização na Geórgia, depois da Guerra
bada dos governos socialistas e à queda do dos Cinco Dias deflagrada pelo presidente
Muro de Berlim. Saakashvili, contra as tropas russas ins-
A Guerra Fria, porém, não terminou taladas na Ossétia do Sul, em missão de
no mundo aparentemente homogeneizado garantidores do armistício assinado depois
ideologicamente do capitalismo. Os confli- de duas invasões sucessivas no início dos
tos internacionais expressos nas múltiplas anos 90, por governos centrais da Geórgia,
guerras locais expõem com clareza os inte- a movimentos separatistas tanto da Ossétia
resses geopolíticos contraditórios que são a do Sul, como da Abkhazia.
elas subjacentes, até mesmo quando se trata A pergunta que se pode então fazer, como
aparentemente de conflitos exclusivamente Putin o fez na referida conferência, é o porquê
étnicos ou religiosos. Nesse caso, não se da animosidade contra a Rússia, sabendo-se
trata propriamente de Guerra Fria. Como que esse país optou pela economia de mer-
também não parece adequado incluir nela cado e pela democracia. Essa animosidade
os atentados terroristas, levados a cabo sob não está, naturalmente, nas imperfeições da
diferentes bandeiras. Mas, aparentemente, economia de mercado e da democracia na
são os mesmos interesses geopolíticos que Rússia, ainda que sejam constantes as críticas
conduzem a Guerra Fria, propriamente dita, às restrições nela feitas à democracia. Na
em relação à Rússia. verdade, as causas dessa animosidade e o que
Nesse sentido, cabe referir-se à ma- poderia ser considerado como a continuação
nutenção da Otan como instrumento de da Guerra Fria, mesmo com o fim da URSS
implementação da política conduzida sob e do sistema por ela representado, são de na-
os auspícios do governo Bush Jr. para tureza geopolítica e envolvem duas questões
isolar a Rússia e limitar as suas intenções centrais: a) a energia, que tem na Rússia o
de manter-se, em substituição à URSS, grande produtor e exportador de petróleo e
como um protagonista ativo no cenário gás; e, entrelaçada com ela, a disputa política
internacional, utilizando as vantagens pela região do Cáucaso, alguns de cujos paí-
geoestratégicas de que dispõe. Em discurso ses, além de serem considerados pelos russos
pronunciado em Munique, no começo de como pertencentes à sua área de influência,
fevereiro de 2007, na Conferência Inter- são produtores e detêm reservas desses pro-
8 O tenente-coronel Marcel
nacional sobre Política de Segurança, o dutos, bem como parte da infraestrutura de
de Haas, pesquisador sênior
sobre doutrina militar, estra- então presidente da Rússia, Vladimir Putin, distribuição dos mesmos. Ressalte-se que os
tégia e política externa da além de assinalar a retirada unilateral dos esforços da União Europeia para eliminar ou
Holanda, Otan, EUA, Rússia
e CEI, no Instituto Holandês Estados Unidos do Tratado Antimísseis reduzir a sua dependência desses energéticos
de Relações Internacionais Balísticos, assinado pela URSS e pelos da Rússia estão atualmente se dando basi-
Clingendael, em The Hague,
indica, nesse sentido, a base EUA em 1972, discorreu sobre as atitudes camente em torno dessa infraestrutura; b) a
aérea da Otan na Lituânia consideradas agressivas para o país, como posição internacional da Rússia, no plano
e o anúncio de colocação
de forças militares norte- a proposição da criação de um sistema de da segurança internacional, que pode ser
americanas nos territórios defesa contra mísseis balísticos na Polônia sintetizada na sua privilegiada localização
da Romênia e da Bulgária,
e na República Tcheca, a posição da Otan territorial – entre a Europa e a Ásia –, no
como parte dos planos do
Pentágono de expansão de em relação ao Tratado sobre Forças Arma- seu poderio militar como potência nuclear,
suas bases militares para o das Convencionais na Europa e a expansão a despeito de sua reconhecida inferioridade
Leste, feitos no final de 2005
(ver Pomeranz, 2007). de suas bases nas fronteiras da Rússia8, a em relação aos Estados Unidos nessa área
9 Não cabe, nos limites deste despeito da promessa verbal feita em maio e no fato de pertencer ao Conselho de Se-
artigo, discutir mais detalha- de 1990, pelo seu secretário-geral, de não gurança da ONU9.
damente essas questões. O
leitor interessado é repor-
colocar bases para além do território da A ascensão de Barack Obama à presi-
tado a Pomeranz (2007). Alemanha (Pomeranz, 2007). dência dos Estados Unidos permite esperar

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mudanças substantivas nesse panorama. Em âmbito da guerra pela segurança energética
relação à segurança internacional, estão em na Europa, a qual depende muito do forne-
andamento os primeiros entendimentos no cimento, especialmente de gás, da Rússia.
plano diplomático e entre os mandatários E nessa guerra, como já foi dito acima,
dos dois países em relação às questões do assume importância estratégica não só a rede
desarmamento nuclear e ao aproveitamento de transporte do petróleo e do gás, como
da posição territorial da Rússia, para uma também a própria produção dos energéticos,
cooperação efetiva na guerra contra o nos países da região considerada como zona
terrorismo na Ásia, liderada pelos Estados de influência da Rússia.
Unidos. Há algumas tentativas de resta- O clima de distensão inaugurado com
belecer o diálogo entre a Rússia e a Otan, Obama no plano internacional, a despeito
suspenso depois da Guerra dos Cinco Dias das dificuldades, alimenta esperanças de
na Geórgia, e se fala novamente num rápido mudanças. Assim também a disposição
ingresso da Rússia na OMC. manifestada pela liderança russa. Oxalá
No plano da energia, as mudanças são elas se realizem, e a Guerra Fria possa de
menos visíveis, colocando-se ainda no fato ter um ponto final.

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REVISTA USP, São Paulo, n.84, p. 14-23, dezembro/fevereiro 2009-2010 23

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