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Copyright© Monica de Oliveira Benarroz

9795/1 – 200 – 124 – 2020

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Arte de Capa: Mirian Macedo Designer

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B725c
Benarroz, Monica
Comendo com prazer até o fim : o papel da alimentação na vida de pessoas com câncer avançado na
perspectiva dos cuidados paliativos / Monica Benarroz. - 1. ed. - São Paulo : Scortecci, 2020.

ISBN 978-65-5529-269-5

1. Câncer - Pacientes - Cuidado e tratamento. 2. Câncer - Aspectos nutricionais. 3. Câncer -


Dietoterapia. 4. Câncer - Cuidados paliativos. I. Título.

20-67315

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Dedicatória

Aos meus filhos, minha inspiração.


Aos meus pais, que sonham comigo.
Aos meus pacientes, que são meu grande incentivo para fazer do
cuidado minha maior missão.
Minha gratidão

A Jesus, minha fonte de vida e esperança;


Ao Ernani Costa Mendes, Coordenador do Grupo de Estudo e
Pesquisa em Cuidados Paliativos da ENSP/FIOCRUZ, pela
oportunidade que tenho de fazer parte deste Grupo que tanto me
ensina;
À Caroline Benarroz, minha filha amada, Profissional de Letras,
Comunicação e Marketing, pela revisão textual meticulosa;
À Liana Amorim Corrêa Trotte, Enfermeira, Doutora, Professora
da UFRJ e membro do Grupo de Estudo e Pesquisa de Cuidados
Paliativos da ENSP/FIOCRUZ, pela preciosa revisão técnica;
À Mirian Macedo, Designer, pela belíssima ilustração da capa do
livro.
Porque Dele, e por meio Dele,
e para Ele são todas as coisas.
A Ele seja a glória para sempre!
Sumário
Prefácio
Apresentação
Introdução
Capítulo 1
Cada um no seu quadrado
Capítulo 2
O cuidado de cada dia
Capítulo 3
Cuidados paliativos: um caminho de compaixão
Capítulo 4
Juntos, somos mais fortes
Capítulo 5
Comendo com prazer, por que não?
Capítulo 6
Mudanças, às vezes necessárias
Capítulo 7
Água: um santo remédio
Capítulo 8
Falta de apetite: sinal vermelho
Capítulo 9
O valor de cada grama
Capítulo 10
Cuidando dos sintomas
Capítulo 11
Plantas medicinais: um risco natural
Capítulo 12
Quem tem dor tem pressa
Capítulo 13
Outras formas de alimentação
Capítulo 14
A vida por um sopro
Capítulo 15
Contando histórias de verdade
Posfácio
Bibliografia consultada
Sobre a autora
Sobre a obra
Prefácio
O livro Comendo com prazer até o fim: o papel da alimentação na vida de pessoas com
câncer avançado na perspectiva dos cuidados paliativos não é inédito apenas no tema,
mas também no protagonismo dado às pessoas que vivenciam o enfrentamento
de uma doença incurável e seu processo de morrer com relação às suas
preferências alimentares. A autora discorre sobre o assunto com
responsabilidade, profissionalismo, mas com muito senso de humanidade, ética
e compaixão.
Ter a honra de prefaciar uma obra de tamanha relevância, que se posiciona
de modo crítico, ético e respeitoso, tornou-se uma grande responsabilidade. Ao
ler o livro, o fiz encarnada em três “papéis” que desempenho: o de amiga de
uma pessoa incrível e profissional brilhante, o de bioeticista e o de paliativista.
Confesso, maravilhei-me em todos eles!
Trata-se de uma obra em que os referenciais bioéticos emergem com
naturalidade. As suas páginas são permeadas por considerações pelo respeito à
autonomia, pela dignidade e pela qualidade de vida, próprio de quem exerce
tais referenciais cotidianamente. Nesta, o indivíduo não é considerado apenas
em sua totalidade, mas principalmente, em sua subjetividade e, suas
necessidades alimentares extrapolam o aporte nutricional.
Como familiares e profissionais de saúde podem lidar respeitosamente com
a pessoa vivendo com o câncer avançado em relação à alimentação? Existiria
alguma dieta restritiva ou com inclusão de alimentos, ou mesmo, um
“superalimento” que possa contribuir para a cura ou para a estagnação do
estágio do câncer avançado? Essas e outras questões alimentares e nutricionais
são cuidadosamente respondidas, atentando diligentemente para as emoções e
as relações afetivas inerentes, sem desconsiderar o impacto negativo quando
estas se dão por canais conflituosos.
O papel simbólico da comida, a fome da alma, de respeito, de atenção e de
esperança, acrescido dos muitos conflitos que o tema suscita são tratados com a
sensibilidade de uma poetisa, junto com o profissionalismo e a competência de
quem tem vasto conhecimento técnico e, experiência no cuidado da pessoa que
vivencia as questões concretas do câncer avançado.
Para nós que trabalhamos com Cuidados Paliativos, e ainda mais, que
acompanhamos os pacientes na jornada de seu processo de morrer, a obra vem
como um bálsamo, pois para a maioria de nós, não é tarefa fácil acessar alguns
colegas ou familiares em favor ao respeito às preferências e expectativas
alimentares das pessoas vivendo com câncer avançado. Na prática, potencializá-
las torna-se uma batalha renhida, pois o tema alimentação configura-se em um
problema que traz insegurança, questionamentos e até conflitos intrafamiliar e,
entre os profissionais de saúde.
Além de ressaltar o caráter terapêutico da alimentação, Benarroz a insere
nas questões gerais da doença, imprimindo relevância incomum a esta durante
o acompanhamento dos pacientes por profissionais de saúde e familiares.
Sabiamente, as questões de alimentação estão niveladas às outras importantes
vontades, queixas ou sintomas apresentados pela pessoa com câncer avançado
ou por seus familiares. Certamente, trata-se de um livro para ser consumido
avidamente tanto por estudantes e profissionais de saúde, quanto por familiares
e pessoas que vivem com câncer avançado.

Edna Corrêa Moreira


Mestre em Bioética, Especialista em Cuidados Paliativos, Assistente Social e Presidente da Comissão de
Cuidados Paliativos do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, membro do Grupo de Estudo e Pesquisa
em Cuidados Paliativos da ENSP/FIOCRUZ.
Apresentação
A comida, para além do seu papel de combustível de energia e de fonte de
substâncias essenciais à vida, é simbólica para cada pessoa na sua
individualidade e mais ainda na coletividade. Tem gente que come quando está
feliz, ansioso ou frustrado, por exemplo. Todavia, o contrário também é
verdadeiro; muitos não comem quando estão deprimidos, com medo ou com
dor, entre tantos outros motivos, situações frequentes no câncer avançado1.
Cuidar de pessoas que lutam contra o câncer2 tem sido um aprendizado
todos os dias, uma vez que falar da comida do corpo requer compreender a
fome da alma do doente. Uns com muito apetite, outros totalmente anoréticos3.
Mas todos com fome de atenção, de respeito e de esperança.
Este livro é uma coletânea atualizada de publicações que produzi nos
últimos 15 anos em que venho me dedicando no estudo das interfaces da
nutrição, da alimentação, do câncer e dos cuidados paliativos. Foram capítulos
de livros, artigos científicos, textos em sites institucionais, resumos de aulas e
de palestras, além de outros materiais de consulta.
Nas páginas seguintes, abordei assuntos referentes à alimentação de pessoas
com câncer avançado, na perspectiva dos cuidados paliativos, trazendo
conceitos e refletindo sobre diferentes situações que vivencio na prática clínica.
Usei um vocabulário simples para que a leitura seja mais fluida, pois não se
trata de um livro técnico, mas de um manual com o propósito de ajudar tanto a
pessoa com câncer em alimentar-se da melhor forma possível (ainda que haja
certas limitações), quanto o familiar (ou um amigo) na compreensão de que as
queixas e os sintomas dessas pessoas são reais, por isso devem ser respeitados
para que possam ser amenizados.
Do mesmo modo, pode ser uma literatura útil para os profissionais ou
estudantes das diferentes áreas da saúde despertarem seu interesse pelos
cuidados paliativos.
Gosto sempre de lembrar em minhas palestras que a comida tanto pode
ajudar como prejudicar. Por conseguinte, em todo conteúdo desse livro foi
ressaltado o valor do respeito à autonomia da pessoa com câncer, sua dignidade
e qualidade de vida4.
Esse livro é um convite a pensar criticamente sobre as informações de
alimentação relacionadas ao câncer avançado. Que ele possa fazer a diferença
na sua vida, seja qual for a sua posição nesse momento.
1
Câncer avançado: é o câncer que não pode ser curado. São classificados de localmente avançado ou
metastático (quando se espalha para os outros órgãos).
2
Câncer: designação dada a mais de 600 doenças, cuja característica é o crescimento desordenado de
células que invadem órgãos e podem se espalhar para outros órgãos.
3
Anorexia do câncer é um quadro clínico relacionado à progressão da doença, caracterizada pela perda
espontânea e não intencional do apetite (diferente da anorexia nervosa). Anorético é quem apresenta
anorexia.
4
Qualidade de vida: é a uma percepção particular que depende da história de vida de cada um, de
pressupostos e de valores construídos a partir das experiências e expectativas pessoais e sociais da pessoa.
Introdução
Cuidados paliativos, abordagem multiprofissional
Cada saber, um valor na avaliação individual.
Monica Benarroz

Cada vez mais somos levados a escolher alimentos que, de alguma maneira,
podem promover a saúde e nos livrar de várias doenças. Por um lado, isso é
bom porque prestamos mais atenção no que comemos, ajudamos nossas
defesas naturais e protegemos nosso organismo contra diferentes enfermidades,
inclusive o câncer. Por outro lado, pode gerar expectativas de desenvolver uma
imunidade blindada e, consequentemente, frustrações e ansiedades, porque
comida não é remédio, nem vacina com poder de imunizar contra qualquer
doença.
Muitas pesquisas mostram a importância de uma alimentação colorida, rica
em hortaliças, grãos integrais e carne branca, além de pobre em açúcar, sal,
carne vermelha e gordura saturada. Disso não há dúvidas! Entretanto,
recentemente criaram o termo superalimentos com alegação de que alguns
alimentos – açafrão, brócolis, castanha-do-pará, chá-verde, entre outros –
apresentam benefícios excepcionais. No entanto, até agora nenhum estudo
científico conseguiu comprovar a real eficácia desses efeitos milagrosos.
Falando especificamente da relação entre o alimento e a prevenção de
câncer, ainda pouco se sabe acerca dos mecanismos efetivos que os alimentos
desempenham na redução do seu risco. Isso se deve à complexidade e à
multifatoriedade5 da gênese da doença.
Embora alguns alimentos desempenhem uma ação protetora no nosso
organismo, nos casos de câncer avançado, essa premissa fica comprometida
devido às várias alterações metabólicas resultantes da progressão da doença,
que levam os doentes a sensações tanto de prazer como de aversão, de fome
como saciedade. Além disso, os sentimentos de angústia, de medo de comer e
passar mal, e de incerteza do futuro, entre outras queixas apresentadas pelo
doente podem, igualmente, prejudicar a alimentação. Portanto, diferentes
instituições de cuidados paliativos defendem que a alimentação e o consumo de
líquidos da pessoa com câncer avançado devem ser pautados principalmente no
prazer e, sempre que possível, na adequação nutricional.
Diante desses fatos, vale a pena exigir dietas rígidas, com inclusões e
restrições alimentares desnecessárias, em situações em que a doença não pode
mais ser revertida?
Em meio a tantas questões complexas e difíceis de lidar, existe uma boa
notícia: a comida é um importante ingrediente que ajuda a alimentar a
esperança e pode ser uma ferramenta de resgate da memória, da socialização,
do prazer e da qualidade de vida.
As páginas a seguir devem ser lidas com a mente e o coração abertos para
que o cuidado possa ser o melhor possível, enquanto há tempo.

5
São vários os fatores de risco para o desenvolvimento do câncer: tabagismo, obesidade, consumo
regular de álcool, exposição solar, sedentarismo, entre outros.
Capítulo 1

Cada um no seu quadrado


Comida mediterrânea, macrobiótica ou tradicional
Seja orgânica, transgênica ou contaminada é política e social.
Monica Benarroz

Falar de comida, de alimentação e de nutrição pode parecer a mesma coisa,


mas não é. Porém, é simples de entender a diferença.
A comida pode ser descrita como uma preparação que carrega consigo
simbolismos, crenças, valores da sociedade e da cultura de cada pessoa, além de
proporcionar um prazer particular para cada um. Já a alimentação é um ato
voluntário e consciente de livre escolha dos alimentos. De alguma forma, as
escolhas estão relacionadas às questões biológicas, emocionais, sociais, culturais
e financeiras de cada indivíduo. O termo nutrição, por sua vez, corresponde
aos nutrientes que cada alimento tem na sua composição e como eles, quando
consumidos adequadamente, agem no nosso organismo, promovendo saúde e
prevenindo doenças.
Para facilitarmos a compreensão dos termos apresentados, usaremos o
exemplo do pão, um alimento muito comum na mesa do brasileiro, assim como
em outras culturas. Podemos dizer que o pão está presente na cultura alimentar
do paulistano (pão com mortadela), do amazonense (pão com tucumã), do
americano (pão com hambúrguer e bacon), do alemão (pão com linguiça) e do
francês (acompanhando as refeições). O pão é um alimento cujo principal
ingrediente é o trigo e, por conseguinte, seu principal nutriente é o amido, um
carboidrato. No entanto, quando associado a ingredientes específicos de uma
cultura, o pão torna-se uma comida com significado.
Logo, a quantidade, a qualidade, a variedade e a frequência do consumo dos
alimentos é o resultado da escolha de cada um, atrelada a seus hábitos
alimentares – que podem ser mais ou menos saudáveis para o estilo de vida da
pessoa – construídos ao longo dos anos e influenciados pelo contexto social,
cultural e econômico.
Conforme definiu Da Mata (1986)6: “Comida não é apenas uma substância
alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se”.
Contudo, para a pessoa com câncer avançado, isso não é necessariamente
verdade; visto que o indivíduo numa condição de saúde débil nem sempre pode
escolher a comida que deseja comer, fazer suas refeições no lugar habitual ou
mesmo na companhia da pessoa querida.
Dessa forma, é importante conhecer tais conceitos para evitar cobranças ou
imposições que desrespeitem a liberdade de escolha, que anulem o prazer e a
memória da comida. Isso, sem falar nos doentes que têm necessidades especiais
de alimentação e fazem suas refeições por meio de uma sonda. Esses assuntos
serão apresentados mais adiante. Todavia, nessa fase da doença, ressignificar, ou
seja, trazer um novo olhar para a comida e o seu papel no organismo é uma
atribuição de todos: de quem cuida e de quem é cuidado.

6
Da Mata R. O que faz o brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
Capítulo 2

O cuidado de cada dia


“Eu me importo por você ser você
e vou me importar até o último dia da sua vida.”
Cicely Saunders

Podemos afirmar que cuidado significa ajudar a si mesmo ou aos outros,


promovendo bem-estar e qualidade de vida. Isso se aplica aos seres humanos,
aos animais, à natureza, ao ecossistema.
Entretanto, na área da saúde, o termo cuidado tem um sentido mais amplo,
incluindo atenção, respeito e acolhimento; práticas essenciais à vida, ao
desenvolvimento e à qualidade de vida. Nessa perspectiva, o cuidado depende
da comunicação, dos relacionamentos, da responsabilidade, da cooperação, da
capacidade de ajudar e ser ajudado.
Os cuidados prestados às pessoas com câncer, especialmente aquelas com
doença avançada e expectativa de vida limitada, é uma tarefa essencial que
demanda conhecimento, qualificação e criatividade. E para os profissionais de
saúde, além desses atributos, muita técnica respaldada na ética.
Podemos dividir o cuidado em quatro grandes grupos: biológico,
psicológico, social e espiritual. Vamos entender como funciona:

• Cuidado biológico: refere-se ao cuidado com o corpo físico, nossos


órgãos e metabolismo. Podemos citar a higiene, a nutrição, o controle de
sintomas (por exemplo: dor, fraqueza, fadiga e falta de apetite), os curativos,
entre outros.
• Cuidado psicológico: diz respeito ao cuidado com as emoções, à forma
de lidar com o diagnóstico, o prognóstico, a progressão da doença, a
autoestima, a perda de independência e da autonomia, evitando a depressão e a
ansiedade.
• Cuidado social: diz respeito à afetividade das relações interpessoais, tais
como o acolhimento de familiares e amigos, as tomadas de decisões inerentes à
vida, evitando assim o isolamento social e participando ativamente das
necessidades do cotidiano.
• Cuidado espiritual: refere-se ao sentido da vida, aos valores e às crenças
do doente no momento que ele vivencia a dor e a angústia da doença incurável.
Corresponde às escolhas particulares que produzirão conforto e paz de
espírito, podendo variar conforme as emoções e as experiências de cada um.
Por exemplo: o pedido de perdão, a reconciliação, a religiosidade.

Nos quatro grupos de cuidado, a alimentação está presente, nutrindo o


corpo físico ou satisfazendo o desejo da alma, sendo um veículo de socialização
ou mesmo uma medida terapêutica.
Nos próximos capítulos, são abordados como as diferentes maneiras de
expressar o cuidado podem ser solidárias e, ao mesmo tempo, tão específicas
fazendo a diferença na vida das pessoas cuja doença já roubou a possibilidade
de cura, mas não pode roubar a esperança de viver um dia de cada vez, do
melhor modo possível.
Capítulo 3

Cuidados paliativos:
um caminho de compaixão
Cuidados Paliativos, na doença crônica, progressiva e terminal
Em qualquer idade seu benefício é mais que medicinal.
Monica Benarroz

Os cuidados paliativos modernos foram iniciados na década de 60, do


século passado, por uma mulher inglesa excepcional que dedicou sua vida em
transformar o sofrimento em esperança, a dor em alívio. Seu nome é Cicely
Saunders7. Ela começou sua carreira como enfermeira, mais tarde cursou
serviço social e, para que pudesse atuar de modo mais efetivo no tratamento
dos moribundos, decidiu estudar medicina. Isso mesmo. Ela associou as
competências de três profissões essenciais na área da saúde e, simultaneamente,
aplicou seus conhecimentos em prol da vida de seus pacientes, ainda que
estivesse por um fio.
Em 1967, a Dra. Cicely Saunders fundou o primeiro serviço de cuidados
paliativos com assistência integral ao doente, o St. Christopher’s Hospice na
Inglaterra. Porém, foi na década de 70 que o termo cuidados paliativos foi
adotado no Canadá e Estados Unidos pelo Dr. Balfour Mount.
Somente em 1990, a Organização Mundial de Saúde publicou o primeiro
conceito de cuidados paliativos, dando ênfase no tratamento da dor
oncológica8, nas dimensões biopsicossocial e espiritual e, na qualidade de vida
do doente com câncer e da sua família. Entretanto, no decorrer dos anos, o
conceito de cuidados paliativos foi evoluindo, sendo reescrito por vários
autores e, mais recentemente, foi estendido para todos os tipos de doenças
crônicas, progressivas, ameaçadoras à continuidade da vida e terminais, com
intervenção precoce ainda no início da doença, não apenas nos estágios
avançados ou próximos da morte.
Em 2002, as crianças vítimas de doenças com tal comprometimento
também foram contempladas nos cuidados paliativos com protocolos
específicos para pediatria. E, em 2004, os idosos em virtude da maior
prevalência de doenças crônico-degenerativas, como as doenças
cardiovasculares, o diabetes e as doenças renais, por exemplo.
O diferencial dos cuidados paliativos está baseado nos princípios-chave9
conforme descritos abaixo:

• Atenção integral, respondendo a todas as necessidades


multidimensionais (biológica, psicológica, social, espiritual), dos pacientes e
seus familiares.
• Atendimento integrado, englobando todos os profissionais de saúde
(equipe multiprofissional10) em diferentes ambientes (hospitais, clínicas,
atendimento domiciliar), com coordenação do atendimento.
• Qualidade dos cuidados, com intervenção precoce para responder com
eficácia e eficiência.
• Acesso universal na perspectiva de saúde pública global, populacional e
comunitária, com prestação de assistência para todos os doentes em condições
crônicas avançadas e prognóstico de vida limitada.
• Valores de compaixão e compromisso, necessários para cuidar de
pessoas em estado de fragilidade e vulnerabilidade.

Em suma, os cuidados paliativos são um modelo de assistência em emprega


cuidados ativos, competentes e compassivos; com foco na qualidade de vida, na
prevenção do sofrimento, no controle de sintomas e no respeito à dignidade
humana. Por isso, valorizam os aspectos biopsicossocial e espiritual do doente,
apoiando seus familiares e cuidadores em todas as fases da doença, morte e luto
com uma equipe multiprofissional. Não é um tipo de cuidado dispensado
àqueles que estão morrendo, ao contrário, deve ser iniciado o quanto antes,
justamente para evitar maiores danos e sofrimentos frente às limitações da
progressão da doença.
Falar de cuidados paliativos é falar de compaixão e de esperança. O câncer
avançado não tem cura, contudo tem um caminho a ser percorrido. A proposta
dos cuidados paliativos é oferecer diferentes medidas terapêuticas que
dignificam o doente e seus familiares, valorizando a vida e tornando a morte
um processo menos doloroso. Essas ações apoiam e confortam o doente
durante todo o percurso da doença e também a sua família, inclusive no luto.
Percorrer o caminho de compaixão é estar ao lado do doente, entendendo
as suas necessidades, compreendendo as suas angústias; é ser solidário,
oferecendo ajuda e ajudando quando solicitado; é respeitar sua individualidade,
suas escolhas, sua história de vida. Na compaixão, sofremos juntos, mas acima
de tudo respeitamos o sofrimento do outro, do jeito que o outro é.
Essa atmosfera de humanização e de compromisso com a dignidade
humana nos permite afirmar que a alimentação e a nutrição adequadas são
imprescindíveis no caminho da compaixão. Isso se deve não meramente aos
nutrientes essenciais que atuam no funcionamento do organismo, mas
sobretudo à natureza simbólica que os alimentos representam nas conexões
com a memória, o prazer e a esperança de cada pessoa.
Assim como o objetivo do tratamento oncológico deixa de ser curativo11 e
passa a ter uma abordagem paliativa; a alimentação e a nutrição, igualmente,
mudam seus objetivos, contribuindo para o melhor estado geral e a qualidade
de vida do doente.
7
Cicely Saunders (1918-2005): deixou um legado que mudou o mundo na concepção do cuidado e da
medicina. Além de profissional de saúde, ela foi escritora, fundadora e presidente do Cicely Saunders
International (2002), uma instituição de caridade voltada para pesquisas e treinamentos em cuidados
paliativos e, sobretudo, foi uma incansável defensora da dignidade humana, inclusive no processo de
morrer.
8
Dor oncológica: sintoma muito comum no câncer avançado, de difícil tratamento que impacta
negativamente na qualidade de vida do doente.
9
Gómez-Batiste, X; Connor, S. Building integrated palliative care programs and services. WHO Collaborating
Centre Public Health Palliative Care Programmes, 2017.
10
Equipe multiprofissional em saúde: é uma equipe composta por profissionais de diferentes áreas, a
saber, médico, enfermeiro, nutricionista, psicólogo, fisioterapeuta, farmacêutico, etc. Uma recomendação
em oncologia e uma exigência em cuidados paliativos.
11
Tratamento curativo: tratamento que visa erradicar completamente o câncer, que normalmente está na
fase inicial e é diagnosticado precocemente.
Capítulo 4

Juntos, somos mais fortes


“Ainda há muito a fazer.”
Cicely Saunders

O câncer é um tipo de doença que nem sempre pode ser percebido na fase
inicial, o que expõe as pessoas ao risco de adoecer silenciosamente. Essa
situação é um dos motivos pelos quais muitas pessoas recebem o diagnóstico
tardiamente, ou seja, quando a doença já comprometeu o órgão de forma
agressiva ou até mesmo já se expandiu para outros órgãos, o que chamamos de
metástase.
Vivemos no século XXI, uma era que dispõe de tecnologia de ponta e
informação globalizada, o que contribuiu significativamente no aumento das
taxas de sobrevivência. Porém, isso não torna a doença um fardo menor. De
fato, muitos sobreviventes12 do câncer sofrem com as consequências dos
tratamentos: a retirada de algum órgão (ou parte dele); a colocação de algum
dispositivo necessário à vida, como a traqueostomia13 para ajudar na respiração;
a impossibilidade de sentir o sabor da comida, como consequência da
radioterapia em casos de câncer de boca; etc.
Podemos perceber que o câncer provoca muitas mudanças na vida dos que
convivem com ele. Conforme a doença vai progredindo, o doente vai
experimentando diferentes adversidades que perpassam por questões físicas,
como as alterações metabólicas, a perda de peso e a fraqueza; questões
emocionais, como lidar com a aceitação das várias limitações e da finitude;
questões alimentares, como a falta de apetite e as dificuldades digestivas;
questões sociais, como vergonha da amputação de um membro ou mesmo a
colocação de uma gastrostomia14. Além do mais, existem questões financeiras
que podem comprometer os procedimentos terapêuticos, a compra de um
determinado medicamento e também uma alimentação mais nutritiva.
Diante de tal panorama, é notório que as emoções adoecem tanto quanto o
corpo e, consequentemente, as relações sociais. Daí a importância de conhecer
as particularidades do doente e a melhor forma de tratá-lo, consciente de que
não há uma receita única que sirva para todos, muito menos uma fórmula
mágica que apagará o sofrimento.
Nesse momento, os cuidados paliativos são o melhor modelo de assistência,
pois ajuda o doente e seus familiares no enfrentamento de todas as dificuldades
que surgem no caminho. A singularidade de cada doente e de cada família deve
ser respeitada. Por isso, as propostas de tratamentos são conversadas,
negociadas e acordadas, com base no conhecimento técnico de diferentes
profissionais, na ética, na clareza das informações e, no entendimento do
doente e de sua família.
A partir de então, será possível identificar os problemas e oferecer
orientação personalizada sobre o que, porque, como e quando comer e beber.

12
Sobreviventes do câncer: definido como todas as pessoas que foram diagnosticadas com câncer,
independente do momento do tratamento (antes, durante ou após).
13
Traqueostomia: um procedimento médico no qual é feito um orifício no pescoço e colocada uma
cânula que é usada para a respiração.
14
Gastrostomia: um procedimento médico no qual é feito um orifício no abdômen e instalada uma
sonda diretamente no estomago, permitindo que a pessoa se alimente pelo dispositivo com dieta de
consistência líquida.
Capítulo 5

Comendo com prazer, por que não?


Comida boa alimenta a esperança do doente
É regada no amor, o melhor ingrediente.
Monica Benarroz

A comida sempre esteve presente nas nossas vidas e culturalmente


associada à saúde, ao bem-estar e ao prazer. Desde criança, somos estimulados
a nos alimentarmos bem para crescermos saudáveis, sermos fortes e
inteligentes. Quando adultos, continuamos buscando uma alimentação que nos
faça saudáveis e que nos dê prazer.
Desde a Grécia antiga e a China milenar, os alimentos são considerados
essenciais na promoção da saúde e no controle de doenças. Repetidas vezes
ouvimos comentários – de amigos, de familiares, das mídias – sobre um
alimento que “emagrece”, que fortalece o sistema imunológico, que “dá
músculos”, que “cura o câncer”, ou ainda que “causa o câncer”.
A alimentação balanceada é, sem dúvida, um grande investimento para a
saúde e a longevidade. Entretanto, temos observado dois perigos nesse
raciocínio. O primeiro é o surgimento recorrente de “dietas da moda” que
alegam a existência dos chamados “superalimentos” que ofereceriam benefícios
extraordinários à saúde. O segundo perigo é achar que a alimentação tem
propriedades milagrosas anticâncer.
Pesquisas extensas têm sido dedicadas à descoberta das conexões entre
alimentação e câncer. Apesar de todos os anos surgirem novas orientações
nacionais e internacionais consolidando a tese de que a alimentação balanceada
pode ajudar na prevenção, nenhuma “alimentação especial” pode reverter um
câncer avançado. Essa compreensão é relevante para evitar que o doente mude
suas práticas alimentares na expectativa de uma cura fantasiosa. Do mesmo
modo, evitar que o familiar decida mudar a alimentação do doente, sem o
consentimento dele, na expectativa de um resultado que a ciência nunca
prometeu.
Estudos revelam que o medo de perder um ente querido faz com que os
familiares convençam ou até forcem os doentes a terem uma alimentação “mais
saudável”, conforme suas crenças e na quantidade que eles julgam suficiente.
Qualquer imposição, além de não ajudar, causa um estresse adicional e
desnecessário para ambas as partes. Por exemplo, o doente tanto pode comer
forçado, o que é extremamente danoso para seu emocional, quanto deixar de
comer até mesmo o que gosta (de teimosia), reduzindo mais ainda o consumo
de alimentos, causando ou agravando a desnutrição. Por outro lado, o familiar
se sente frustrado e angustiado em não conseguir ajudá-lo a se alimentar.
Portanto, ainda que a alimentação ocupe um papel essencial na vida de todo
ser humano, uma pessoa com câncer avançado não deve fazer mudanças na
alimentação sem justificativas clínicas reais e muito menos ser forçada a tal
coisa. Então, como lidar com essa situação?
Devemos sempre considerar que o doente com câncer avançado pode
apresentar diferentes sintomas que dificultam o consumo dos alimentos e que
ele é quem orienta o cuidador a oferecer o melhor cuidado, a partir das suas
informações.
A proposta dos cuidados paliativos é que cada doente tenha uma
alimentação adequada durante a evolução da doença, visando ao controle de
sintomas, às necessidades nutricionais, ao prazer e à qualidade de vida; não
cabendo mudanças ilógicas na alimentação do doente (exceto se o mesmo
desejar).
Para promover a qualidade de vida com foco na alimentação é preciso
atender às necessidades de cada doente, respeitando as preferências alimentares
da mesma maneira que as suas queixas (dor, falta de apetite, boca amarga, etc.).
No entanto, dependendo da gravidade da doença, tais objetivos não poderão
ser completamente atendidos. Todavia, devemos continuar investindo tempo e
discernimento para alcançá-los sempre que possível.
Capítulo 6

Mudanças, às vezes necessárias


“O curioso paradoxo é que quando eu me aceito
como eu sou, então posso mudar.”
Carl R. Rogers

No decorrer da doença, talvez seja necessário fazer adaptações na


consistência e na textura dos alimentos para facilitar a aceitação da comida,
exigindo pouco ou nenhum esforço do doente durante as refeições.
A modificação da consistência dos alimentos é uma estratégia comumente
empregada nos problemas de mastigação, de deglutição (ato de engolir), de
digestão, e também no pós-operatório. Estamos falando de alimentos de fácil
mastigação, como os cozidos e picados; e de fácil deglutição, como os pastosos
e líquidos . Semelhantemente, podemos utilizar essas consistências para os
doentes que apresentam dificuldade para comer em razão de falta de apetite,
paladar alterado, ou qualquer outro motivo que prejudique a alimentação.
Normalmente, a comida mais pastosa e líquida apresenta menor teor de
nutrientes, porém o que deve prevalecer é a aceitação o doente. Mais vale um
prato de sopa cremosa do que nada ou um copo pequeno de vitamina de leite
com fruta do que passar a tarde inteira sem comer.
Outro aspecto importante é a textura, ou seja, a percepção que cada pessoa
tem de um determinado alimento na boca. Por exemplo, o mingau de aveia
“molinho” é uma refeição pastosa, que pode ser feita com aveia em flocos
grossos, em flocos finos ou na forma de farinha fina. Dependendo da escolha
do tipo de aveia, a percepção da textura será específica. Uns vão preferir
mingau de aveia em flocos – consistência pastosa com textura mais “áspera”;
outros, mingau da farinha de aveia – consistência pastosa com textura macia.
Um novo exemplo são os biscoitos, alguns são sólidos e se desfazem na boca e
outros são crocantes e exigem mais esforço na mastigação.
Embora ainda não exista uma terminologia que padronize as consistências
dos alimentos e as texturas, abaixo apresento alguns exemplos de alimentos
modificados15, com mais detalhes no Quadro 1:

• Alimentação picada, bem cozida e suculenta: preparações que


permitem alimentos em pedaços e com resíduos, sempre acompanhada de
molhos, caldos, cremes, etc. Não são permitidos alimentos secos, duros e
crocantes (sementes, nozes, torradas, biscoitos tipo cream cracker).
• Alimentação pastosa grossa (consistência de pudim): preparações cujos
alimentos estão moídos, umedecidos, homogêneos e com aparência coesa. Não
são permitidos alimentos em pedaços e secos.
• Alimentação pastosa fina (consistência de purê ralo): preparações cujos
alimentos são processados ou liquidificados, sem nenhum tipo de resíduo (se
necessário peneirar e coar) e que permite o consumo na colher ou na caneca.
Quadro 1 – Exemplos de diferentes consistências de alimentos modificados
Preparações
Grupos de
alimentos Bem picada, bem cozida e suculenta Pastosa grossa Pastosa fina
(consistência de pudim) (rala e sem resíduo)
Patê de carne de
Carnes de boi, Carne picada ou moída,
boi, frango ou
vitela, porco, aves frango desfiado com molho Patê de carne de boi, frango
peixe, mousse de
e peixe ou ensopado e bem picado, ou peixe
peixe, suflê de
(sem espinhas) peixe cozido ou ensopado
frango
Vitamina de frutas, mingau Iogurte líquido ou
Leite, iogurte e Vitamina de frutas, iogurte
variado, iogurte variado, queijo cremoso, queijo
queijos líquido sem pedaços de frutas
macio ou cremoso cremoso
Preparações
Grupos de
alimentos Bem picada, bem cozida e suculenta Pastosa grossa Pastosa fina
(consistência de pudim) (rala e sem resíduo)
Apenas como ingrediente nas
Ovo mexido, preparações (por exemplo:
Ovos Ovo em qualquer consistência
omelete bater junto com a sopa ou
com caldo de feijão)
Legumes ou
Legumes e Legumes cozidos, refogados verduras em forma Purê ralo de legumes ou
verduras ou assados, verduras de suflê, mousse, verduras, sopas liquidificadas
purê ou creme

Cereais (arroz,
Cereais bem cozidos e Todos os cereais Angu de milho, creme de
aveia, biscoitos,
suculentos, panqueca, lasanhas, devem estar arroz ralo, mingau de farinha
flocos de milho,
massas com bastante molho, umedecidos ou em de aveia, de amido ou farinha
milho, massas,
pães e biscoitos macios forma de pudim de milho
pães)

Feijão (variedades) e
outros grãos Grãos amassados Caldo coado, peneirado ou
Grãos bem cozidos
(ervilha, grão de ou cremosos liquidificado, sopa triturada
bico, lentilha)

Frutas frescas
Frutas frescas macias sem
maduras ou cozidas
Frutas casca e picada ou em Papa de fruta cozida
sem casca, bagaço
conservas
ou sementes

Qualquer
sobremesa que seja
Qualquer sobremesa que não Qualquer sobremesa que seja
Sobremesas umedecida e na
seja seca, dura e crocante pastosa fina ou líquida
consistência de
pudim
Nota 1: pessoas com dificuldade de ingerir líquidos não devem fazer uso de sorvete e gelatina.
Nota 2: o leite pode ser substituído por qualquer extrato vegetal, conhecido como leite de aveia, de
amêndoas, de soja, etc.
15
Alimentos modificados: Adaptado do National Dysphagia Diet published by the American Dietetic
Association (2002).
Capítulo 7

Água: um santo remédio


De golinho em golinho vou enchendo meu tanquinho
Água, suco, chá... Tanto faz, tem que ser devagarinho
Monica Benarroz

Ela não tem cheiro, cor, nem sabor. Para muitos é uma bebida sem graça,
mas a água é indispensável para a nossa saúde. Contudo, os medicamentos
usados na quimioterapia podem mudar o gosto da água e torná-la, para alguns,
desagradável por longos períodos. Há quem diga que a água fica com gosto de
metal, gosto salgado, e até de “podre”. Pode parecer estranho, porém os relatos
são os mais diversos.
No câncer avançado, a tendência é o doente usar cada vez mais
medicamentos para o controle dos sintomas. Fato que aumenta a necessidade
do consumo de água e de outros líquidos, não somente para manter a boca
menos ressecada, mas principalmente para ajudar no funcionamento dos
órgãos, em especial dos rins e do intestino, que eliminam resíduos tóxicos dos
medicamentos.
No geral, é recomendado que as pessoas bebam em torno de dois litros de
líquidos ao dia. Entretanto, a quantidade depende do sexo, da idade, do peso
corporal, do estilo de vida, da temperatura ambiente em que as pessoas vivem e
da condição de saúde de cada um. Portanto, individualizar a necessidade de
líquidos é um passo importante para o consumo regular e adequado.
A melhor bebida para hidratação é sem dúvida a água potável, filtrada e
natural. Contudo, respeitando a intolerância à água e considerando o valor do
líquido, a melhor bebida será aquela que o doente mais aceitar,
preferencialmente sem açúcar (ou apenas uma quantidade mínima), nem
substâncias químicas. A água filtrada, os chás e a água saborizada16 são as
melhores opções para o consumo.
Líquidos como suco de frutas, água de coco, bebidas isotônicas17 e
refrigerantes não devem ser consumidos como substituto da água para a
hidratação, ou seja, beber vários copos ao dia. Apesar de o suco de frutas
naturais conter substâncias nutritivas, ele é rico em açúcar (frutose), por isso
deve ser consumido com moderação (um copo de 250ml do dia) e diluído em
água. Do contrário, pode prejudicar o controle da glicemia (quantidade de
açúcar no sangue), a cicatrização de feridas e a função renal (para os que têm
problemas renais), além de aumentar a propensão de infecções na boca (devido
ao açúcar da fruta).
Quanto à água de coco, apesar de nutritiva, saborosa e recomendada para
náuseas e vômitos, o consumo indiscriminado para os doentes com problemas
renais pode ser danoso devido ao elevado teor de potássio. Desse modo, a água
de coco pode ser consumida com moderação (um copo de 200ml ao dia), mas
nunca substituindo a água natural. As bebidas isotônicas seguem as mesmas
recomendações.
O refrigerante é uma bebida muito polêmica devido aos ingredientes: alto
teor de açúcar e de substâncias químicas. Contudo, faz parte da rotina
alimentar de muitas pessoas, e conforme já falamos nos capítulos anteriores, o
objetivo dos cuidados paliativos é associar as necessidades nutricionais e o
controle de sintomas ao prazer, não cabendo imposições alimentares nem
restrições desnecessárias. Dito isso, para aqueles que têm o hábito de beber
refrigerante, a recomendação é evitar o consumo frequente, todavia sem a
obrigatoriedade de fazer restrição total. Exceto, se o doente concordar em abrir
mão do refrigerante.
Seguem algumas recomendações que ajudarão no consumo de líquidos em
geral:

• Ter horários definidos para a hidratação é uma boa estratégia para não se
esquecer de beber líquidos. Pode ser 100ml a cada hora, 200ml nos intervalos
das refeições, ou mesmo separar uma garrafinha que fique sempre próxima e
seja frequentemente abastecida;
• Variar os líquidos. Nesse sentido, as águas saborizadas, refrescos e chás
são bem-vindos, principalmente para quem tem baixa tolerância à água ou
gosto alterado;
• Aumentar a quantidade de líquidos, em pelo menos 50%, quando
apresentar vômitos e diarreia;
• Preferir comer alimentos com alto teor de água, como as frutas suculentas
(laranja, lima, melancia, melão, tangerina), sopa e salada crua com vegetais
folhosos e tomates. Exceto se houver diarreia.

16
Água saborizada: água natural com pedaços de frutas, ervas (hortelã e alecrim), especiarias (cravo e
canela, gengibre), etc. Pode ser bebida em temperatura ambiente ou refrigerada.
17
Bebidas isotônicas: é uma bebida muito utilizada no meio esportivo para reposição de sais minerais e
carboidratos. Além disso, os diferentes sabores aumentam a aceitação do liquido ajudando na hidratação.
Capítulo 8

Falta de apetite: sinal vermelho


Comida gostosa é feita com carinho.
Mesmo sem apetite, se come aos bocadinhos.
Monica Benarroz

A falta de apetite relacionada ao câncer, conhecida na área médica como


anorexia do câncer, faz parte das alterações metabólicas desencadeadas pelas
células tumorais e caracteriza-se pelo desinteresse parcial ou total da comida,
levando o doente a repudiar até mesmo alimentos que um dia foram preferidos.
Esse tipo de falta de apetite é complexo; uma vez que compreende causas
secundárias, como os efeitos colaterais dos tratamentos anticâncer, dos diversos
medicamentos para controle de sintomas e dos transtornos emocionais.
A anorexia do câncer leva o doente a comer cada vez menos. Sendo assim,
se não houver uma intervenção rápida da equipe multiprofissional, além da
perda de peso e da desnutrição (veja capítulo 9), o doente apresentará cada vez
mais fraqueza, desânimo e, por conseguinte, riscos de outras doenças e
hospitalização.

Causas secundárias da perda de apetite

• Quimioterapia (alguns medicamentos);


• Imunoterapia (alguns medicamentos);
• Radioterapia;
• Efeitos colaterais com alterações digestivas (veja capítulo 10);
• Opioides (medicamentos para controle de dor severa);
• Psicotrópicos (medicamentos para tratar os transtornos emocionais);
• Dor física e emocional (veja capítulo 12);
• Medo de comer, relacionado às queixas digestivas, e de agravar o câncer
(por exemplo: doces e carne vermelha).

O que fazer em caso de perda de apetite?

O mais importante é tratar todos os sintomas que dificultam o doente de se


alimentar (náusea, azia, sensação de plenitude, dor, etc.) antes dos horários das
refeições. O uso correto da medicação ajuda no controle dos sintomas e
permite que o doente se alimente melhor. Entretanto, existem outros cuidados
que normalmente trazem benefícios e favorecem uma alimentação mais
agradável, como fazer as refeições num local tranquilo com pessoas queridas,
conforme apresentado no Quadro 2.
Abaixo, seguem algumas dicas que podem ajudar no apetite do doente. Se,
após várias tentativas e adaptações na consistência da comida, ainda assim o
doente não conseguir comer o mínimo acordado com o nutricionista, deve-se
analisar a viabilidade da alimentação artificial, por meio de sonda. O que deve
ser conversado com doente, com o médico e sua equipe para avaliar os riscos e
os benefícios. Maiores detalhes são apresentados no capítulo 13.
Quadro 2 – Cuidados que amenizam a anorexia

• Identificar e tratar os sintomas físicos/biológicos que potencializam a anorexia;


• Observar se a posição é confortável para fazer as refeições;
Biológico
• Oferecer a quantidade e a consistência de comida em conformidade com a aceitação,
evitando rejeição das próximas refeições.

• Respeitar o doente, sem forçá-lo a comer o que não gosta, ou na quantidade que não
Psicológico tolera;
• Incentivar o doente a comer comidas que dão prazer.
Social • Estimular o convívio do doente com a família, amigos ou outras pessoas durante as
refeições;
• Fazer as refeições num local agradável e tranquilo.

• Dar um novo sentido à comida, vendo algum fator positivo nas refeições;
Espiritual • Criar um ambiente de gratidão e prazer, associando orações, música, boa companhia,
etc.

Vale lembrar que a anorexia é um dos sintomas no câncer avançado; não


existe uma regra geral que resolva todos os problemas relacionados à
alimentação. Dessa forma, observar todas as queixas do doente para adequar a
alimentação do jeito que ele aceita mais é a melhor opção.
Outra consideração importante: as dicas a seguir não se aplicam nos
cuidados ao fim de vida, abordado no capítulo 14.

Dicas de ouro para alimentação oral

• Fracionar as refeições em horários regulares, porém flexíveis, mantendo a


rotina alimentar;
• Respeitar a quantidade/volume que o doente tolera;
• Dar preferência aos alimentos de fácil mastigação (bem cozidos, picados e
suculentos) e nas consistências pastosa grossa, pastosa fina e líquida (veja o
capítulo 6);
• Enriquecer as preparações de suplementos nutricionais orais18, conforme
o paladar do doente (veja o capítulo 9);
• Tornar a comida mais apetitosa na aparência e no sabor;
• Variar os alimentos e as preparações;
• Evitar restrições alimentares, exceto na piora do estado geral;
• Evitar líquidos durante as refeições (exceto se apresentar boca seca ou
dificuldade para engolir).
Dicas de ouro para alimentação artificial

• Fracionar as refeições em horários regulares, porém flexíveis, mantendo a


rotina alimentar;
• Respeitar o volume que o doente tolera;
• Preferir, sempre que possível, utilizar dietas industrializadas por serem
balanceadas e completas com todos os nutrientes importantes;
• Enriquecer as preparações caseiras com suplementos nutricionais orais.

18
Suplemento nutricional oral: são produtos industrializados, formulados com macro e micronutrientes,
indicados como dietas diferenciadas exclusivas ou adicionadas na alimentação regular.
Capítulo 9

O valor de cada grama


Comida nutritiva que ajuda a crescer
Dá força, coragem e ânimo pra viver.
Monica Benarroz

A perda de peso não intencional faz parte do quadro de sintomas do câncer


avançado. Ainda assim, todo esforço deve ser garantido para que o indivíduo se
alimente da melhor forma que puder, preservando ao máximo o seu peso
corporal no maior tempo possível, sobretudo sua massa muscular.
Entretanto, a questão não reside meramente na perda do peso; mas
principalmente nos seus desdobramentos que afetam as dimensões biológicas,
psicológicas, sociais, financeiras e espirituais (Quadro 3), e como um fantasma,
atormentam o indivíduo, impedindo-o de realizar espontaneamente as
atividades de vida diária19, minando a sua energia e ânimo.
Quadro 3 – Exemplo dos impactos negativos da perda de peso no câncer avançado

Dimensões Queixas Consequências

Aumento de infecções e internações Redução da capacidade imunológica

Fraqueza geral
Redução de força muscular (para
levantar-se da cama sozinho ou do vaso
sanitário)
Biológica Desequilíbrio
Perda de massa muscular
Maior esforço para andar
Menor disposição para realizar as
atividades de vida diária
Desânimo
Dependência de terceiros
Psicológica Não reconhecimento de si diante do espelho Tristeza
Dificuldade de aceitação do peso corporal Angústia
Vergonha
Depressão
Frustração

Não querer convívio social


Social Isolamento social
Não quer sentar-se à mesa com a família

Necessidade de comprar um “superalimento”


Financeira ou suplemento que interrompa a perda de Investimento financeiro sem retorno
peso

Medo de morrer
Medo de ficar sozinho
Espiritual Percepção da própria finitude
Não ver sentido na vida
Piora drástica da qualidade de vida

Infelizmente, no início da doença a perda de peso costuma ser banalizada e,


às vezes, encarada como algo natural e bom (para aqueles com excesso de
peso). No entanto, quando o indivíduo se dá conta de que as roupas já não lhe
cabem mais, de que ele não consegue mais tomar banho sozinho por razão da
fraqueza nas pernas, e que o espelho lhe mostra um rosto que não parece seu, a
preocupação e o medo batem a sua porta. Mas nesse momento, não há mais
como reverter a perda de peso acentuada. Perceber-se definhando com a
evolução da doença é uma experiência extremamente dolorosa para o
indivíduo, atingindo, semelhantemente, as pessoas do seu entorno.
A alimentação adequada não pode por si só impedir a evolução da doença,
porém quando existe um acompanhamento nutricional desde o início do
diagnóstico, torna-se mais fácil atenuar a perda de peso e contornar os dramas
decorrentes dela.
Contudo, como disse o poeta: “Enquanto há vida, há esperança”20. Por isso,
mais abaixo, seguem algumas sugestões para tornar a alimentação mais nutritiva
e calórica, sem diminuir o prazer das refeições.
É importante enfatizar que nem tudo que está sugerido serve para todos e
que os alimentos devem ser escolhidos conforme a condição de cada um;
considerando se o indivíduo é diabético, se tem alguma restrição alimentar
anterior por causa de alguma outra doença, ou se apresenta sintomas
incompatíveis com os alimentos sugeridos.

Sugestões para ganhar peso 21

• Criar um cronograma de refeições diárias com intervalos máximos de 3


horas, com seis refeições ao dia;
• Consumir, no intervalo das refeições, uma pequena porção de fruta (3 col
sopa) com iogurte ou sorvete ou creme de leite (1 col sopa), ou ainda pequenas
porções (2 col sopa) de oleaginosos (castanhas, nozes e similares);
• Usar e abusar do azeite de oliva nas preparações quentes, nas saladas, no
pão, nas massas, etc.;
• Incrementar todas as refeições com alimentos ricos em proteínas: aves,
carnes, peixe, queijos, iogurtes, ovos, sementes e oleaginosos;
• Acrescentar cereais em todas as refeições: aveia, arroz, milho, flocos ou
farinha de milho, pães, bolos e biscoitos que podem ser enriquecidos com
sementes e oleaginosos;
• Acrescentar frutas desidratadas nas pequenas refeições, nas sobremesas,
nos bolos e iogurtes;
• Escolher alimentos e preparações que sejam prazerosas de comer;
• Variar ao máximo o cardápio e deixar as preparações com uma
apresentação apetitosa;
• Reduzir o consumo de líquidos durante as grandes refeições (almoço e
jantar);
• Evitar alimentos que possam provocar sintomas indesejáveis como:
diarreia, náuseas ou qualquer intolerância.
Quanto aos diabéticos, lembre-se que muitos alimentos já existem na versão
sem açúcar ou diet. Já os intolerantes à lactose, do mesmo modo, devem
consumir alimentos na versão sem lactose.
Para aqueles que estão sem apetite, sugiro ver as recomendações no
capítulo 8.
Além das sugestões de comida propriamente dita, enriquecer a alimentação
com algum suplemento nutricional oral ajuda na oferta de calorias e nutrientes.
Existem várias marcas de suplementos vendidos nas drogarias nas versões pó e
liquido. O suplemento em pó deverá se acrescentado em algum alimento ou na
água. Já o líquido, está pronto para o consumo. A escolha do produto deverá
ser feita com o nutricionista ou o médico.

19
Atividades de vida diária: são tarefas básicas de autocuidado, tais como alimentar-se, ir ao banheiro,
tomar banho, vestir-se, arrumar-se, etc.
20
Escrito por Salomão no livro de Eclesiastes (9:4), Bíblia Sagrada.
21
Sugestões adaptadas dos livros: Eating hintis before, during and after cancer treatments, National
Cancer Institute, 2018.
Capítulo 10

Cuidando dos sintomas


Cuidados paliativos amenizam os sintomas e aliviam a dor.
Também cuida de questões que alteram o humor.
Monica Benarroz

Uma das prioridades nos cuidados paliativos é aliviar ao máximo o


sofrimento através do controle adequado dos sintomas. Consequentemente,
conhecer cada um deles favorece uma intervenção mais rápida, melhorando a
qualidade de vida do doente.
Nesse capítulo, apresento os principais sintomas relacionados aos diferentes
tipos de tratamento, que impactam negativamente na alimentação, bem como
sugestões práticas para ajudar no controle das queixas. Todavia, vale lembrar
que, sempre que possível, a alimentação deve ser balanceada e nutritiva, com
todos os grupos de alimentos e em quantidades satisfatórias.
Mudar a consistência da comida não significa excluir do plano alimentar
um determinado alimento. Por exemplo, as carnes (branca ou vermelha),
podem estar presentes na alimentação como diferentes preparações: ensopadas
e bem cozidas, picadas, moídas ou trituradas, conforme a imaginação e as
preferências de cada um (veja o capítulo 6). Igualmente, não significa ausência
de tempero, de sabor e de prazer.
Independentemente do sintoma, muitas vezes é necessário fazer uso de
suplementos nutricionais orais para atender as necessidades dos principais
nutrientes, pois nem sempre a alimentação caseira modificada (pastosa ou
líquida), oferece todos os nutrientes em quantidade satisfatória. Desse modo, a
avaliação com o nutricionista e a orientação personalizada são essenciais para
solucionar as dificuldades alimentar e nutricional.
As orientações não substituem o uso dos medicamentos prescritos pelo
médico, mas são complementares. À medida que as condutas nutricionais são
seguidas, a tendência é a percepção da melhora dos sintomas, e provavelmente,
o médico fará as adequações nas doses dos medicamentos.

Cuidados com a boca

A boca é um órgão que desempenha funções importantes como a nutrição,


o paladar, a comunicação, a percepção da sede, entre outras. Aliás, a boca tem
significados psicossociais relacionados com aspectos afetivos, como o beijo e o
sorriso.
Os tratamentos de quimioterapia, imunoterapia e a radioterapia nas regiões
da cabeça e pescoço (por exemplo: boca, nariz, laringe, faringe) podem causar
feridas na boca e na garganta, redução de saliva, ressecamento, alteração do
paladar, irritação na língua, sangramento, cárie e processos infecciosos com
perda de dente, entre outras complicações. Esses sintomas podem ser leves,
moderados ou severos. No último caso, pode levar o doente à desidratação por
dificuldade de ingerir líquidos, à desnutrição (ou agravação desta) devido à
incapacidade de mastigar e engolir, e à hospitalização.
Por isso, a higiene bucal minuciosa (uso de pasta de dente com flúor e fio
dental) deve fazer parte da rotina, sempre após as refeições e antes de dormir.
Essas medidas ajudam no controle dos sintomas, favorecendo a mastigação, a
deglutição, a fala e uma alimentação mais agradável.
Abaixo, no Quadro 4, são apresentadas algumas sugestões para atenuar as
queixas relacionadas à boca.
Quadro 4 – Condutas que ajudam a atenuar alguns sintomas relacionados à boca
Sintomas Condutas

Todos os sintomas Higiene oral minuciosa

Boca seca, pouca saliva e feridas Beber pequenos volumes de água várias vezes ao dia, pelo menos 1
na boca litro de água, além de outros líquidos

Boca seca, pouca saliva, feridas na


Preferir alimentos suculentos (com caldo ou molho) e de fácil
boca, dificuldade de mastigar,
mastigação (pastosos e líquidos)
dificuldade e dor ao engolir

Mascar chiclete sem açúcar e chupar picolé ou gelo para estimular a


Boca seca e pouca saliva
salivação
Irritação e feridas na boca Reduzir a quantidade de sal e açúcar adicionada nos alimentos
Abster-se de alimentos que podem causar algum dano na boca:
Boca seca, pouca saliva, irritação, alimentos duros, crocantes, secos, ácidos, picantes e ricos em açúcar
feridas na boca e dificuldade de Exemplos: torradas, biscoitos tipo cream cracker ou polvilho,
mastigar e engolir farofa, frutas e sucos ácidos, gengibre, canela, pimenta, café várias
vezes ao dia, balas e doces que grudam nos dentes
Todos os sintomas Abster-se de refrigerantes e bebidas alcoólicas
Avaliar com o nutricionista a prescrição de suplemento nutricional
Todos os sintomas
oral

Mudanças na percepção sensorial dos alimentos

As percepções do sabor, do cheiro e do contato do alimento na boca são


experiências fundamentais para uma boa alimentação. Entretanto, durante e
após os tratamentos anticâncer essas percepções podem ficar alteradas.
Existem cinco sabores básicos: salgado, doce, amargo, azedo e umami, uma
estranha palavra japonesa que significa saboroso e dá nome ao quinto sabor.
Os tratamentos de quimioterapia e de radioterapia nas regiões de cabeça e
pescoço afetam as células gustativas e a percepção desses sabores pode ficar
alterada em algum grau, de modo transitório ou definitivo. Uma queixa muito
comum é o gosto amargo em inúmeras preparações, assim como o “gosto de
metal”.
Outro elemento que pode sofrer alterações é o cheiro. O doente pode tanto
ter uma percepção aumentada, com maior sensibilidade para náuseas, quanto
reduzida, causando menor aceitação e prazer durante as refeições.
A sensação que o alimento provoca dentro da boca também vai estimular
ou reduzir a aceitação das refeições. Algumas pessoas com câncer
experimentam sensações estranhas, por exemplo, de “comida embolada na
boca”, “de estar comendo papelão”, ou “aspereza”.
Abaixo, são apresentadas algumas sugestões para atenuar as queixas
relacionadas às mudanças nas percepções sensoriais dos alimentos.

Condutas que ajudam a atenuar as mudanças nas percepções


sensoriais dos alimentos

• Higiene oral minuciosa;


• Preferir panela e utensílios de vidro ou acrílico para reduzir o gosto de
metal;
• Preparar alimentos com temperos bem variados para estimular o paladar;
• Ter atenção com a quantidade de sal e açúcar no tempero dos alimentos e
bebidas (a falta de paladar pode levar ao exagero do consumo);
• Substituir os alimentos de menor aceitação por outros do mesmo valor
nutricional que sejam mais prazerosos (por exemplo: leite por queijo, uma
fruta por outra, feijão por lentinha, arroz por fubá ou massa, batata por
inhame, carne vermelha por carne branca, pão por aveia ou inhame, etc.);
• Reduzir a inalação do cheiro dos alimentos, mantendo-os cobertos até a
hora das refeições. Se necessário, usar caneca com tampa e canudo;
• Evitar alimentos que mais afetam o paladar e o olfato, conforme a
percepção individual;
• Avaliar com o nutricionista a prescrição de suplemento nutricional oral.

Trismo
O trismo faz parte da lista de efeitos colaterais dos tratamentos anticâncer.
Ele é caracterizado pela limitação na abertura da boca e pode ser classificado
em:
• Leve, moderado ou severo: dependendo da amplitude oral, ou seja, do
quanto a pessoa consegue abrir a boca;
• Agudo: quando ocorre durante ou imediatamente após o tratamento e
• Tardio: quando o aparecimento da queixa ocorre meses após o
tratamento.

As principais causas do trismo são as cirurgias de reconstrução da cavidade


oral (boca) e da região orofaríngea (garganta), que levam à restrição de
mobilidade da articulação da boca; bem como os tratamentos com radioterapia,
em razão do enrijecimento da musculatura da região orofaríngea, provocando
menor amplitude do movimento da boca.
O trismo causa importantes dificuldades funcionais, impactando
negativamente a mastigação, a deglutição, a fala, a higiene bucal e a respiração;
e também os padrões alimentares, o estado nutricional e a qualidade de vida.
Embora seja uma condição bastante desagradável e com sérias consequências,
nem sempre é diagnosticado e tratado oportunamente, fato que compromete
cada vez mais as disfunções, o estado geral e a qualidade de vida do doente.
Abaixo, são apresentadas algumas sugestões para ajudar no controle do
trismo moderado e severo, pois na fase leve não há necessidade de mudanças
significativas do padrão alimentar.

Condutas que ajudam na alimentação em caso de trismo


moderado e severo

• Higiene oral minuciosa;


• Preferir alimentos cremosos, pastosos ou líquidos, de acordo com a
capacidade de mastigação;
• Usar colher para facilitar a alimentação;
• Escolher o tamanho da colher conforme a abertura da boca;
• Usar canudo para o consumo de bebidas;
• Enriquecer todas as refeições com suplemento nutricional oral;
• Avaliar com o médico e/ou o nutricionista a indicação de uma sonda para
alimentação artificial (veja capítulo 13).

Alterações digestivas e intestinais

Digestão lenta, azia, náuseas, vômitos, dores e desconfortos abdominais,


gases intestinais, constipação e diarreia são queixas muito comuns, que
normalmente aparecem antes do diagnóstico. Esses sintomas podem ser
provocados pelo tumor e pelos efeitos colaterais dos tratamentos,
principalmente da quimioterapia, ou ser resultado da soma desses dois fatores.
No câncer avançado, o doente está mais propenso a apresentar várias
queixas simultâneas, tornando os sintomas mais difíceis de controle, visto que
as alterações metabólicas tendem a piorar com a progressão da doença.
Entretanto, deve-se tentar amenizá-los ao máximo, devido às consequências
danosas no estado geral: aumento da recusa do alimento, agravo da perda de
peso, da fraqueza e do medo de comer, entre outras situações negativas,
piorando mais ainda a qualidade de vida.
No Quadro 5 são apresentadas algumas sugestões para ajudar no controle
das principais alterações digestivas e intestinais.
Quadro 5 – Sugestões para ajudar no controle das principais alterações digestivas e intestinais

Sintomas Condutas
Sintomas Condutas

Dificuldade digestiva,
azia e sensação de Evitar qualquer alimento que sabidamente provoca gases.
plenitude

• Mastigar bem os alimentos;


• Fracionar as refeições com intervalos regulares sem sobrecarregar a
digestão;
• Preferir alimentos de fácil mastigação e digestão;
Náuseas e vômitos • Manter hidratação superior a 1,5 litros ao dia com água saborizada com
limão, gengibre, hortelã (se não tiver ferida na boca);
• Utilizar outros líquidos para ajudar na hidratação, como água natural, água
de coco, bebidas isotônicas;
• Evitar alimentos ricos em gorduras, massas, doces e ricos em fibras (cereais
integrais e salada crua).

• Comer devagar;
• Evitar conversar durante as refeições;
Gases • Reduzir e não misturar na mesma refeição os seguintes alimentos: feijão,
Intestinais batata-doce; brócolis, couve, couve-flor, repolho, massa, cereais integrais, café
e bebidas gasosas;
• Evitar qualquer alimento que sabidamente provoca gases.

• Aumentar a hidratação, em pelo menos 2 litros ao dia;


• Preferir frutas e sucos laxativos: abacate, ameixa, laranja, mamão, manga;
• Ter alimentação colorida, incluindo legumes e verduras pelo menos duas
vezes ao dia;
Constipação comum e
constipação induzida por • Regar a comida com azeite no próprio prato;
opioide • Evitar comer massas, batata, banana-prata, maçã, goiaba;
• Evitar cereais integrais, eles aumentam o bolo fecal, aumentando a
dificuldade na evacuação.
Observação: em casos de ficar vários dias sem evacuar, ingerir 2 col sopa de
azeite uma a duas vezes ao dia, independente da alimentação.
Sintomas Condutas

• Aumentar a hidratação, preferindo água (natural ou gaseificada), bebidas


isotônicas, água saborizada e chás, em pelo menos 2 litros ao dia;
• Preferir alimentos de fácil digestão sem gordura, vegetais folhosos, cereais
integrais e grãos (feijão, lentilha e similares);
• Evitar leite de vaca ou consumir leite sem lactose;
Diarreia
• Retirar sementes e casca de todas as frutas e legumes;
• Evitar suco de frutas, pois geralmente apresentam maior teor de frutose
(açúcar da fruta) e pode piorar a diarreia;
• Em caso de diarreia leve ou moderada, pode-se usar Psyllium (Plantagp
ovata), uma fibra solúvel, disponível em diferentes marcas nas drogarias.

Avaliar com o nutricionista a prescrição de suplemento nutricional oral e


Todos os sintomas
algum probiótico.
Capítulo 11

Plantas medicinais: um risco natural


“Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo...”
Salmo 51:7

O uso de plantas medicinais para tratar queixas e doenças é uma prática


cotidiana desde os tempos mais antigos, sendo a China e a Índia as culturas
mais proeminentes nessa área. Aqui no Brasil, o uso de plantas é uma das
tradições que perpassam as gerações de famílias. Não faltam conselhos sobre
chás, unguentos, xaropes, entre outras práticas, para o alívio e a cura de
enfermidades de qualquer natureza.
O que são exatamente plantas medicinais? Conforme a definição da
Organização Mundial de Saúde22, a planta medicinal é todo vegetal que possui
em algum dos órgãos (raízes, caules, folhas, flores, frutos e sementes)
substâncias que podem ser empregadas com fins terapêuticos. O emprego das
plantas medicinais com propósito preventivo ou curativo é denominado
fitoterapia, palavra que vem do grego e que significa tratamento (therapeia)
vegetal (phyton).
As plantas (ou parte delas) podem ser utilizadas na forma mais natural,
intactas ou desidratadas, ou então industrializadas, como infusão, cocção,
xaropes, sucos, tinturas, extratos (aquoso ou alcoólico), óleos essenciais, pó,
cápsulas e comprimidos. Podem ainda ser empregadas como pomadas, xampus
e emplastros; aplicados na pele, no couro cabeludo, nas mucosas e membranas.
A planta medicinal pode ser cultivada em casa, comprada em herboristas e
lojas de produtos naturais. Apesar das feiras livres serem pontos de venda
comuns, não é recomendado comprá-las em feiras devido à falta de controle de
qualidade, visto que não há nenhuma garantia da identificação correta da
planta, muito menos de protocolos sanitários para cultivo e armazenamento.
Sem contar a exposição ao sol ou à chuva dessas plantas, provocando a perda
de muitas substâncias bioativas nelas presentes.
Outra maneira de consumir as plantas medicinais é a partir da
industrialização, processo em que elas são transformadas em medicamentos
fitoterápicos23, garantindo não somente maior segurança, mas também um
controle de qualidade sistemático e rigoroso, além de eficácia comprovada. Os
fitoterápicos são comercializados em farmácias e diferentes pontos de venda,
ou diretamente em farmácias de manipulação onde são produzidos.
O desenvolvimento de pesquisas tem comprovado que todas as partes
vegetais contém algum teor de substâncias com propriedades biológicas. No
Brasil, a fitoterapia era um recurso terapêutico observado predominantemente
nas cidades do interior do país. Entretanto, em razão da ampla repercussão
veiculada nas mídias sobre seus potenciais benefícios, as plantas assumiram um
protagonismo nas grandes cidades, corroborado por seu status de “natural”.
Esse fenômeno não ocorre apenas no Brasil. Há quase 30 anos constata-se um
forte crescimento do consumo de plantas medicinais no mundo, levando
profissionais da área da saúde a se inquietar com tal aumento.
Onde está o perigo? Pelo fato das plantas medicinais – in natura ou
fitoterápico – serem produtos naturais, muitas pessoas acreditam que elas são
inofensivas. Ao contrário, as plantas reagem no nosso organismo e podem
produzir tanto benefício, quanto dano. Essa associação inocente entre as
plantas medicinais e o cuidado da saúde mostra o desconhecimento da
população acerca dos possíveis perigos do consumo das plantas isoladas ou
associadas aos medicamentos usuais.
Diversas plantas ainda não foram padronizadas quanto à posologia, à
indicação e aos efeitos adversos. O que não significa que a fitoterapia não tenha
eficácia ou que seja totalmente insegura. Todavia, carece de mais investigação
para justificar a tamanha expectativa. Portanto, a automedicação e o uso
indiscriminado de plantas medicinais – sejam in natura ou fitoterápico –
podem desencadear um conjunto de reações indesejadas, tais como intoxicação,
enjoo, irritação no local aplicado, inchaço, interação com algum medicamento,
podendo levar à hospitalização e até à morte, como qualquer medicamento.
Quando extrapolamos esses efeitos para os indivíduos com câncer
avançado, o risco torna-se mais importante em virtude da toxicidade dos
medicamentos usados tanto para controle da progressão da doença
(quimioterapia, imunoterapia, etc.), quanto para o controle de sintomas, de
ansiedade e outras comorbidades.
Sem conhecimento desses efeitos nocivos e diante de uma doença
ameaçadora à vida, o doente e/ou seu familiar pode ser incentivado a buscar os
benefícios das plantas na tentativa de melhorar a estado geral, fortalecer o
sistema imunológico e resolver algum sintoma, alimentando a falsa esperança
que plantas medicinais possam até curar o câncer.
Embora muitas plantas medicinais tenham a atividade farmacológica24 mais
branda em relação aos remédios convencionais, o seu uso indiscriminado ainda
apresenta riscos, principalmente para os doentes renais, hepáticos e aqueles em
quimioterapia.
Destaco mais três situações perigosas. A primeira refere-se às propagandas
enganosas com apelo emocional que muitos charlatões divulgam, prometendo
cura, regressão da doença, entre outros “efeitos milagrosos”. A falta de
escrúpulos de determinados “profissionais” pode levar à piora do quadro
clínico, adiamento ou abandono do tratamento convencional, frustração,
depressão, assim como conflitos familiares. São inúmeros os danos que
dependerão da subjetividade de cada doente. Um exemplo é o consumo
inadequado de garrafadas25 e sucos detox26, com o propósito de melhorar o
sistema imunológico ou “matar” as células cancerígenas. Além de não atender
as expectativas, pode provocar ou piorar o desequilíbrio metabólico do doente.
Outro contexto perigoso é o doente usar alguma planta medicinal e não
informar ao profissional saúde responsável. Não raro, as pessoas que usam
plantas medicinais com finalidade terapêutica ficam constrangidas em contar
isso na consulta. Tal problema pode ser justificado por vários motivos, entre
eles o medo da proibição e a vergonha da repressão em acreditar em algo sem
comprovação científica.
A terceira situação, complementar à segunda, refere-se à maioria dos
profissionais de saúde, que não têm o conhecimento apropriado sobre os reais
benefícios e danos das plantas medicinais, visto que se trata de um assunto
relativamente recente no meio acadêmico. Diante disso, alguns profissionais de
saúde quando abordados por esse assunto, se valem do senso comum e
endossam o lema “não faz mal porque é natural”; embora a proibição seja a
conduta mais cômoda para outros.

Dicas de outro para o uso da planta medicinal

• Comunicar ao profissional de saúde responsável pelo cuidado sobre o


desejo ou o uso de planta medicinal in natura ou fitoterápico;
• comprar as plantas medicinais in natura em local com certificação do
controle de qualidade;
• comprar fitoterápico que tenha registro na ANVISA27, com número de
lote e data de validade;
• consumir apenas chá e sucos sem restrições alimentares associadas;
• não associar o consumo de plantas medicinais ao uso de medicamentos
sem consentimento médico.

Perceber as intenções da utilização de plantas medicinais por alguém com


doença ameaçadora à vida é olhar para além da natureza biológica e enxergar
uma motivação para não desistir da vida. Mais importante que proibição ou
liberação do uso de planta medicinal é a compreensão do esforço de mais uma
tentativa do doente (ou de sua família). Nesse sentido, o uso de plantas se
insere na complexidade dos cuidados paliativos, contribuindo no
enfrentamento da doença e no fortalecimento da esperança. Por isso, é tão
importante que os profissionais de saúde se capacitem a fim de dar a melhor
assistência possível ao doente.
Abaixo, no Quadro 6 apresento exemplos de possíveis reações indesejáveis
decorrentes de plantas medicinais; no Quadro 7, exemplos de possíveis riscos
relacionados a interações entre as plantas medicinais (in natura ou fitoterápico)
e os medicamentos oncológicos.
Quadro 6 – Exemplos de possíveis reações que as plantas medicinais (fitoterápico) podem causar

Planta Indicação popular Reações indesejáveis

Doenças do coração, aumento de Azia e dor no estômago


Alho
colesterol e hipertensão Pode afinar o sangue quando usada com a aspirina

Fortalecimento do sistema Reações alérgicas cutânea e respiratória, e alterações


Equinácea
imunológico gastrintestinais

Ginkgo Comprometimentos da memória Dor de cabeça, náusea, distúrbio gastrintestinal, diarreia,


Biloba e zumbido tontura ou reações alérgicas da pele

Ginseng Melhora do desempenho mental e Dores de cabeça, sono e problemas gastrointestinais


(asiático) físico (em casos de uso prolongado)

Erva-de- Depressão, ansiedade e distúrbios Boca seca, tontura, alterações gastrointestinais, fadiga,
são-joão do sono. dor de cabeça, disfunção sexual

Fonte: Adaptado de NCCIH.28


Quadro 7 – Exemplos de possíveis riscos relacionados a interações entre as plantas medicinais (in natura
ou fitoterápico) e os medicamentos oncológicos

Planta Medicamento Risco

Docetaxel
Alho Pode aumentar os efeitos adversos
(quimioterápico venoso)

Paclitaxel
Extrato de cúrcuma Pode alterar o metabolismo do medicamento
(quimioterápico venoso)

Irinotecano
Erva-de-são-joão (quimioterápico venoso) Pode reduzir a ação do medicamento
Imatinib

Etoposido
Equinácea Pode provocar redução das plaquetas
(quimioterápico venoso)

Imatinib
Ginseng Pode provocar danos hepáticos
(quimioterapia oral)

Toranja Docetaxel Pode retardar o


(Grapefruit juice) (quimioterápico venoso) metabolismo do medicamento
Fonte: Adaptado de Fasinu & Rappi.29

22
WHO. Regulatory situation of herbal medicines: a worldwide review. Geneva, Switzerland: World Health
Organization, 1998.
23
Fitoterápico: é o produto obtido de planta medicinal, ou de seus derivados, exceto substâncias isoladas
farmacologicamente ativas, com finalidade profilática, curativa ou paliativa (Primeiro Suplemento do
Formulário de Fitoterápicos da Farmacopeia Brasileira, 1ª edição).
24
Atividade farmacológica: descreve os efeitos de um composto químico dentro do organismo vivo.
25
Garrafada: bebida à base de ervas, confeccionadas por curandeiros.
26
Suco detox: sucos elaborados com hortaliças e frutas que prometem a eliminação de toxinas do
organismo.
27
ANVISA: Agência Nacional de Vigilância Sanitária, órgão que regula os medicamentos entre outras
coisas.
28
National Center for Complementary and Integrative Health (NCCIH).
Herb-Drug Interactions: What the Science Says. Clinical Guidelines, Scientific Literature, Info for Patients,
September 2015.
29
Fasinu, P.S.; Rapp, G. K. Herbal interaction with chemotherapeutic drugs – a focus on clinically
significant findings. Front Oncol, 2019.
Capítulo 12

Quem tem dor tem pressa


“O sofrimento só é intolerável quando ninguém cuida.”
Cicely Saunders

A dor é um queixa tão perturbadora que, em 1996, foi reconhecida como o


quinto sinal vital pela Sociedade Americana de Dor. É um sintoma subjetivo e
de múltiplas causas, que se apresenta de forma aguda ou crônica, de intensidade
leve, moderada ou severa.
A dor pode ser física (sensorial), percebida em um membro ou um órgão,
ou afetiva (emocional), sem fronteiras, cujo sofrimento psíquico pode alimentar
a dor física e vice-versa.
Quem tem dor tem pressa, pois essa experiência, independentemente de sua
característica, intensidade ou qualidade, desencadeia inúmeras alterações físicas
e emocionais danosas. Entre estas, a irritabilidade, as alterações de sono, de
humor, de apetite e do comportamento sexual; podendo levar a restrições de
atividades sociais e de tarefas laborais, assim como impactar negativamente a
qualidade de vida de qualquer pessoa. Contudo, apesar de tão relevante, a dor é
um sintoma de difícil diagnóstico e tratamento.
O câncer avançado e os próprios tratamentos podem provocar dores
distintas, como a dor oncológica, a dor crônica e a dor total. A identificação de cada
tipo de dor é imprescindível para que a intervenção seja eficiente, considerando
as suas particularidades.
A dor oncológica é resultante do tumor primário ou da metástase que causa
lesão tecidual com processo inflamatório; ou ainda, compressão ou destruição
de nervos, causando neuropatias. Ela pode ser classificada em visceral, óssea e
neuropática, dependendo do órgão atingido.
Por outro lado, a dor crônica relacionada ao câncer é secundária aos
tratamentos. Na quimioterapia, por exemplo, as queixas de neuropatias
periféricas com sensação de dormência, pontadas, ardências e choques em
baixas temperaturas são muito comuns e acometem os membros inferiores (pé
e pernas) e superiores (mãos e braços). Do mesmo modo, a radioterapia pode
levar a quadros crônicos de neuropatias, cuja lesão dos nervos é provocada pela
radiação. Já na cirurgia, um exemplo de dor crônica é a dor fantasma, uma
sensação frequente após a amputação de algum membro, que tem como
característica a sensação de pulsação, queimação ou dormência.
Tanto a dor oncológica quanto a dor crônica têm caráter físico e disponibilizam
de diversos medicamentos e tecnologias que ajudam no seu tratamento. Os
analgésicos utilizados para o controle de dores dessa magnitude são os opioides
– codeína, metadona, morfina, oxicodona, tramadol – prescrito conforme a
escada analgésica30. Entretanto, esses medicamentos provocam um conjunto de
sintomas denominado de disfunção intestinal induzida por opioides, a saber,
constipação severa, náusea, vômito, boca seca, refluxo, cólicas abdominais,
espasmos e inchaço; comprometendo o apetite do doente e, muitas vezes, a
recusa do medicamento. O que não é bom; pois gera uma cascata de alterações
físicas e emocionais que poderiam ser mitigadas ou evitadas com o uso racional
da medicação, conforme já mencionado.
Além das dores, muitas vezes coexistem inúmeras questões subjetivas, tais
como a solidão, os medos, as incertezas, os relacionamentos frágeis e as dúvidas
sobre o sentido da vida. Essa combinação de elementos sensoriais, afetivos,
cognitivos, comportamentais e espirituais, da qual sofre o doente e sua família,
Cicely Saunders, a pioneira dos cuidados paliativos, nomeou de dor total. Cabe
ressaltar que esse tipo de dor não é aliviado só com remédio; mas com reflexão,
atenção, solidariedade, carinho, senso de pertencimento e consciência das
limitações e da finitude da vida.
Nesse sentido, falar sobre os desafios da alimentação diante da dor é uma
das maneiras de intervenção para seu alívio. De fato, a dor, em suas
multiformas e seus tratamentos, pode afetar diversos fatores ligados à
alimentação e à digestão, agravando, por exemplo, a falta de apetite. Por isso,
em cuidados paliativos é imprescindível a presença de uma equipe
multiprofissional, porque todos juntos poderão ajudar o doente a desatar os
nós que a vida deu.

Um olho no padre, outro na missa

A avaliação da dor possibilita a prescrição e a utilização mais segura e


eficiente da medicação. Para tal, existem alguns instrumentos de medida,
podendo inclusive ser aplicados no ambiente doméstico de forma simples e
prática.
Vale a pena recordar que a dor física, que pode ser medicada, é geralmente
influenciada por vários fatores, entre eles o emocional, podendo aumentar ou
diminuir o seu limiar. Por conseguinte, o autorrelato de dor feito pelo doente é
fundamental e considerado um critério confiável. Sendo assim, é importante
que o doente crie uma rotina de autoavaliação, evitando que a dor sobrevenha
de modo avassalador e funcione como um gatilho para todas as situações
negativas já relatadas acima, em especial o prejuízo alimentar. Uma informação
importante: na autoavaliação, deve-se sempre considerar a dor do momento.
A escala numérica é uma dos instrumentos sugeridos por sua fácil
aplicação. Em menos de um minuto o doente pode informar a intensidade da
sua dor de acordo com a escala, favorecendo a imediata intervenção e
permitindo o uso correto do medicamento e da dose, conforme a prescrição e a
orientação médica. Quando essas intervenções são feitas antes da crise, o
resultado é o alívio da dor associado à melhora do estado geral, do apetite, do
humor, entre tantos outros benefícios.
É importante lembrar que é o médico que prescreve os medicamentos para
o controle de diferentes tipos de dor; mas somente o doente pode informar ao
médico a intensidade da dor que ele sente.
Abaixo apresento uma de Escala de Avaliação da Dor que pode ser usada
pelo doente escolhendo um número de 0 a 10 para descrever sua dor atual.
Escala de dor numérica

Fonte: Adaptado de NIH/Warren Grant Magnusen Clinical Center.

Ao mesmo tempo em que a dor precisa ser controlada, devemos continuar


prestando atenção na alimentação do doente, nos aspectos qualitativos e
quantitativos, na variedade, na consistência e no intervalo das refeições, que
devem estar em conformidade com a sua tolerância.
O doente que faz uso do medicamento corretamente e demonstra uma
resposta satisfatória no alívio da dor tende a alimentar-se melhor. Entretanto,
há doentes que não aceitam comer, ainda que sua dor esteja controlada, fato
recorrente principalmente nos mais idosos e debilitados. Estes devem ter suas
refeições modificadas para uma consistência de maior aceitação, normalmente
pastosas ou líquidas (ver capítulo 6).
Pesquisadores alegam que alguns alimentos contêm substâncias que
desempenham uma atividade moduladora no tratamento da dor crônica;
porém, não devemos considerar essas informações de modo inflexível para os
doentes em cuidados paliativos. Um determinado alimento que se mostra
benéfico para uma pessoa com dor crônica sem câncer, certamente não terá o
mesmo resultado em um doente com dor oncológica, cujos processos
metabólicos estão comprometidos, conforme já comentado no capítulo 4. De
qualquer maneira, admite-se, com a permissão do doente, a inclusão desses
alimentos nas práticas alimentares.
Em cuidados paliativos, o prazer é um valor importante. Logo, proponho
abaixo sugestões que visam incrementar as preparações com alimentos que
possam ser consumidos e apreciados pelo doente, tornando as refeições um
momento agradável.

Dicas de ouro

Dentre as adaptações alimentares que contribuem ao abrandamento do


sofrimento do doente, algumas são de fácil aplicação e amenizam,
significativamente, suas queixas. Abaixo, seguem dicas que eu aconselho
frequentemente aos meus pacientes e eu pude observar resultados positivos.

• Aumentar o consumo de líquidos durante o dia, preferencialmente


água. Ajuda a reduzir a concentração de cortisol, um hormônio muito elevado
nos processos inflamatórios relacionados à dor crônica e ao estresse,
prejudicando mais ainda o organismo. Os líquidos também auxiliam no
combate da constipação e na eliminação dos resíduos tóxicos dos
medicamentos. Minha recomendação é beber pequenos volumes de líquidos
(100ml a 150ml) ao longo do dia para não “pesar no estômago”, não provocar
náusea nem reduzir o apetite. Outras informações sobre hidratação estão
detalhadas no capítulo 7.
• Preferir a consistência e a quantidade conforme tolerância.
Habitualmente, a pessoa com pouco apetite apresenta melhor aceitação de
pequenos lanches e, na hora das refeições principais (almoço e jantar), ela
prefere preparações pastosas em pequenas porções, tal como sopa ou mingau.
Mesmo que a quantidade seja reduzida, o melhor é não insistir em aumentar a
quantidade, visto que é importante respeitar a tolerância do doente. Outros
detalhes sobre falta de apetite são abordados no capítulo 8.
• Regar a comida com azeite virgem. Além da variedade de aroma e
sabor que ajudam a estimular o apetite, os azeites são ricos em substâncias anti-
inflamatórias e antioxidantes, como os ácidos graxos monoinsaturados e
polifenóis. O azeite também funciona com agente emoliente, lubrificando as
fezes, facilitando a evacuação e combatendo a constipação, queixa frequente
que potencializa a dor. Minha recomendação é adicionar 20ml (uma colher de
sopa) nas refeições do almoço e jantar. O azeite pode ser adicionado nas
diferentes consistências: comida sólida, saladas, purês, sopas cremosas ou
líquidas, etc.
• Incluir as sementes e os frutos oleaginosos na alimentação diária.
Dentre as sementes, destacamos o gergelim e a linhaça; entre os frutos
oleaginosos, as nozes e as castanhas. Esses alimentos são fontes de gorduras
mono e poli-insaturadas, vitamina E, zinco, selênio, cobre, fitosteróis e outras
substâncias com ação anti-inflamatória e antioxidante. Minha recomendação é
comer 30g/dia a fim de ajudar no combate da dor crônica. Eles podem ser
triturados (em forma de farinha) e adicionados em diferentes preparações e
consistências.
• Aumentar o consumo de peixes, preferencialmente os peixes gordos
(anchova, atum, cavala, salmão, sardinha). Além de serem pobres em
gorduras saturadas, eles são ricos em ácidos graxos poli-insaturados e ômega-3,
possuem propriedades anti-inflamatórias que ajudam no controle da dor.
Minha recomendação é comer em torno 150g de peixe (uma posta grande) pelo
menos três vezes na semana. Os peixes são de fácil mastigação e digestão,
todavia, também podem ser triturados nas sopas para aqueles que preferem
alimentos pastosos. Um detalhe importante: os peixes gordos ajudam na
evacuação, evitando a constipação.
• Reduzir ao máximo o consumo de doces. A sacarose (açúcar de
adição) é um gatilho para os processos inflamatórios, prejudiciais no controle
da dor. O que não significa uma restrição total de doces em geral; porém, o
consumo racional e com moderação.

Mesmo com todas essas providências: medicamentos para controle da dor,


alimentação rica em substâncias anti-inflamatórias, consistência da comida de
melhor aceitação; ainda assim o doente poderá sentir dor e estar sujeito a novas
avaliações e adaptações de outros medicamentos e doses, bem como das
práticas alimentares.
O cuidado contínuo é um desafio, pois a doença está em progressão a cada
dia e o alívio da dor torna-se relevante em qualquer momento.

30
Escala analgésica: é uma metodologia utilizada pelo médico para avaliar a intensidade da dor e a
escolha do medicamento.
Capítulo 13

Outras formas de alimentação


“Devemos transformar os aspectos negativos
da vida em algo construtivo.”
Viktor Frankl

Durante a trajetória do câncer, algumas pessoas podem ficar parcial ou


totalmente impossibilitadas de comer ou beber por via natural – pela boca.
Dentre as principais causas podemos destacar as seguintes:

1. Consequências do tratamento:
• Cirurgia, com retirada de algum órgão (ou parte dele) do sistema
digestório – na região de cabeça e pescoço, esôfago, estômago;
• Disfagia (dificuldade de engolir) moderada ou severa, decorrente de dor,
estreitamento ou perda de motilidade da musculatura do esôfago;
• Feridas na boca, na garganta e esôfago devido aos tratamentos de
radioterapia e quimioterapia.

2. Tumor: podendo obstruir parcial ou totalmente alguma parte do sistema


digestório.

3. Desnutrição severa (exceto em cuidados ao fim da vida).

Em tais condições, recomenda-se a alimentação artificial (Quadro 8), cuja


função é manter a oferta regular de água e todos os nutrientes importantes
(proteínas, carboidratos, gorduras, vitaminas, minerais e água), enquanto o
doente estiver incapaz de alimentar-se plenamente pela via oral.
Quadro 8 – Tipos de alimentação artificial

Nutrição Via de
Como funciona
artificial alimentação
Sonda Oferta de dieta líquida através de sonda introduzida no nariz que desce pelo
nasogástrica esôfago até o estômago
Sonda Oferta de dieta líquida através de sonda introduzida no nariz que desce pelo
nasoentérica esôfago até o intestino delgado (duodeno ou jejuno)
Enteral Oferta de dieta líquida através de sonda inserida diretamente no estômago
Gastrostomia
através de um estoma (pequena abertura) feito na parede abdominal
Oferta de dieta líquida através de sonda inserida diretamente no jejuno
Jejunostomia (segunda porção do intestino delgado) através de um estoma (pequena
abertura) feito na parede abdominal
Parenteral Intravenosa Oferta de solução de nutrientes, estéril, própria para administração na veia

A prescrição da alimentação artificial é uma conduta médica que requer


uma avaliação meticulosa dos benefícios, dos riscos, da expectativa de vida e
dos aspectos sociais e culturais do doente. No entanto, essa escolha deve ser
ponderada pela equipe multiprofissional que envolve o nutricionista, o
enfermeiro e o farmacêutico, além do médico; mas também requer a
compreensão dos riscos e benefícios e o consentimento do doente, ou do seu
familiar se o mesmo estiver impossibilitado de tomar decisões.
A alimentação artificial ocorre de duas maneiras:

• Nutrição enteral: quando uma alimentação liquida é administrada pela


sonda e chega ao estômago ou intestino para digestão, metabolismo e absorção,
semelhante à alimentação por via oral. É mais recomendada que a nutrição
parenteral por ser menos invasiva, mais fisiológica (usa as funções do sistema
digestório), e causar menos complicações. Os principais riscos são
broncoaspiração (quando a comida vai para o pulmão), absorção inadequada
dos nutrientes, constipação, diarreia, irritação nas narinas e na garganta
(relacionadas às sondas nasais).
• Nutrição parenteral: quando uma solução com nutrientes é
administrada na veia. É um procedimento mais invasivo e não utiliza o sistema
digestório, sendo mais propenso a complicações. Os principais riscos são
infecção e trombose.

As duas técnicas de nutrição artificial podem ser implantadas de modo


temporário ou permanente, exclusivo ou concomitante, complementando-se
mutuamente na oferta das necessidades nutricionais. Entretanto, não é
frequente usar as duas técnicas em cuidados paliativos.
Em alguns casos, a nutrição enteral é recomendada para complementar a
alimentação oral em virtude do aporte nutricional insatisfatório. Portanto, a
imposição de uma via alternativa de alimentação não impede necessariamente a
utilização da via oral quando houver condição de fazê-la, ainda que seja
meramente para satisfação do paladar.
Quanto ao tipo da alimentação fornecida na nutrição enteral (por meio da
sonda), as mais indicadas são as dietas industrializadas e especializadas, em
razão da sua composição nutricionalmente completa. Além disso, a praticidade
e a economia de tempo e dinheiro são vantagens consideráveis, uma vez que a
dieta já vem pronta para o consumo e não há desperdício.
Já as dietas artesanais (alimentação caseira) também podem ser
administradas por meio das sondas. Desse modo, elas devem estar na
consistência líquida, sem nenhum resíduo. Logo, devem ser liquidificadas e
peneiradas antes da administração. No entanto, eu não recomendo o uso de
dieta artesanal exclusiva em razão do baixo valor nutricional e do maior risco
de contaminação, além de ser mais trabalhosa.
Embora a relação custo-benefício das dietas industrializadas seja de maior
benefício, muitas pessoas fazem questão de manter o consumo da dieta
artesanal, com suco de frutas, água de coco, caldo de feijão, sopa de ervilha,
entre tantos outros alimentos que dão sentido à alimentação delas.
Lembra que abordamos os aspectos emocionais e sociais da comida? De
fato, mesmo sem poder levar a comida à boca e sentir seu paladar, o cheiro traz
lembranças que alimentam a alma e tornam o momento da alimentação mais
agradável e sereno. Nesse sentido, uma estratégia muito comum e pertinente é
optar pela dieta artesanal (pouco nutritiva, mas com apelo emotivo), associada
à dieta industrializada (balanceada, porém indiferente).
Assuntos referentes ao volume, ao intervalo entre as dietas, ao tipo de dieta,
à hidratação, aos cuidados com a sonda, ao tempo de permanência com a
sonda, entre outras questões particulares, são assuntos que devem ser tratados
com o nutricionista, o médico e a equipe multiprofissional.
Capítulo 14

A vida por um sopro


“Quem sabe faz a hora não espera acontecer.”
Geraldo Vandré

Ao longo do livro destacamos o valor comida nas nossas vidas. Ela nos
alimenta, sustenta, protege, conforta e aproxima das pessoas, fortalecendo
vínculos afetivos e sociais. Estamos tão acostumados a comprar nossos
alimentos, cozinhá-los, comê-los e bebê-los, que não percebemos a relevância
da comida e do ritual da alimentação no cotidiano.
Contudo, o agravamento do câncer avançado muda todo o cenário
alimentar. O metabolismo fica totalmente alterado, afetando o apetite e os
processos fisiológicos do sistema digestório que envolve a motilidade, a
secreção de enzimas digestivas, a digestão, a absorção e a excreção, impedindo
o aproveitamento dos nutrientes. Sem falar da dor oncológica que, per si, pode
levar à anorexia.
Então, o que fazer quando a doença está tão grave que nos impede de
comer e beber, parcialmente ou totalmente? Como podemos lidar com o
momento crítico em que a comida e os líquidos fazem mais mal do que bem? É
mais prudente suspender o consumo de líquidos e alimentos? Essas perguntas
são inerentes à fase final do câncer, que chamamos de cuidados ao fim da
vida, cuja duração pode variar de dias a semanas, mas que precisa ser encarada
com naturalidade e todo cuidado.
Apesar de ser um período muito difícil para o doente e as pessoas do seu
convívio, os cuidados paliativos estimulam a pessoa a viver a vida até o fim, da
melhor forma possível, aceitando a morte como processo natural. Não se
acelera nem se posterga a morte; ao contrário promove-se uma morte digna.
Esse assunto é um tanto difícil, mas compreendê-lo oportuniza investir na
qualidade de vida do doente com amor, aconchego e respeito; propiciando a ele
uma alimentação confortável e prazerosa enquanto ele aceitar.
Nessa fase, minha orientação é investir sempre numa alimentação nutritiva
e saborosa, adequada para cada realidade. Mas o termômetro é o doente.
Enquanto ele estiver lúcido e orientado, ele é quem diz o quanto tolera em
termos de comida e de líquido, o tipo e a consistência que prefere, o tempo de
intervalo entre as refeições, etc. Isso é fundamental.
Existem situações em que o doente tem vontade de experimentar comidas e
bebidas que ele não “deveria” dentro da lógica nutricional e clínica. No
entanto, para satisfazer sua vontade, tal produto talvez possa ser oferecido no
conta-gotas, numa colherzinha de café, ou ainda com a ponta dos dedos apenas
para sentir o sabor; tornando o sonho em realidade, fazendo muita diferença
para quem está com a vida por um sopro.
Com base no contexto acima, imaginemos uma pessoa gravemente doente,
que embora esteja com falta de apetite e disfagia (dificuldade de engolir),
apresenta um grande desejo de comer ou beber algo, por exemplo:

• Chupar um pedacinho de picolé, no sabor preferido;


• Chupar o caldo de um bife grelhado (sem mastigar e engolir a carne
propriamente dita);
• Comer um caldinho de feijão coado ou algum outro caldo que preferir;
• Beber gotinhas ou golinhos de café, de refrigerante, de suco de frutas, etc.;
• Deixar um pedacinho de chocolate derreter na boca.

Existem, ainda, doentes que desejam comer pipoca, pizza e outras


guloseimas. Qual o valor nutricional disso? Nenhum. Contudo, essas pessoas
estão numa fase que não precisam mais de nutrientes. O sentido do alimento
seria, meramente, para ter alegria e prazer.
Por outro lado, alguns doentes não gostam de falar de comida nessa fase da
doença, e às vezes, só de pensar, ficam nauseados. Assim, é importante evitar
perguntar pra pessoa “o que você quer comer” e pedir para ela “comer mais
um pouquinho”. Essas atitudes não são sensatas nem respeitosas, por mais que
haja boa intenção.
Caso o doente esteja com alimentação artificial por sonda ou gastrostomia,
o volume de dieta deverá ser reduzido e às vezes suspenso. Entretanto, nesses
casos, a avaliação médica é fundamental. Não há regras. Todas as intervenções
devem ser ponderadas e sob a orientação de um profissional de saúde com
experiências em cuidados paliativos.
Destaco quatro segredos para lidar com a alimentação durante os cuidados
ao fim da vida:

• Reconhecer a gravidade da doença na qual a comida e a bebida perderam


seu papel essencial de nutrição;
• Respeitar os limites do doente, não “forçando-o” a comer mais um
pouquinho, para evitar mais danos físicos (dor, vômitos, etc.) e emocionais
(culpa, frustração, tristeza, etc.);
• Aceitar que, frequentemente, a suspensão de alimentos e de bebidas traz
benefícios e conforto para o doente;
• Alimentar as emoções da doente, honrando os desejos e dignificando a
sua história.
Capítulo 15

Contando histórias de verdade


“A vida não pode ser economizada para amanhã.
Acontece sempre no presente.”
Rubem Alves

Contar história é uma atividade milenar e transcultural. Nossa infância é


recheada de memórias com histórias que nos foram contadas. Isso nos ajuda a
organizar nossas experiências de vida e construir um sentido sobre nós
mesmos.
Nas consultas de nutrição, contar história é um modo de o doente
apresentar suas queixas, expressar suas expectativas e frustrações sobre os
tratamentos, suas crenças e mitos relacionados aos alimentos. Essas histórias
podem estar carregadas de emoções, como: culpa, ansiedade, vergonha,
confiança, esperança, medo e superação; associadas ou não aos sintomas da
doença (e dos tratamentos) e, às vezes, exacerbadas pela situação de estresse
emocional vivenciado com a doença.
O dia a dia cuidando de pessoas com câncer avançado e ouvindo suas
histórias me ajudou a crescer e amadurecer na vida profissional e pessoal. Essas
histórias suscitam profundas reflexões sobre nossa natureza vulnerável e fugaz.
Os conflitos de identidade que vários doentes apresentam devido ao drama
de ser portador de uma doença incurável, estigmatizante, debilitante,
ameaçadora da vida, que pode deformar e deixar sequelas, normalmente, atinge
a todos ao seu redor: familiares, amigos, inclusive os profissionais de saúde que
os acompanham.
O que a alimentação tem a ver com isso? Muita coisa. As questões
alimentares e nutricionais se comunicam diretamente com as emoções e as
relações afetivas. Quando não resolvidas, elas podem impactar negativamente a
qualidade de vida das pessoas, conforme já discutimos nos capítulos anteriores.
Daí, a necessidade de adequações do padrão alimentar à nova realidade do
doente; promovendo conforto e amenizando conflitos familiares que
geralmente surgem no percurso.
Neste capítulo, eu apresento quatro casos que julgo interessantes, uma vez
que costumam provocar reflexões nos alunos durante as minhas aulas. Por isso,
acredito que vai produzir o mesmo em você, leitor.
Em cada história, percebemos as dificuldades no enfrentamento da doença
progressiva; a dor relacionada à finitude, ao medo e à incerteza; a falta de
autonomia para decidir o que comer; a fragilidade nos vínculos familiares; e a
imposição de práticas alimentares indesejáveis.
A conduta nutricional apresentada está pautada na perspectiva dos
cuidados paliativos. Assim, não há certo nem errado. Pelo contrário, a busca de
fazer o que é possível para ajudar o doente, mediante as suas condições e
particularidades. Cada paciente é uma história única.
Um detalhe importante: os nomes são fictícios, mas as situações são
verdadeiras.

Primeira história: caso Coca-Cola

Bruno, homem maduro de 64 anos, com diagnóstico de câncer de estômago


avançado, havia realizado uma cirurgia para retirada de todo o estômago
(gastrectomia total) quase dois meses antes da primeira consulta de nutrição.
Quando ele compareceu à consulta, acompanhado da esposa e da filha, tinha
consigo um encaminhamento médico, pois ia começar o tratamento de
quimioterapia. Bruno estava quatorze quilos abaixo do seu peso habitual e com
apetite reduzido.
Durante a consulta, ele pouco falava, no entanto se mostrava otimista com
o cuidado que a família estava lhe prestando. A esposa e a filha tomaram a
frente e falaram muito animadas:
– Bruno está com uma alimentação muito saudável. Está comendo brócolis
quase todos os dias, beterraba para o sangue, arroz integral e somente carne
branca.
Além de outras informações sobre a alimentação do Bruno.
Enquanto Bruno permanecia calado, eu perguntei se ele estava aceitando
bem a comida, se a comida estava gostosa, se ele estava fazendo boa digestão,
entre outras perguntas que fazem parte da anamnese nutricional31. As respostas
eram monossilábicas e sempre positivas.
Após colher todas as informações, expliquei ao Bruno e a sua família que,
devido ao tratamento, aquele tipo de alimentação (farto de legumes, verduras e
cereais integrais) não era o mais recomendado, porque possivelmente ele
apresentaria diarreia e teria que fazer uma dieta com baixo teor de fibras. Disse
que manteríamos a preferência por carne branca magra, pouca gordura e
restrição de guloseimas, mas sem proibições. Eu iria prescrever um suplemento
nutricional oral para fortalecer o organismo (muito emagrecido) e fazer
orientações específicas para melhorar o consumo de proteínas e líquidos, bem
como o controle dos sintomas, etc.
Enquanto fazia minhas orientações, a filha fez uma objeção, perguntando
num tom perplexo:
– Mas o que ele está comendo não é saudável?
Então, expliquei que pessoas em tratamento de qualquer tipo de câncer
podem apresentar diversos sintomas que vão, em alguma medida, prejudicar a
alimentação. Consequentemente, o mais importante naquele momento era ter
uma alimentação adequada para fornecer nutrientes e ajudar no controle de
sintomas. De igual modo, agradável aos olhos e ao paladar. Além disso,
esclareci outras dúvidas que iam surgindo.
Finalizei a consulta. Parecia que tudo estava bem compreendido.
Quinze dias depois, Bruno voltou para a segunda consulta de nutrição com
a família. Relatou ter começado a quimioterapia, mas que estava bem, que os
sintomas foram leves e que tinha melhorado com o medicamento prescrito
pelo médico.
Fiz nova anamnese, nova checagem de peso e verifiquei que o relato dele
não estava congruente com a perda de peso e o desânimo apresentados. Bruno
havia perdido mais dois quilos em duas semanas. Perguntei se estava tudo bem
mesmo e a resposta afirmativa, dele e da família, me deixou menos preocupada.
O importante era o que Bruno dizia. Ele era o protagonista e quem me dava
informações para eu fazer o meu trabalho da melhor forma – pensei.
Reforcei as orientações, esclareci uma dúvida e outra, finalizei a consulta.
Mais uma vez, parecia que tudo estava bem compreendido.
Passaram-se mais quinze dias e Bruno voltou para a terceira consulta
acompanhado da família. Relatou já ter feito duas sessões de quimioterapia,
que estava bem, que os sintomas foram leves, que havia seguido as orientações
nutricionais e usado o suplemento alimentar.
Após nova checagem de peso, verifiquei que Bruno tinha perdido mais dois
quilos desde a última consulta. Nessa ocasião, eu disse ao Bruno:
– Tem alguma coisa errada. Você não tem queixa de náuseas, vômitos ou
diarreia, diz que come bem e usa o suplemento. Mas já perdeu quatro quilos
em quatro semanas. Um total de 18 quilos desde que você fez a cirurgia. O que
está acontecendo? Como eu posso te ajudar?
Naquele momento, Bruno começou a chorar copiosamente e um clima
constrangedor se instalou no consultório. Ele chorava como criança ao lado da
esposa e da filha, que não sabiam o que estava acontecendo. Afinal, elas
estavam ao lado dele, cuidando, apoiando e fazendo o melhor que podiam.
Alguns minutos depois de tentar acalmá-lo, eu chamei a psicóloga para nos
ajudar (com o consentimento do Bruno).

Qual era o problema?

• Bruno era “viciado” em Coca-Cola e, desde a cirurgia, sua família não


permitia que ele tomasse “nem um pouquinho” de refrigerante, nem comesse
as guloseimas a que estava habituado.
• Bruno não tinha hábito de almoçar e amava comer salgadinho com Coca-
Cola. Ele dizia:
– Comida de verdade somente no jantar quando eu chego em casa.
• Bruno não gostava de “comida saudável”, sua comida era básica: arroz,
feijão e carne.
• No entendimento de Bruno, suas refeições estavam sem graça, sem
tempero e sem vida.
• Bruno estava comendo, “forçado”, uma comida que ele não gostava e
cheio de culpa por não corresponder à expectativa da esposa e da filha.

Como a mediação foi feita?

Eu e a psicóloga orientamos a família que não valia a pena obrigar o Bruno


a comer o que não gostava. O diagnóstico e os tratamentos eram situações
estressantes, que afetariam o apetite provocando perda de peso. Por isso, ele
deveria ter uma alimentação mais compatível com os seus hábitos, com
restrições somente quando necessárias, por exemplo, para controle de sintomas.
• Explicamos ao Bruno e à família que durante o tratamento de
quimioterapia vários sintomas poderiam surgir e que a alimentação deveria
estar compatível com o controle dos sintomas para não prejudicar o apetite.
• Bruno foi encorajado a falar com clareza do que gostava e do que não
gostava. De fato, sentiu-se seguro para dizer que queria tomar um pouco de
Coca-Cola.
• Bruno foi encaminhado para o acompanhamento psicológico (ele aceitou
a sugestão) e mantinha a consulta da nutrição nos prazos estipulados.

Resultados: Bruno estava mais animado, mais “leve”, comendo melhor e


recuperando o peso lentamente.
Numa das consultas ele me disse:
– Doutora, a senhora sabe que a boca está com gosto diferente e que não
consigo nem tomar mais a Coca-Cola, está muito ruim.
Bruno terminou o tratamento um ano depois. Entretanto, faleceu quase
dois anos após o diagnóstico.
Aprendizado: a comida só é saudável quando faz bem e é comida com
prazer.

Segunda história: caso morfina

Vinícius, homem de 57 anos, com diagnóstico de câncer de pâncreas


avançado e tratamento de quimioterapia suspenso. Ele veio à consulta de
nutrição acompanhado da esposa. Vinícius sentou-se à minha frente, levemente
virado para o lado direito, com a cabeça inclinada para baixo.
Iniciei a consulta me apresentando e perguntando em que poderia ajudá-
los, visto que ele não tinha um encaminhamento com a queixa principal. A
esposa, sentada ao seu lado, prontamente respondeu:
– Ele está perdendo muito peso.
Imediatamente eu olhei para o Vinícius e perguntei como ele estava se
sentindo. Ele respondeu que estava fraco, sem fome e sem vontade de comer.
Fiz mais algumas perguntas sobre seu estado geral e ele foi sutilmente “seco”
nas respostas. Logo, perguntei se ele estava irritado ou com dor. Ele respondeu
que estava com dor.
Perguntei se ele estava usando algum medicamento para o controle da dor.
Ele respondeu:
– Dimorf.
Era morfina, um medicamento à base opioide comumente usado para dor
oncológica, contudo causava muitos efeitos colaterais, entre eles a prisão de
ventre severa. Diante dos fatos, perguntei se ele estava com prisão de ventre.
Ele disse que sim, que estava há dias sem “ir ao banheiro”. Perguntei se ele estava
usando algum laxante e comendo algum alimento que pudesse ajudar na
evacuação.
A esposa prontamente respondeu:
– Ele não gosta de legumes nem verduras.
Essa informação provocou um clima de estresse entre o casal.
Vinícius, que até aquele momento falava baixo e estritamente o necessário,
aumentou o tom de voz com a esposa, justificando que comia legumes e
verduras, mas não todos, apenas os que ele gostava. A esposa retrucou, ele
idem.
Então eu disse:
– Comer o que a gente não gosta é muito ruim, ainda mais com dor.
Ao me ouvir, Vinícius levantou a cabeça, endireitou os ombros e sentou-se
virado para mim.
Pude perceber claramente que o motivo do seu comportamento sisudo não
era exatamente dor, porém medo de ser desrespeitado nos seus gostos e
preferências.
A partir do instante em que Vinícius percebeu que eu estava ali para ajudá-
lo e respeitá-lo, a consulta fluiu e eu pude fazer as orientações nutricionais
tanto para o controle de peso (a queixa principal), quanto da prisão de ventre,
em conformidade com aquilo que ele gostava e tinha aceitado experimentar.

Qual era o problema?

• Na tentativa de ajudar Vinícius a se alimentar melhor, sua esposa o


forçava a comer alimentos que ele não gostava.
• Como a comida oferecida não era apetitosa, Vinícius comia pouco e sem
prazer. O baixo consumo de alimentos provocava perda de peso e piorava do
estado geral de Vinícius.
• A dor, além de alterar o humor, é um limitador para o apetite. A morfina
ajudava no tratamento da dor, contudo prejudicava as funções digestivas e
intestinais, e o apetite.
• Vinícius estava com dor e todos os sintomas a ela associados, sem falar da
doença no estágio final. Ele precisava ser ouvido e respeitado.

Como a mediação foi feita?

• Escutei atentamente o que Vinícius gostava de comer.


• Expliquei para a esposa que aquele momento não era oportuno para
introduzir alimentos que Vinícius não gostava, mesmo sendo “saudáveis”.
• Negociei com Vinícius e a esposa uma rotina para introduzir
regularmente alimentos que ele gostava e que seriam importantes para o
controle da constipação.
• Dei várias sugestões de alimentos laxativos que estavam na lista de
preferência do Vinícius.
• Expliquei ao Vinícius e à esposa os benefícios da proposta terapêutica
(tudo em conformidade com as preferências e aceitação do Vinícius).
• Esclareci dúvidas sobre mitos alimentares.
Resultados: Vinícius melhorou o humor, a função intestinal, o prazer em
comer. Não conseguiu ganhar peso, pois a doença estava numa fase muito
avançada.
Vinícius faleceu alguns meses depois.

Aprendizado: descobrir o que é essencial para cada pessoa nos permite


prestar cuidados adequados, centrados na ética e no respeito ao paciente.
Nota: esse caso foi apresentado no Simpósio Internacional do Instituto
COI, 2018, na palestra sobre dieta oral na constipação induzida por opioide.

Terceira história: caso peruca

Bárbara, mulher de 47 anos, com diagnóstico de câncer de pâncreas


metastático. Estava fazendo um tratamento de quimioterapia paliativa para
retardar o avanço rápido da doença.
Bárbara chegou à consulta de nutrição acompanhada do marido, vestindo
um casacão e usando óculos escuros grandes e charmosos. Tinha uma cabeleira
bem expressiva e volumosa. Parecia emagrecida.
Iniciei a consulta me apresentando e perguntando em que poderia ajudá-
los, ela respondeu que queria ganhar peso e massa muscular.
Esse tipo de expectativa é muito comum, mas impossível no quadro que ela
apresentava. Todavia, não falei sobre isso. Iniciei a anamnese para conhecer
melhor as condições clínicas e os hábitos alimentares de Bárbara.
Bárbara usava muitos medicamentos para controle de diversos sintomas,
inclusive morfina para dor. Todos esses medicamentos alteravam seu apetite,
sua digestão e o funcionamento do intestino, impedindo que ela comesse um
pouco melhor.
Convidei Bárbara para subir na balança e me pus de pé ao seu lado. Ela
levantou-se e tirou a peruca, o casaco e os óculos escuros. Segurei em sua mão
e a conduzi até a balança, que revelou um peso de pouco mais de 40kg, para
uma mulher com estatura mediana de 1,6m.
Bárbara estava em pele e osso. Ela desceu da balança, sentou-se e disse,
chorando, que ela não se reconhecia, que estava com vergonha de si mesma.
Ainda chorando, contou-me que poucos dias atrás ela estava com a sua mãe
indo para algum lugar (não lembro onde) e que no caminho encontraram uma
conhecida. Essa pessoa perguntou para a mãe dela:
– Como está a sua filha?
A mãe de Bárbara respondeu:
– Ela está bem.
Bárbara estava ao lado de sua mãe, porém irreconhecível pela magreza que
tinha consumido seu corpo. Bárbara confessou que naquela hora ela se sentiu
só, desamparada, sem identidade, embora estivesse ao lado da sua mãe.
Ouvi sua história, suas queixas e suas expectativas, mas não havia nada que
eu pudesse fazer para reverter o quadro de perda de peso acentuada por causa
do câncer avançado. Devolver sua vitalidade, sua dignidade, sua esperança.
Embora Bárbara estivesse disposta a ganhar peso, isso não dependia dela. Eram
tantos sintomas que ela não conseguia comer uma quantidade mínima de
comida com refeições regulares a cada três horas.
Olhei nos olhos de Bárbara, lhe expliquei que a doença, os múltiplos
tratamentos e os sintomas exacerbados eram as principais causas da falta de
apetite, das dificuldades digestivas, e da perda severa de massa muscular, e que
aquela situação não poderia ser revertida tentando comer mais ou usando um
suplemento. Expliquei a ela e ao marido que, naquele momento de fraqueza e
de fragilidade física e emocional, o melhor seria manter a alimentação que seu
organismo conseguisse aceitar e introduzir um suplemento hipercalórico,
fracionado em pequenos volumes para ajudar no aporte de nutrientes. Depois,
quando ela já estivesse comendo melhor, poderíamos reavaliar a conduta.
A clareza e a honestidade nas informações devem ser adocicadas com
esperança, principalmente quando o enfrentamento da finitude ainda não foi
digerido pelo doente. Bárbara chegou a ter acompanhamento psicológico e
nutricional por um período, no entanto não ia com regularidade nos
atendimentos.

Qual era o problema?

• Bárbara era uma mulher cheia vontade de viver e não estava conseguindo
lidar com perda de peso e de identidade.
• Comer mesmo sem conseguir era uma tarefa difícil e uma meta
impossível.
• A dor na alma e a angústia de um problema insolúvel fazia Bárbara
buscar recursos, mesmo consciente que ela não ia conseguir resolver. Nesse
caso, era comer satisfatoriamente para ganhar peso e massa muscular.
• Bárbara não verbalizava uma clara compreensão sobre a finitude, embora
seu corpo falasse por ela.

Como a mediação foi feita?

• Tive uma escuta acolhedora, uma ferramenta importante, principalmente


em casos de fragilidade emocional.
• Demonstrei compaixão falando a verdade tecnicamente sobre a reversão
do quadro, e ao mesmo tempo respeitando seus limites no enfrentamento da
sua condição clínica. Cada um tem seu tempo de amadurecimento e aceitação
da finitude.
• Esclareci mitos alimentares sobre alimentos que fazem as pessoas
ganharem massa muscular.
• Eu me coloquei à disposição caso Bárbara precisasse fazer novos ajustes
na alimentação antes do prazo combinado.

Resultados: Bárbara ouviu tudo atentamente. Parecia ter aceitado as


orientações. No final da consulta, ela enxugou as lágrimas, colocou a peruca –
de cabelos longos e volumosos – seus óculos escuros, seu casacão e se aprumou
para sair do consultório. Despediu-se com olhar de esperança.
Bárbara faleceu alguns meses depois.

Aprendizado: alimentação e esperança andam juntas: a primeira,


combustível para corpo; a segunda, conforto para a alma.

Quarta história: comer coisa diferente

Sofia era uma mulher jovem de 31 anos, tinha câncer de estômago


avançado. Desde 2016 vinha lutando contra a doença. Chegou a fazer cirurgia,
entretanto não pode tirar o tumor devido à gravidade da localização, estava
“grudado” nos outros órgãos. Então, foi fazer quimioterapia paliativa, para
controlar o crescimento do tumor e o seu alastramento pelo corpo.
No início do tratamento da quimioterapia, já muito emagrecida, Sofia foi
encaminhada para a consulta de nutrição, uma vez que estava com sérias
dificuldades de alimentação, consequências da toxicidade do tratamento. Sofia
teve um diagnóstico nutricional de desnutrição grau III, sua perda de peso
havia sido muito severa, 26 quilos em um ano e meio, desde o diagnóstico.
Sofia tinha muita dificuldade tanto de se alimentar, como de ir às consultas
de nutrição nas datas previstas. A impressão que ela passava era que ia para a
consulta na esperança de receber uma prescrição de dieta milagrosa, de um
suplemento que a deixasse mais forte, ou de um alimento que pudesse resolver
sua magreza, curar sua doença e tirá-la da prisão de não poder comer aquilo
que gostava.
Antes da doença, Sofia tinha hábito de comer guloseimas, não tinha
disciplina com a alimentação. Comia o que queria, a qualquer hora. Nos
primeiros anos do tratamento, Sofia tinha medo de comer o que lhe dava
prazer e, por causa disso, se forçava a comer o que era mais “saudável”, na
esperança da melhora. Tinha certa resistência em usar os suplementos e fazer as
refeições regulares para nutrir e controlar os sintomas. Ainda assim ela tentava.
Os anos foram se passando e a melhora não vinha, ao contrário, estava cada
vez mais emagrecida. Diante desse cenário, Sofia solicitou nova consulta de
nutrição, com outra nutricionista para um “novo parecer”.
A partir de daí, nossos caminhos se cruzaram. Nessa consulta, Sofia alegou
que ela gostaria de uma “nova dieta”, uma prescrição que permitisse comer
“coisas diferentes” e fez uma infinidade de perguntas do que “poderia ou não
comer”.
Era notório que Sofia queria aproveitar o pouco tempo que lhe restava e
ser livre para comer o que desejava e tolerava, já que os sintomas de enjoos
eram frequentes. Queria sentir-se livre da culpa, da falsa esperança e da ilusão
de que as proibições alimentares iriam salvá-la do câncer.
Após uma longa conversa, negociamos vários alimentos, preparações e
momentos certos para que Sofia pudesse comer as “coisas diferentes” que
tanto desejava.
Deixei claro que Sofia deveria experimentar uma coisa de cada vez e em
pouca quantidade, devido aos sintomas que apresentava. Deveria escolher o
turno da manhã, até o horário do almoço, para testar os alimentos e verificar se
passaria mal ou não. Na hipótese de passar mal, teria tempo de tomar um
remédio e não prejudicar sua noite de sono.
Orientei que antes de escolher o cardápio do dia, Sofia deveria observar seu
estado geral e se apresentava alguma alteração da função digestiva ou intestinal.
Eu disse enfaticamente:
– Se você tiver náusea, vômito ou diarreia, não pode comer cachorro
quente, batata-frita, nada com gordura.
Também enfatizei que essas guloseimas deveriam ser consumidas em
pequenas quantidades.
Além dessas orientações, ficou acordado que Sofia manteria o suplemento
nutricional fracionado para o fornecimento de nutrientes importantes.
Sofia voltou em mais três consultas, nas datas certas conforme agendadas.
Sempre vinha bem-humorada. Cada vez tinha um novo “prato” que planejava
experimentar e perguntava se poderia comer. Contava sobre suas novas receitas
e o cuidado que tinha para comer pouca quantidade e não passar mal.

Qual era o problema?

• Sofia tinha uma doença muito grave que a impedia de comer, mesmo
aquilo que desejava.
• Sofia tentou se enquadrar nas regras de alimentação saudável, mas comer
o que gostava já era difícil por causa dos sintomas, o que não gostava ficava
mais difícil ainda, pois não tinha prazer.
• Sofia demonstrava conflitos relacionados ao medo de comer e de piorar
seu quadro clínico.

Como foi a mediação?

• Tive uma comunicação com postura empática que favoreceu a escuta


acolhedora, a clareza e a honestidade nas informações.
• Encorajei Sofia a testar os alimentos que tanto desejava comer, com
responsabilidade e sem medo.
• Negociamos que qualquer “coisa diferente” seria consumida apenas se ela
estivesse sem sintomas.
• Dei um crédito de confiança à Sofia e em pouco tempo criamos um
vínculo de cumplicidade.

Resultado: embora com a vida por um fio, Sofia estava mais animada com
a possibilidade de comer “coisas diferentes” e gostosas, conforme desejava.
Sofia faleceu dois meses após começar a se despedir dos seus “pratos”
prediletos.

Aprendizado: é importante perceber os desejos escondidos nas entrelinhas


e, sempre que possível, validar o doente a dar sentido a sua comida para sua
vida ter sentido.

Nota: esse caso clínico foi apresentado no VII Congresso Internacional de


Cuidados Paliativos, 2018, na modalidade Pôster, com o título Comida e desejo: o
desafio de alimentar o paciente em cuidados paliativos. Teve a colaboração de
Quintanilha, AP e Moreira, EC.
31
Anamnese: é um instrumento composto por questionário sobre as condições clínicas e nutricionais;
formulário para coleta de dados físicos e laboratoriais, entre outros, conforme a necessidade de cada
pessoa.
Posfácio
Após escrever cada capítulo e encerrar o livro contando histórias de
verdade, tenho a sensação de missão cumprida, com a certeza de que muitas
pessoas serão beneficiadas com as informações que foram cuidadosamente
explicadas.
Lidar com o câncer incurável é um grande desafio. Um diagnóstico que
chega de repente e provoca uma avalanche de mudanças na vida das pessoas.
Sofre o doente, sofre a família, sofrem os amigos. E todos buscam algum tipo
de ajuda e de consolo. Os dramas, as dúvidas e as queixas dos outros, em
alguma medida, se tornam nossos, e conforme vamos tendo a solução, somos
confortados e animados mutuamente.
Embora seja um assunto difícil, é importante falar de câncer devido à nossa
realidade: uma estimativa de novos casos com aumento vertiginoso a cada ano.
Da mesma maneira, falar de comida é primordial, principalmente quando
estamos vivenciando momentos tão delicados (doença incurável), no qual a
comida tanto pode ajudar quanto atrapalhar, bem com as restrições
alimentares.
Finalizo enfatizando que cada um tem a sua história, o seu modo de lidar
com a doença e contar como se sente frente aos sintomas. Quando respeitamos
as histórias, estamos valorizando a vida das pessoas, do jeito mais elementar e
mais digno, ainda que possa parecer um pouco “estranho” aos nossos olhos.
Somente assim será possível, verdadeiramente, ajudá-lo a viver dignamente
e a comer com prazer até o fim.
Obrigada pela sua companhia.
Bibliografia consultada
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https://sbed.org.br/5o-sinal-vital/
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Sobre a autora

Monica Benarroz, nutricionista, professora, pesquisadora, palestrante e


escritora. Há 25 anos fazendo a diferença na vida de pessoas que precisam de
cuidados e acolhimento.
Formou-se em Nutrição pela UERJ, fez mestrado em Ciências da Saúde na
UFRN, é membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Cuidados Paliativos da
ENSP/FIOCRUZ e, doutoranda do Curso de Bioética, Ética Aplicada e Saúde
Coletiva da UFRJ.
Sua missão é tríplice: cuidar, ensinar e pesquisar. Habilidades
complementares e indispensáveis para quem busca a excelência.
Além disso, gosta de escrever poesia e, sempre que tem oportunidade, lê
para seus pacientes.
Contatos

Site: www.monicabenarroz.com
Instagram @monica_benarroz
Sobre a obra
Este livro foi escrito pensando nas pessoas com câncer incurável, que têm
dúvidas e medos associados à sua alimentação, e nos familiares e cuidadores
que lidam cotidianamente com as questões alimentares do doente e muitas
vezes não sabem o que fazer.
É uma literatura indispensável tanto para os profissionais e estudantes das
diferentes áreas da saúde como para qualquer pessoa que tenha interesse em
pensar criticamente assuntos sobre alimentação, câncer avançado e cuidados
paliativos.
Os cuidados paliativos são um tipo de abordagem relativamente novo
dentro da assistência nutricional. O livro Comendo com prazer até o fim: o papel da
alimentação na vida de pessoas com câncer avançado na perspectiva dos cuidados paliativos é
o primeiro lançado no Brasil que trata dessa temática com uma linguagem
simples e acessível, mas recheado de conhecimento técnico e dicas práticas para
o dia a dia.

Alimentar no câncer avançado é um grande desafio. No senso comum


existem mitos relacionados aos alimentos que funcionam como panaceia no
terreno movediço que é a finitude da vida. Por outro lado, sabemos o quanto
são importantes as orientações alimentares nesse momento. A alimentação vira
alvo de disputas familiares, profissionais e até institucionais na tentativa de
mitigar sofrimentos. Esta obra avança para além dessa discussão e foca no
paciente que atravessa o mar revolto do desaparecimento, preocupa-se em
garantir e proporcionar prazer até o fim por meio do alimento – nutriz da vida
–, respeitando a autonomia e as escolhas. O livro, usando recursos bem
didáticos, poéticos e até filosóficos, expressa a experiência contemplativa de
uma profissional atenta, que busca alcançar o seu público com uma escrita leve
e contemporânea. De toda sorte, acredito que o livro preencherá uma lacuna
nessa temática tão contraditória de uma fase tão importante da vida.

Ernani Costa Mendes

Doutor em Ciências da Saúde ENSP/Fiocruz. Líder do Grupo de Estudo e


Pesquisa em Cuidados Paliativos (CNPQ).

Falar de alimentação, às vezes, pode ser um tabu. Muitos acreditam


dominar esse tema e consumir uma boa alimentação. Alguns saberes são
verdadeiros, outros podem não trazer benefícios à saúde e até fazer mal.
Desmistificar, esclarecer, auxiliar, empoderar são alguns dos intuitos deste livro
escrito por Monica Benarroz. Se falar de alimentação é complicado, imagina
falar de alimentação em cuidados paliativos. Isto porque muitos de nós ainda
acreditamos que cuidados paliativos são oferecidos às pessoas que estão
morrendo. O que trago de novo, mas que na verdade é velho, é que “paliativo”
deriva da palavra em latim “pallium”, que significa proteção, manto, capa,
amparo. Dessa forma, o cuidado paliativo pode ser entendido como cuidado de
proteção. Com isso, entender como a alimentação pode proteger o nosso corpo
e também a nossa alma é fundamental para que as pessoas que precisam desse
cuidado comam bem, com qualidade, sabor e com muito significado.

Liana Amorim Correa Trotte

Enfermeira, doutora, professora da UFRJ e membro do Grupo de Estudo e


Pesquisa de Cuidados Paliativos da DIHS/ENSP/FIOCRUZ

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