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Revista Brasileira de Ciências Sociais

ISSN: 0102-6909
anpocs@anpocs.org.br
Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Ciências Sociais
Brasil

GARCIA DA COSTA, EVERTON; BANDEIRA COELHO, GABRIEL


Hegemonia, estratégia socialista e democracia radical. LACLAU, Ernesto & MOUFFE,
Chantal. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São
Paulo, Intermeios, 2015. 286 páginas.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 31, núm. 92, octubre, 2016, pp. 1-4
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10747709012

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RESENHAS  1

Hegemonia, estratégia socialista e das novas tendências que eram simplesmente justa-
democracia radical postas – sem integração – a um corpo teórico que
permanecia largamente inalterado” (p. 34).
LACLAU, Ernesto & MOUFFE, Chantal. Hege- Seguir por uma dessas direções, segundo La-
monia e estratégia socialista: por uma política demo- clau e Mouffe, certamente não solucionaria o im-
crática radical. São Paulo, Intermeios, 2015. 286 passe do marxismo diante da realidade do capi-
páginas. talismo contemporâneo. Com efeito, os autores
Everton Garcia da Costa e Gabriel Bandeira Coelho propõem uma abordagem teórica inovadora para
lidar com esse embaraço marxiano. Partindo de
Ainda que tardiamente, isto é, trinta anos após uma perspectiva epistemológica “transdisciplinar”,
a data de sua publicação original, em 1985, enfim isto é, que incorpora elementos da psicanálise laca-
é publicada a versão em língua portuguesa de uma niana, da teoria da hegemonia gramsciana, da filo-
das mais importantes obras de teoria política e so- sofia analítica, da linguística, do desconstrutivismo
cial da segunda metade do século XX: Hegemonia derridiano e, sobretudo, do pós-estruturalismo e do
e estratégia socialista: por uma política democrática pós-fundacionalismo, Laclau e Mouffe desconstro-
radical, da autoria de Ernesto Laclau e Chantal em (segundo o viés derridiano do termo) as catego-
Mouffe. Mesmo sendo temporã, a versão brasilei- rias centrais sobre as quais o marxismo tradicional
ra da obra é lançada em um momento em que o se desenvolveu ao longo de mais de um século. Essa
pensamento de Mouffe e, sobretudo, o de Laclau desconstrução era necessária, segundo os autores,
têm se disseminado cada vez mais no contexto inte- pois categorias como classe social, contradição en-
lectual do país. Cabe ressaltar que em 2013, menos tre forças de produção e a tríade de níveis (econô-
de um ano antes de seu falecimento, o pesquisador mico, político e ideológico) foram sintetizadas de
de Essex1 permaneceu no Brasil durante três meses, modo essencialista – na forma de fundamentos
período em que compareceu em diversas universi- universais – nas análises marxistas. Nesse sentido,
dades – como UERJ, UFPE e UFPel2 – ministran- para superar o impasse do marxismo ante as trans-
do palestras, nas quais elencou o cabedal teórico, formações políticas, econômicas e sociais da tessitu-
metodológico e epistemológico da Escola de Altos ra social contemporânea, era necessário trazer à luz
Estudos em Teoria do Discurso.3 a dimensão contingente, precária e discursiva em
O livro de Laclau e Mouffe, como o próprio que essas categorias foram produzidas.
título aponta, busca fundamentar o terreno para Dessa maneira, ao lidar com as categorias con-
o desenvolvimento de uma estratégia socialista em ceituais marxistas, os autores retomam a distinção
direção a uma política democrática radical. De husserliana de sedimentação e reativação. Na pers-
modo mais preciso, Hegemonia propõe uma nova pectiva de Husserl, uma categoria sedimentada é
abordagem teórica e epistemológica, cujo objetivo é aquela que oculta as condições de sua criação ori-
superar os obstáculos sobre os quais a teoria marxis- ginal. Por sua vez, a reativação consiste em, justa-
ta estagnou em meados do século passado. Para os mente, trazer à tona estas condições. Para Laclau e
autores, após ter vivenciado um período de riqueza Mouffe, tratar as categorias centrais do marxismo
e criatividade intelectual na década de 1960, a par- como um fetiche sedimentado, isto é, desde um
tir do althusserianismo, dos estudos frankfurtianos viés essencialista, é um grave erro, nocivo ao de-
e de renovadas análises, como aquela desenvolvida senvolvimento de uma estratégia socialista coerente
por Gramsci, o marxismo, já na década de 1970, com as condições atuais do capitalismo. Assim, os
chegara a um impasse diante das transformações autores reativam algumas das principais categorias
do capitalismo contemporâneo. Nesse cenário, as marxistas, identificando não só o modo como fo-
abordagens marxistas, em geral, seguiram duas di- ram produzidas, de forma discursiva e contingen-
reções distintas: “negar as mudanças, e recuar de te, mas também questionando em que medida elas
forma não convincente a uma trincheira ortodoxa, continuam válidas para a análise da realidade social
ou acrescentar, de modo ad hoc, análises descritivas contemporânea.
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O processo de reativação elaborado por Laclau riamente a representação de uma totalidade ou um


e Mouffe pode ser observado, de modo paradig- determinado sentido de “verdade”.
mático, na maneira como abordam o conceito de Para entender este argumento, é necessário ter
hegemonia. Os autores mostram que esta noção em mente que os autores concebem a realidade so-
possui raízes históricas na socialdemocracia russa, cial como um campo discursivo. Assim, a seu ver,
quando era utilizada em referência a um número o social consiste no jogo infinito das diferenças,
limitado de fenômenos políticos. Em Lenin, he- ou seja, é um espaço no qual as identidades lu-
gemonia apareceu relacionada com os problemas tam agonicamente para conseguir estabelecer-se.
concretos concernentes à tomada de poder pelo Quando uma dessas identidades consegue fixar-se,
proletariado, sobretudo no que diz respeito à ne- isto é, alçar-se e representar um conjunto de ou-
cessidade de uma atuação estratégica do partido tras identidades, emerge uma articulação discursi-
na construção de um vínculo hegemônico a partir va. No entanto, toda articulação é contingente e
da formação das alianças de classe. Entretanto, é precária, pois, para além de seus limites, há uma
apenas com Gramsci que o termo adquiriu cen- incomensurabilidade de diferenças não articula-
tralidade política. Enquanto Lenin defendia que das. Dessa forma, Laclau e Mouffe defendem que
a ascensão proletária dependia de uma liderança a sociedade – como uma totalidade fechada e inte-
política, Gramsci argumentava que o proletariado, ligível – é uma impossibilidade. O social, segundo
para tornar-se classe dirigente e dominante, neces- a abordagem dos autores, existe como articulação
sitava de uma liderança política, e, principalmente, de demandas. Em outras palavras, a existência de
intelectual e moral, capaz de constituir uma “von- articulações é uma necessidade do social para con-
tade coletiva”, que seria a base para o desenvolvi- ter, de forma precária, o contingente, isto é, o
mento de um bloco hegemônico. Ao observarem jogo das diferenças.
essas abordagens, Laclau e Mouffe chamam a aten- No interior de um campo discursivo, há um
ção para o fato de que o conceito de hegemonia número incontável de demandas democráticas:
fora empregado na tradição marxista sempre em raciais, étnicas, sexuais, ambientais, de gênero,
menção a uma falta, a uma fratura, uma necessi- econômicas, religiosas etc. Em geral, essas de-
dade histórica. “Os contextos em que o conceito mandas normalmente encontram-se fechadas, ou
aparece foram os de uma falha, de uma fissura que seja, isoladas em torno de seus interesses próprios.
tinha que ser preenchida, de uma contingência que No entanto, há sempre a possibilidade de que al-
tinha de ser superada” (p. 57). guma delas consiga se alçar e articular ao redor
Após apresentarem as raízes históricas do con- de si uma série de outras demandas. Nesse ins-
ceito de hegemonia no âmbito da tradição mar- tante, a demanda, que inicialmente era particu-
xista, Laclau e Mouffe reativam o termo, atribuin- lar, torna-se universal. Por sua vez, a articulação
do-lhe significado inteiramente novo. Os autores forma aquilo que Laclau e Mouffe denominam
concebem hegemonia como o momento em que como ponto nodal: um discurso (político) hege-
uma “força social particular” assume “a represen- mônico. A articulação discursiva surge com base
tação de uma totalidade que lhe é radicalmente nessa união de sentidos, de demandas, de ver-
incomensurável” (p. 37). Em outras palavras, o dades que desejam ser universais e que, antes da
hegemônico é o universal. Todavia, a ideia de uni- prática articulatória, estavam dispersas. Além dis-
versalidade, aqui, não deve ser vista em termos es- so, cabe ressaltar que toda articulação se constitui
sencialistas. Isso implica dizer que, para os autores, em oposição a “um inimigo comum”, ou seja, em
não há nenhuma força ou grupo social destinado oposição a um determinado discurso antagônico.
a priori a ser agente revolucionário universal – tal Com efeito, é justamente a fronteira antagônica
como era a visão acerca do proletariado no mar- que determina os limites de um discurso político
xismo clássico. Assim, para Laclau e Mouffe, uma no interior do campo social. O antagonismo é a
força hegemônica é um momento contingente e linha que demarca os limites entre a identidade
precário, no qual um particular assume tempora- de alter e a identidade de ego.
RESENHAS  3

Em resumo, na teoria de Laclau e Mouffe, há questões diversas, como lutas antirraciais, ecoló-
duas condições fundamentais para a formação da gicas, sexuais, urbanas, anti-institucionais etc. no
hegemonia: primeiro, a existência de uma prática interior de uma sociedade de capitalismo globali-
articulatória, a partir da qual uma identidade par- zado. Os autores defendem que esses movimentos
ticular passa a representar um conjunto de outras são fundamentais para o desenvolvimento de uma
identidades; segundo, a existência de uma relação revolução democrática radical, pois questionam e
antagônica entre a cadeia articulatória formada e colocam em pauta novas formas de subordinação,
um discurso lhe é contrário. Isso mostra que, em ou formas que durante muito tempo foram pratica-
oposição a outros modelos teóricos, como o de mente desconsideradas. Tais movimentos também
Habermas, por exemplo, o qual concebe a políti- representam novas práticas de resistência à crescen-
ca em termos de consenso e deliberação, Laclau e te homogeneização da vida social.
Mouffe veem a política como conflito, como algo Por conseguinte, aceitar que os conflitos so-
resultante das infinitas disputas antagônicas que ciais são contingentes e que não há nenhuma luta
constituem o social. social privilegiada em relação à outra (as lutas
Esta é uma abordagem teórica inovadora, que dos trabalhadores não são mais importantes que
rompe com as análises tradicionais, que concebiam as lutas feministas, antirraciais ou de LGBT, por
a realidade social de forma essencialista e funda- exemplo) é condição sine qua non para o desen-
cionalista. Laclau e Mouffe excluem “não apenas volvimento de uma democracia radical e plural.
a concentração do conflito social em agentes his- Uma democracia só é de fato radical à medida
tóricos aprioristicamente privilegiados, mas tam- que cada identidade tem condições de se autono-
bém a referência a qualquer princípio ou substrato mizar hegemonicamente e lutar contra diferentes
geral de natureza antropológica” (p. 235). Para os formas de subordinação. A emergência de novas
autores, o social não possui nenhum fundamento lógicas políticas exige que sejam rejeitadas noções
a priori, isto é, nenhuma substância natural. Da como “classe universal” e “agente histórico revo-
mesma forma, cada conflito social constitui-se lucionário”. A democracia radical é um terreno
como disputa discursiva e contingente, que emer- em que não há um fundamento positivo último,
ge do próprio campo da discursividade, como ato apriorístico, o que possibilita, justamente, o sur-
político. Além disso, os autores ressaltam que nem gimento de novas práticas de resistência contra
todas as disputas sociais devem ser vistas como lu- novas formas de subordinação. “Não há posição
tas políticas. Para eles, uma luta política é aquela privilegiada alguma, a partir da qual uma conti-
cujo objetivo central consiste em transformar a nuidade uniforme de efeitos decorra, chegando-
realidade, visando a eliminar algum tipo de desi- -se até à transformação da sociedade como um
gualdade (econômica, sexual, étnica, racial etc.) ou todo” (p. 255).
situação de opressão. Com efeito, os conflitos políti‑ Hegemonia e estratégia socialista cumpre sua
cos estão para além dos limites dos partidos po- proposta, ou seja, fundamenta o terreno teórico
líticos. Muitos grupos sociais, como alguns femi- para defender uma estratégia política que conduza
nistas e de LGBT, por exemplo, buscam subverter a uma democracia radicalizada. O ponto negativo
as tradicionais relações de gênero sem, no entanto, da obra é o fato de que entre seus interlocutores
apelar para partidos políticos. não estão as nações do Sul, mas apenas a esquerda
Seguindo essa linha de raciocínio, Laclau e e a realidade política europeia. Lopes, Mendon-
Mouffe salientam que o foco central de sua teoria ça e Burity, que assinam o capítulo introdutório
“é identificar as condições discursivas de emergên- da obra, afirmam que Hegemonia se concentra no
cia de uma ação coletiva que objetive a lutar con- contexto teórico-político da Europa ocidental e da
tra desigualdades e a questionar relações de subor- Rússia, deixando de lado as mudanças democráticas
dinação” (p. 236). Além disso, os autores buscam ocorridas nos países latino-americanos. Esse fato é
elucidar também o papel dos chamados “novos responsável, justamente, por algumas das principais
movimentos sociais”, os quais se articulam, por críticas direcionadas à obra.
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Todavia, esta lacuna não inviabiliza a obra de MENDONÇA, Daniel de. (2015), “As jornadas
ser utilizada na compreensão da realidade política de junho e a vontade dos iguais”, in Luis Felipe
e social dos países da América Latina. Muito pelo Miguel et al. (orgs.), A democracia face às de-
contrário, a experiência tem mostrado que a teoria sigualdades: problemas e horizontes, São Paulo,
da hegemonia desenvolvida por Laclau e Mouffe se Alameda, pp. 59-80.
tornou referência para incontáveis pesquisadores
latino americanos. No caso do Brasil, vários são os EVERTON GARCIA DA COSTA,
trabalhos que empregam as categorias teóricas pre- mestre em ciências sociais e licenciado em
sentes no livro para a análise da realidade brasileira. letras pela Universidade Federal de Pelotas, é
doutorando do Programa de Pós-graduação
Além disso, no país, a teoria da hegemonia mos-
em Sociologia da Universidade Federal do
trou sua riqueza teórica e capacidade de compre- Rio Grande do Sul. É integrante do Grupo
ensão social, sobretudo, após as Manifestações de de Estudos sobre a Universidade (GEU/
Junho de 2013, momento em que se tornou visível UFRGS Sociologia) e bolsista da Capes.
o caráter plural, fragmentário e contraditório dos E-mail: eve.garcia.costa@gmail.com.
conflitos políticos. Tal perspectiva pode ser vista em
trabalhos como os de Mendonça (2015) e Costa GABRIEL BANDEIRA COELHO,
(2015), por exemplo. mestre em sociologia e licenciado em
Ademais, o arcabouço teórico de Hegemonia ciências sociais pela Universidade Federal de
e estratégia socialista é mais do que uma simples Pelotas, é doutorando do Programa de Pós-
graduação em Sociologia da Universidade
teoria política; trata-se de uma obra rica em as-
Federal do Rio Grande do Sul. É integrante
pectos epistemológicos e metodológicos, aquilo do Grupo de Pesquisa em Tecnologia, Meio
que podemos chamar de uma filosofia/sociologia Ambiente e Sociedade (TEMAS). E-mail:
política do discurso. gabrielbandeiracoelho@yahoo.com.br.

DOI:10.17666/319208/2016
Notas

1 Fundada por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, a The


Essex School é uma instituição que se dedica às dife-
rentes abordagens – teórica, metodológica e epistemo-
lógica – em análise do discurso.
2 Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Universida-
de Federal de Pernambuco e Universidade Federal de
Pelotas, respectivamente.
3 A Escola de Altos Estudos em Teoria do Discurso foi
organizada pelo PPG em Educação da UFRJ; PPG
em Educação da UFMT; pelos PPGs em Educação,
Ciência Política e Ciências Sociais da UFPel; PPGs
em Educação e Sociologia da UFPE. O curso ocorreu
entre 15 de julho e 9 de setembro de 2013.

BIBLIOGRAFIA

COSTA, Everton Garcia. (2015), “As manifesta-


ções no Brasil vistas à luz da teoria do discur-
so”. Sociologia em Rede, 4: 15-36.

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