Pra que serve o futebol? A princípio temos que ceder as provocações,
geralmente das mulheres ou dos recalcados, de que são 22 marmanjos correndo atrás de uma bola, como que parafraseando o ditado ‘atrás de uma bola, sempre tem uma criança’. A minha mãe, a cada novo jogo importante, lança: por que não dar uma bola pra cada pra eles pararem de brigar? Claro, 22 bolas em campo seria um enorme exagero, mas duas, uma para cada time, resolveria todo o conflito. E acabaria com toda a graça. A graça do futebol, como a de qualquer jogo, está em aceitar as regras propostas e tentar, dentro delas, criar, subverter, inovar e, também, cumprir. Aliás, cumprir é o ponto principal. Cumpridas as regras do jogo temos a base para a própria continuação desse jogo. Cumpridas as regras podemos começar a fruição. Isso no jogo.
No fundo o jogo é uma forma de passatempo. Estamos sempre inventando
maneiras de passar o tempo dessa (sabida curta) existência, de preferência de maneira prazerosa. Ou, mais do que prazerosa, de maneira lúdica. Johan Huizinga, pesquisador e historiador do início do séc. XX, vai falar do homo ludens, dessa nossa essência como seres dotados da lógica do jogo, considerando este uma categoria primária da vida, presente até mesmo nos animais. Ele define jogo da seguinte forma: "O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da 'vida cotidiana’.".
Há de se ressaltar que talvez o próprio Huizinga, ao ver o futebol
(principalmente o futebol high protein de hoje), poderia considerá-lo como uma quase perca total do espírito lúdico, já que se perde num emaranhado ideológico de profissionalismo e marketing e numa ânsia cega por resultado, que tem nesse caso muito a ver com lucro. Pasmem: o futebol pode ter perdido sua relação com o jogo! Não é o caso de nenhuma afirmação e nem de criar nenhuma nova teoria, embora seja instigante avaliar as denuncias dos conspiratórios de que no futebol de hoje as coisas todas já estão arranjadas (o que pode parecer absurdo num primeiro momento, mas podemos lembrar de um tal campeão Juventus, na Itália, que acabou por perder os pontos ganhos pela descoberta de uma enorme rede de compra de resultados que envolvia árbitros, dirigentes e sei lá mais o que), mas de entender que, se o futebol como ícone do esporte não nos represente enquanto jogo, aonde exploramos nosso espírito lúdico?
O tal Huizinga vai falar do “fim em si mesmo” do jogo e o do “ser diferente da
'vida cotidiana'". Esse futebol que vemos pela tela da TV, ou mesmo no estádio mediante algum bom investimento em ingresso, parece estar muitíssimo longe da primeira questão e enganosamente perto da segunda. Um fim em si mesmo deixa de ser basicamente na vontade de ganhar a qualquer custo e nas significações diversas desse ganhar como superioridade de um bairro, de uma sala, de um povo ou de uma nação. Mesmo nos antigos times amadores de bairro e nas peladas despretensiosas entre amigos, a vontade exacerbada da vitória retira discretamente o fim em si mesmo, transpondo o futebol para as esferas dos conflitos étnicos/políticos/espaciais. Quantos racismos, homofobias e opressões não afloram numa mera pelada. E o que dizer dos jogos profissionais, regados a patrocínios milionários, salários exuberantes e falsas representações de bandeira? O fim em si mesmo passa longe, muito longe do gol. Tudo bem, isso é óbvio e aceitável, parecemos continuar gostando de futebol mesmo com os excessos confusos de símbolos que ele agora representa, mas e a diferença da vida cotidiana, ainda no resta essa esperança? Todo jogador ocasional sabe o prazer dessa quebra de rotina. O prazer de fazer coisas que nunca se imaginou capaz, o prazer de se correr e suar sem se importar porque se tem um objetivo, o prazer de ganhar quando se aceitou a possibilidade de perder e até o prazer que a frustração do próprio perder dá, fazendo-nos sentir batalhadores resistentes que lutaram bravamente até o ultimo homem em pé. Essa é uma quebra do cotidiano se considerarmos um cotidiano vazio de emoções e sentidos, sedentário e monótono, produtivista e previsível. Na atual forma de organização do trabalho, jogar uma partida sem compromissos é uma revolução. Tanto é verdade que muitos foram os times originados de grupos de operários que se uniam, a principio, para essa quebra lúdica da rotina. Escapamos, no jogo, da vida cotidiana que não tivemos opção de escolher. O futebol vai ganhando dimensões desproporcionais, se profissionalizando e tomando conta não mais dos momentos de quebra da rotina, mas de uma parcela dessa própria rotina. O futebol se torna obrigatório. Eu mesmo, aos 5 ou 6 anos de idade, fui abertamente induzido a gostar da coisa, ganhando inclusive um conjunto de vestimenta completa do São Paulo, uma camisa verde do Palmeiras e um chaveiro do Corinthians. Era a influência que cada tio queria exercer. O futebol está na TV. Reservamos a quarta a noite e o domingo a tarde. Os mais fanáticos reservam até parte do salário para esse investimento: ingressos, bandeiras, camisas, chaveiros, revistas e jornais. O futebol vai tomando conta da vida, mas não como objeto real e tangível, mas como abstração. Sentamos no sofá e vemos o jogo do outro. Acreditamos participar enquanto torcemos, mas sequer a energia do apoio passa através da tela, que aliás transmite tudo com alguns segundos de defasagem do real. O futebol é febre nacional. Febre amarela, verde e amarela. E a suposta diferença com a vida cotidiana só vem, na verdade, com o desligar da TV.
O futebol de hoje nos expropriou do caráter lúdico. Somos induzidos a estar no
jogo, mas estamos fora. E mesmo quando de fato jogamos, e os que jogam regularmente sabem muito bem que é assim, tudo se torna mecânico, agendado, competitivo, sisudo. A cerveja depois ajuda a descontrair um pouco, mas o quadro é de uma ludicidade mutilada, sem criatividade, sem espontaneidade, sem transcendência. Uma luta de melhores, de mais aptos, de mais atléticos. Uma simulação em quatro linhas de uma sociedade doente. O futebol só pode ser de fato jogo se for livre de imitar uma imagem do futebol, se deixar de imitar um suposto jogo para de ser um jogo autêntico (considerando ainda Huizinga). E num jogo autêntico, são muitos os que jogam nas mais variadas funções, dentro e fora do espaço concreto em que se desenrola o jogo. Não é o caso de chorar essa perda. É o caso sim de se rebelar. E coisas acontecem. Tem pelada no meio da rua com golzinho de chinelo que não foi filmada pra virar comercial de banco, tem futebol entre amigos que os cachorros da rua interferem nas jogadas e no posicionamento do time, tem copa rebelde, copa dos refugiados, copa de futebol de botão. E tudo isso tem torcida sim, torcida que joga junto. Tem jogo de verdade! E tem também outras muitas formas de se exercer o lúdico, que tão brilhantemente temos conquistado. Temos a aceitação de nós mesmos como homo ludens e nisso diversas ações no sentido de superar uma sociedade produtivista, utilitarista e coisificada. Surgem diversas novas relações com o jogo, não só através do que chamamos ‘esporte’, mas na quebra de limites entre conceitos como arte, trabalho, religião, produto, diversão... Aos poucos vamos percebendo que uma ponte pode não ser tão importante quanto um lugar pra se movimentar livremente e vamos remodelando a lógica do mundo para algo lúdico que privilegie nosso contato com si mesmo, com o outro, com a natureza e com o espaço construído. Vamos construindo um lugar em que tudo nos pertence, que a arte não está no outro que é artista, o jogo não esta no outro que é atleta, a verdade não está no outro que é pastor, o conhecimento não está no outro que é cientista, enfim, que todos são agentes e manifestam suas essências de maneiras próprias e compartilhadas. Não se trata apenas de fazer, fazer e fazer todas as coisas, não se aceitando na passividade e no recebimento, mas sim de ser ativo e pertencente mesmo como observador, de fruir junto também enquanto receptor. Trata-se de tirar qualquer um ou qualquer coisa do pedestal imaginário que nós mesmos criamos e de assumirmos a responsabilidade de significar a própria vida. Existir é um esforço que não podemos evitar.