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Corália, uma pequena república da América Central se

prepara para era espacial. Um rádio amador enviando ao


governo dos EUA uma exigência de cem mil dólares para
não matar milhares de pessoas. Um sultão hindu envolvido
com um desertor do MVD soviético num plano de
assassinato em massa.

© 1968 – Lou Carrigan


Publicado No Brasil Pela Editora Monterrey
Ilustração De Capa: Benício
JVS – 400627-401107
PARTE I
CAPITULO PRIMEIRO
Abram alas para Brigitte Montfort!
Um milhão de dólares em publicidade
Um pequeno país ingressa na era espacial

A porta do escritório de Miky Grogan, diretor do diário


nova-iorquino “Morning News”, foi bruscamente
escancarada e Frank Minello entrou, lançando um grito:
— Ateeenção...! Todo o mundo de pé!
A essa altura, Miky Grogan, o Furibundo, já dera em sua
cadeira um salto que quase o colocara em cima da mesa,
rosto desfigurado pelo susto, olhos arregalados. Os outros
quatro homens que estavam com ele também se puseram
instantâneamente de pé e ficaram olhando com expressão
do mais puro assombro para Minello, que por sua vez
pareceu a ponto de desmaiar.
— Che-chefe... — gaguejou. — Pe-pensei que estava
sozinho.
Agora o rosto de Miky Grogan era uma bola de fogo,
consumindo-se em sua clássica fúria. Entretanto, sem
dúvida devido à presença daqueles quatro alinhadíssimos
cavalheiros, conseguiu o impossível: conter-se.
— Que deseja, Frank? — perguntou mordendo as
palavras.
— Bem, eu.
— Por que nos fez levantar?
— Oh, eu só... só queria... Pensei que estava só e quis...
quisemos fazer-lhe uma brincadeira.
Miky Grogan fechou os olhos por um instante.
— Que brincadeira? — indagou suavemente.
— Bem... Mmm... Ai vai: ateeenção...! Todo o mundo
de pé! Abram alas para Brigitte Montfort!
Realmente, naquele mesmo instante, Brigitte aparecia na
porta da sala, com o jeito exagerado de uma vedete
saudando um público de ardorosos fãs. O rosto de Grogan
ultrapassou a tonalidade vermelha de sua chamejante ira,
derivando para o rubro intenso, quase negro... Estava tão
furioso, tão fora de si, que nem sequer podia falar. A única
coisa que fazia era tremer de uma raiva infinita, podia
resultar de imediato numa congestão cerebral. Sua boca se
abria e fechava, como em busca de ar, enquanto suas mãos
possantes estavam quase arrancando um pedaço da mesa.
Brigitte olhou para os quatro homens, sorrindo, e por
fim, com expressão compungida, para e seu chefe em
assuntos jornalísticos.
— Desculpe, Miky... Foi uma brincadeira tola, mas não
sabíamos que você estava ocupado. Perdoem, cavalheiros.
Houve quatro sorrisos, cada qual mais amável, cada qual
mais intencionalmente insinuante, enquanto quatro pares de
olhos se desgastavam a toda a velocidade percorrendo
aquele corpo que...
— Que deseja, Brigitte? — conseguiu articular Grogan,
por fim.
— Eu? Nada.
— Posso saber, então, por que veio à minha sala?
— Você me chamou.
Miky Grogan mordeu os lábios. Subitamente, parecia
cansado, triste, envelhecido.
— É verdade... Volte dentro de uma hora, por favor.
— Está bem. Lamento...
Um dos quatro cavalheiros adiantou-se, sempre sorrindo,
tão encantado com a vida que quase parecia um idiota.
— Não se desculpe mais, por favor, miss Montfort. Na
verdade, meus sócios e eu estamos encantados em conhecê-
la pessoalmente. Somos grandes admiradores de seu
trabalho.
— Muito obrigada — sorriu ela, deliciosamente. A que
trabalho se refere?
O homem desconcertou-se um instante.
— Ao seu magnífico trabalho jornalístico, naturalmente.
— Ah, sim... São todos muito amáveis, mister...
— Willougby. Permita-me que lhe apresente meus
sócios...
Apresentou-os. Um por um, foram apertando a mão da
mais bonita espiã do mundo, derretendo-se de puro prazer.
Grogan mantinha uma imobilidade granítica e Minello,
ainda na porta, sorria ironicamente, olhando para ele.
— Não tem nenhum trabalho a fazer, Frank?
— Não senhor.
— Pois arranje um! Fora!
Minello franziu a testa. Mas Brigitte sorriu para ele,
agitando a mão em despedida.
— Pode ir, Frankie. Estes cavalheiros me protegerão da
cólera de mister Grogan... Não é certo, senhores?
Houve um “sim” absoluto, enquanto os quatro olhares se
dirigiam torvamente ao diretor do “Morning News”,
dominados pelo encanto mágico de Brigitte. Minello saiu,
embora de má vontade. Brigítte sacou um cigano e quatro
isqueiros acessos aparecerem diante dela. Aceitou a chama
do que estava mais perto, expeliu um fino jato de fumaça e
olhou amavelmente os quatro homens.
— Espero que não tenha vindo perturbá-los...
— Oh, não! — exclamou Willougby. — Estávamos
conversando com mister Grogan sobre a possibilidade de
lançarmos uma intensa campanha publicitária através do
“Morning News”, miss Montfort.
— Chamou-me para isso, Miky?
— Não, não. Era para outra coisa.
— Nós é que estamos querendo... gozar de sua presença,
miss Montfort. Para dizer a verdade, sua coluna no
“Morning News” foi a razão principal que nos trouxe aqui
para contratarmos a publicidade de nossos produtos. Mas,
infelizmente, o preço pedido por mister Grogan parece-nos
excessivo. Em outros jornais nos cobrariam muito menos
por uma campanha idêntica.
— Sem dúvida... — sorriu Brigitte. — Mas eu não
trabalho para outros jornais, mister Willougby.
— Certo... Mas, não obstante o tato de, com sua coluna,
fazer com que o “Morning News” se venda muito, não vejo
razão para aceitarmos o preço de mister Grogan.
— Compreendo. Quanto pensam inverter nessa
campanha?
— Setecentos e cinqüenta mil dólares.
— Oh! É muito dinheiro.
— Mister Grogan nos pede um milhão.
— É mais dinheiro ainda — tornou a sorrir Brigitte.
— Demais. E gostaríamos de ouvir uma razão capaz de
convencer-nos de que devemos gastá-lo.
— Bem, dêem-me os senhores uma só razão pela qual
não o devam fazer.
Os quatro homens se entreolharam, atrapalhados.
— É que uma diferença de duzentos e cinqüenta mil
dólares parece-nos considerável, miss Montfort.
— Quer se casar comigo, mister Willougby?
— Co-como...? — espantou-se o interpelado.
— Perguntei-lhe se quer se casar comigo.
— Bom, suponho que seja uma brincadeira... Mas se
está falando sério, pode marcar o dia e a hora. Sé mesmo
um louco não aceitaria sua mão.
— Muito obrigada. Mas, pensando melhor: não seria o
mesmo para o senhor casar com a minha vizinha?
— Com... sua vizinha?
— Sim. Eu lhe pediria como presente de casamento um
bonito colar de pérolas, que certamente lhe custaria meio
milhão de dólares, além de umas pequenas coisas mais que
completariam um milhão... O senhor aceitaria?
— Claro que sim!
— Pois faria mal. Aconselho-o a casar com a minha
vizinha, mister Willougby, porque ela é milionária e não lhe
pediria nada. Tem tudo de sobra. Inclusive anos...
Completou setenta e três a semana passada.
— E por que hei de casar com ela podendo fazê-lo
consigo?
— Porque economizaria um milhão de dólares de
presentes. Ela se contentaria com o casamento. E o senhor,
de qualquer modo, teria uma esposa.
— Mas muitíssimo diferente da outra!
— Pensa mesmo assim, mister Willougby? Eu lhe sairia
muito mais caro, mas — piscou-lhe um olho — o senhor
teria sua felicidade garantida. A velha dama certamente o
faria menos feliz, não?
Os outros três puseram-se a rir. Willougby acabou rindo
também. Miky Grogan estava aterrado e passava um lenço
pela testa suarenta, vendo desabar sobre ele a tragédia...
— E então mister Willougby, que decide: velhota grátis
ou senhorita cm perfeitas condições por um milhão de
dólares? E, por favor, não queria regatear comigo: sairia
pela janela.
Riram novamente os quatro. Willougby acabou lançando
um profundo suspiro de decepção.
— Por um momento, acreditei que estivesse falando
sério, miss Montfort. De acordo: assinarei esse contrato,
mister Grogan. — Riu. — Prefiro casar-me com a senhorita
em perfeitas condições que com a velhota... Diabo!
Riram os quatro mais uma vez. Grogan fez “ah, ah, ah”,
muito pouco convencido. Quando os quatro cavalheiros se
despediram, o diretor do “Morning News” olhava ainda
incredulamente o contrato que ia proporcionar ao seu jornal
um ingresso de um milhão de dólares em publicidade.
Ergueu a cabeça, olhou para Brigitte, abriu e fechou a boca
várias vezes, depois indicou o contrato.
— Eles... eles assinaram...
— E por que não?
— Santo Deus! Ainda não compreendo... Mas temos que
celebrar!
— Boa idéia.
Grogan dirigiu-se ao bar embutido que tinha em seu
escritório. Abriu o compartimento refrigerador e tirou uma
garrafa de champanha, que mostrou triunfalmente a Brigitte.
— Conhece? — perguntou sorrindo.
— Conheço: “Perignon-55”. Acha que mereço tanto,
amado chefe?
— Você merece isto e muito mais, querida... Oh, não
temos cerejas!
— Eu trouxe as cerejas.
— Trouxe? — ele ficou estupefato. — Você anda por aí
carregando cerejas na bolsa?
— Só quando vou precisar delas.
Ante o pasmo de Grogan, abriu a bolsa e retirou um
frasco de cerejas, que deixou sobre o bar. Depois apanhou
duas taças, colocou uma cereja em cada um e bateu palmas,
alegre.
— Voilá!
Mas Miky Grogan estava ainda tão surpreendido que
não conseguia reagir. Ela retirou-lhe suavemente a garrafa,
abriu-a e encheu as taças. Entregou uma ao chefe e sorriu.
— Tim-Tim.
— Hã...? Oh! Tim-tim!
Beberam, Grogan sempre envolto naquele olhar azul
doce e irônico ao mesmo tempo. Brigitte sentou-se numa
poltrona, mostrando as belíssimas pernas até limites
temerários.
— Para que me mandou chamar antes?
— Ah, sim— Grogan sentou-se também numa poltrona.
— Você terá que viajar, Brigitte.
— Para onde? — alarmou-se ela.
— Estados Unidos do Coral.
Brigitte soltou um suspiro de alívio.
— Assim está bem... — admitiu. — Em pleno trópico,
ou pouco menos. Não me sinto feliz no clima da Antártida1.
— Mas desforrou-se em Acapulco — sorriu Grogan.

1
ver: Alarma no Pólo Sul
— Assim é a vida... Maus bocados, bons bocados! Que
tenho a fazer nos Estados Unidos do Coral? Espionagem ou
jornalismo? Ou ambas as coisas ao mesmo tempo?
— Não, não. Apenas jornalismo. Você deve saber que os
coralenses tencionam lançar brevemente no espaço um
satélite artificial.
— Li alguma coisa a respeito. Mas são noticias um tanto
confusas, contraditórias...
— Essa é a questão: o “Morning News” não vai oferecer
noticias confusas, mas exatas. Para tanto dispõe de uma
jornalista que lhe custa mais de trezentos mil dólares
anualmente.
— Quem é essa jornalista? — fingiu assombrar-se
Brigitte.
— Deixe de tolice! — resmungou ele. — Você é quem
cobra essa quantia. Bom, que me diz de obter notícias
concretas e interessantes sobre esse lançamento dos
coralenses?
— Querido, sempre que você necessite de alguém que
queira trabalhar em climas tropicais, conte comigo. Irei,
naturalmente. Quando devo partir?
— O quanto antes. Consegui que um técnico espacial de
lá aceite sua visita ao Centro Espacial Universal. Chama-se
Diego Montalbán e estará à sua espera no aeroporto, se você
me disser em que avião irá para que eu o previna.
— Certamente partirei amanhã; depois lhe darei o
horário exato de minha chegada a Corália, a capital. E. um
país curioso, não lhe parece, Miky?
— Que tem de curioso?
— Além de sua situação privilegiada, quase tocando a
linha equatorial, ao norte das Ilhas Galápagos, tem de
curioso o particular de ser o único pequeno país capaz de
aventuras desta índole. É algo quase surpreendente.
— Nem tanto. Os Estados Unidos do Coral receberam
ajuda de diversos países adiantados para o lançamento de
satélites espaciais. Por exemplo: da Rússia, da França... e
dos Estados Unidos da América. Não só lhes
proporcionamos material, como permitimos que vários de
seus técnicos e cientistas estudassem em nossos centros
espaciais. Temos justamente o caso de Diego Montalbán,
que passou quatro anos em Cabo Kennedy. Isso, depois de
ter estudado numa universidade americana.
— O que não compreendo é que não facilitem
informações detalhadas à imprensa mundial. Quando um
país está em condições de lançar foguetes espaciais, pode
considerar-se orgulhoso de seu desenvolvimento científico.
Não vejo razão para que se deixe de fornecer o máximo em
notícias a todos os jornais.
— Quer-me parecer que não se sabe a data exata do
lançamento. Além disso, suponho que os coralenses não
estejam muito confiantes no êxito de tal empreendimento e
desejam ainda efetuar um último controle de todo o projeto.
Se tudo os satisfizer definitivamente, darão a notícia
detalhada e completa ao mundo.
— Mas a essa altura, o “Morning News” já terá
publicado tudo com referência ao assunto, não é assim?
— Exato — sorriu Grogan. — Por isso, você lá irá. E
quando os outros jornais puderem dar a notícia com todos
os detalhes, nós já a teremos esquecido, de tão velha.
— Esplêndido... — Brigitte olhou divertida para sua
taça, com a cereja no fundo. — Você me mentiu, Miky.
— Como? Eu lhe menti em quê?
— Disse que me enviava lá como jornalista e não é
verdade. A verdade é que, embora enviando aos Estados
Unidos do Coral a jornalista Brigitte Montfort, você espera
que a agente “Baby” entre em funções para averiguar o que
ninguém queira dizer. Portanto, você envia a jornalista e a
espiã.
Grogan mexeu-se em sua cadeira.
— Bom... Afinal de contas, todos os jornalistas são um
pouco espiões, não é?
— Mas nem todos os espiões são “Baby”, querido.
— Está bem, está bem... Que pretende?
— É simples: já que está enviando duas pessoas
distintas, pague pelas duas. Naturalmente, Brigitte Montfort
realizará seu trabalho jornalístico sem cobrar nada, exceto, é
claro, os gastos de viagem, alojamento e coisas assim. Mas
a agente “Baby” é caríssima, Miky.
— Quanto? — grunhiu Grogan.
— Um sorriso.
— Quê?
— Um sorriso. Sorria uma vez, uma só vez, e terá
pagado o altíssimo preço da agente “Baby”. Vejamos esse
sorriso...
Miky Grogan enrugou a testa. Mas, inevitavelmente,
teve que sorrir. E o fez de muito boa vontade, certamente.
— Você é... é única, Brigitte. E eu a adoro!
— Pois o demonstre com mais freqüência, querido —
suspirou ela; terminou sua taça de champanha. — Bem...
Creio que devo preparar-me para a viagem. Mandarei-lhe
um postal quando chegar lá.
— Conto com ele. Divirta-se, querida.
— Tentarei. Até a vista, Miky.
Estendeu-lhe a mão, que ele levou aos lábios, sorrindo.
— Até a volta, formosa espia.
Brigitte saiu da sala. Quinze minutos mais tarde, quando
Grogan estava novamente imerso no trabalho, Minello
tornou a aparecer, tão brusco como sempre.
— Então, está contente? — perguntou.
Grogan olhou-o intrigado.
— A que se refere?
— A isso de mandar Brigitte para longe de mim. Tenho
certeza de que faz de propósito, para impedir que eu a
conquiste. Bom, onde está a taça que ela usou? Também
quero tomar champanha com cereja.
Foi ao bar, apanhou a taça que lhe pareceu de Brigitte,
lançou-lhe quatro ou cinco cerejas dentro e encheu-a de
champanha. Grogan o ornava de cara amarrada.
— Será melhor que volte ao seu trabalho, Frankie. E
procure habituar-se a entrar em minha sala com bons
modos.
— Ah! Mas que ingrato é você!
— Ingrato? Oh, bem, refere-se ao fato de Brigitte ter
resolvido aquele assunto, não? Pois bem: não sou mal-
agradecido. E dou prova disso deixando-o tomar meu
champanha. Justamente por admitir que da inoportuna e
escandalosa chegada de vocês resultou algo bom. Mas não
abuse.
Frank Minello aproximou-se dele, remexendo
fortemente dentro da orelha com um dedo.
— Terei ouvido bem? — perguntou. — Disse que nossa
chegada aqui foi inoportuna?
— Bom... Digamos casual, para não ofendê-lo.
— Casual? — Minello ergueu os braços para o teto, com
a taça numa das mãos. — Este sujeito está louco, meu
Deus! Diz que nossa chegada foi casual!
— E não foi? Eu tinha visitas aqui, vocês chegaram,
minhas visitas gostaram de Brigitte, inevitavelmente... e ela
então convenceu-os. Casualidade.
Frank Minello olhou comiserativamente o seu chefe.
— Eu me pergunto — murmurou — como foi que você
chegou a ocupar esta sala. Tem menos discernimento que
um queijo da Holanda... Aqui não houve nada casual,
entende?
— Que está dizendo?
— Diabo, é bem claro! Você mandou chamar Brigitte,
ela demorou um pouco e quando telefonou a essa boboca
que está aí fora e exerce as funções de sua secretária
perguntando se podia vir então, a boboca que está aí fora
disse que você estava muito ocupado e afobado. Brigitte
perguntou-lhe o motivo da afobação e a boboca lhe explicou
o assunto da campanha de publicidade, o impasse criado
pela questão do preço e tudo o mais. Então, Brigitte mandou
um boy comprar cerejas e, enquanto o garoto ia e vinha,
explicou-me o que ela e eu íamos fazer. E foi assim que, tão
logo chegaram as cerejas, viemos os dois até aqui, fizemos
toda a comédia, ela entrou e conseguiu realizar o que se
havia proposto: ajudá-lo a obter esse contrato de
publicidade por um milhão de dólares. Casualidade!
Quando eu digo que você não enxerga um centímetro além
da ponta do seu enfurecido nariz... Ora, vá para o inferno,
ingrato!
Bebeu de um trago a taça de champanha e abandonou a
sala, mastigando furiosamente as cerejas.
Mike Grogan, imóvel, estava com a boca aberta.

CAPÍTULO SEGUNDO
O homem dos camarões
Uma conversa espacial
Simplesmente fantástico: nem mortes, nem lutas, nem espionagem...

E Miky Grogan devia estar ainda com a boca aberta


quando, trinta horas mais tarde, isto é, às dezessete do dia
seguinte, a jornalista Brigitte Montfort chegava a Corália2,
capital dos Estados Unidos do Coral, em vôo semidireto
desde Nova Iorque.
Após descer a escadinha, tão logo pusera os pés em
terra, dois homens adiantaram-se para ela. O mais velho
devia ter cinqüenta anos. Era de estatura mediana,
ligeiramente obeso, suarento, bastante calvo; parecia
inteligente, devido ao olhar astuto de seus pequenos olhos
pardos. Um tipo vulgar, entretanto.
O outro, não. O outro não tinha nada de vulgar,
começando por seus profundos olhos negros, seu queixo
firme, seus ombros de atleta. Devia medir mais de um metro
e oitenta e todo o seu aspecto denunciava um notável vigor
físico. Estava muito tisnado pelo sol e a severa expressão de
seu rosto parecia indicar uma poderosa personalidade.
— Miss Montfort?
— Sim...
— Sou Diego Montalbán — disse o atlético jovem. —
Mister Grogan mandou-nos de Nova Iorque um telegrama
avisando de sua chegada. Se permitir, nos encarregaremos

2
aqui, como em tantas outras vezes anteriormente, o autor utiliza o
recurso do pais imaginário (NE)
de tudo. Peço-lhe que me entregue os talões de sua
bagagem.
Brigitte entregou-lhe os talões e Diego Montalbán fez
sinal a dois homens que esperavam um pouco afastados, aos
quais incumbiu de retirar a bagagem. Pareceu então dar-se
conta de seu descuido e sorriu ao pedir desculpas.
— Perdão... Este senhor é Pedro Morales, meu grande
amigo e o melhor técnico com que contamos no Centro
Espacial Universal. Pedro, esta, como já sabe, é miss
Brigitte Montfort, do “Morning News” de Nova Iorque.
O homem calvo de mediana estatura e olhos astutos
apertou sorridente a mão de “Baby”.
— É um prazer, miss Montfort. Entendo que nos
devemos sentir honrados com sua presença em Coral.
— Não compreendo, señor Morales...
— Quero dizer que, segundo me consta, nos enviaram
uma das melhores repórteres de seu país. Isso nos
envaidece.
— Envaidece a mim, señor Morales — sorriu Brigitte.
— Agradeço-lhe a gentileza.
— Temos um carro à espera — disse Montalbán. —
Primeiramente trataremos da obtenção do seu visa, o que
nos tomará apenas alguns minutos, depois a
acompanharemos ao hotel onde lhe foram reservados
aposentos. Desejamos que sua permanência em Coral seja
agradável, miss Montfort.
— Muito obrigada.
Em poucos minutos, realmente mercê da influente
presença de Diego Montalbán e Pedro Morales, as
formalidades aduaneiras e do visa foram cumpridas.
Quando chegaram ao grande carro negro, a bagagem de
Brigitte já tinha sido colocada no porta-malas. Tudo
cômodo e rápido. Poucas vezes havia encontrado a espiã
internacional tantas e tão amáveis facilidades para entrar
num país. O idioma nacional era o espanhol, mas Pedro
Morales e Diego Montalbán falavam perfeitamente o inglês,
pelo que Brigitte resolveu silenciar seus conhecimentos do
castelhano.
Morales sentou-se na frente, junto ao chofer, e
Montalbán ocupou, com Brigitte, o banco traseiro, dando
uma ordem:
— Ao “Galápagos”, Adriano.
— Pois não, don Diego.
O grande carro pôs-se em marcha. Brigitte sorriu como
uma mocinha tímida e pareceu que queria dizer alguma
coisa, embora não se atrevesse. Diego Montalbán
demonstrou sua perspicácia, perguntando:
— De que se trata, miss Montfort? Pode pedir o que
deseje. Tanto Pedro como eu estudamos nos Estados Unidos
e gostaríamos de corresponder de algum modo as atenções
que recebemos lá.
— Não quisera incomodar demasiado...
— De modo algum! — protestou Pedro Morales.
— Neste país, miss Montfort, não só somos corteses,
como também faríamos qualquer coisa para satisfazer uma
bela jovem. Que queria dizer-nos?
— Gostaria... Oh, é um capricho tolo, mas gostaria de
não ir para um hotel.
— Não ir para um hotel? — repetiu Montalbán.
— Desculpe, mas não compreendo...
— Preferiria ficar mais... isolada. Vou lhe dizer a
verdade, señor Montalbán: adoro os países tropicais.
— Bem, mas... — sorriu ele, algo perplexo. —
Desculpe, continuo sem entender.
— O trópico me encanta, com suas praias de areia
brilhante, suas palmeiras, seu mar de um azul tão
profundo... Gostaria de alojar-me numa vila perto da praia,
não numa suíte de hotel. Isso é o que tenho em Nova
Iorque.
— Ah, sim! Agora compreendo — sorriu
simpaticamente Montalbán. — Prefere um bangalô junto do
mar.
— Exatamente! Seria isso possível, señor Montálban?
— Creio que poderemos satisfazê-la — olhou para o
chofer. — Adriano, leve-nos pelo desvio do “Galápagos”
até a zona de bangalôs chamada “Cielimar”.
— Está bem, don Diego.
O carro continuou sua marcha. Durante uns segundos,
ninguém pareceu saber o que dizer, Por fim, Pedro Morales
pigarreou, voltou-se em seu assento e olhou afavelmente
para Brigitte.
— Fez boa viagem? — perguntou.
— Muito boa. Estou acostumada a voar.
— Por si mesma?
— Como?
Diego Montalbán sorriu.
— Pedro está dizendo, certamente, que um anjo não
precisa das asas de um avião para voar.
— Oh! — Brigitte pôs-se a rir. — Sinto decepcioná-lo,
señor Morales, mas sempre voei de avião. Temo que não
seja nenhum anjo.
— Creio que está equivocada — sorriu Morales.
— Pedro tem cinqüenta e um anos — disse Montalbán,
sempre imperturbável, seguro de si mesmo. — Mas quando
vê uma mulher bonita retrocede Vinte.
— O señor Morales é muito simpático e gentil... E oxalá
fosse verdade que eu o pudesse fazer voltar aos trinta. Seria
um prazer para mim.
— Se continuar falando desse modo — riu Morales —
creio que retrocederei mais de vinte anos. É solteira, miss
Montfort?
— Sim...
O simpático Pedro Morales esfregou alegremente as
mãos.
— Ótimo! — exclamou. — Teremos que dar um jeito
nisso!
— Pedro também é solteiro — informou Diego. — mas
parece que tal situação já não é de seu agrado.
Brigitte tornou a rir, enquanto Morales acariciava
pensativamente o queixo.
— Lembro-me de um velho amigo que não podia tolerar
camarões... Dizia que eram uns bichos feios e repugnantes.
Durante alguns anos de nossa juventude, cada vez que nos
serviam camarões, ele os transferia para o meu prato. Eu,
naturalmente, não protestava. Simplesmente, comia os
camarões. Um dia chegamos a um povoado na costa de San
Salvador, onde só havia camarões para comer. Estávamos
com tanta fome, que o meu amigo teve que optar entre
comer camarões ou morrer. Aquele foi um mau dia para
mim... Meu amigo comeu camarões.
Calou-se. Brigitte acendeu um cigarro.
— E então, señor Morales?
— Bom... Meu amigo me disse que eu era o perfeito tipo
do canalha. Naturalmente, respondi-lhe que ele jamais havia
querido comer camarões, ao que ele replicou que se eu lhe
tivesse dito seriamente como eram saborosos os camarões,
ele os teria comido sempre. Estava muito zangado comigo.
— Moral da história? — perguntou Brigitte.
— Ninguém pode saber se os camarões são bons até que
os tenha provado. Penso que o mesmo se poderia dizer do
casamento.
Todos riram. Inesperadamente, Diego Montalbán
perguntou:
— Entende de técnicas espaciais, miss Montfort?
— Não muito, na verdade. Toda essa coisa de espaço
parece-me um pouco irreal.
— Irreal?
— Sim... Mas, sobretudo, desnecessária.
Pedro Morales e Diego Montalbán olharam-na como se
ela tivesse dito a maior atrocidade do mundo. Pareceram
quase assustados... e bastante decepcionados
— Muitas pessoas pensam que o dinheiro empregado
nas investigações espaciais teria melhor aplicação em coisas
mais úteis, em maior proveito da humanidade. Pertence a
essa classe de pessoas, miss Montfort?
— Não, não... — protestou Brigitte. — Claro que não.
Admito muito bem a idéia de que o homem queira conhecer
o que chamamos espaço exterior. E é natural que se
realizem esforços neste sentido, já que possuímos os meios
para fazê-lo. É bom saber onde estamos e o que nos rodeia.
Parece-me justo que se empreguem milhões de dólares
nesses estudos. Mas tenho a impressão de que nada servirá
de nada.
— Em que sentido?
— Bem... Por exemplo, sabemos que a Lua está
praticamente ao nosso alcance. Mas acontece que na Lua o
meio ambiente não é favorável ao homem. Isso significa
que, embora cheguemos lá, não poderemos fazer nada. Na
Lua não parece que haja ouro, nem diamantes, nem
alimentos, nem fontes de medicamentos novos. É um
satélite que não vale nada. Neste sentido, creio que Marte
ainda vale menos. Para que irmos lá se nada de bom
conseguiremos com isso para a humanidade?
— Mas miss Montfort... — escandalizou-se Montalbán.
— Entretanto — sorriu ela — creio que os esforços são
dignos de elogio. É indubitável que se a procriação humana
prosseguir neste ritmo, dentro de alguns milhares de anos a
Terra se tornará pequena. Então, teremos que enviar a
outros planetas ou a satélites uma boa pane da população
terrestre. Se nos pusermos a pensar nisso, compreenderemos
que dentro de alguns milhares de anos o Banco da América
terá sucursais em Plutão, Saturno, Urano... e Marte, sem
dúvida. Daria qualquer coisa para ver esse tempo em que,
com meio dólar, se poderão comprar dois cachorros-quentes
em Marte, uma raqueta de tênis em Júpiter e um pacote de
chicletes em Vênus. Será fantástico.
— Está zombando de nós, miss Montfort — murmurou
Morales.
— Não... — disse Montalbán. — Ela está dizendo que
acredita que chegaremos a todos esses lugares... Mas ao
mesmo tempo, pergunta-nos para que queremos chegar a
eles.
— Ora que pergunta! Queremos chegar lá para... para...
para...
— Para que, señor Morales? — sorriu Brigitte.
— Mmm... Para chegar.
Pedro Morales abespinhou-se.
— O homem é o dono de todo o universo — resmungou.
— Portanto, é natural que queira estar em toda parte.
— Sem dúvida, señor Morales — sorriu Brigitte; levou
o cigarro aos lábios, depois perguntou ingenuamente: — Já
esteve no México?
— Não...
— Na Rússia?
— Não...
— Na Espanha? Não, não...
— Na Austrália?
— Não...
— É surpreendente. Não acaba de dizer que o homem
deve estar em toda parte?
— Eu falava do universo.
— E eu falo da Terra. Por favor, não me interprete mal:
sou uma entusiasta de tudo o que significa ampliar os
conhecimentos humanos. Qualquer inovação ou renovação
é por mim bem acolhida. Temos, por exemplo, o assunto
dos transplantes orgânicos... Acredita que eu tenha doado
meu corpo a uma instituição norte-americana?
— Seu... seu corpo?
— Todo meu corpo. Suponhamos que eu morra num
acidente, de tal modo que meus órgãos vitais fiquem
aproveitáveis. Pois bem, autorizei certa instituição a, em tal
caso, aproveitar de meu corpo tudo o que for possível.
Tudo, señor Morales: quero morrer sabendo que poderei ser
útil a outras pessoas.
— Mas não acredita que investigar o espaço seja de
utilidade para o gênero humano.
— Por que não? Afinal de contas, o bom Deus é
demasiado esperto para nós. Por que não havemos de
acreditar que no espaço exterior deixou algo de bom para os
pobres terrestres, algo que está esperando que encontremos
sem sua ajuda?
Pedro Morales lançou um suspiro de derrota.
— Puxa, miss Montfort! Creio que não me casaria
consigo, afinal?
— Por que não? — sorriu ela.
— Porque raciocina bem demais... iria amargar minha
vida.
Agora, até o motorista riu. Diego Montalbán olhou
atentamente para Brigitte. Parecia que sua inicial
indiferença cortês para com a belíssima jornalista havia
desaparecido no tempo e no espaço.
— Estamos chegando ao “Hotel Galápagos” —
informou. — Há uma zona muito ampla, para o norte,
destinada ao que nos Estados Unidos se chama “motel”.
Tratarei de conseguir-lhe o melhor bangalô, miss Montfort.
— Junto do mar, se possível.
— Claro.
***
— É de seu agrado? — perguntou Montalbán.
— De meu agrado? — exclamou Brigitte. — Señor
Montalbán, asseguro-lhe que viajei por todo o mundo, mas
nunca tive um alojamento como este. Até fico triste.
Diego Montalbán surpreendeu-se.
— Triste?
— Muito triste... por não lhe poder demonstrar meu
agradecimento em toda sua amplitude.
— Ah, bem...
— Tudo é tão... tão maravilhoso! A praia junto ao
bangalô, a areia dourada, o sol, o mar azul, a brisa agitando
as palmeiras, este silêncio incrível. Como lhe poderei pagar
isto?
— De uma única maneira: seja benevolente para este
pequeno país que se lança numa grande aventura.
— Não creio que o que eu escreva tenha muita
importância...
— Oh, sim. Terá. Sabemos do prestígio de que goza no
mundo do jornalismo. Se disser “okay”, tudo irá muito bem
para nós desde o princípio. Podemos servi-la em mais
alguma coisa?
— Não, não me atreveria a pedir... Está claro que esse
gasto eu enfrentarei pessoalmente...
— Diga-me de que se trata.
— Vai pensar que sou uma jovem caprichosa e um
pouco amalucada, señor Montalbán.
— Não importa p que eu possa pensar. E nunca a
consideraria uma pessoa caprichosa, absolutamente. Que
mais necessita?
— Eu me conformaria com um pequeno iate... Bem
pequeno, com um bar, alguns livros interessantes e um bom
gravador cheio de música... E demasiado, não?
— Puxa! — tornou a exclamar Pedro Morales. — Não
há dúvida de que é uma pessoa de bom-gosto, miss
Montfort. Farei o possível para conseguir-lhe esse iate. E
que mais?
— Tenho a impressão de que acabo de ser coroada
rainha de um estranho país encantado... — riu Brigitte. —
Posso conseguir champanha nos Estados Unidos do Coral?
— Lhe mandarei uma caixa — disse Montalbán.
— Então — Brigitte deixou cair os braços, como
vencida — já não me atrevo a pedir mais nada. Seria
monstruoso. Ah, señor Montalbán, a respeito de minha
visita ao Centro Espacial Universal... Quando poderei ir lá?
— Amanhã de manhã?
— Esplêndido!
— Passarei para buscá-la às dez. Se lhe parece cedo
demais...
— Às oito — disse Brigitte.
— Às oito da manhã?
— Se lhe parece muito cedo... — sorriu ela.
— As oito em ponto — sorriu também Diego. —
Desejo-lhe um bom repouso, miss Montfort.
Os dois coralenses se despediram, prevenindo Brigitte
de que deixavam o carro à sua disposição perto do bangalô.
E durante o resto da tarde, a espiã dedicou-se a passear pela
praia, a ver voar as gaivotas, saltar os peixes-voadores no
mar cor de turmalina, admirar a brancura das ondas, o tom
avermelhado da areia ao ocaso, o balançar das palmeiras
sob o sopro mais forte da brisa... Da parte de Diego
Montalbán, por volta das oito da noite, chegou uma caixa de
champanha, junto com um enorme caixão cheio de livros de
toda espécie e um magnífico toca-discos acompanhado de
umas cinqüenta gravações de música internacional.
Às onze horas da noite, Brigitte Montfort quase se sentia
voar, sentada na areia da praia, com a água chegando a seus
pés descalços. O silêncio a seu redor transformava em
música o rumor do mar.
A lua parecia de ouro polido. As palmeiras já não se
moviam...
Fantástico.
Simplesmente fantástico.
Por fim, a tinham enviado a um lugar onde não haveria
mortes, nem lutas, nem ambições, nem espionagem de
espécie alguma!
Tudo era maravilhoso.
Que bom!

CAPÍTULO TERCEIRO
O Centro Espacial Universal
Uma órbita de todo inofensiva
Quem teria inventado os espiões?

— Suponho — disse Diego Montalbán — que tudo isto


lhe parece um pouco ridículo, miss Montfort.
— Por que fala assim? — protestou ela.
— Porque imagino que tenha visitado alguns dos centros
espaciais do Estados Unidos. Ou não?
— Sim. Estive em vários deles, claro. Mas tudo quanto
me ocorre depois de ter visto este aqui é que é um tanto
pequeno... Quanto ao resto, pareceu-me formidável, señor
Montalbán.
— É muito amável, miss Montfort. Bem, já viu tudo...
Terá constatado que, em sua maior parte, nossas instalações
são uma cópia das existentes em Cabo Kennedy. Decerto —
sorriu timidamente — isto se deve ao fato de que lá estive
por algum tempo e assimilei o mais possível a técnica de
organização norte-americana. Observe que tudo reproduz
quase completamente a aparelhagem daquele centro: os
sistemas de controle, as rampas e plataformas de
lançamento, os sistemas de rádio espacial, o equipamento
dos astronautas, os sistemas para o envio de fetos por
televisão... Inclusive a forma do projétil que colocará em
órbita nossa cápsula espacial se parece mais à dos projéteis
americanos que a qualquer outro. Veja-o — indicou através
de uma ampla janela o gigantesco projétil, em posição
vertical. — É exatamente uma cópia dos que têm sido
lançados em seu país. Esperamos que tudo saia bem.
A cerca de um quilômetro, diminuí do pela distância,
via-se em sua plataforma de concreto e aço o grande
monstro a propulsão por combustível líquido, destinado a
colocar em órbita o primeiro satélite artificial coralense.
Parecia todo feito de aço brilhante, com uns trinta metros de
comprimento, e seu aspecto era na verdade imponente,
formidável. Nos postes de controle, doze homens
dedicavam-se tenazmente à verificação dos aparelhos que
dias mais tarde deveriam estar em perfeitas condições, para
receber as mensagens irradiadas ou televisadas da primeira
cápsula enviada pelos Estados Unidos do Coral ao espaço.
Em grandes painéis seriam anotados as coordenadas
espaciais, os dados sobre o apogeu e o perigeu autênticos,
as diferentes pressões a que seria submetida a cápsula, a
absorção das radiações solares, o tempo, as velocidades, as
alterações de energia segundo a altitude... Tudo,
absolutamente tudo, parecia estar pronto para o lançamento.
Brigitte tinha razão. A única diferença entre aquele
centro e Cabo Kennedy, por exemplo, era uma diferença em
tamanho. Quanto ao resto, no que se referia à precisão
técnica, tudo se apresentava perfeito, podendo ser iniciada a
qualquer momento a contagem reversa.
— Sairá bem, señor Montalbán. Por que duvidar?
— As crianças sempre admiram os mais velhos. Essa
admiração, em última análise, significa o reconhecimento
de sua superioridade. Neste caso especifico, digamos que os
Estados Unidos do Coral quase se sentem um pouco
ridículos por quererem imitar os Estados Unidos da
América, a Rússia, a Inglaterra, a França...
— Qual será a órbita exata? Já foi calculada?
— Oh, sim — Montalbán olhou-a atentamente, como em
expectativa. — Bom, na verdade, esta é uma informação...
especial, miss Montfort.
— Informação especial? A que se refere?
Diego Montalbán passou a língua pelos lábios,
subitamente secos.
— A cápsula será tripulada — murmurou.
— Como? — exclamou Brigitte.
— Sim... Realmente, haverá uma surpresa mundial, bem
sei. O certo é que não nos limitaremos a lançar uma cápsula
sem responsabilidade alguma. Ela transportará um homem,
ou uma mulher.
— Mas isto é... sensacional, señor Montalbán! Espero
que se dêem conta da tremenda responsabilidade humana
que significa lançar uma pessoa numa primeira tentativa
desta natureza.
— O projeto teve aprovação de todos os controles e
provas. Estamos certos de que a... viagem não representa
perigo algum para o cosmonauta. Tudo foi calculado ao
milímetro. Dispomos de uma mulher e dois homens
perfeitamente adestrados. No momento oportuno, será
decidido qual dos três irá na cápsula. Oh, quanto à órbita,
pela qual demonstrou interesse, será a seguinte: partindo...
Venha, por favor.
Levou-a para junto de um grande globo terrestre, de
quase um metro de diâmetro, o qual fez girar até que os
Estados Unidos do Coral ficaram diante deles. Um de seus
fortes e tostados dedos pousou sobre a representação
geográfica do país.
— Partindo daqui, e a cápsula dará duas voltas ao redor
da Terra, com um apogeu de cento e quarenta quilômetros e
um perigeu de setenta, aproximadamente. A órbita cruzará
com leve inclinação o equador à altura da Nova Guiné,
continuará descendo para passar pela vertical do Cabo da
Boa Esperança, isto é, pela ponta meridional da África.
Passará depois por cima de Buenos Aires, ou por suas
proximidades. Cortará o Pacífico até chegar à vertical da
Nova Zelândia, ao Cabo Naturalista na Austrália, passará
novamente pela África, agora por sobre a vertical de
Madagascar. Seguir-se-ão o Golfo de Guiné, o Arquipélago
de Cabo Verde, norte das Bahamas, Flórida, centro dos
Estados Unidos, Califórnia... A partir daqui, o cosmonauta
controlará a cápsula para dirigi-la à Baixa Califórnia, o mais
diretamente possível ao encontre da linha equatorial.
— Isso significa que a cápsula cairá a pouca distância
dos Estados Unidos do Coral.
— A intenção é essa, naturalmente. Calculamos que
cairá no Pacífico, entre a Califórnia e as Ilhas Havaí. Claro
que o cosmonauta irá enviando as correspondentes
mensagens pelo rádio, a fim de que nossos barcos que
estejam à espera rumem imediatamente ao local da
amerissagem para recuperar a cápsula. Calculamos que esta
cairá na linha do trópico de Câncer, entre cento e trinta e
cento e quarenta graus de longitude oeste. É claro que a
zona será convenientemente controlada por diversos
sistemas atuais: radar, sonar, rádio, ondas magnéticas...
Nossa esquadra é pouco menos que uma... hipótese, mas
estará no lugar exato e no momento justo.
— Bom... — sorriu Brigitte. — É uma órbita inofensiva.
— Inofensiva? — surpreendeu-se Montalbán.
— Quero dizer que a cápsula não poderá ser acusada de
espiã.
— Perdão... não compreendo.
— Hoje em dia, señor Montalbán, as cápsulas espaciais
são verdadeiros centros de espionagem. Mas em seu caso,
não há cuidado, já que a cápsula passará uma só vez sobre
os Estados Unidos, já a caminho do mar, com poucas
probabilidades de fotografar nada interessante. Quanto à
Rússia, nem sequer está incluída na órbita. Trata-se de uma
casualidade, ou houve a intenção expressa de deixar de lado
a União Soviética?
— Casualidade... Asseguro-lhe que em nenhum
momento pensamos em... Oh, é absurdo! Não estamos
absolutamente preparados para realizar um programa de
espionagem espacial, miss Montfort.
— Parece que não. Bem, señor Montalbán, creio que
nestas quatro horas de visita ao Centro Espacial Universal
fiquei bem informada sobre o mais importante... e meu
apetite foi muitíssimo estimulado. Só há uma coisa
pendente para que eu me considere de todo satisfeita.
— Eu lhe expliquei tudo, parece-me... A que se refere?
— Aos astronautas. Não seria possível vê-los e talvez
conseguir deles uma entrevista?
— Bem... Temo que no momento isso seja impossível.
Tudo farei para que essa entrevista se realize amanhã,
prometo.
— Está bom... — suspirou Brigitte. — Voltarei então ao
meu paraíso particular.
— Se me permite, acompanho-a — disse Montalbán.
— Oh, não se incomode por favor...
— Não será incomodo. Pelo contrário. Preparei-lhe uma
pequena surpresa na praia, em frente ao seu bangalô.
***
A surpresa era um pequeno iate, completamente branco,
de vinte e cinco pés de comprimento. Estava ancorado bem
defronte ao bangalô de Brigitte e tinha o aspecto simpático
de haver gasto sua quilha cruzando os “sete mares”.
— Señor Montalbán... Isto é demasiado!
— Vamos vê-lo — sorriu ele. — Na verdade, miss
Montfort, sua presença aqui está significando umas
pequenas férias para mim. Ah: o iate chama-se “Pandora”.
Claro que não se pode comparar com o do marajá
Sadanjayan, mas...
— Marajá Sadanjayan? — riu Brigitte. — Tirou-o de
que conto das “Mil e Uma Noites”?
— Não é nenhum conto... O marajá Sadanjayan existe.
Está justamente em Coral, fazendo escala em sua viagem de
recreio ao redor do mundo.
— Suponho que seja uma brincadeira...
— Não sou dado a brincadeiras, miss Montfort.
— Sim, é algo que começo a perceber. Bom, vamos dar
uma olhada no “Pandora”, que afinal de contas é o iate que
me interessa, não o do marajá Sadanjayan. Teremos que
nadar?
Diego Montalbán quase enrubesceu.
— Desculpe! Não pensei nisso... Parece mesmo que
teremos que ir a nado até o “Pandora”. Mas se prefere
esperar, irei à procura de um...
— Oh, absolutamente. Sou boa nadadora, señor
Montalbán. Além disso, a distância é tão curta, que mais
que nadar será um prazer meter-me na água deste mar
delicioso. Vamos lá.
Num instante, Brigitte Montfort tirou a roupa, ficando
somente com as duas peças mais intimas, de um tom
vermelho que combinava admiravelmente com sua pele
dourada. Diego Montalbán só chegou a descalçar-se. Seu
olhar fixou-se naquele corpo, que embora muito sugestivo
dentro de um vestido, revelava-se simplesmente aniquilador
adornado por aquelas duas exíguas peças.
— Alguma coisa, señor Montalbán? — perguntou ela.
— Sim... Não... Oh, não, não!
— Ah, é que me pareceu impressionado...
Montalbán engoliu em seco. Depois, sem dizer nada,
despiu-se, ficando apenas de calção, com o que se tornou
evidente que aquele pequeno trajeto aquático até o
“Pandora” estivera previsto por ele desde o primeiro
momento.
Brigitte, correndo agilmente sobre a areia, lançou-se à
água antes dele, mas com poucas braçadas o atlético e
pintoso coralense a alcançou. Ultrapassou-a em seguida e
foi o primeiro a chegar ao iate. Uma vez a bordo, ajudou a
espiã mais bonita do mundo a subir. Já sobre o convés,
Brigitte fechou os olhos e, sem soltar a mão de Montalbán,
perguntou:
— Está ouvindo, Diego?
— O que?
— O mar... O mar, o vento, os gritos das gaivotas, o
sussurro das palmeiras... Ouve tudo isto?
— Não... Creio que não...
— Eu sim — murmurou ela, ainda sem abrir os olhos.
— Ouço, como uma embaladora música de fundo... Talvez
você não tenha estado nunca em Nova Iorque. É horrível. E.
como... como o bater de um coração gigantesco, que não
pára nunca, dia e noite. Um ruído monstruoso, que tudo
devora, tudo absorve... É como se a terra palpitasse. Ali
também existe mar, gaivota, vento... Mas nada disso se
ouve; apenas o ruído dos motores, das pessoas, das
máquinas, da vida febril de uma cidade com quase dez
milhões de habitantes... O mar é sujo, as gaivotas só vão ao
cais comer imundícies, o vento serve apenas para
incomodar, as pessoas nunca fecham os olhos, não há
palmeiras, nem areias douradas, nem... Não há nada. Nem
sequer homens: somente máquinas. Lá os homens também
são máquinas. Máquinas para trabalhar, máquinas para
descansar, máquinas para dormir, para comer, para amar...
Tudo se faz quando se deve fazer, de acordo com horários
previstos. À uma da tarde não se deve amar, porque é a hora
do almoço, ou de terminar o almoço... Assim é Nova
Iorque, minha odiada Nova Iorque.
Diego Montalbán passou-lhe um braço pela cintura, o
outro pelas costas. Sua mão grande e viril, tostada pelo sol,
deslizou lentamente por sobre aquela pele que parecia de
seda.
— Agora não estamos em Nova Iorque, Brigitte —
sussurrou.
Ela não respondeu. Nem sequer abriu os olhos. Sentia
em sua carne aquelas mãos grandes, fortes, duras e
acariciantes ao mesmo tempo. Seus doces lábios róseos se
entreabriram, oferecendo a promessa de um mundo novo ao
coralense.
Mundo novo.
Depois de beijar aqueles lábios adoráveis, que se
conservavam suaves e frescos sob o tórrido calor,
surpreendeu-se a si mesmo pensando naquele clima,
naquele lugar. Era verdade: podia-se ouvir a voz do oceano,
o sussurro do vento nas palmeiras... Podia-se sentir o
perfume das flores, o gosto do sal, o cheiro do mar e o
esplendor do sol abrasando tudo...
— Brigitte...
— Não fale, Diego. Vamos lá embaixo.
Desceram a escadinha que levava ao interior do iate. Era
um autêntico “encanto”, como ela o definiu. Havia um
pequeno salão com um divã, poltronas, bar e grandes
janelas de ambos os lados. Havia uma cozinha, quatro
camarotes e um compartimento para o rádio e o rádio-
telefone, que servia também ‘para guardar caniços de pesca
e equipamento para caça submarina.
Depois de verem tudo, regressaram ao pequeno salão.
Montalbán sentou-se no divã, sob uma das janelas.
— Creio que deve ser uma hora... — murmurou.
— Uma hora... Em Nova Iorque, a esta hora não há
tempo para o amor... Não há tempo para nada...
— Mas não estamos em Nova Iorque.
— Não — ela sentou-se junto a ele, olhando-o
intensamente. — Não estamos em Nova Iorque, Diego...
***
— Duas horas... — murmurou Diego, acariciando
meigamente os cabelos de Brigitte.
— Tem certeza, querido?
— Bom... Talvez um pouco mais, ou um pouco menos.
Você está gostando do “Pandora”?
— Estou... — sorriu ela. — Mas agora penso que os
nova-iorquinos têm razão.
— Em quê?
— Em que se deve comer alguma coisa. Você vem
comigo ao meu bangalô? Há de tudo lá, graças à sua
generosidade. E agora também você foi... generoso.
— Uma simples atenção para com uma jornalista famosa
— riu Diego Montalbán. — Gostaria de almoçar com você,
mas preciso estar no Centro às três em ponto.
— Oh...
— Como vê, até mesmo aqui o tempo e as horas têm sua
importância.
— Lamentável... mas inevitável. Quando nos tornaremos
a ver, Diego?
— Não sei... Amanhã, se você quiser, poderá conhecer
os astronautas. Como lhe disse, são dois homens e uma
mulher. Eu os apresentarei a você e poderá falar com eles.
— Não quero que você pense que, durante a hora que
passou, estive trabalhando para conseguir isso.
— Não penso, pode crer.
— Assim gosto mais. O que me desagrada é não nos
podermos ver até amanhã. Tanto trabalho você tem?
— Não! — riu Montalbán. — Já não tenho tanto... A
verdade é que esta noite... Espere! Você gostaria de ir a uma
festa a bordo de um iate fabuloso?
— O do marajá Sadanjayan?
— Exatamente! É um homem importante, simpático,
muito amável... Foi recebido pelo Governador e esta noite
oferece-Lhe uma festa em seu iate, para a qual foram
convidadas as principais personalidades do país.
— Sendo você uma delas, claro.
— Claro... — sorriu Diego. — Quer ir? Ao que consta,
lá poderemos beber de tudo, da coca-cola ao champanha...
Haverá música, um ambiente simpático. Você ficará
conhecendo quase todas as pessoas importantes de Coral. E
o marajá, naturalmente, que é pessoa interessantíssima.
— Nunca vi um marajá ao natural... E creio que já é
tempo, querido.
— Não se faça ilusões — advertiu risonhamente
Montalbán. — Ele já é casado com uma belíssima mulher
de sua raça.
— Que lástima! — riu também Brigitte. — Adeus
minhas esperanças de converter-me em maarâni! Imagino
que essa dama hindu esteja sempre constelada de pedras
preciosas: rubis, esmeraldas, diamantes, safiras...
— Nunca pus meus olhos sobre ela, mas dizem que é
mais formosa que a luz do sol.
— Você é um antipático, Diego.
— Bem... Mas acontece que você é a lua... e eu gosto
mais da lua que do sol.
Brigitte sorriu, acariciando suavemente o peito
musculoso do coralense. Depois rodeou-lhe o pescoço com
os braços.
— A que horas você irá me buscar?
— As Oito. Outra vez às oito. Mas não sei se devo fazer
isso, Brigitte. O marajá vai se aborrecer comigo.
— Aborrecer-se por quê? O que você está dizendo?
— Ele não gostará que eu leve ao seu iate uma mulher
mais bonita que a sua. E, sem dúvida, sabendo amar muito
melhor do que ela.
O beijo foi como um súbito relâmpago. Brigitte teve que
afastar Diego, sorrindo docemente, pois ele a abraçara com
renovado ardor.
— Quieto. Tenho que almoçar, dormir a sesta... E você
precisa comparecer ao Centro. Até logo, Diego. Fico aqui
mesmo, no “Pandora”. Precisa de mim para chegar à praia?
— Não! — riu ele, beijando-a. — Preciso de você para
outra coisa, não para nadar.
Pouco depois, Brigitte o via chegar à praia, apanhar sua
roupa e afastar-se em direção ao carro, parado sob as
palmeiras que davam sombra ao bangalô.
Acendeu um cigarro e deixou-se cair no divã, quase
adormecendo. Sentia-se feliz, tranqüila, com vontade de
sonhar acordada... A vida era bela, às vezes, simples,
amável, fácil...
Quem, em má hora, teria inventado os espiões?
CAPÍTULO QUARTO
O iate “Kolgatar”
Olhos azuis chocam-se com olhos negros
Um trio impressionante...

— Meu Deus!
Diego Montalbán estava a ponto de desmaiar. Diante
dele, num vestido de noite, Brigitte Montfort parecia mais
divina que nunca, como se sua pele dourada e, sobretudo
seus olhos de um azul puríssimo tivessem luz própria, de
uma intensidade ofuscante. Com os ombros e as costas
totalmente descobertos e um decote dos mais generosos,
ultrapassava os limites de qualquer descrição: vê-la e cair
em êxtase eram forçosamente a mesma coisa.
— Não está gostando, Diego? — sorriu.
Montalbán levou uns segundos para recuperar o fôlego.
Moveu a cabeça de um lado para outro, a fim de demonstrar
sua incapacidade de eloqüência e limitou-se a dizer:
— Vamos ao “Kolgatar”. Embora me pareça que estou
cometendo uma tolice, Brigitte. Eu não devia permitir que
ninguém a visse.
— Você é um egoísta... O “Kolgatar” é o iate do marajá?
— É... Kolgatar, em hindi, significa “Calcutá”. Santo
Deus, eu devo estar doido para não lhe pedir que fiquemos
os dois neste romântico bangalô... Você gostaria?
— Você me prometeu uma festa — disse ela. — E sendo
oferecida por um autêntico marajá indiano, espero que seja
exótica... Não gostaria de perdê-la, Diego.
— Claro... Enfim, vamos lá.
Saíram do bangalô. Ele fechou a porta e segurou Brigitte
por um braço, apontando para onde se viam as luzes do
“Hotel Galápagos”, mais para o sul, seguindo a praia.
— O “Kolgatar” está quase diante do hotel, numa
pequena enseada rochosa, abrigado dos ventos e da maré.
Veremos suas luzes quando estivermos mais perto... Que tal
se formos a pé, passeando?
— Acho uma idéia excelente.
Percorreram a praia, andando devagar, abraçados pela
cintura. Apenas quinhentos metros mais adiante, viram o
resplendor que parecia nascer do mar, entre os rochedos.
Caminhavam por um caminho de terra, entre flores e
palmeiras. Do mar, que ficava vinte metros à sua direita,
chegava o incessante rumor das ondas, O caminho subia
bruscamente para uns rochedos, atrás dos quais viam-se
agora com muito mais intensidade as luzes briilhantes do
“Kolgatar”.
E quando chegaram em cima, viram o iate, totalmente
iluminado, flutuando sobre águas negras que lançavam
cintilações intermitentes. Um iate formidável, de setenta e
cinco pés, imaculadamente branco, com dois conveses,
solário, um toldo vermelho cobrindo a popa, junto à
pequena piscina rodeada de pára-sóis e cadeiras extensíveis.
No convés superior não havia luz, com exceção das
regulamentares. Mas uma guirlanda de lâmpadas de cor,
que ia da popa à proa, transformava aquela parte do barco
num lugar estranho, como se nele ardesse um fogo de mil
cores. O convés inferior estava iluminado ao máximo,
dentro do elegante e conveniente, O “Kolgatar” não se
movia sobre as tranqüilas águas da enseada protegida dos
ventos e da maré.
— Então, que tal?
— É um belíssimo barco.
— Mas não a impressiona — sorriu o coralense.
— Oh, sim, O que acontece é que já vi iates tão belos
como este, Diego. Em Acapulco, em Miami, em Nice, no
Rio, em Palma de Maiorca... O que menos me agrada nesses
iates é o preço.
Montalbán riu e passou a mão pela espádua nua de
Brigitte.
— Vamos. Por ora, você terá que se conformar com o
pequeno, mas simpático “Pandora”... De acordo?
— De acordo sorriu Brigitte.
Chegaram ao pequeno embarcadouro natural, onde duas
lanchas de tamanho reduzido aguardavam para levar os
convidados a bordo. Em cada lancha estava um hindu
vestido à européia, mas de turbante, empunhando os remos,
pois fora julgado de melhor tom prescindir do motor,
demasiado escandaloso e desnecessário para tão curto
trajeto até o opulento iate.
Montalbán saltou primeiro à lancha e estendeu a mão a
Brigitte, para ajudá-la. Já a bordo, a espiã olhou o
impassível hindu e não pode evitar um estremecimento.
— Frio? — estranhou Diego.
— Não, não...
Era certo. Não sentia frio algum. Mas a recordação de
sua permanência em Benares3 e seus encontros com os
tugues assassinos da Índia tinha produzido aquele inevitável
calafrio.

3
ver: PEQUIM CHAMA BENARES
O hindu remava, imperturbável, para o “Kolgatar”. No
embarcadouro, dois casais impecavelmente vestidos em
trajos de soirée estavam abordando a outra lancha. Brigitte
olhou de soslaio o remador e disse consigo mesma que não
era bom pensar no ocorrido tempos atrás em Benares.
Felizmente, não acontecia nada em Corália, tudo ali era
maravilhoso. De modo que o mais sensato era que se
dispusesse a desfrutar ao máximo a fabulosa festa que sem
dúvida o marajá havia preparado.
— Como é o nome completo do marajá, Diego?
— Nadir Sadanjayan.
— E como é ele? Você já o viu?
— Já. É... Bom, posso economizar a descrição, pois
estará à espera de seus convidados, naturalmente. Aí o
tem...
Nadir Sadanjayan, marajá de qualquer província da
extensa Índia, estava, efetivamente, de pé junto à escadinha
do iate, pela qual deviam subir os convidados. De baixo,
enquanto a lancha se detinha, Brigitte olhou-o atentamente,
com sua habitual penetração psicológica.
A primeira impressão que Nadir Sadanjayan produzia
era de gigantismo. Sim, uma justificada impressão de
gigantismo, pois devia medir um metro e noventa, pelo
menos. Entretanto, sua elevadíssima estatura era
harmoniosa, elegante, atlética. Estava simplesmente
irreprochável em seu corretissimo smoking, seu turbante
vermelho no qual brilhava uma pedra preciosa, prendendo
uma pequena pluma. Sua tez era muito escura, bronzeada.
Usava barba e um bigode de pontas levantadas. Parecia-se
totalmente com as clássicas estampas do hindu de casta
superior, orgulhoso e arrogante. Seu rosto era enérgico,
como talhado em pedra.
E quando chegou em cima e viu aqueles grandes olhos
negros, como abismos sem fundo, Brigitte ficou
definitivamente impressionada. Decerto, tinha visto muitos
iates como aquele, em suas constantes andanças pelo
mundo. Mas nunca tinha visto um homem como Nadir
Sadanjayan, de tão vasta e bem proporcionada estatura, de
tão forte magnetismo pessoal. Apenas Número Um, seu
querido Número Um, sobrepujava em galhardia e virilidade
aquele estranho indivíduo de olhos abismais...
Ele inclinou-se cortesmente diante dos recém-chegados.
— Bem-vindo à minha casa do mar — disse em
perfeitíssimo inglês. — Nadir Sadanjayan muito se honra de
sua visita e declara-se seu escravo.
Quando se endireitou, Brigitte teve que erguer a cabeça
para poder olhá-lo nos olhos. E justamente então pareceu
brotar uma centelha daquela troca de ornares entre uns
maravilhosos olhos azuis e uns terríveis olhos negros. Foi
como um duplo impacto magnético, como se uma corrente
se estabelecesse de pronto entre ambos os pares de olhos.
— Diego Montalbán, Alteza — inclinou-se levemente o
coralense. — Apresento-lhe miss Brigitte Montfort,
jornalista norte-americana.
— Lembro-me de sua pessoa, señor Montalbán — sorriu
o marajá, mostrando os dentes branquíssimos. — Porém
ainda não tinha visto miss Montfort.
Estendeu a mão a Brigitte, que sentiu a sua perder-se
entre aqueles longos dedos finos e fortes, naquela palma
que tinha o dobro do tamanho da sua.
— Míss Montfort chegou ontem, Alteza. Espero não ter
sido incorreto ao convidá-la para vir ao “Kolgatar”.
Sadanjayan tomou a inclinar-se, sorridente.
— Incorreção teria sido não convidá-la, señor
Montalbán. Permitam-me apresentar-lhes minha esposa,
maarâni Ratna Jinnah.
Brigitte já tinha visto, naturalmente, a mulher que estava
à esquerda e um pouco atrás de Nadir Sadanjayan. Uma
mulher de menos de vinte anos, com o que Sadanjayan
devia excedê-la em quinze pelo menos no tocante à idade,
talvez mesmo em vinte. Uma jovem admirável, cuja
estupenda beleza só por perfeitos idiotas poderia ser posta
em dúvida. Tinha um rosto ovalado, uns lábios cheios sem
exagero, um queixo fino. Seus cabelos negros eram
repartidos ao meio e puxados para trás. Tal como o marajá,
vestia-se à européia, com elegância e distinção
verdadeiramente notáveis. Sua pele tinha um tom escuro,
azeitonado. Seu corpo esbelto, elástico, ostentava formas
admiráveis. Mas o que definitivamente tornava Ratna
Jinnah uma autêntica beldade eram seus olhas, grandes,
rasgados e um tanto oblíquos, absolutamente negros e de
um brilho extraordinário. Tinha sobre os cabelos um
pequeno diadema de pérolas, do qual pendia um enorme
rubi, que se situava exatamente no centro de sua testa. Na
verdade, uma mulher impressionante.
Mas tão impressionante com o marajá e a maarâni era o
animal que estava ao lado desta, preso por uma correia
ligada à coleira de ouro que lhe cingia o pescoço. Era um
grande chita de cabeça pequena e quartos traseiros
poderosos. Da família dos leopardos, o magnífico animal
sobressaía por sua soberba presença felina; imóvel junto a
sua ama, parecia considerar com desprezo tudo quando lhe
ocorria ao redor, dignando-se apenas a abrir os olhos,
reluzentes, malignos, de tamanha fixidez que Brigitte
precisou fazer um esforço para não estremecer novamente.
Era como um gigantesco gato, manchado de amarelo e
negro, com pelo menos cinqüenta quilos de friso. Um só
munhecaço daquele bicho podia ser mortal.
— Não tenha receio — sorriu levemente a maarâni, após
a apresentação. — “Yaksa” é inofensivo, miss Montfort.
— Fico mais tranqüila por saber disso — sorriu também
Brigitte. — De qualquer modo, será melhor que continue
preso pela correia, Alteza.
— Insisto em que não deve preocupar-se. Mesmo que
ele andasse solto pelo iate, nunca faria mal a ninguém.
— A menos — interveio Sadanjayan — que alguém
pretendesse fazer mal a minha esposa, naturalmente. Ou a
qualquer uma das pessoas de bordo. Queiram desculpar-nos,
mas chegam outros convidados... Tomaremos a nos
encontrar dentro de alguns minutos.
Novas inclinações de cabeça, e Brigitte e Diego
afastaram-se de junto à escada, dando lugar aos novos
convidados.
Havia muita gente espalhada pelo convés, rebrilhante de
luzes, jóias e espáduas nuas. Garçons vestidos à maneira
hindu, de bombachas, turbante e pés descalços passavam
continuamente, com bandejas em que se viam bebidas
diversas. Formavam-se pequenos grupos, que conversavam
animadamente, sobre um fundo monótono de música
indiana, que se distribuía com a mesma discreta tonalidade
por todo o convés, graças a uma perfeita instalação de alto-
falantes.
— Lá está o Governador, Brigitte. Vamos. Quero
apresentá-la a ele.
Brigitte assentiu com a cabeça, sorrindo, como se
estivesse distraída. Voltou-se lentamente, com cautela, para
olhar o impressionante trio constituído por Suas Altezas e o
chita-leopardo.
E novamente houve aquele choque fortíssimo entre os
olhos azuis da mais astuta espiã de todos os tempos e os
intensamente negros de Nadir Sadanjayan, marajá de
qualquer província da Índia.

CAPÍTULO QUINTO
O Centro Espacial precisa de um diretor
Um cadáver é atirado ao mar
A arte da mulher que ama, segundo Ratna Jinnah

O Governador de Corália era um homem alto, forte,


ligeiramente calvo, de olhar direto, nobre e inteligente.
Falava movendo muito os braços e as pessoas que estavam
diante dele, ouvindo-o, sorriam com agrado, encantadas
com o que dizia. A seu lado, sorrindo mais ainda, uma
bonita mulher, de nobres feições, prendia-se a um de seus
braços.
— É sua esposa... — disse Montalbán. — Uma dama
encantadora, como verá. É de uma simpatia quase superior à
do Gov...
— Diego, meu caro! — chamava naquele momento Sua
Excelência, voltado para ele. — Venha cá. Faz uma semana
que não o vejo...
Montalbán aproximou-se, sorrindo, e apertou a mão que
lhe estendia o Governador.
— Muito trabalho, don Gilberto. Sou o primeiro a
lamentar o fato de não poder visitá-lo mais amiúde. Boa-
noite, dona Claudia.
A senhora do Governador sorriu docemente.
— Não deveria trabalhar tanto, Diego. Para quê? Já está
tudo feito!
Houve alguns risos e as pessoas que até então tinham
estado a entreter o Governador e sus esposa se afastaram.
— Creio que nunca estará tudo feito, dona Claudia —
contradisse amavelmente Montalbán. — Mas pareceu-me
que esta noite poderia permitir-me o luxo de algumas horas
agradáveis... Apresento-lhes miss Brigitte Montfort, do
“Morning News” de Nova Iorque.
— Miss Montfort é muito bela — sorriu o Governador,
inclinando-se. — Espero que fale bem dos Estados Unidos
do Coral, quando escrever seus artigos.
— Don Gilberto Cáceres, Governador de Corália... E sua
esposa, dona Claudia.
Brigitte apertou a mão de ambos, sorrindo.
— Muito prazer... Não só escreverei bonitos artigos
sobre Coral, Excelência, como recomendarei seu país a
meus amigos, para que venham aqui passar suas férias.
— Ótimo! — exclamou Cáceres. — Ah, este nosso
Diego, sempre teve sorte para conseguir simpáticas
amizades! Não é mesmo, Claudia?
— Começando pela de ambos... — disse sinceramente
Montalbán. — Mas miss Montfort não está aqui exatamente
para escrever artigos turísticos, don Gilberto. É a pessoa
para a qual foi solicitada sua autorização a fim de que
pudesse visitar o Centro Espacial.
— Oh, sim, estou lembrado... — Gilberto Cáceres olhou
atentamente para Brigitte. — Espero que a esteja atendendo
bem, Diego.
— Faço o possível...
— Mais que o possível — corrigiu Brigitte. — O señor
Montalbán tem-me atendido maravilhosamente, a ponto de
enviar-me livros, gravações, champanha... inclusive
conseguiu-me um pequeno iate de aluguel chamado
“Pandora”.
— “Pandora”? De aluguel? — Cáceres olhou
zombeteiramente para Montalbán. — Você não tinha um
iate com esse nome, Diego?
Diego Montalbán ficou vermelho. Brigitte olhou-o
surpreendida. Súbito, pôs-se a rir.
— Oh! Foi um bonito gesto, Diego! Como poderei
agradecer?
— Realmente, não tenho precisado do iate estes dias. E
pareceu-me que...
— Ele é capaz de desculpar-se por haver emprestado um
iate... — comentou Cáceres. — É assim o nosso Diego. Já
visitou o Centro Espacial, miss Montfort?
— Oh, sim. Claro.
— Que achou dele? — perguntou o Governador.
— Pequeno, mas excelente.
— Ah! Pensa assim, de verdade? Saiba que é uma jovem
encantadora, miss Montfort! De fato, tudo tem sido
encantador estes dias... Espero que faça bom uso das
informações que estamos concedendo ao seu jornal.
Informações não concedidas ainda a nenhum outro órgão
estrangeiro.
— Perdão... estranhou Brigitte. — Receio não estar
compreendendo...
— Quero dizer que esperamos ser tratados de um modo
simpático em seus artigos. Sei muito bem que por sermos
um país pequeno, vamos surpreender o mundo com este
lançamento espacial... E gostaria que, então, o mundo já
soubesse alguma coisa a nosso respeito.
— Oh, compreendo... Como suponho que tenha sido
esse um dos motivos pelos quais foi permitida a instrução
de uma jornalista americana, terei que satisfazê-lo, sem
dúvida.
— Noto que é muito perspicaz... — observou Cáceres.
— Compreendeu-me perfeitamente. Ah, Diego, tenho uma
boa notícia para você. Quer dizer, mais ou menos boa, pois
não sei ainda como terminará tudo isto.
— A que se refere? — interessou-se Montalbán.
— O presidente quer nomear, depois do lançamento, um
diretor do Centro Espacial. Pensei em você e...
— Mas don Gilberto... Pedro é mais indicado que eu!
Não me parece justo preteri-lo...
— Pedro Morales tem seus méritos e você também —
sorriu Cáceres. — Já esperava essa reação de sua parte, pois
conheço sua generosidade. De qualquer modo, o Presidente
também pensou em Pedro. Está um pouco indeciso entre a
longa experiência dele e o inegável talento de que você tem
dado provas. Por isso lhe disse que a noticia era mais ou
menos boa. Talvez Me se decida por Pedro, afinal.
— Isso não seria uma noticia má para mim, dan
Gilberto.
— Eu sei, eu sei — bateu-lhe amigavelmente no ombro.
— Bom, vá se distrair um pouco por aí, rapaz. Creio que
Pedro está à sua procura, mas se quer um bom conselho,
evite-o: Me lhe falará do projeto e você precisa que lhe
falem também... —olhou sorridente para Brigitte. — Bom,
de amor, de coisas amenas, da lua... Não há uma bonita lua
esta noite, querida?
— Assim é — riu Claudia Cáceres. — E parece que em
noites enluaradas você f ala mais do que nunca, Gilberto.
Vamos tomar alguma coisa, pois assim ficará calado... Até
logo, Diego. Foi um prazer, miss Montfort. Espero que
aprecie sua permanência em Coral.
— Estou apreciando — sorriu Brigitte.
— Creio que vou em busca de Pedro — murmurou
Montalbán, vendo afastar-se o Governador e sua esposa. —
Por Deus, não gostaria que ele pensasse estar eu fazendo
alguma coisa para tirar-lhe o posto de...
— Não seja criança — interrompeu-o Brigitte.
— E pensam em nomear você diretor do Centro
Espacial, será por algum motivo. Não creio que você
precise desculpar-se por ter estudado em meu país, depois
estagiado em Cabo Kennedy... Nem creio tampouco que
deva desculpar-se por possuir talento.
— Bom...
— Vamos roubar uma taça de champanha. Como já
sabe, é algo que adoro. Principalmente com cereja.
— Com cereja?
— Acha isso surpreendente?
— Bem... Um pouco, talvez. Sabia você que em Coral
temos as mais bonitas e saborosas cerejas do mundo,
Brigitte?
— Não! — exclamou ela.
— Sim! — riu Diego. — Mas não creio que o marajá
tenha cerejas a bordo.
— Então, me resignarei a tomar champanha, apenas.
Mas por favor, não me faça esperar mais. Estou morrendo
de sede.
***
Meia hora mais tarde, todos os convidados já tinham
chegado a bordo, O marajá ia atendendo uns e outros,
refinadamente cortês, corretíssimo. Era o que se chama um
homem do mundo, não havia dúvida. Junto à sua majestosa
e gigantesca figura, Ratna Jinnah destacava-se como uma
jóia, sempre com o seu chita-leopardo ao lado. Em várias
ocasiões, os olhares de Brigitte e Nadir Sadanjayan se
tinham encontrado. Como resposta a tais olhares, surgia um
sorriso nos lábios da espiã e brilhava uma centelha ardente
nos olhos negros do hindu.
Diego Montalbán, contra sua vontade, tinha sido
assediado por amigos e companheiros de trabalho, que
conversavam animadamente, quase com excitação. Pedro
Morales, que a princípio havia feito parte daquele grupo,
fora-se distanciando discretamente, perdendo-se entre os
outros convidados, que elogiavam com entusiasmo a festa
do riquíssimo marajá.
Sem se dar conta, Brigitte encontrou-se olhando
fixamente para Pedro Morales, o homem que, junto com
Diego, a recebera na tarde anterior no aeroporto, o grande
amigo do pintoso Montalbán, que talvez fosse nomeado
diretor do Centro Espacial.
Viu-o entrar no recinto dos camarotes, após relancear a
vista em todas as direções, inclusive para onde ela estava.
Só que, então, Brigitte já desviara seu olhar, fixando-o na
taça que tinha nas mãos.
Quando tomou a olhar para Pedro Morales, este já não
estava à vista. Por um instante, ela contraiu as sobrancelhas.
Deixou a taça na bandeja de um dos servos hindus que
passava e dirigiu-se lentamente para a entrada dos
camarotes. Nem sequer se deu ao trabalho de verificar se
alguém a observava, limitando-se a entrar com toda a
naturalidade.
Havia um bonito corredor central, atapetado, com os
camarotes aos lados. Nele não viu ninguém, mas poucos
segundos depois ouviu a voz de Pedro Morales, demasiado
alta, excitada. Quase histérica. Aproximou-se da porta atrás
da qual tinha ouvido a voz. Não havia dúvida: era Pedro
Morales, falando atropeladamente. Na verdade, parecia
muitíssimo assustado. Suas palavras chegaram claramente
aos ouvidos de Brigitte, cuja sutileza de audição
ultrapassava em muito a de qualquer ser humano comum.
— ... assassinato monstruso! — exclamava ele com voz
trêmula. — Nunca faremos isso!
Falava em espanhol. E recebeu a resposta na mesma
língua:
— Acalme-se, Morales. Você está exagerando as
coisas...
— Exagerando as coisas! — gritou o excitado cientista.
— Podem morrer milhares de pessoas com esse maldito
Zavo! Estão loucos? Estão todos loucos?
— Ninguém está louco aqui. Salvo se o estiver você, que
concordou em intervir e agora está discutindo a realização
do plano.
— Mas trata-se de um plano criminoso...
— Você concordou em colaborar, não?
— Não concordei com isso! Ninguém me disse nada a
respeito do Zavo! Nunca me ocorreu que tudo terminaria
desse modo terrível! Querem minha resposta? Pois é não!
— Está nos colocando em dificuldades, Morales.
— Por quê? Façam o que penso fazer eu: não intervir.
— Diz isso agora?
— Estamos em tempo! Deixemos que o lançamento seja
normal, que tudo saia segundo o previsto. Tudo o que temos
a fazer é esquecer o Zavo, não permitir sua inclusão nessas
órbitas... Isso é tudo o que temos que fazer.
— Já não podemos mais recuar, Morales.
— Pois eu posso! E previno-os de uma coisa: se amanhã
não me anunciarem sua decisão de impedir que esse Zavo
sela incluído nas órbitas, eu contarei tudo ao Governador.
Não me importa o que aconteça comigo, fiquem sabendo.
— Seja razoável... — grunhiu outro. — O Zavo já está a
caminho e deverá chegar amanhã ou depois de amanhã.
Tudo foi preparado para o lançamento, Pedro. Esse Andrei
Voronich já deve estar voando com o Zavo para Coral...
Que lhe diremos quando chegar? Que mudamos de idéia?
— E por que não? — perguntou Pedro Morales.
— Por que não é passível, que diabo! Além nisso, está
aqui o marajá... Não podemos voltar atrás, digo-lhe eu!
— Pois eu não permitirei esses milhares de mortes! E
nada mais temos a falar, Benito!
— Pedro, Pedro... Você está complicando demasiado as
coisas! Nós já fomos pagos, estamos comprometidos...
— Eu devolverei o dinheiro!
— Ouça... Nenhum de nós sabia realmente o que era o
Zavo...
— Fomos enganados!
— Está bem, fomos enganados... Você tem razão.
Disseram-nos uma coisa muito diferente do que depois
viemos a saber sobre o Zavo. Mas se voltarmos atrás,
arruinaremos nossas vidas, nossas posições, nossa carreira...
Seremos expulsos de Coral, talvez até condenados à morte...
No mínimo, trinta anos de prisão. O único modo de evitar
isto é ir em frente, aceitar as coisas como são...
— Eu jamais aceitaria isso!
— Pedro, se agora...
— É inútil — grunhiu outra voz. — Você não o
convencerá, Benito.
Houve uns segundos de silêncio.
— Bem... — suspirou o chamado Benito. — Parece que
somos obrigados a tomar uma decisão... desagradável
Brigitte empurrou muito levemente a porta. Apenas
alguns milímetros... E pela estreita fenda pode ver, de frente
para ela, Pedro Morales, rosto congestionado e pálido ao
mesmo tempo, em assombroso contraste; grossas gotas de
suor escorriam de sua testa... Súbito, por trás de Pedro
Morales apareceu um dos servos hindus de Nadir
Sadanjayan. Pedro Morales não lhe prestou a menor
atenção, pois dedicava a olhar os rostos dos homens que
tinha diante de si e os quais Brigitte não podia ver.
Mas viu, de repente, a faca que apareceu na mão do
servo hindu. Foi só um instante. O hindu atuou com tal
rapidez, que não lhe deu tempo para nada: cravou a faca nos
rins de Pedro Morales, ao mesmo tempo em que com o
outro braço segurava-o pela frente, tapando-lhe a boca. O
gemido de Pedro Morales foi abafado por aquela mão
escura e seus olhos se arregalaram... Tornou a gemer e a
crispar-se quando a faca se cravou pela segunda vez em
suas costas. E após ser desferida a terceira facada, o hindu
teve que sustentar quase que todo o peso do infeliz cientista,
Cujos olhos esbugalhados pareciam ter-se transformado em
bolas de vidro, com as pupilas já congeladas pelo frio da
morte.
— Meu Deus... — murmurou alguém no camarote.
Apareceu outro hindu, que ajudou seu companheiro a
sustentar o cadáver de Pedro Morales. Brigitte sentiu-se
tensa como uma barra de aço, como se todo seu corpo
tivesse bruscamente sofrido um curioso processo de
metalização. Viu os dois hindus carregarem o cadáver de
Morales e abriu a porta mais alguns milímetros. Sabia que
todas as pessoas reunidas dentro daquele camarote estariam
fatalmente obcecadas pelo ocorrido, olhando apenas para o
cientista coralense recém-assassinado. Ninguém teria idéia
de olhar para a porta.
Pode ver a mão de um hindu abrindo a grande vigia do
camarote; depois a cabeça de Pedro Morales pendendo
frouxamente... Já não precisava ver nada mais para
compreender que o cadáver ia ser lançado no mar.
Evidentemente, não convinha deixá-lo no camarote: era
melhor jogá-lo na água e recuperá-lo mais tarde, para então
fazê-lo desaparecer definitivamente.
Puxou lentamente a porta, até fechá-la, e afastou-se dali.
Sentia no peito aquela pressão angustiosa que sempre
acompanhava seu desejo de matar, porém compreendia
perfeitamente que não era o momento de permitir uma
intervenção da agente “Baby”. Quantos homens devia haver
naquele camarote para lhe fazer frente, estando ela
desarmada? Não lhe foi de nenhum modo difícil dominar-
se, reconhecer que teria sido um suicídio tentar alguma
coisa naquele instante. Além disso, os que estavam lá dentro
iam sair de um momento para outro...
Dirigiu-se para a porta que levava ao convés. Mas ainda
não havia chegado lá quando ouviu os passos na escada de
madeira.
Voltou-se como um relâmpago, empurrou a porta de um
camarote qualquer e entrou, fechando-a atrás de si. Lançou
uma rápida olhada a seu redor. Era um ambiente exótico,
adornado de sedas, bem perfumado... Bastante espaçoso,
tinha uma cama no centro. O assoalho brilhava. A um lado,
viu uma cabeça de tigre, empalhada.
Aplicou o ouvido à porta. Já não soavam os passos.
Abriu velozmente, lançou-se para fora e ficou imóvel,
petrificada: diante dela estava “Yaksa”, o chita de Ratna
Jinnah, olhando-a com seus olhos reluzentes, mostrando
silenciosamente suas agudíssimas presas. Junto a ele,
sujeitando-o pela correia, estava a belíssima hindu, com seu
rosto moreno de expressão impenetrável, fixando-a com
aqueles enormes olhos negros.
Ainda pálida de espanto pelo inesperado encontro com o
chita-leopardo, Brigitte olhou a hindu e sorriu, com pouco
êxito em termos de naturalidade.
— Eu... creio que me perdi por este barco, Alteza...
— É o camarote do marajá — sussurrou suavemente
Ratna Jinnah. — E não lhe agrada que ninguém entre sem
sua permissão.
— Lamento... Sinceramente, lamento. Desci à procura
do toalete, empurrei esta porta, vi um quarto tão...
extraordinário, e me entretive uns segundos admirando-o.
— Vou conduzi-la ao toalete, miss Montfort.
— Agradeço-lhe. Oh, estou ainda assustada... — indicou
o felino de olhos reluzentes. — Nunca tive perto de mim
animais desta espécie.
— Já lhe disse que “Yaksa” é inofensivo... quase
sempre. Mas se eu não estivesse com ele, certamente a teria
atacado ao vê-la sair do camarote de seu amo. Teríamos que
lamentar um infeliz acidente, miss Montfort.
— Bom... — Brigitte suspirou, sorrindo agora com mais
êxito. — Por sorte, Vossa Alteza estava com “Yaksa”. Que
significa seu nome?
Ratna Jinnah apontou para frente e ambas seguiram pelo
corredor, sempre acompanhadas pelo chita, cujas patas não
faziam o menor ruído ao tocar no chão; parecia deslizar,
mais que caminhar. A porta do outro camarote abriu-se
então e Brigitte viu fugazmente seu interior; o tempo
suficiente para compreender que era o salão de fumar, com
almofadões, poltronas, mesinhas de sândalo... Viu os três
homens saírem. Viu perfeitamente seus rostos, ainda
crispados. Eles saudaram com inclinação de cabeça e
caminharam pelo corredor em direção contrária. Atrás dos
três homens, saíram dois servos hindus, cada um
transportando uma bandeja com garrafas e copos... Quem
diria que acabavam de assassinar um homem lá dentro, a
facadas?
A maarâni abriu uma porta e indicou o interior. Brigitte
entrou, maravilhando-se com a beleza e o exotismo daquele
toucador, que era ao mesmo tempo quarto de banho. Uma
grande banheira, de mármore róseo, exibia a suntuosidade
de suas torneiras de ouro puro. Em fronte, um grande
espelho, uma penteadeira e algumas banquetas forradas de
pele de tigre. O chão era de um brilho ofuscante.
— Meu marido, o marajá, adotou faz algum tempo os
usos e costumes europeus, naturalmente — explicou em
tom vago Ratna Jinnah. — E acha que eu sempre devo ter o
melhor. É um homem muito bondoso e de generosidade
extrema.
— Assim parece. Vossa Alteza é feliz... Espero que a
bondade de seu esposo seja completa.
— Completa? Que quer dizer?
— Que espero, se ele vier a morrer antes, não seja Vossa
Alteza queimada viva na mesma fogueira.
Um levíssimo sorriso apareceu no belo rosto da hindu.
— Não creio. Já lhe disse que ele aceitou e adotou os
usos e costumes europeus... Sinta-se à vontade, miss
Montfort. Todos os meus perfumes estão ao seu dispor. Use
o que desejar.
Abriu o espelho e surpreendeu Brigitte deixando a
descoberto um pequeno armário cheio de perfumes de todas
as procedências: de Hong-Kong, Paris, Nova Iorque, Roma,
Cingapura, Nova Deli. Também havia ali uma
extraordinária abundância de artigos de beleza.
— Queria apenas retocar um pouco minha maquilagem
— murmurou Brigitte. — Creio que o mar não é bom para
certos produtos muito delicados.
— Pode usar qualquer perfume ou creme. Eu quase
nunca o faço. Mas meu esposo insiste em que eu disponha
de tudo.
— Claro... É natural.
Olhou de soslaio para a jovem maarâni, que havia
soltado a correia da coleira do chita e sentara-se em outra
banqueta. O animal estendeu-se no chão e ficou olhando
sempre daquele modo fixo e maligno para a espiã
internacional.
— É muito bonita, miss Montfort — disse subitamente
Ratna Jinnah.
— Oh... Muito obrigada.
— Sei que também o sou — tornou a sorrir a hindu. —
E suponho que se tenha dado conta disso.
— Sim... Sem dúvida.
— Meu esposo gosta de mulheres formosas. Quando me
conheceu, em Calcutá, logo me propôs casamento... Foi um
pretendente muito generoso e delicado, mas apesar disso
estive a ponto de recusá-lo, pois sou de uma família rica e
não necessitava de seu dinheiro nem de suas atenções... A
verdade é que não me agradava muito. Mas... depois gostei
dele e aceitei ser sua esposa. Nunca me arrependi.
— Então foi um casamento perfeito — sorriu Brigitte.
— Evidentemente, Vossa Alteza é feliz.
— Sou... Creio que sou. Compreendo que um homem
que já tem uma bonita jóia preste atenção a outra que não
possui... ainda. Mas a arte da mulher que ama está em saber
afastar do caminho de seu esposo as outras jóias... seja
como for. Com isto, fica preservada sua felicidade, bem
como a tranqüilidade e a felicidade do esposo.
Brigitte olhou atentamente para a belíssima indiana,
através do espelho. Ratna Jinnah também a olhava atenta. E
ambas sabiam perfeitamente o que ela havia querido dizer.
A espiã internacional acabou de retocar sua maquilagem
e sorriu como quem não compreendeu seu interlocutor, mas
é o bastante educado para evitar perguntas que poderiam ser
excessivamente íntimas.
— Bem... Parece-me que já me tornei apresentável... —
guardou o pequeno estojo de platina e brilhantes. — Ainda
não me disse o que significa o nome de seu animal favorito,
Alteza.
— “Yaksa” significa gênio. Há yaksas e yaksis, ou seja,
gênios machos e gênios fêmeas.
— Ah... É evidente que seu animal é macho, então.
Creio que podemos voltar ao convés se Vossa Alteza está
de acordo. Não vai por a correia em “Yaksa”?
Ratna Jinnah tornou a prender o chita, em silêncio.
Saíram do camarote e, pouco depois, surgiram no convés.
Imediatamente, apareceu diante delas o marajá, sorrindo,
com um brilho intensíssimo nos olhos negros.
— A noite havia ficado sem luz... — inclinou-se. —
Mas já nossos olhos tornam a deslumbrar-se com a radiante
beleza das duas mulheres mais belas do mundo. Está se
divertindo, miss Montfort?
CAPÍTULO SEXTO
Um marajá consternado
A brincadeira do radioamador louco
Evidentemente, o melhor é dormir.

Brigitte sorriu como se desculpando por antecipação


pelo que ia dizer:
— Pois, para falar com franqueza, não muito.
Nadir Sadanjayan franziu a testa, profundamente
aborrecido. Por um instante, seus terríveis olhos negros
fixaram os de sua esposa.
— Sinto muito... — murmurou. — E gostaria de fazer
alguma coisa para por termo ao seu aborrecimento. Se acha
que algo está faltando no “Kolgatar”, peço-lhe que me diga
para que imediatamente...
— Não, não... — sorriu Brigitte. — Vossa Alteza não
compreendeu, ou eu me expressei mal. Na verdade, tudo é
perfeito no “Kolgatar”. Meu aborrecimento tem um motivo
diferente.
— Que motivo?
— Bem... Cheguei aqui em companhia do señor
Montalbán e receio bastante que ele tenha encontrado um
assunto de conversa mais agradável que o que lhe poderia
proporcionar.
Indicou com o queixo o lugar onde Diego, bem a
contragosto, evidentemente, continuava discutindo entre
vários homens que o assediavam.
— Ah — Sadanjayan também sorriu, então. — Eu
estava consternado, miss Montfort. Mas agora que
compreendo o motivo de seu tédio, creio que encontrarei
uma solução — olhou para a esposa e murmurou algumas
palavras em hindi; Ratna Jinnah assentiu com a cabeça e
afastou-se com o seu chita, em direção a Diego Montalbán;
o marajá f& um sinal a um de seus servos, que se
aproximou pressurosamente com uma bandeja. — Permite-
me oferecer-lhe uma taça de champanha?
— Receio já ter tomado demasiado, mas... Bem, não
posso desprezar um convite pessoal de Vossa Alteza.
Sadanjayan retirou uma das taças da bandeja e ofereceu-
a a Brigitte. Retirou uma outra e com um gesto despediu o
servo. Olhou com aquela peculiar intensidade os olhos azuis
da espiã.
— Chame-me Nadir, simplesmente, miss Montfort.
Sempre achei que um tratamento excessivamente
cerimonioso dificulta um entendimento... agradável.
— Vejo que é muito gentil, Nadir — murmurou ela.
O marajá encolheu os ombros. Indicou a borda e ambos
foram para lá.
— Por nós... — ergueu a taça de champanha.
— E espero que não lhe desagrade o brinde, miss
Montfort.
— A mim não.
— A alguém, por acaso?
— A sua esposa, talvez.
— Oh... Mas as mulheres hindus são condescendentes,
geralmente. Por favor, não interprete estas palavras como
uma ousadia de minha parte. Apenas quis dizer que Ratna é
uma mulher de casta superior e, portanto, não pode ter
ciúmes.
Brigitte tomou um gole de champanha. Ao que parecia,
o marajá não tinha uma idéia muito clara sobre o assunto.
— As mulheres, Nadir, têm todas a mesma casta, em
certos momentos. Um poeta, que certamente não era hindu,
disse que uma mulher que ama e exatamente igual a
qualquer mulher que ama.
Sadanjayan olhou-a com divertida surpresa.
— Sem dúvida — quase sorriu — isso não foi dito por
um poeta hindu. Conhece nossos poetas, miss Montfort?
— Peço-lhe que me chame Brigitte, simplesmente...
Poetas hindus? Sim, conheço pequenas coisas de alguns.
Possivelmente em más traduções. Li algo de Bharavi,
Magha e Bana... Tentei também compreender os Puranas,
que glorificam a Xiva o Vixnu. Depois, entre os poetas
modernos, li alguma coisa de Chakravarty, Dey, Bora,
Mehta... E está claro que de Rabindranath Tagore. Além
disso, duas ou três novelas de Benarjec, Nasendra e Mitra.
Confesso-lhe que até o momento não senti um excessivo
interesse por seu país, Nadir.
O marajá estava completamente assombrado.
— Por favor! — exclamou. — Conhece mais que todas
as pessoas aqui presentes, juntas... É de pasmar! Eu sou um
admirador fanático de Tagore... Que obras destacaria, entre
as que escreveu?
— Bem... — Brigitte ficou pensativa uns segundos. —
Creio que em primeiro lugar o Gitamjali. Depois, sem
dúvida nenhuma, O Rei e o Jardineiro.
— Maravilhoso... Simplesmente maravilhoso? Vai
perdoar meu espanto, Brigitte, mas não estou acostumado a
que pessoas alheias à Índia saibam falar sabre estas coisas
com tanto conhecimento e competência. Mmm... Suponho
que esteja confortavelmente instalada. Refiro-me a que,
como convidada de Coral, tenham-se preocupado em
proporcionar-lhe um alojamento digno.
— Oh, sim... Tenho só para mim um adorável bangalô.
Por quê?
— Preferiria que a tivessem alojado num péssimo
lugar... Assim teria oportunidade de oferecer-lhe meu iate
enquanto ambos estejamos em Corália. Bem... Parece que
Ratna soube cumprir minhas instruções e conseguiu
restituir-lhe o señor Montalbán. O que, para dizer a
verdade, lamento profundamente.
Brigitte ia dizer alguma coisa, mas, com efeito, a
maarâni chegava com Montalbán, ambos sorrindo.
— Desculpe, Brigitte — Diego parecia realmente
aborrecido. — Fui encurralado sem dó nem piedade, sem
poder escapar. Ambos devemos estar reconhecidos a Sua
Alteza a maarâni por ter conseguido trazer-me ao seu lado.
Prometo não me separar mais de você a partir deste
momento.
— O caso é, Diego, que eu gostaria de ir embora...
— Como! — exclamou Sadanjayan. — Terei que me
convencer de que não se sente a gosto entre nós, Brigitte?
— Muito pelo contrário, Nadir — murmurou ela
docemente, olhando de soslaio para Rama. — Mas Diego
sabe muito bem que hoje madruguei e... Talvez seja o
excesso de champanha, mas sinto-me terrivelmente
cansada.
— Mas não esteve conosco nem uma hora! — protestou
o marajá.
— O breve é sempre melhor quanto mais breve
— Brigitte estendeu-lhe a mão. — Espero que tenhamos
ocasião de nos tornar a ver, Nadir.
— Meu iate é seu iate. E quanto a tornar a vê-la, é algo
com que conto firmemente, Brigitte.
Ela sorriu. Moveu a mio para o marajá e fez um ligeiro
movimento de cabeça para a maarâni. Depois tomou o
braço de Montalbán e ambos se dirigiram para a saída.
Junto à escada, Montalbán deteve-se, olhando com muito
interesse para todos os lados.
— Esqueceu alguma coisa, Diego? — perguntou
Brigitte.
— Não... Você viu o Pedro?
— Sim, há alguns minutos... Por quê?
— Gostaria de falar com ele.
— Ah. Você pode ficar, se quiser... Saberei voltar
sozinha ao bangalô.
— Há tempo para falar com Pedro sorriu Montalbán. —
Parece-me que fui muito pouco gentil com você, de modo
que farei o possível para que me perdoe. E já que existe
champanha no bangalô, poderíamos conversar um pouco lá
e...
— Diego, você terá que me desculpar...
— Está zangada comigo?
— Não, por favor... O que estou é cansada de verdade.
Pode me acompanhar, se quiser, mas nos despediremos na
porta do bangalô e... amanhã será um outro dia.
— Isso é inevitável — sorriu o jovem cientista.
— De acordo: nos despediremos da porta do bangalô.
***
Diego Montalbán afastou os lábios dos de Brigitte e
deixou escorregar suas grandes mãos morenas por aquelas
espáduas que pareciam de seda dourada.
— Você quer mesmo que eu vá embora?
— Não creio que lhe agrade ver-me bocejar estando com
você... Até amanhã, Diego. E não esqueça sua promessa de
permitir-me entrevistar os astronautas. Seria interessante
conseguir três artigos, um sobre cada qual. Espero que
sejam... tolerantes.
— Ia censurá-la por pensar neste momento em seu
trabalho, mas seria injusto. Eu a abandonei antes, no
“Kolgatar”, para falar de coisas parecidas. Amanhã você
conhecerá os três astronautas. Descanse bem.
— Adeus, Diego.
Beijou-o suavemente nos lábios. Depois meteu a chave
na fechadura e abriu a porta, entrando no bangalô sem
acender a luz. Pode ainda sorrir a Montalbán, que se voltava
para um último adeus.
Permaneceu uns minutos imóvel, sem acabar de fechar a
porta, vendo Diego Montalbán afastar-se. Por fim, fechou
completamente, acendeu a luz e atirou os sapatos para o
sofá. Ergueu os braços, bocejando ruidosamente, coisa que
nunca fora de seu costume. Em seguida, com incrível
rapidez, abriu sua bolsa, tirou uma lanterna que parecia um
batom, apertou uma extremidade e uma luz invisível
dirigiu-se ao solo.
Guardou a lanterna, foi até a cozinha e retirou uma
garrafa de champanha do refrigerador. Destampou-a com
grande ruído, coisa que tampouco era de seu costume.
Derramou um pouco numa taça, tomou um gole e dirigiu-se
ao armário dos talheres. Apanhou duas facas, que enfiou
cuidadosamente no amplo decote, estremecendo sob o frio
do aço. Pegou a taça e foi para o quarto. Deixou-se cair
numa das pequenas poltronas, suspirando, e seus olhos
azuis, agora como congelados, fixaram-se na porta do
banheiro.
— É melhor que saia... — disse repentinamente. — A
janela do banheiro é pequena demais para que possa escapar
por ela e eu não tenciono mover-me daqui durante toda a
noite. Mais tarde ou mais cedo, terá que sair.
A porta do banheiro moveu-se então, para fora. Brigitte
agarrou uma das facas que tinha enfiado ao decote a atirou-
a com força... A faca ficou cravada na moldura da porta,
vibrando sonoramente, à altura da garganta de um homem
de estatura comum.
— Tenho mais algumas facas — disse ela, friamente —
de modo que fará melhor saindo de costas, com os braços
levantados. É uma sugestão generosa, acredite.
A porta se abriu um pouco mais. Brigitte apanhou a
segunda faca e preparou-se para arremessá-la... De súbito, a
porta abriu-se não menos de vinte e cinco centímetros e a
mão de um homem apareceu, segurando uma pequena
maleta vermelha com flores azuis.
— Tio Charlie! — exclamou ela.
A porta acabou de abrir-se completamente e Charles
Pitzer apareceu, levantando bem alto a maleta, tendo no
rosto contraído uma expressão torva.
— Corro perigo? — grunhiu.
— Mas... o que faz você aqui em Coral, tio Charlie?
Ora, vamos, deixe de tolice e venha cá... Que significa isto?
Pitzer sentou na beira da cama, deixando sobre esta a
famosa maletinha vermelha com flores azuis.
— Vim buscá-la... — disse. — Telefonei para seu
apartamento, mas Peggy disse-me que você estava em
Corália. E como não deixou nenhuma indicação, pareceu-
me que seria interessante perguntar a Miky Grogan. Este me
informou que você estava no “Hotel Galápagos”, mas lá o
negaram. Assim, tive que localizá-la.
— Quer champanha? — ofereceu Brigitte, sorrindo.
— Oh, aceito com muito gosto...
— Pois vá à cozinha e sirva-se.
Pitzer resmungou alguma coisa, mas foi à cozinha.
Quando voltou, Brigitte tinha sobre os joelhos a maletinha
prodigiosa e parecia absorta no exame de seu conteúdo.
— Está todo o meu arsenal... — murmurou.
— Que é que há, tio Charlie?
— Você tem que voltar imediatamente comigo à
Central. Lá estão à sua espera para encarregá-la de um
delicado e perigosíssimo assunto. Pareceu-me que se
trouxesse sua maleta, pouparíamos tempo. Mister Cavanagh
nos aguarda com verdadeira impaciência.
— Compreendo, compreendo... Quer dizer-me de uma
vez o que está acontecendo?
— Nos foram pedidos cem milhões de dólares... Com
todos os diabos, Brigitte, espero poder surpreendê-la
alguma vez. Como soube que havia alguém no bangalô?
— Porque não limpou os pés ao entrar... — sorriu
ironicamente a mais fabulosa espiã do mundo. — Cem
milhões de dólares? Quem os pede?
— Essa é a questão... — rezingou Pitzer. — Como disse
o tal de Hamlet...
— Não se sabe quem pediu cem milhões de dólares à
CIA?
— À CIA, não. Ao Governo dos Estados Unidos da
América. E não os pedem, no exato sentido da palavra
pedir: exigem.
— Exigem... Com que fundamento?
— Parece que se trata de uma nova modalidade de
chantagem, mas, evidentemente, em grande escala. Chegou
uma mensagem pelo rádio ao Capitólio e, simultaneamente
ao Pentágono e à Casa Branca. Algo incrível, Brigitte... Se
não entregarmos cem milhões de dólares antes de cinco
dias, os Estados Unidos chorarão lágrimas de sangue.
— Que melodramático... — murmurou “Baby” —
Lágrimas de sangue... Não parece um pouco exagerado?
— Como podemos saber?
— Qual é, exatamente, essa ameaça?
— Não foi especificada.
— Quem pede os cem milhões?
— Ignora-se. Especulou-se, inclusive, a possibilidade de
que seja algum radioamador querendo fazer uma
brincadeira “simpática” com o Governo. É possível que
com seu rádio tenha localizado a onda privativa do Governo
e não lhe haja ocorrido idéia mais jocosa que pedir cem
milhões, advertindo que se não os entregássemos podiam
morrer mais de vinte mil pessoas dos Estados Unidos, antes
de decorrida uma semana.
— Deve ser uma brincadeira, claro... Como seria paga
essa importância? Em ouro?
— Não. Em cédulas de cem, quinhentos e mil dólares.
— Fantástico... E a quem deverá ser entregue esse
dinheiro?
— A ninguém em especial. Uma lancha deverá sair de
Los Angeles, com os cem milhões, navegando para o
Arquipélago de Havaí. Depois de navegar umas duzentas
milhas, um helicóptero teria que recolher os tripulantes da
lancha e regressar ao continente, deixando-a com o piloto
automático e sempre no rumo de Havaí. Bem entendido que
qualquer vigilância ou intento de aproximação obrigaria
essas pessoas desconhecidas a não chegar à lancha para
retirar o dinheiro... Em cujo caso, com muita brevidade um
morticínio estarrecedor teria lugar no centro de nosso país.
As cédulas deverão ir em pacotes envoltos com plástico
impermeável, bem compactos, ocupando o menor espaço
possível. Houve também uma advertência sobre a
inutilidade de anotar os números dessas cédulas. E querem
que todas elas sejam novas e legais, evidentemente. Sabem
muito bem o que é uma cédula falsa e uma verdadeira.
— É assombroso... E ameaçam com tirar a vida de vinte
mil cidadãos norte-americanos...
— Isso de início, apenas.
— Como?
— Isso seria apenas o princípio. Mais adiante, a
mortandade se estenderia por todo o pais.
— Matariam milhares e milhares de pessoas?
— Centenas de milhares.
— Por Deus! Essa gente está doida... ou é dotada de um
senso de humor verdadeiramente grotesco, tétrico. Como
matariam essas centenas de milhares de pessoas?
— Não foi dito.
— Bem, tudo pode ser uma estúpida bravata, não? Para
conseguir semelhante mortandade seria necessário uma
bomba atômica, ou várias, e não creio que... — Brigitte
empalideceu intensamente.
— Ameaçaram com...?
— Não, não... Disseram que as mortes seriam tranqüilas
e que os atentados seriam apenas contra pessoas, não contra
coisas. Isso, evidentemente, exclui a probabilidade de serem
utilizadas bombas atômicas.
Subitamente, Brigitte estava sorrindo, quase mesmo a
ponto de rir.
— Bom, tio Charlie, tudo isso é uma brincadeira idiota,
não há dúvida. Somente uma ou várias bombas atômicas
poderiam provocar tal quantidade de mortes. Além disso, há
a considerar que qualquer artefato atômico que se
aproximasse dos Estados Unidos seria imediatamente
detectado. Quem se atreveria a tal? A Rússia? Não. Pelo
menos do modo como estão as coisas. Depois, é preciso
renunciar de uma vez a essa idéia de que os russos são uns
malvados, que matam pelo simples gosto de matar. Não são
piores nem melhores que nós, os americanos. Quem mais
possui semelhante poder de destruição? A França, a
Inglaterra, o Canadá...? Absurdo. A China? Essa seria a
maior loucura que poderia cometer: talvez suas primeiras
bombas atômicas chegassem aos Estados Unidos, mas a
réplica, partindo de nossas bases estratégicas que rodeiam a
China, seria tão terrível que certamente não lhes restaria
nem a famosa muralha... Tem que ser uma brincadeira
estúpida.
— A mensagem foi repetida por três vazes, cada duas
horas. E sempre com a advertência de que não se tratava de
nenhuma brincadeira. No primeiro ataque pedem morrer
talvez vinte mil pessoas. O segundo poderia matar
quinhentos mil norte-americanos; o terceiro, cinco
milhões...
— Não ameaçam com bombas atômicas... —murmurou
Brigitte. — Ora, vamos, não posso fazer caso de
semelhantes tolices...
Calou-se de chofre, tão bruscamente que deu a
impressão que engolia as palavras que estivera a ponto de
pronunciar. Pitzer olhou-a com grande interesse, quase
sobressaltado.
— Você está um pouco pálida, Brigitte... Sente-se bem?
Ela o olhou, mas pareceu não vê-lo. Seu olhar estava
mais além, muito mais além de Charles Pitzer. Os olhos
azuis se abriam muito, como querendo captar algo que
estava acontecendo num ponto ao qual Pitzer não poderia
chegar jamais. Ela estava tensa e como que isolada do
mundo. O tio Charlie teve que sacudi-la suavemente pelo
braço.
— Brigitte... Que há com você? Não está bem? Os olhos
azuis piscaram várias vezes, rapidamente.
— Sim, estou bem, mas talvez não muito. Acho que bebi
champanha demais esta noite. Nada menos que quatro ou
cinco taças.
Charles Pitzer inclinou a cabeça para um lado, olhando-a
com seus pequenos olhos astutos.
— Quatro eu cinco taças? Bom, sei que você é capaz de
tornar duas garrafas de “Perignon” inteiras e ficar firme...
Que há com você, realmente?
— Estou cansada, com sono, bebi muito... Adeus,
querido tio Charlie.
O chefe dos serviços da CIA no setor de Nova Iorque
ficou estupefato.
— Adeus? Você tem que vir comigo a Washington
agora mesmo!
— Não estou em condições.
— Não está em condições! Deixe de tolices, querida!
Chamam-na para um assunto importantíssimo, quando mais
do que nunca se precisa da agente “Baby”, quando podem
morrer centenas de milhares de americanos... e você diz que
não está em condições! Prepare sua bagagem agora mesmo!
Tenho um avião à espera para levá-la a Washington, onde
receberá instruções...!
— Que instruções?
— Instruções acerca de... Instruções, ora essa!
— Insisto: que instruções, tio Charlie?
— Bem... Não sei. Isso é com mister Cavanagh.
— Sabe mister Cavanagh algo concreto, tem alguma
pista que possa levar a esse louco trocista, há algum meio
de localizar o rádio, ou o homem que pediu os cem milhões
de dólares?
— Não... Claro que não!
— Neste caso, que me poderão dizer em Washington?
Que espécie de instruções me poderão dar sobre algo de que
não têm a menor idéia?
— As ordens que recebi...
— Tio Charlie, volte a Washington e diga lá a todos que
“Baby” não está bem. Sinto-me doente, de verdade.
— Ninguém vai acreditar nisso — grunhiu Pitzer.
— Durante mais de dez anos, desde quando você era
pouco mais que uma menina, seus serviços...
— Estou doente. Estou mesmo. Você pode dizer isso na
Central da CIA, ou onde quiser. Tal como se quisesse que a
MVD soviética viesse a saber: estou doente, tio Charlie.
Não poderei trabalhar neste assunto, não intervirei. Eis tudo.
— Tudo? Brigitte, embora às vezes não pareça, eu a
estimo... Estimo-a profundamente, juro. Não simplesmente
como um homem a uma bonita mulher, acredite. Às vezes...
as vezes me surpreendo pensando em você como se fosse
uma filha... Bem, há dez anos você se tem dedicado a me
proporcionar triunfos, um atrás do outro, sem falhar nunca...
Eu lhe suplico: reconsidere o assunto. Você não pode deixar
de atender a um chamado da CIA...
— Diga que estou doente. E outra coisa: diga também
que não paguem esses cem milhões de dólares. Não
acontecerá nada.
— Brigitte...
— Tio Charlie, “Baby” está lhe dizendo que não
acontecerá nada. Eis tudo.
Charles Pitzer, durante alguns segundos, olhou
atentamente aqueles extraordinários olhos azuis que tão
bem conhecia. Súbito, levantou-se, foi ao banheiro e voltou
trazendo uma pequena maleta. Terminou de tomar a sua
taça de champanha e novamente olhou para a “sua” espiã.
— Nos veremos em Nova Iorque, suponho... —
murmurou.
— Não antes de uma semana. Talvez duas, tio Charlie...
Estou maravilhosamente bem aqui.
— Não seria melhor que Johnny...? — começou Pitzer.
— Boa viagem, tio Charlie.
O chefe de espiões assentiu com a cabeça. Dirigiu-se
para a porta do quarto, mas desviou bruscamente seus
passos em direção a Brigitte. Acariciou-lhe
desajeitadamente o delicado queixo, no centro do qual havia
uma graciosa covinha.
— Boa sorte, “Baby” — sussurrou.
Brigitte limitou-se a sorrir e Charles Pitzer compreendeu
que tudo estava dito, de modo que se foi, sem mais
palavras.
Sozinha, a espiã dedicou-se a fumar e a tomar
champanha, pensativamente, durante alguns minutos.
Depois levou as taças para a cozinha, lavou-as, colocou-as
em seu lugar e tornou ao quarto. Despiu-se, apagou a luz e
se deitou.
Ao que parecia, estava mesmo disposta a não trabalhar.
Que a CIA se arranjasse sem ela, como pudesse. Por que
tinha que ser sempre “Baby” quem quebrasse para os
Estados Unidos os grandes galhos em matéria de
espionagem e atividades outras igualmente perigosas?
Não. O melhor, evidentemente, era dormir.

CAPÍTULO SÉTIMO
Os três astronautas e os três traidores.
Numa entrevista, podem-se obter informações diversas.
O brilho violento de um rubi.

Na manhã seguinte, acordou às sete horas em ponto,


magnificamente repousada, transbordante de vitalidade.
Sem se dar ao trabalho de vestir nem mesmo a menos
efetiva peça íntima, foi à pequena cozinha do bangalô e pô-
se a preparar café com torradas. Estava simplesmente
impressionante, fresca como uma flor, cantarolando uma
canção alegre.
Resolveu ir ver o mar, pelas janelas da frente do
bangalô. Se não estivesse demasiado agitado, daria um
mergulho antes do café... A idéia pareceu-lhe tão boa, que
não a deixou esfriar nem um segundo. Foi à janela, olhou...
e viu o hindu sentado no chão, com as pernas cruzadas,
absolutamente imperturbável. Um ligeiro calafrio percorreu
seu corpo nu ao reconhecer naquele indiano o que
assassinara a facadas Pedro Morales.
Voltou ao quarto, vestiu uma bata, escondeu a pistolinha
de coronha de madrepérola na palma da mão esquerda e
outra vez dirigiu-se à janela da frente, O hindu continuava
lá, imóvel. Olhava para o bangalô, como se à espera de
alguma coisa.
Brigitte abriu a porta e saiu ao pórtico, lenta-mente,
olhos fixos no hindu, que se levantou e fez várias
inclinações de cabeça.
— Que deseja? — perguntou ela.
O indiano meteu a mão sob a blusa, mas “Baby” não
teve necessidade de disparar, pois logo viu o envelope
branco formando contraste com a mão escura do homem,
que se adiantou e estendeu-o. Tomou-o com a mão direita e
deu-lhe duas voltas; não havia nome algum no anverso; no
reverso, apenas um pequeno escudo de uma só cor, em cujo
centro, diminuta, via-se a cabeça de um tigre com as ferozes
mandíbulas escancaradas.
— Um momento — disse Brigitte.
Entrou, fechou a porta e uma vez mais foi ao quarto... e
teve que sair correndo em direção à cozinha, para apagar o
fogareiro sobre o qual o café já começara a transbordar. As
torradas tinham saltado da torradeira e caído no chão.
Resmungando ao vê-las queimadas, Brigitte afastou-as com
o pé e voltou ao quarto. Da maleta, tirou um pequeníssimo
aparelho metálico parecido com um relógio, de aço.
Introduziu um fino arame num diminuto orifício e a outra
extremidade do arame, que terminava no que parecia uma
ventosa do tamanho de meio grão de arroz, colocou-a sobre
o envelope, movendo-a várias vezes, como se o auscultasse.
Finalmente, sorriu e abriu o envelope, já sem
preocupação nem desconfiança. Havia uma folha de
excelente papel, com o mesmo escudo que se via no reverso
do envelope. E na folha, com grandes letras de talhe muito
pessoal, uma simples pergunta, em perfeito inglês:
Pode este humilde marajá aspirar sua
companhia para um almoço a bordo do
“Kolgatar”?

Sorrindo mais amplamente e, ao mesmo tempo,


contraindo as sobrancelhas, Brigitte escreveu a resposta
numa folha de papel sem seu nome e endereço fixo em
Nova Iorque:
O humilde marajá verá realizada sua
aspiração hoje mesmo, às doze e meia.

Saiu ao pórtico e entregou a nota ao hindu, que


novamente se inclinou várias vezes e afastou-se. Ela olhou
para o mar e resolveu, já que o café se havia derramado e as
torradas se haviam queimado, aproveitar o momento para
tomar um banho naquela água azul e tranqüila. Assim, pos
um de seus espetaculares biquínis e foi para a praia.
Diego Montalbán chegou para buscá-la as oito e
encontrou-a já preparada para sair, pontual, mais bela do
que nunca. Beijou-a longamente nos lábios, depois olhou
sorrindo seus admiráveis olhos azuis.
— Acho que não me acostumarei nunca com sua beleza
— murmurou.
— Admito que é difícil... — riu ela. — Sou uma
bonequinha!
Saíram do bangalô e encaminharam-se para o carro.
Montalbán apontou para uma moita florida, sobre a qual se
viam as duas exíguas peças do biquíni vermelho.
— Parece que cheguei tarde para o espetáculo... Esteve
nadando?
— Uns minutos.
— Acho que amanhã virei antes da hora — sorriu ele,
maliciosamente. — É uma coisa saudável madrugar.
Riram ambos e entraram no carro. Brigitte acendeu dois
cigarros e estendeu um a Diego.
— Bom... Vamos conhecer esses três intrépidos
astronautas dos Estados Unidos do Coral... Ou há algum
inconveniente, querido?
— Nenhum. Vamos lá.
***
Dois homens e uma mulher, efetivamente. Os dois
homens eram jovens, de compleição atlética e olhar
inteligente, simpático. A moça também era robusta, sem que
isso lhe prejudicasse em absoluto a feminilidade. Sua
estatura era a mesma de Brigitte e tinha também uma bonita
e espessa cabeleira negra. Seus olhos eram muito negros,
rasgados, e moviam-se com vivacidade, como se
desejassem captar tudo quando acontecia ao redor.
Os três haviam saído de uma das câmaras de provas
espaciais, ataviados com o brilhante trajo de cosmonautas,
mas sem o capacete. Tudo em Coral era menor que nos
Estados Unidos da América, começando naturalmente pelo
próprio pais. Mas, sem dúvida, os coralenses tinham sabido
assimilar e aproveitar os ensinamentos e ajuda técnica que
tanto a América como a Rússia e a França lhes haviam
proporcionado. A impressão era de que tudo estava
perfeitamente estudado e preparado.
— Apresento-lhe — Montalbán foi indicando um a um
— Carlos Alejandro, Paco Robles e Luciana Acevedo...
Esta é miss Brigitte Montfort, do “Morning News” de Nova
Iorque.
— Oh... — pareceu decepcionar-se o bonito e simpático
Carlos Alejandro, ao apertar a mão de Brigitte. — É, norte-
americana?
— Sim, sou... Isso não lhe agrada, señor Alejandro?
Tinha já apertado a mão de Luciana Acevedo e
Francisco Robles. Todos olharam surpreendidos para Carlos
Alejandro.
— Oh, sim, me agrada... — disse este. — Mas estou
decepcionado. Até este momento, pensei que as mulheres
mais formosas do mundo estavam em Coral... E vejo-me
obrigado a mudar de opinião.
Todos se puseram a rir. Montalbán bateu no ombro
atlético do futuro astronauta.
— Você é mesmo incorrigível, Carlos. Não lhe basta ter
roubado o coração de Luciana?
Alejandro ergueu os olhos para o teto.
— Oxalá isto fosse verdade! — exclamou.
— Como! Não pode conquistá-la ainda? É incrível!
— É fria como uma estrela... — lamentou-se Alejandro.
— Sabe o que me disse quando lhe propus que nos
casássemos?
— Que lhe disse ela? — interessou-se seriamente
Montalbán.
— Que sim. Que nos casaríamos quando eu a pudesse
levar em viagem de lua-de-mel.
— Bom... — todos pareciam um tanto perplexos. — Não
acho que isso seja um problema, Carlos. Dentro de uma
semana tudo estará terminado... e não é dinheiro o que lhe
falta, hem?
— Diabo, vocês não entendem mesmo nada! —
resmungou Alejandro. — O que Luciana quis dizer foi que
nos casaríamos quando eu a pudesse levá-la em Lua-de-
mel... isto é, em viagem de núpcias a Lua, esse antipático
satélite da Terra que costuma aparecer à noite no céu.
A gargalhada foi geral, não só entre os cinco
personagens principais, mas entre todos os técnicos e
operadores que estavam no recinto das câmaras de provas.
— Bem — disse Brigitte, rindo ainda — a solução é
simples, Alejandro: dê um jeito para ir na cápsula com a
señorita Acevedo e, quando estiverem em órbita, mude-a.
— Mudar? O quê?
— A órbita. Apodere-se dos controles e dirija a cápsula
para a Lua. Quem sabe... Com um pouco de sorte, pode ser
que cheguem lá!
Novamente todos riram, Diego Montalbán consultou seu
relógio e franziu a testa.
— Tenho muitas coisas que fazer esta manha... Você
concorda em que eu a deixe sozinha com eles, Brigitte?
— Até prefiro — sorriu ela: — assim você não lhes
poderá fazer sinais para que deixem de responder a algumas
perguntas minhas.
— Você é terrível. Bem, rapazes, atendam bem a miss
Montfort. Ela fará uma reportagem sobre cada um de vocês.
Pensem que essas reportagens serão publicadas antes de
dois dias nos Estados Unidos da América e, logo após, em
todo o mundo. Ah, Brigitte, virei buscá-la as doze, para
almoçarmos em...
— Sinto muito, Diego... Aceitei outro convite.
— Bem, nesse caso...
— Do marajá.
— Oh... Sem dúvida, o “Kolgatar” é um tanto maior que
o “Pandora” — disse secamente Montalbán. — Quando
poderemos tornar a ver-nos?
— Se quiser jantar comigo... — disse ela, sorrindo.
— Desculpe, fui um pouco... idiota. Até esta noite,
então. Aproveitarei para trabalhar firme. Ouça, Carlos: o
Pedro esteve por aqui?
— Não, que eu tenha visto.
Os outros moveram negativamente a cabeça e
Montalbán pareceu surpreso.
— Esquisito... A primeira coisa que ele sempre faz é vir
aqui... Se o virem, digam-lhe que o espero no Controle. Até
logo. Não abuse da ingenuidade destes rapazes, Brigitte.
— Você é que está querendo se fazer de ingênuo, Diego.
Sei muito bem que eles estão treinados para o que devem ou
não devem dizer. De outro medo, não os deixaria sozinhos
comigo.
Diogo Montalbán ergueu uma das mãos e afastou-se.
Brigitte seguiu-o com o olhar e, assim, pode ver os dois
homens que estavam entrando na Seção de Provas.
Reconheceu-os imediatamente como componentes do grupo
que na noite anterior estivera discutindo cem Pedro Morales
e assistindo depois ao assassinato deste pela mão do hindu...
Ouviu a voz de Diogo, perguntando:
— Benito, você viu o Pedro?
— Não. Vínhamos justamente à procura dele...
Brigitte deixou de olhar para o tal Benito e o outro, pois
temeu que percebessem a frieza de seus olhos. Voltou-se
para os astronautas e sorriu, tirando da bolsa um bloco e
uma esferográfica.
— Bom. Chegou o momento de trabalharmos.
Naturalmente, começarei pela señorita Acevedo...
***
Às dez horas da manhã, Brigitte Montfort tinha notas
mais que suficientes para os três artigos projetados sobre os
futuros astronautas dos Estados Unidos do Coral. E não só
isso, mas também havia obtido uma interessante série de
informações gerais sobre o Centro Espacial Universal.
Evidentemente, nenhum dos três astronautas estranhou a
diversidade de suas perguntas. Nem sequer quando ela
indagou quem eram o homem chamado Benito e seu
acompanhante, assim como o terceiro, que apareceu pouco
depois na Seção de Provas. Deste modo “inocente”, a espiã
“Baby” ficou sabendo os nomes dos três homens que
tinham assistido ao assassínio de Pedro Morales, cuja
ausência já começava a constituir motivo de séria
inquietação. Haviam telefonado para seu domicilio e saído à
sua procura... Quando ela abandonou o Centro Espacial,
ainda não se sabia nada a respeito do cientista desaparecido.
Naturalmente.
Nem se saberia jamais.
Quanto às três testemunhas do frio assassinato, seus
nomes eram: Benito Flores, Amado Martín e Miguel
Alvarez. Todos eles técnicos em controle orbital. Benito
Flores, além disso, era denominado o “terceiro homem” do
Centro Espacial Universal. Ali ninguém punha em dúvida a
supremacia técnica e científica de Diego Montalbán e Pedro
Morales. Mas, se por um motivo qualquer nenhum dos dois
pudesse responder pela direção do Centro Espacial, Benito
Flores era a pessoa credenciada para assumir o comando das
operações.
Tudo isto originava uma série de perguntas na mente de
“Baby” Montfort. Que estavam tramando? Que era o Zavo?
Quem era Andrei Voronich, o russo que estavam
esperando? Eliminariam também Diego Montalbán, ou,
pelo contrário, tinha isto algo a ver com aquele assunto
desconcertante? E qual a participação do marajá em tudo
aquilo?
***
Nadir Sadanjayan recebeu-a ao pé da escada, como na
noite anterior. Estava agora num trajo mais cômodo, mais
esportivo: calça branca, camisa preta de malha e um lenço
vermelho no pescoço. Como sempre, impecável e
impressionante. Tinha a cabeça descoberta e, a não ser pelo
tom excessivamente cobreado de sua pele e pela forma um
tanto oblíqua de seus olhos penetrantes, algo exótico, teria
podido passar por um europeu qualquer, inclusive com
aquela barba viril e o arrogante bigode de pontas retorcidas.
Estendeu a mão para ajudá-la a subir a bordo, depois se
inclinou, fazendo o gesto de beijá-la.
— Confesso sinceramente que quando mandei Naresh
com meu pedido não esperava merecer esta honra.
— A honra é minha, Nadir — sorriu simpaticamente
Brigitte. — Gostaria de esnobar meus amigos dizendo-lhes
que um autêntico marajá da Índia convidou-me para
almoçar.
— E eu contarei aos meus que almocei com a mais bela
mulher do mundo.
— Então, os dois ficaremos contentes... — riu “Baby”.
— Diga-me: Naresh é o nome do seu servo que me levou o
convite?
— Com efeito... Cometeu alguma incorreção?
— Oh, nenhuma... Simples curiosidade. Pergunto-me se
costuma tomar aperitivos, Nadir.
— Não. Mas tomarei suco de abacaxi enquanto você
toma o seu. Qualquer coisa que deseje, tem apenas que
pedir. Eu teria um profundo desgosto se saísse do
“Kolgatar” sentindo-se insatisfeita.
— Bem... Suponho que não posso pedir um rubi, por
exemplo — riu novamente Brigitte.
Os olhos negros de Nadir Sadanjayan cintilaram.
— Por que não?
— Oh, foi uma brincadeira, naturalmente... Suponho que
almoçaremos lá embaixo, Nadir.
— Sim. Por favor...
Indicou a entrada para os camarotes, cedendo-lhe o
passo. Brigitte desceu pela escada de madeira até o amplo
corredor atapetado, que já conhecia. A luz chegava ali
procedente da grande janela da popa e pelas vigias do salão
de fumar, cuja porta estava aberta. Diante de outra porta
viam-se dois hindus, imóveis como estátuas, mas um deles
moveu-se velozmente, com absoluta precisão, para abrir a
porta quando ambos dela se aproximaram. Novamente fez o
marajá um gesto com a mão e Brigitte entrou... ficando
boquiaberta com a magnificência daquele ambiente: peles
de tigre, armas brancas em panóplias de veludo, objetas de
prata e ouro em profusão, quadros, móveis lavrados nas
mais finas madeiras do Oriente, almofadões de cores
vivas... O sol, entrando por duas largas vigias, dava a tudo
uma luminosidade brilhante que fazia realçar o colorido dos
tecidos e arrancava aos metais mil cintilações. A um lado, a
mesa já estava posta para dois.
Nadir Sadanjayan captou o olhar de admiração de
Brigitte e sorriu feliz.
— Agrada-lhe esta sala? — perguntou.
— Não sei o que dizer, Nadir... É tudo maravilhoso!
— Mas não classicamente hindu. Nos últimos anos,
reconhecemos algumas das vantagens da civilização
ocidental e resolvemos adotá-las. Especialmente quando
saímos de viagem, longe de nossa pátria.
— Por isso trouxe apenas uma esposa, a principal?
— A maarâni é minha única esposa.
Brigitte ficou agora realmente assombrada.
— Mas... julgava que os marajás pudessem ter muitas
esposas...
— Bom. Alguns ainda insistem nesse ponto, apesar de
atualmente não ser... bem-visto. Entretanto, quando se
pensa com seriedade no assunto, chega-se à conclusão de
que uma esposa é mais que suficiente... se capaz de ter
filhos.
— A maarâni teve filhos?
— Quatro — sorriu ufanamente Nadir Sadanjayan.
— Quatro! Mas se parece ter vinte anos...!
— Dezenove. Quando a desposei, tinha quatorze.
— Ah, sim... Esquecia-me de que as mulheres hindus
casam muito cedo. Desculpe meu espanto, Nadir, mas
minha mente ocidental às vezes prevalece sobre meus
conhecimentos.
— Nada há a desculpar. Sentamos?
Apenas o fizeram, o marajá bateu palmas, suavemente, e
no mesmo instante entrou um dos servos, colocando diante
deles uma bandeja na qual, já sem assombro, Brigitte viu
um aperitivo europeu e um copo com suco de abacaxi
natural. Sadanjayan disse qualquer coisa ao servo, que se
inclinou e retirou-se, fechando a pana.
O marajá ofereceu a Brigitte o cálice de aperitivo.
— Como lhe estava dizendo, chega-se à conclusão de
que uma só esposa é na verdade suficiente. Abolido que foi
o costume de conservar a maarâni encerrada como uma
escrava, quase todos nós, os marajás jovens, não temos
inconveniente em mostrar nossa esposa. Em geral, uma boa
esposa, inteligente e discreta, prestigia o homem que a
possui, e assim o compreendemos. Por que ocultá-la?
Quanto a ter muitas esposas, é algo bastante caro e... inútil.
Claro que nós, os homens, somos muito caprichosos neste
sentido.
— Caprichosos?
— Quero dizer que embora tenhamos uma esposa bonita
e jovem, nossos olhos não se fecham ao encanto de outras
mulheres. Por isso é que anteriormente eram muitas as
esposas. Centenas, por vezes. Mas creio que agora é
melhor... Uma só esposa. E quando outra mulher for de
nosso absoluto agrado, sempre será possível consegui-la.
Brigitte sorriu inexpressivamente.
— E a tática começa por convidá-la para almoçar?
— Entre outras coisas — sorriu também Nadir
Sadanjayan.
Novamente ele bateu palmas. A porta se abriu e o criado
que havia servido o aperitivo entrou, trazendo em ambas as
mãos um almofadão verde, que a um sinal do marajá
colocou diante de Brigitte, inclinando-se.
Uma fortíssima cintilação vermelha quase cegou por um
instante a espiã internacional. Teve que semicerrar as
pálpebras para poder contemplar o rubi, grande como uma
noz, que estava no centro do almofadão verde, sobressaindo
de um modo realmente violento, O rubi, de uma beleza
assombrosa, única, era soberbo por seu tamanho, seu
colorido, seu brilho...
— É para você, Brigitte — disse o marajá.
— Para mim?
— Com minha... admiração. Está engastado num
pequeno broche de ouro, que permite usá-lo de diversas
maneiras, seja no cabelo, ou como um anel, um adorno para
o vestido... Permita-me.
Uma das grandes e escuras mãos tomou o rubi, que
segundos depois ficava colocado sobre o seio esquerdo de
Brigitte. O servo já se retirara.
— Nunca brilhou tanto como hoje... — murmurou
Sadanjayan. — É bem verdade que a alegria é maior em
quem dá que em quem recebe, se quem recebe é digno do
presente.
— Nadir, é demais... Além disso, deve ser de sua esposa,
da maarâni. Não mce parece correto que...
— A maarâni tem muitos rubis, Brigitte. Aceite sem
constrangimento.
— Bem... Mas estou notando a ausência da maarâni e
seu inseparável “Yaksa”. Espero que sua esposa não esteja
indisposta.
— Não — cintilaram os olhos do hindu. — Resolveu
sair para um passeio e garantiu-me que demoraria a voltar.
É possível que almoce em um local adequado para ela, bem
atendida por dois de nossos servos... E sob a proteção de
“Yaksa”, naturalmente. Creio que depois do almoço dará
um passeio pela praia e depois... irá fazer algumas compras.
Adora comprar coisas no estrangeiro. Em suma, não estará
de volta antes de cinco ou seis horas.
Brigitte olhou intensamente para o hindu.
— É bastante tempo, Nadir.
— Depende — murmurou ele.
— Sim, depende... Que tal se almoçarmos primeiro?

CAPÍTULO OITAVO
A MVD não se limita a espionar americanos e chineses
Mas, afinal, que vem a ser o Zavo?
Uma gruta cavada nos rochedos

Uma hora mais tarde, Brigitte se estendia sobre os


almofadões, suspirando profundamente. Nadir Sadanjayan
estendeu-se a seu lado, olhou o rubi, olhou os olhos azuis e
sorriu, tenso.
— Creio que o rubi não pode brilhar direito, Brigitte.
Você deveria fechar os olhos.
— Não seria melhor tirar o rubi? — sorriu ela. —
Prefiro ter os olhos sempre bem abertos, Nadir, para ver os
seus. E lhe direi uma coisa: você não necessitava
presentear-me com ele, pois eu não me vendo, nem por mil
rubis como este.
— Não tive a intenção...
— O que quero dizer — atalhou ela — é que quando
vim aqui já sabia o que você desejava... e o que eu desejava.
E parece que ambos temos o mesmo desejo.
Nadir Sadanjayan pestanejou. A idéia de que aquela
mulher incomparável tivesse vindo disposta a entregar-se a
ele, a corresponder à sua paixão com ou sem o presente do
rubi, fez arder seu sangue. Ter uma mulher que “pagava” o
preço de um rubi era muito diferente de ter a mesma mulher
pela própria vontade desta. Eis o que fazia o hindu arder do
modo mais intenso. Teria certamente ardido menos se
soubesse que aquela mulher, a ponto de se entregar a ele,
jamais lhe cederia outra coisa que seu corpo. Um corpo não
é muito, mas pode servir para enfraquecer a mente de um
homem, para torná-lo disposto a responder qualquer
pergunta, embora a respeito de palavras estranhas como
“Zavo”, ou de homens desconhecidos como Andrej
Voronich, ou da participação clandestina desse homem num
lançamento espacial...
— Você é mais bela que tudo no mundo, Brigitte.
— Não tanto como gostaria de ser para você Nadir. Mas
diga-me se o que vou lhe oferecer é de seu agrado...
Num instante, a espiã se despiu, ante o olhar candente do
hindu. Foi ela mesma quem colocou as mãos bronzeadas
sobre seus seios, enquanto oferecia os lábios aos de Nadir
Sadanjayan.
Naquele exato momento soou a batida na porta e o
marajá estremeceu violentamente. Brigitte afastou-se dele e
olhou-o com um ar de censura risonha.
— Esqueceu-se de dar ordem para que não fossemos
incomodados? — perguntou.
— Claro que não — disse ele, secamente. — E esteja
certa de que alguém vai pagar caro por isto.
Pôs-se de pé, observando Brigitte, enquanto ela se vestia
rapidamente.
Por um momento, pensou que ele fosse empunhar uma
daquelas armas brancas que reluziam nas panóplias e com
ela cortar a cabeça do audacioso intruso. Mas, finalmente, o
marajá dirigiu-se para a porta e abriu-a com um movimento
brusco e uma expressão de fria cólera no rosto adusto.
— Quem se atreve a...? — começou.
Calou-se de súbito quando Naresh, o assassino de Pedro
Morales, entrou precipitadamente, com repetidas
inclinações de respeito e desculpa, aproximando em seguida
a boca de seu ouvido e murmurando algumas palavras com
grande excitação. A fisionomia severa de Nadir Sadanjayan
logo foi mudando, enquanto seus brilhantes olhos negros
olhavam de través para Brigitte. Por fim, ele deu uma
ordem seca e voltou-se para ela, os lábios crispados num
sorriso apologético.
— Eu sinto muito... É uma visita importantíssima e...
— Nesse caso, retiro-me — ela pôs-se de pé. — Espero
que nos tornemos a ver... em breve.
— Não. Não vá... Por favor. Espero desvencilhar-me
rapidamente... e tornaremos a ficar sozinhos.
— Creio que minha presença não é correta, Nadir, tendo
você que receber uma visita. Compreenda... — o hindu
pareceu hesitar e, então, a mais astuta espiã do mundo
acrescentou a toda pressa: — Mas eu ficarei, se é esse o seu
desejo.
— Bem, realmente...
Já se ouviam passos, muito abafados, no tapete do
corredor. Nadir olhou para Brigitte, porém ela se dedicava a
acender um cigarro, agora sentado à mesa, como se nada
tivesse estado a ponto de acontecer, e, claro, evitando olhar
para Sadanjayan, o que teria sido como lhe dar
oportunidade para aceitar seu oferecimento de retirar-se. O
que, evidentemente, não desejava fazer a agente “Baby”.
Viu o hindu estender a mão a um homem alto, de grande
cabeleira grisalha e ombros largos. Um tipo grande, forte,
de uns cinqüenta anos, sobrancelhas espessas, olhos claros,
boca firme. Se ela entendia alguma coisa de raças ou
simplesmente de características raciais, aquele indivíduo era
um russo caucasiano.
E corroborando tal classificação, ele falou em russo ao
saudar o marajá, que correspondeu calorosamente, fechou a
porta e voltou-se para Brigitte.
— Fala russo, Brigitte? — perguntou.
— Infelizmente não... — mentiu ela com tranqüilidade
olímpica. — Mas bem que gostaria! Gostaria de falar russo,
chinês. hindi, japonês... Seria formidável!
— Bem... O caso é que este cavalheiro fala apenas russo,
de modo que você terá que nos perdoar.
A gentilíssima e “inocente” miss Montfort olhou
sorrindo para o recém-chegado.
— Espero que não digam nada de mau a meu respeito.
— Impossível! — sorriu Nadir; voltou-se para o russo,
trocando de idioma: — Ela é uma jornalista americana,
Voronich.
— Que se retire — replicou este. — Não a necessitamos
para nada, suponho.
— Tenho interesse em que permaneça aqui. Há muito
pouco o que falar, na verdade, e ela não entende uma só
palavra de russo, pelo que podemos ficar tranqüilos.
— Prefiro que se vá. Ou iremos nós para outro camarote,
Sadanjayan.
— Ora essa, Voronich! Se a deixarmos sozinha, talvez
decida retirar-se, por discrição... E eu quero que fique.
Assim, terminemos logo: trouxe o Zavo?
— Certamente.
— Em perfeitas condições?
— Em perfeitíssimas condições. Mas não foi fácil,
Sadanjayan. Estou começando a pensar que cinco milhões
de dólares é pouco, por tudo o que fiz, pelo perigo que estou
correndo.
— Está correndo perigo? — sorriu secamente o hindu.
— Que espécie de perigo?
— De morte, naturalmente. Fui seguido por dois homens
da MVD.
Nadir Sadanjayan só conseguiu dominar-se devido à
presença de Brigitte.
— Está Louco? — perguntou. — Deixou-se seguir por
dois agentes de seu país...!
— Não estou completamente seguro de que o sejam,
mas... Bom, creio que são, com noventa por cento de
probabilidade.
— Eu lhe disse que tomasse todas as precauções e que...!
— Tomei! E daí? Pensa que a MVD se dedica
exclusivamente a espionar os americanos e os chineses? A
MVD está em toda parte, inclusive dentro dos mais
escondidos organismos da Rússia. Suspeitavam que meu
colega e eu estávamos inventando alguma coisa e era
natural que nos vigiassem... O risco era inevitável,
Sadanjayan: ou corrê-lo, ou permanecer em Mascou,
temendo mover-me.
— Está bem... Voltemos ao Zavo. Trouxe-o com seu
dispositivo especial, bem comprimido, com...?
— Digo-lhe que o Zavo está absolutamente perfeito.
Nenhuma razão para inquietar-se a respeito dele. Ocupe-se
desses dois homens da MVD, isso sim. E faça-o sem ‘perda
de tempo. Vim diretamente do aeroporto para cá, de modo
que os obriguei a seguir-me sem que tivessem tempo de
fazer qualquer comunicação por telefone, rádio, telegrama
ou outro meio... Fiz a mesma coisa no aeroporto de Havana,
não lhes dando tempo para nada. Agora, eles já sabem que
estou aqui, onde termina minha viagem, e se lhes dermos
tempo, notificarão de um modo ou de outro a MVD. Se os
impedirmos, seus agentes me procurarão somente em
Havana.
— Compreendo... Sim, é necessário agir rapidamente.
— Antes que telefonem para qualquer lugar, ou passem
um telegrama, ou enviem um cartão postal...
Imediatamente, Sadanjayan. Agora mesmo.
— Está bem. Calma. Como são esses homens? Onde foi
que os deixou, exatamente?
— Poderá vê-los se olhar pela janela — Voronich
indicou a vigia mais próxima. — Aposto que estão entre os
rochedos, espiando o “Kolgatar”.
— Bem — o hindu passou a mão pela barba negríssima.
— Vamos resolver isso sem demora, mas é preciso estudar
o modo de...
— Estudar o quê? — grunhiu o russo. — Mate-os, é
tudo.
— Não, não, não, Voronich... Nada de matar tão
levianamente. Que ganhamos com precipitações? Por outro
lado, se os apanharmos vivos, eles nos dirão exatamente o
que sabem a seu respeito, de sua fuga da Rússia, do Zavo...
— Não sabem nada do Zavo!
— Melhor. Mas... convém nos certificarmos.
Certificarmo-nos a respeito de tudo. Talvez esses dois
homens não estejam sozinhos, mas tenham vindo outros
também. Não quero riscos desconhecidos a esta altura,
Voronich.
— De acordo: faça como quiser, mas depressa. Irei
hospedar-me num hotel da cidade, mas quando o fizer quero
estar certo de que ninguém me vigia. Como vai o assunto
dos coralenses subornados?
— Bem... de certo modo. Ontem fez-se necessário matar
um. Já sei que foi uma loucura, mas não havia remédio! Ele
começou a tirar conclusões e conseguiu saber em que
consistia o Zavo. Então, negou-se a colaborar como havia
aceito no princípio e ameaçou contar tudo o que sabia ao
Presidente ou ao Governador de Coral. Não houve mais
remédio que eliminá-lo, infelizmente.
— E o cadáver?
— Esqueça-o.
Andrei Voronich encolheu os ombros.
— E os outros coralenses do Centro Espacial?
— Os outros continuam dispostos a desempenhar seu
papel. Bom, vou me ocupar de seus dois compatriotas da
MVD. Volto dentro de poucos minutos. Mandarei que os
levem para a caverna.
Saiu da opulenta sala, após um olhar de desculpa a
Brigitte. O russo Andrej Voronich também olhou para a
espiã norte-americana, sem se deixar impressionar por sua
beleza. Antes, parecia irritado com aquelas “distrações” que
Nadir Sadanjayan procurava em pleno curso de uma
operação cujo personagem central parecia ser o tal Zavo.
Que podia ser o Zavo?
Brigitte levantou-se e sorriu para o imponente russo
caucasiano como se fosse a mais tímida das jovens que se
deixavam cortejar por um marajá e aceitavam rubis de
presente. Saiu ao corredor e viu Nadir falando com quatro
de seus servidores, que assentiam com a cabeça. Um deles
moveu os lábios e o marajá voltou-se velozmente, cenho,
carregado.
Mas logo sorriu com amabilidade perfeita.
— Deseja alguma coisa? — perguntou.
— Eu me retiro, Nadir.
— Oh...
— Sim, tudo foi muito lindo e eu estava disposta a...
Não sei se poderá compreender-me, porém tenho a
impressão de que algo mudou cosi a chegada do seu amigo.
— Compreendo — admitiu o hindu, a contra-gosto.
— De qualquer modo, se faz questão que eu fique... Não
será o mesmo, mas ficarei.
— Não... Você pode dar-me muito mais que isso, eu sei.
Creio que será melhor eu esperar... que volte.
— Quando você quiser, Nadir.
— Mandarei buscá-la quando o momento for propicio. E
asseguro-lhe que então ninguém nos interromperá.
— Que assim seja. Pode mandar levar-me ao
embarcadouro?
— Bismal a levará — indicou o outro assassino de Pedro
Morales. — Sim, Bismal e Naresh a levarão numa lancha
dentro de um minuto. Dá-me licença...?
— Esperarei lá em cima. Gosto do sol. Até... quando
você quiser, Nadir.
Beijou-o nos lábios, brevemente, como se estivesse
perturbadíssima pela presença dos silenciosos e discretos
servidores do marajá. Depois subiu ao convés, com efeito.
Que podia fazer embaixo se não entendia uma palavra do
idioma de Nadir Sadanjayan? A conversa em russo havia
entendido totalmente, mas qualquer um entre as centenas de
dialetos hindus que o marajá escolhesse a deixaria no escuro
mais absoluto.
Por outro lado, do convés podia olhar o vizinho litoral,
tentando localizar es dois homens que, segundo Voronich,
eram da MVD soviética.
Não lhe foi dado tempo para localizá-los. Sadanjayan,
Bismal e Naresh apareceram e, enquanto os dois servos
desciam à lancha, o marajá despedia-se dela, que fazia
esforços para não procurar com os olhos os outros dois que
haviam estado com ele no corredor.
Viu-os quando a lancha já estava junto à costa. Surgiram
ambos a pequena distancia, porém a nado, após terem
percorrido por baixo d’água um trecho incrível, a pulmão
livre. Todo seu equipamento consistia nas bombachas e uma
corda cheia de nos...
Teve que deixar de olhá-los, sob pena de que Naresh e
Bismal se dessem conta de sua perspicácia e excelente vista.
Já no embarcadouro natural, Brigitte abandonou a lancha e
subiu os poucos degraus talhados na rocha. Tal como
esperava, Bismal e Naresh não regressaram ao iate, mas
permaneceram ali mesmo, olhando-a fixamente. Estavam,
sem dúvida, à espera de que ela se fosse.
O melhor era não os fazer esperar. Percorreu a
plataforma de rocha, depois o breve espaço de areia e foi
para onde tinha deixado o carro que Diego Montalbán
pusera à sua disposição. Ligou o motor e afastou-se.
Trezentos metros mais além, a caminho de seu bangalô,
meteu o carro entre umas palmeiras, parou o motor e saltou
imediatamente. Ficou imóvel, escutando... Apenas o rumor
do mar chegava até ela.
Voltou a pé pelo caminho percorrido com o carro. Em
menos de dois minutos de marcha quase atlética, chegava à
beira da praia, no ponto onde começavam as grandes rochas
nas quais estava o embarcadouro natural. Foi escalando-as,
até atingir uma altura da qual podia ver perfeitamente o
“Kolgatar”, branquíssimo, reluzindo ao sol. Olhou também
para o embarcadouro. Naresh continuava lá, na lancha,
aparentemente endireitando alguma coisa que dificultava
seu regresso ao iate. Bismal chegava justamente então à
areia, longe de Naresh; o caminho que tinha percorrido não
fora nada fácil, evidentemente: agarrando-se às rochas
verticais como um “homem-mosca”, para numa curta,
porém arriscada e esforçada viagem atingir a praia. Uma
vez na areia, viu-o dirigir-se para onde sabia que o marajá
tinha à sua disposição os dois carros que havia alugado logo
ao chegar a Corália.
Interessante.
Interessante de verdade o modus operandi dos hindus.
Por onde andariam os agentes da MVD, enquanto isso?
Não conseguiu vê-los. Mas pode ver os outros dois
hindus que tinham vindo do iate por baixo d’água, atavam
deslizando pelos rochedos, levando presas nos dentes as
cordas de nós. Seguindo a direção de sua marcha em pleno
sol, Brigitte pode avistar finalmente um dos russos. Quer
dizer, supôs que devia ser um deles, agachado entre as
rochas... Exatamente para onde ele estava iam os dois
hindus com suas cordas.
Verdadeiramente interessante.
A agente “Baby” mudou de posição, com toda a cautela
que o caso exigia, sempre tendo em conta a possibilidade de
que, do iate, de qualquer de suas vigias, Sua Alteza Nadir
Sadanjayan estivesse observando com um binóculo a
operação, aproveitando, sem dúvida, para esquadrinhar os
rochedos.
Demorou três minutos até encontrar uma posição
absolutamente privilegiada. Tanto, que então só pode ver os
dois russos, que não sabiam o que os esperava: os dois
servos hindus estavam quase em cima deles e trocavam
sinais... O ataque de surpresa não tardaria nem sequer cinco
segundos. Sim, via agora os russos e os dois hindus com as
cordas de nós, mas já não via Naresh e Bismal... Onde
estariam?
A ação foi fulminante, brusca.
Os dois hindus saltaram das rochas para o esconderijo
dos agentes da MVD. Não se ouviu nem sequer uma voz,
um grito, um arquejo... O que estava em posição mais
elevada ergueu vivamente a cabeça, de modo que o golpe
com a corda cheia de nós alcançou-o em cheio no rosto.
Então, sim, gritou em russo ao tremendo golpe que, além
de aturdi-lo, devia ter-lhe arrancado a pele dolorosamente.
Levantou-se, mas recebeu outro golpe, agora no peito, que o
atirou de costas, rolando pelas rochas até a areia.
O outro espião russo teve, na verdade, melhor sorte, já
que o golpe com a corda, acertando-lhe em cheio na cabeça,
deixou-o estendido sobre a rocha candente. O que havia
caído e rolado pôs-se de pé, cambaleando, com a cara cheia
de sangue, tentando limpar o que lhe escorria em
abundância da testa sobre os olhos. Sua mão direita
mergulhou no paletó e por um instante, ao retirá-la, o
revólver reluziu ao sol, orientando-se para o alto dos
rochedos, em busca de seus inimigos.
Naresh apareceu atrás dele, com uma pistola na mão.
Não se ouviu nenhum tiro, mas Brigitte pode ver como
russo crispava, se encolhia, girava sobre si mesmo e
tombava de bruços na areia... Pistola com silenciador,
naturalmente.
Ainda depois de ter recebido o tiro num ponto das
costas, o homem da MVD insistiu em defender-se; levantou
a mão, empunhando ainda o revólver. Os Outros dois
hindus caíram junto a ele e o mais próximo golpeou-o na
cabeça com a corda de nós.
Fim.
Naresh acercou-se de ambos e disse alguma coisa. Eles
carregaram com o russo que continuava sem sentidos sobre
os rochedos, enquanto Naresh examinava o que tinha
recebido o balaço. Os dois hindus que levavam o russo
desapareceram, regressando em seguida apenas um deles,
que ajudou Naresh a carregar o ferido, agarrando-o um
pelos pés e o outro pelas axilas. Perfeito.
Em pleno sol, a menos de trezentos metros dos
embarcadouros esportivos de Corália, estava acontecendo
tudo aquilo, ante o olhar frio e expectante da melhor espiã
que jamais existiu no mundo. E que demonstrou sê-lo ao
afastar-se a toda a pressa dos rochedos. Saltou para a areia e
correu até o palmeiral mais próximo e a cuja retaguarda
sabia que passava a estrada que saía de Corália em direção
ao norte.
Realmente. Antes que decorresse um minuto, um dos
carros do marajá passou por ela. Naresh ia ao volante e ao
seu lado ia um dos outros hindus. No assento traseiro
deviam ir os outros dois, com os agentes russos capturados.
Tão logo o carro se afastou, Brigitte correu à disparada
até onde havia deixado o seu. Entrou rapidamente nele, pos
o motor em marcha e cruzou por entre as palmeiras, rumo à
estrada, disposta a seguir o carro de Nadir Sadanjayan até
onde quisessem levá-la.
E era muito pouco provável que aquela presa escapasse a
“Baby” Montfort.
***
Finalmente, o carro do marajá se deteve, perto do mar,
num ponto onde os rochedos eram muito mais abundantes
que na pequena enseada onde estava ancorado o imponente
“Kolgatar”.
E cento e poucos metros atrás, o de Brigitte Montfort
meteu-se imediatamente entre a vegetação. Nem sequer teve
necessidade de sair do carro para ver, por entre as palmeiras
tropicais, a entrada da caverna onde os quatro hindus
introduziram os dois espiões russos. Um orifício nos
rochedos da praia, que parecia inofensivo e inacessível
devido a dois grandes penhascos que quase o tapavam
completamente. Mas os hindus não haviam tido a mínima
dificuldade em separá-los, de maneira que puderam deslizar
sem embaraço através daquela negra e pequena abertura.
Um esconderijo que, por si mesmo, teria revelado a “Baby”
a inclusão de algum traidor coralanse naquele assunto, já
que Nadir Sadanjayan sozinho teria muito pouca
probabilidade de encontrá-lo, sem conhecer o país, nem o
terreno. Evidentemente, aquele esconderijo lhe havia sido
indicado pelos traidores dos Estados Unidos do Coral:
Benito Flores, Amado Martin. Miguel Alvarez.
Os quatro hindus demoraram quase quinze minutos a
sair, muito ignorantes da linda e paciente pantera de olhos
azuis que ficara esperando-os. Quando afinal partiram, a
pantera de olhos azuis não se moveu. Continuou a espreitar
atentamente o orifício nas rochas durante mais de dez
minutos, imóvel, imperturbável.
Por fim, também “Baby” abandonou o lugar.
***
A malha negra, finíssima, ajustava-se completamente a
seu corpo e, diante dela, a maletinha vermelha com flores
azuis, aberta, oferecia ainda a possibilidade de mil surpresas
mais. Junto à maleta, uma barra de ferro, conseguida na
cozinha. Necessitaria daquela alavanca para mover os
penhascos que tapavam a entrada da caverna dos rochedos.
Olhou a hora no pulso e franziu a testa, aborrecida.
Ainda demoraria bastante para que fosse noite completa, de
modo que era arriscado sair já do bangalô. Porém, se
esperasse mais tempo, Diego Montalbán ali se apresentaria,
a fim de levá-la para jantar. E ela ainda não desejava dar
explicações ao simpático cientista coralense.
Num pedaço de papel, escreveu o bilhete:
Diego,
peço-lhe que me espere no “Pandora”. Lá
estarei, o mais tardar, as dez da noite, e
então lhe explicarei por que tive que me
ausentar tão de improviso. Até logo.
Brigitte

Recolheu tudo, olhou pelas janelas do bangalô e,


convencida de que não havia ninguém ali por perto, saiu
para meter-se incontinenti no carro e partir a toda pressa. Na
porta do bangalô tinha ficado cravado o bilhete dirigido a
Diego Montalbán.
Levou vinte minutos escassos para chegar aos rochedos
onde sabia da existência de uma caverna. Deixou o carro
escondido no mesmo lugar que utilizara à tarde, apanhou a
maleta e agachou-se entre o mato rasteiro, sempre
silenciosa, fria e vigilante como o animal de presa em que o
longo exercício da espionagem a havia convertido.
Tinha apenas que esperar que a noite se fizesse
completa.
***
Ouvia-se o rumor do oceano e o zumbir dos insetos,
como uma orquestra bizarra, incansável. Era tudo. A noite
havia chegado e a agente “Baby” já não precisava esperar
mais.
Negra entre as negras sombras, em sua malha
perfeitamente ajustada ao corpo escultural, deslizou para os
rochedos. Lá chegou sem novidade, ouvindo tão-somente o
rumor do mar e dos insetos, sempre igual, invariável,
monótono. Deixou a maleta no chão, apoiou a ponta da
pequena alavanca de ferro entre um dos penhascos e a
rocha, e experimentou, suavemente. Quase sorriu,
felicitando-se pela sensatez de sua previsão ao munir-se de
uma alavanca daquela espécie. Sempre lenta-mente, sem
produzir ruído, afastou o primeiro penhasco, sujeitando-o
com os joelhos... Se ele resvalasse, lhe esmagaria os pés e a
deixaria ali, imobilizada. Algumas pequenas gotas de suor
apareceram em sua testa. Pouco a pouco, absolutamente
concentrada naquele trabalho, conseguiu afastar a pedra,
sem que caísse, deixando-a no rebordo junto a entrada.
Endireitou-se, respirando forte, estirando os músculos.
Seu olhar fixou-se no negro orifício, calculando a
possibilidade de passar por ele sem que fosse necessário
mover o segundo penhasco. Talvez estivesse tomando
excessivas precauções e os prisioneiros russos se
encontrassem sozinhos, bem amarrados e amordaçados, mas
não se podia arriscar a fazer ruído, pois também podia ser
que dentro houvesse vigilância sobre os dois homens da
MVD...
Empunhou a alavanca, aproximou-a do segundo
penhasco... e então ouviu a voz às suas costas, num inglês
pronunciado com estranho acento metálico:
— Não se mova, mensahib.
Brigitte Montfort fez exatamente o contrário de não se
mover. Voltou-se tão velozmente, com tamanha agilidade,
com tanto desperdício de reflexos defensivos, que o hindu
que a estava ameaçando com uma pistola não teve tempo
para nada. Recebeu em plena testa o golpe da alavanca de
ferro e saltou para trás, lançando um grito estranho, e
deixando cair a arma... Tombou de costas, batendo com
toda a força contra o chão, pareceu ricochetear de um modo
inesperado e foi cair de bruços, justamente sobre a pistola
que acabava de soltar. Seus dedos se crisparam na coronha
da arma, pôs-se de joelhos, apoiou-se também sobre as
mãos.
Brigitte estava já na frente dele. A barra de ferro se
ergueu acima de sua cabeça para cair, terrivelmente, sobre a
do hindu, com um arrepiante estalido de osso
despedaçado... O homem derrubou-se de bruços e não se
moveu mais. Já não se moveria nunca mais.
“Baby” ficou de joelhos junto ao cadáver, arquejando, o
rosto tenso, olhando ansiosamente a seu redor. Não
acreditava que aquele homem estivesse ali sozinho...
— Tanuk — ouviu chamar.
Voltou-se com um movimento felino para a esquerda. E
enquanto se voltava, movia novamente o braço direito,
levantando a barra de ferro. O outro hindu logo surgiu,
empunhando também uma pistola. Seus pés pareceram
cravar-se bruscamente no chão, a quatro ou cinco metros da
espiã. Numa fração de segundo, ele viu e compreendeu
tudo. Sua mão direita, armada com a pistola, ergueu-se e
disparou.
Plop... Plop...
Apenas o som festivo de duas rolhas da champanha
espocando.
Continua...

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