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Buquê de Línguas

Tereza Albues

Contos

CarlinijZoniato
^ ed.tarial
Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução de panes ou do todo desta obra sem autorização expressa da Editora (an. IB-t do
Código Penal e Lei 9.610,de 19 de fevereiro de 1Ç>98).

DadosInternacionais de Catalogação na Publicação(CIP)


(Câmara Brasileira cio Livro,SP,Brasil)

Albues,Tereza
Bucpiê delúiguas:contos/Tereza Albues. —
Cuiabá,MT:Cailini&Caniato,2008.

ISBN978^5^146-58-3

1.Contos brasileiros I.Titulo.

OBOTffiO CDD869.93
Índices para catãlcrgosistemático:
1.Contos:Literatura brasileira 869-93

Editores
Elaine Caniato
Ramon Carlini

Capa
Elaine Caniato

Diagramação
Ramon Carlini

Revisão
Cristina Campos

Ilustrações
Adir Sodré

"Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma


Carlini & Caniato Editorial (nome fantasia da Editora TantaTinta Ltda.)
P
CaiiiniJCaníato
Rtja Nossa Senhora de Santana, 139 - sl. 03- Goiabcira
78.020-610-Cuiabá-MT-(65)3023-5714
fique desamparada do ser que a revelou."

^ editorial www.cantatinta.com.br/carliniccaniato (Manoel de Sarros - Livro Sobre Nada)


Sumário

Tereza Albues: a apaixonada cosmovisão 9

Buquê de Línguas 13
Três Instantâneos na Cidade Maravilhosa 25

A Rebelião da Magnólia -(1997/1998) 33


O Furo do Mamão 47

O Enigma de Violeta H 55
Cena em Sustenido 65
Guilhotina de Veludo 71

Georgina na Janela 79
Por Onde Andarás? 85

A Fábula do Anjo 89
Seda Selvagem 97
A Ilha das Cigarras 119
O Rapto de Cora Mara 125
A Visita do Duque 139
Tereza Albues:
a apaixonada cosmovisõo

Na primavera de 1999,em New


w. York, Tereza Albues concluiu
seu conto Buquê de Imgucise,
õ no mesmo ano, esteve em Pa
ris, para receber menção hon
rosa ao referido conto no Prêmio
Guimarães Rosa, promovido
pela Radio France Intemational.
Esses fatos, ao integrarem a realidade fascinante da vida da
escritora mato-grossense, alimentam proverbial evidência no
meio literário: a verdadeira dimensão do escritor não reside
somente em sua obra, em sua habilidade em subtrair as emo
ções do fundo das almas, mas também na presença cósmica,
na vitalidade da trajetória e no exercício cotidiano.
Escritora em tom maior,romancista, contista... Assim começa,
no Dicionário crítico de escritoras brasileiras, de Nelly Novaes
Coelho,o verbete de Tereza Albues com mais de três substanciosas
páginas. Com efeito, são poucos todos os espaços quando se
trata de falar sobre a autora e sua obra.
De muitos méritos se abastece esta coletânea de contos de braço e apanha mais uma flor para seu buquê.Sim, através de
Tereza. Expressividade, leveza e refinamento da língua estão O enigma de Violeta H, a escritora se mostra também artífi
patentes na tradução do drama coletivo. Com habilidade, faz ce na terra alucinada da poesia, quando narra, de modo exu
saltar de dentro de sua inflamada cosmovisão uma série de per berante e enigmático,o gosto indomável da natureza na vanação
sonagens desenhados ao sabor de um fluxo lírico, ora calmo, de suas formas, sem indagar se é, para o escolhido, uma ale
ora impetuoso. As tramas, distintas entre si, revelam diversos gria ou um tormento.
comportamentos frente a experiências comuns ou inusitadas. Em outro instante, voando na lembrança da infância, a es
O mundo real abre passagem para o mundo mágico e vice-versa, critora nos remete para o interior de um colégio de freiras e para
através de um mecanismo próprio e indecifrável para o qual as cenas de um universo de defeitos e virtudes, inocência e
estabelecemos indagações. Na base da escrita está o sonho? A deslizes, próprios de toda aldeia do mundo.E não apenas nesse
realidade? Ou os dois perigosamente próximos? conto, Ofuro do mamão,é entrevisto o senso cntíco de Te
Ao longo de Buquê de línguas, notamos uma funda resso reza ao tocar o centro da sociedade.Sua excursão é abrangente.
nância nômade. A inquieta escritora não obtém suas imagens Tem caráter de guerra e paz.
apenas de lugares estranhos, fictícios, mas também de outros E nessa travessia uma outra característica se apres
lugares de sua experiência errante concreta. A propósito, é o vivacidade. Uma vivacidade acentuada com sua vida q ^
que expressou numa dada entrevista:"O autor sofre a influência desenvolveu desde a infância frente ao vertiginoso p
da realidade que o cerca, assim como se identifica com o que Io de uma ingente natureza. Tereza, do universo prim'
vai experimentando e assimilando(ou rejeitando)no dia-a-dia". Pantanal,transladou-se para outras esferas,cenários de es
O próprio conto a dartítulo ao livro éuma metáfora convincente edifícios. Ardeu na fusão de muitas culmrase se conso ou nu
da multiplicidade. Nele, o ponto de partida é o medo sentido escrita a um só tempo de potência mística e reali
frente ao perigo ou possibilidade de morte. A narrativa de uma Buquê de línguas mz as profundas reverberações
explosão na linha D do metrô em New York revela as diferen coisas do mundo provocam nos espúitos e mostra como°®
tes reações dos passageiros, de várias origens, num momento se utiiiza da reaiidade para florescer em fantasia, s c
de tensão. É a iminência da morte comandando o espetáculo de Tereza,em boa medida,concentram os probiemas do m
da vida. Um espetáculo que não passa despercebido na supervisão histórico-social contemporâneo. São criamras que ten a
de Tereza em relação ao mundo,seja selecionando instantâ solver suas tensões e seus conflitos diários, criatuias que vivem
neos na tropical Cidade Maravilhosa,seja captando as seqüências sua loucura, sua impotência, sua inquietude e solidão.
da rebelião de uma flor no frio novaiorquino. " Tereza Albues extrai da multividência diferentes possibi i
Tereza Albues extrai sentido das camadas mais profundas, dades, ora unindo concretude e sonho,ora separando as duas
atingindo extensões incalculáveis no campo do possível e no dimensões,como uma necessidade de desenvolver e seguir suas
campo do etéreo. E é para esses dois universos que estende o rotas de vida, de sonho e de criação.
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Cada partícula de emoção e cada palavra escrita se entre Buquê de Línguas
laçam e emergem corporificadas em cargas de alta voltagem.
O resultado? Uma prosa vital, espontânea e intensa.
No último conto do livro, O rapto de Cora Mara, a per
sonagem ésurpreendida,enquanto ser comum,por uma repentina
percepção extra-sensorial. Fato perturbador que a faz devas
sar e captar o pensamento das pessoas em diversas circunstâncias.
Nessa história, a fantasia põe-se a serviço da realidade refor
çando que,em Tereza, o ato criador se vale tanto daquilo que
se efetua pelo sensdrio quanto daquilo que transcende os sentidos. ^^ A explosão sacudiu o mundo
Ao tecer suas imagens, expõe o fundo mágico de seu destino ílé nosso, na linha D do metrô. O
em meio à abundância da matéria cósmica. lotado freou de repente,
Buquê de línguas 2íX.qsX3l a sensibilidade da autora. É como rangendo. O choque violento
se, diante da existência, houvesse um excedente de emoções, nos atirou de todos os lados; gri
um big bang,frente a um determinado objeto, onde a escrita tos, choros, empurrões, caos
se constitui como saída para um impasse de acumulação interna absoluto. Parada entre duas es
progressiva e desmedida. tações no túnel escuro, portas
Tereza Albues morreu em 2005, em New York, mas sua trancadas, a máquina resfole-
palavra apaixonada continuará provocando o ardor daqueles gava feito um dragão raivoso, expelindo fumaça pelos olhos
que a conheceram e também daqueles que, por certo, virão que não possuía. Enlatados no vagão,tornamo-nos prisioneiros
a conhecê-la. circunstanciais da tecnologia, política, destino. Uma segun
da explosão estoura mais próxima do que a primeira; estarí
Lucinda Persona amos sendo atacados por terroristas? Em New York? Está maluca?
Poeta,fícdonista, mestra e professora na Universidade de Cuiabá(UNIC). Não estamos no Irã, exclama nervoso um velho de barbicha
azulada, óculos de aros dourados, terno cinza, me olhando
com desdém.Com certeza a minha pele morena,cabelos pretos
e lisos, olhos enormes e redondos, boca sensual, brincos pin-
ggj-jtes, saia comprida de algodao vermelho o fazem pensar
que venho daquele pais. Antes que eu lhe responda, sou da
América do Sul, alguém vem prontamente em meu socorro.
E onde o senhor estava quando bombardearam o World Trade
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Center? É isso mesmo. Um coro de vozes apoiando o autor da nome dum crime que não cometi. De que me acusam? Sou ino-
confrontação. O velho calou a boca. As luzes se acendem; o ceeeentee! Deixem-me sair daqui! Boca e olhos escancarados,
homem que lhe fez a pergunta mostra a cara. Por Alá! É o Irã trêmulo, molhado de suor, o homem era um pavor só, ator
personificado, olhos ferozes, aproximando-se, pronto a tomar mentado por algum pesadelo tenebroso. E tão real, que era
satisfações do americano. impossível para nós,que não conhecíamos a sua história, acalmá-
lo. Não tínhamos meios nem chances de chegar até ele. Como
Uma mulher sentada no chão começa a chorar, amenizar angústias soterradas, quando não se sabe sua ori
convulsivamente; corta a cena ao meio. gem e natureza? Nem as nossas.

Todos se voltam, ela esmurra o próprio peito, soluça, en Outro silêncio.


tra em pânico, berra. Estamos sendo levados para o campo de Mais do que constrangedor, sombrio.
concentração feito gado. Dentro em pouco, as portas vão se E-s-c-o-r-r-e-n-d-o entre nós.
abrir e o esquadrão da Gestapo aparecerá. Caímos na arma
dilha. É isso o que acontece todos os dias na Alemanha. E daí" O medo parecia tomar consistência, podíamos não só
ela parou de falar inglês, gesticulava e esbravejava em alemão, Io como apalpá-lo. Arrepiava nossa pele, ouriçava os c
ninguém sabendo como acalmá-la. Um menino franzino veio mantinha nossas orelhas eretas como as de um cão ^ P
lá dos fundos,segurou a mão da mulher,falou qualquer coisa da caça.Só que no nosso caso a caça éramos nós,à me ^
em alemão, ela olhou para ele, levantou-se, pareceu enver força maior que nos mantinha sem ação. Por desço
gonhada, ajeitou a roupa, a bolsa, recompôs-se. Um silêncio EmseupK,pósitoegraudeferoddade.NossosmúsculosecereD
constrangedor. Cortado pela voz metálica do alto-falante, anestesiados cediam ao terror. Quase petrificados,
pedindo calma, houve um acidente na Manhattan Bridge, em a olhar um para o outro como a implorar por socorro,
breve seriamos liberados; o Corpo de Bombeiros, Polícia, se o socorro pudesse vir daqueie que também corrta o mes
Ambulância a postos, à safda da estação. Calma. Everything perigo. Éramos iguais. Nunca houve igualdade maior en
is under control. Que controle?, berrou o iraniano. Estamos
enterrados vivos neste subterrâneo, eu quero sair, me tirem
homens.Ninguém podia salvar ninguém,muito menosa s.prap».
O acidente nos nivelara. O medo nos paralisava. De repente,
daqui, não sou culpado, não traí" ninguém, jamais conspirei sai do torpor, tive uma idéia. E se pudéssemos conversar so
contra o Ayatolá,sempre obedeci às leis do Alcorão, não escrevi bre qualquer outra coisa que não fosse a explosão? Conversar
nenhum verso satânico, por que me condenaram? Sei que me o quê? Qualquer coisa, cômica, trágica, ridícula, passional, o
matarão com torturas atrozes, minha família nem sabe onde
que fosse. Usara língua.O importante era estilhaçar aquele sUencio
estou, serei enforcado e amaldiçoado, minha memória cobrirá que, como uma erva daninha, crescia em volta da nossa gar
de vergonha meus ancestrais e a geração futura. Tudo isso em ganta ameaçando nos estrangular. Tínhamos emergência ver-
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bal. Não sei exatamente de onde me viera essa luz; talvez por Gertrude Shulman se calou. Os outros passageiros come
ser uma contadora de história; por ter nascido no Pantanal e çaram a falar ao mesmo tempo. O vozerio era quase ensur
ter passado minha infância ouvindo histórias dos mais velhos; decedor. Subitamente outra explosão, o trem estremeceu,
histórias fantásticas que inundavam a imaginação, com mais novamente fomos empurrados um contra o outro. Novamente
força do que as águas das enchentes de novembro. Ou talvez, o silêncio. Desta vez quebrado em segundos. Pelo iraniano
simplesmente, por pensar que o desabafo alivia, que o imagi- que, gesticulando muito, disse de supetão: eu também que
náno pode nos libertar;sonhos, mitos,lendas,um canal qualquer ro falar, dá licença, não pensem que sou maluco quando reagi
de catarse, naquela hora,amoleceria a tensão. Será? Certeza não daquele jeito. Sou um homem simples, pacato, religioso.
tinha, nem precisava de.Só precisava investir na tentativa. De Trabalhava duro na loja de tapetes do meu tio Amir em Tee
evitar que o medo se solidificasse e nos transformasse em estátuas. rã, vivia para a família, nunca tive problema algum com a Lei.
Nem digo de sal, não éramos habitantes de Sodoma e Gomorra; O mesmo acontecia com Samir, meu irmão mais novo.Só que
mas de mármore ou aço, materiais predominantes na arquite ele escrevia poesias e algumas falavam de direitos humanos.
tura nova-iorquina.Sem tempo a perder, tratei de colocar o meu Daf que o Governo achou que eram subversivas, meteu ele
plano em ação. Esgueirando-me entre os passageiros, aproxi na prisão, incomunicável. Depois de muitos meses,soltaram
mei-me da mulher, perguntei, está se sentindo melhor? ele, coitado. Apareceu magro, cheio de cicatrizes, mancan
Estou, masé paz passageira. As lembranças voltam sempre do duma perna. Tinha sido torturado violentamente, quase
a me atormentar. Meus pais foram presos pela Gestapo,quando acabaram com ele. Pancadas,choques elétricos, além de tor
estávamos saindo de Berlim num trem,tarde da noite. Eu tinha mentos psicológicos. Ele voltou muito deprünido,vivia calado,
apenas sete anos,os guardas não me viram,escondi-me debaixo mas continuou a escrever. A policia vigiando de perto, tele
das saias duma mulher gorda,eles passaram.Essa senhora tomou fone censurado, recebendo ameaças anônimas a todo o
conta de mim durante muito tempo, conseguiu me embarcar momento. Até que, não agüentando tanta pressão, resolveu
num navio e me mandar para a América. Meus parentes me sair do pais por uns tempos. Escolheu a Suíça. Tratou do pas
receberam e me trataram com muito carinho. Mas eu nunca mais saporte, passagem,as autoridades não se opuseram. Ninguém
me esqueci da cena:os dois sendo levados, aos gritos, eu muda disse nada.A família acompanhou-o até o aeroporto,tudo certo,
pelo terror, nem murmúrio soltava. Morreram no campo de voltamos pra casa, aliviados. Tempos depois,soubemos que
concentração de Auschwitz. E eu morri por dentro. Sinto-me os agentes do Governo tiraram ele de dentro do avião com uma
culpada por ter me escondido, culpada por não ter feito nada, desculpa qualquer,levaram-no para uma prisão longe da cidade
culpada por estar vivendo. Mas se a senhora tinha apenas sete e, até hoje, ele continua lá, sendo torturado barbaramente.
anos... Não importa, o sentimento de culpa se aloja dentro de Entretanto, oficialmente, consta que ele viajou e desapareceu
nós, cresce, cria farpas, espinhos, espeta feito ouriço-do-mar, na Suíça. E nada se pode fazer?, perguntei espantada. Estamos
nunca mais vai embora da gente... Dói a vida inteira... fazendo tudo ao nosso alcance, inclusive entramos em con-
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tato com várias organizações internacionais que prometeram E o tablado não ficaria vazio.

interceder no caso, mas, realisticamente, as chances são mí Nem por falta de talentos,
nimas. Como enfrentar a violência legitimada por um siste nem por ausência de desespero.
ma arbitrário? Preencher o vão do destino,

Mohamed,o olhar vago, perdido numa realidade de que sd passou a ser

ele conhecia as agruras, ausentou-se de nós. Sua expressão se a única arma capaz de derrotar o inimigo comum:
suavizara, algo nele nos fazia crer que, através de seu próprio o PÂNICO.
discurso,ele começara a vislumbrar alguma esperança para Samir. Tanto que a ele se interpôs um recurso urgente,
No canto da boca um sorriso brando ensaiava despontar, en sem amparo legal,
saiava... Fechou-se. puramente circunstancial,
MÚSICA.

Abriu-se uma pausa.


O lamento duma balada, ardente e apaixonada, foi abrin
De silêncio e expectativa tensa.
do caminho. Primeiro, o violino; depois, a figura do homem,
Pelo futuro improvável
cabelos longos,calças pretas,camisa vermelha,chapéu de feltro
de todos nós.
cinzento. Pensei tê-lo reconhecido. Devia ser um daqueles
músicos que passam o dia inteiro no metrô, mudando de trem,
A mocinha loura, franzina, estatura mediana, quase su mãos calejadas, ganhando a vida à custa da execução de duas
mindo num casacão de couro marrom,surpreendeu com sua ou três partituras, as únicas que aprenderam.Devia ser um deles.
voz de soprano. Abreviando, mais do que o silêncio, o in Não era. Seu nome:Jerzy Aziz Duka,64 anos, moreno
tervalo dum espetáculo, que se tornara vital para nossa lu do, bigodes e sobrancelhas espessas, barba cerrada, olho
cidez temporária. Em lugar de contar sua história, revelou-se águia, penetrantes; um cigano de passagem por New York. N
numa ária de La Traviata, abafando com a potência da voz cido na Romênia, chefe duma tribo numerosa, acampad
os estalidos da engrenagem metálica. O trem gemia, ela Bronx.Sua caravana estava a caminho da Europa.Por que
redobrava o estribilho, sustentando as notas agudas, o ros vivem como andarilhos?, perguntou um senhor carrancu
to rubro do esforço. Che bellol, exclamou um compatriota. braços cruzados,tom agressivo.Por que não gostamos de
E resolveu entrar no palco improvisado, fazendo um dueto sempre no mesmo lugar; o mundo é tão vasto... Mas não seria
com a ragazza. Oh! suspiraram todos, emocionados, deli- melhor ter casa permanente,onde pudesse viver com a família
ciando-se com os trechos da ópera, Ma che bellol O casal em maior segurança? Casa? Se eu ficar numa casa, morro
de italianos encerrou a apresentação, aplausos, e mais aplau asfixiado. Segurança? Existe isso? Onde? Ah, Ah, Ah. Perigo?
sos. Braaaavoo! Braaavoo! Pouco importa,todos nos vamos morrer um dia. A morte é tão
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natural...(penso nos versos de Sylvia Plath: Dying/ Is an art, Um rapaz pálido, olheiras fundas, cabelos compridos, en-
like everything else. / I do it exceptionally welO ...Temos caracolados e negros pulou do anonimato, disse, meu nome é
de aceitá-la, continuou Jerzy Duka, príncipes, reis, presidentes, Jean Marc,sou poeta,vou declamar alguns versos de minha autoria.
mendigos,celebridades,todos têm igual destino.Temer a morte E falou, e falou, tão aveludado, tão sublime, em francês. Pou
é ridículo. Abriu os braços, provocativo, sustentando a gar cos entenderam, mas o sentimento que ele conseguia passar com
galhada profana, punhal afiado a roçar a pele fina do imagi a sua arte nos envolveu com mãos de macias penas. Viajamos
nário. A bolha de sabão estava prestes a se espatifar. M-o-r-t-e. sem sair do lugar. O trem resfolegou.
Explicita e contundente, a palavra proibida fora introduzida Os chineses sentados naquele banco de dois lugares, perto
no nosso meio, assim, sem cerimônia. Uma palavra-impas- do condutor, não se mexiam.Impassíveis, contemplavam os
se a sacudir a vulnerável ribalta, onde nós, atores improvisados, acontecimentos,como se nada dissesse respeito a eles.Pensavam
nos julgávamos a salvo.Suspensos nas malhas do instante frágil, talvez na falta de autodomínio do ocidental, na sofreguidão,
a respiração presa, pedíamos aos deuses que algo acontecesse. no desconhecimento da profunda ciência de lidar com o tempo.
Aconteceu. O sujeito carrancudo ficou vermelho, as veias do Expressão serena, candidez de marfim. Se dependesse deles,
pescoço intumescidas, deu um salto do banco com a destre o silêncio continuaria tão sólido e impenetrável como a grande
za dum acrobata, colocou o dedo no nariz do cigano e começou muralha da China. Ah, esta cultura de pedra, seda, porcela
a falar uma lihgua estranha. A discussão foi se tomando acirrada. na, a nos desafiar em sua filosofia milenar; duas figuras de
Um fala de cá, outro de lá, aos berros. Com certeza se insul licadas, mistura de jade e lótus resistindo...
tavam. Uma moça indiana segredou-me,entredentes: eles estão
brigando em romani\ aquele lá(apontou o carrancudo)é um
cigano sedentário; o violinista é nômade. Natural que se es De forma inversa à da mexicana gorda, exuberante,
tranhem. As duas filosofias de vida não se encaixam. Daqui saias rodadas, anéis, pulseiras de prata, o rosto vermelho
a pouco saem aos tapas. Enganou-se. Em minutos cessaram a gritar: Viva Zapata! Viva Zapata!
os gritos, riram, apertaram as mãos e se abraçaram choran Grito apenas abafado pelos seus jovens
do.Dai passaram a falar em voz baixa,quase sussurrando,como compatriotas a parodiar:
velhos conhecidos que há muito tempo não se viam. O que La cucaracha, Ia cucaracha, trá, ^^y
teria acontecido? Nos entreolhamos, desconfiados. E o grupo de cubanos, tentando um brado mais alto:
Cuba Librú

Com medo do silêncio, muito. E outros cubanos: Fidel! Che Guevata!


Não foi tão longo, Pablo Neruda!Pablo Neruda\, gritaram alguns chilenos.
quanto ameaçava, ser.
Nenhuma contestação ao poeta de Canto General.

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Arrefecida a vibração latina, surgiu um russo, aparentando em nível experimental, nesta Babilônia americana?, exclamou
trinta e cinco anos, olhos ariscos, meio indeciso, a roupa amar- um rapaz com sotaque de brasileiro. Não sei. E quem have
fanhada. Explicou qualquer coisa, gesticulou, riu, sob o bigo- ria de? Estamos chegando à estação. O trem pára, com um
dão avermelhado, dentes amarelos de nicotina, os lábios não rangido seco.
deu pra ver. A voz se ouviu, o canto, as palmas, o plac plac
das botas frenéticas. Dançou a balalaika no espaço espremi Abre-se a boca do dragão de aço
do,com maestria.Parecia voar. O público a marcar o compasso Os prisioneiros escapam
com os pés,Wladimir caprichava nas evoluções.Fez um intervalo, molhados

perguntou não seio quê,alguém respondeu, pronto,encontramos do húmus viscoso do medo.


um intérprete, outro russo de Brighton Beach, falando inglês
fluente. Dafficamos sabendo que o dançarino viera de Moscou A cena tem recorrências antanhas. A figura bíblica de Jo
recentemente, e que estava executando uma alegoria de sua nas sendo vomitado pela baleia numa praia deserta me vem
criação. Falava duma menina que fora abandonada num campo à mente. Não sei qual foi a sua reação. Sei das nossas. Saímos
de girassóis.E de como as flores a protegeram do frio e da fome, correndo da estação, apavorados. Olhar para trás poderia ser
e a acalentaram com cantos de ninar; até que ela foi recolhi de mau agouro ou, no mínimo,um gesto imprudente,uma vez
da pelos camponeses, que viviam na encosta das Montanhas que as causas do acidente permaneciam obscuras.Sabe se lá.
do Ural. Uma fábula muito bonita, repleta de símbolos e ima LeVs get out ofhere. Ao alcançar a rua, ofegante, recebo uma
gens evocativas duma cultura fantástica e trágica. O trem co lufada de vento gélido e o sorriso daquele menino(o tal qu
meçou a andar. cochichou no ouvido da judia, lembram-se?), diretamente n
O povo começou a exultar. Estamos salvos! Estamos sal meu rosto. Ah, que sensação gostosa, sorrio; para ele e pa
vos! Exclamações em todas as entonações, línguas, dialetos. o vento que, pela primeira vez, não me incomoda.
Lágrimas alegres. E a bomba? Não houve nenhuma bomba. te, tímido,o menino me estende uma cartolina creme diz
Houve. Não houve.Então o que foi? Curto circuito, defeito me não sei se saiu bom,sou estudante de Artes Gráficas, q
cânico, falha humana? Não se sabe exatamente. Na platafor a senhora acha? Olho para o papel e me espanto, qu
ma, Policia, Corpo de Bombeiros, CIA, FBI, como de praxe, genial! Tão inesperada como tudo o que aconteceu durante
nada confirmariam. O panorama é surreal, daqui a pouco vão nossa convivência forçada. Ele desenhou um enorme buquê,
dizer que sonhamos. New York é uma cidade cheia de luná preso por duas mãos entrelaçadas, os dedos em forma de fitas
ticos. De repente inventaram o pandemônio só pra apreciar coloridas.Só que,em lugar de flores, viam-se línguas de todos
a reação das pessoas em situação-limite. Ou,de repente, quem os tamanhos e formatos, dispostas de tal maneira, que pare
sabe(na Big Apple tudo é possível),será que aí"não teria o toque ciam estar se movimentando. Olhei para ele, disse, que ma
de Augusto Boal criando uma cena do Teatro do Oprimido, ravilha! É para a senhora. E saiu correndo, nem tive tempo de
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agradecer. Fui para o escritório, coloquei na jarra de porce Três Instantâneos na
lana chinesa, bem no centro da mesa,o meu buquê de línguas. Cidade Maravilhosa
Vivas.

À noite, escuto o noticiário. Tinha sido mesmo uma bomba.

♦#♦#♦#»#♦#♦#♦

A cidade amanheceu nublada. Não se vê


o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar está
coroado de nuvens espessas. O sol não tar
dará a aparecer, afirma a meteorologia. O
ar abafado, as árvores paradas, os pombos
arrulhando sob qualquer re'stia de sombra
disponível. Janeiro, pleno verão, entro num ônibus com destino
a Copacabana. O calor insuportável enerva. No Túnel No ,
movimento intenso, barulho ensurdecedor. Os ônibus lota
dos trafegam em alta velocidade, cortam carros, freios rang ,
fumaça, cheiro de combustível queimado, buzinadas proib'
enchem o ar pesado de poluição e impaciência. A travessia
do túnel parece não ter fim. Entra-se num mbo escuro, super-
povoado, veículos e homens se digladiando por uma nesga
de espaço, que não existe. É um rolo compressor do qual não
se sabe como se vai sair: neurótico, amassado, tremulo pe
los solavancos contínuos, freadas bruscas, insultos, discus
sões em meio ao caos enlatado. Um episódio rotineiro na vida
do carioca. Os motoristas têm experiência e garra para sobreviver
a dezenas de túneis diários. A sangue frio ou exaltados, eles
resistem bravamente. O povo reclama, mas agüenta o tran-
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CO. Naquele dia de 39 graus, não foi diferente. O ônibus con no campo, serena e simples. Seja ela em Mistra, Mato Grosso
seguiu vencer as peripécias do pandemônio babilônico. Saiu ou Madagascar. Nunca no asfalto-zona-sul do Rio de Janeiro.
suado e resfolegante,rangendo os pneus,livre da prova de fogo. Devia se tratar duma miragem.Ou alucinação temporána;talvez
Os passageiros suspiraram fundo; difícil saber se de alivio, re seqüelas do pânico na travessia do túnel, quem sabe? Fosse o
signação ou se praticavam algum exercício de yoga,recomendado que fosse, a cena era esta: um homem moreno, descalço,sem
para manter a serenidade.Se bem que manter-se sereno, nestas camisa, calças brancas,sentado numa pedra,empunhando um
circunstâncias, nem Gandhi. bastão, vigia quatro cabras magras, pastando tranqüilamente,
indiferentes ao barulho infernal que as rodeia. O pastor so
litário também não se perturba; concentrado em sua tarefa,
Primeiro Instantâneo segue com os olhos mansos o movimento de seu pequeno
rebanho. Tudo é silêncio e serenidade naquela ilha rodeada
À saída do túnel, o sol já havia vencido as nuvens, brilha de sofreguidão permanente.Será que o pastor criou oseu mundo
va, intenso. Túihamos acabado de atravessar a danação, me particular e nele vive confiante e despreocupado? Uma mu
recíamos a face bondosa do mundo; que não fosse bondosa, lher,sentada ao meu lado,também vê o que eu vejo,sob diferente
viva. Viva como aquela, nenhuma.À primeira vista, a Rua Raul perspectiva; contrita, murmura para si mesma, um salmo de
Pompéia éuma mistura de mercado persa, balneário,Washington Davi:"O Senhor éo meu pastor; nada me faltará". Ah,esta inex
Square. Camelôs,transeuntes apressados, vendedores de fru plicável fortaleza da fé, a remover montanhas,mares,solidão
tas, mendigos, executivos, ciclistas, banhistas de sungas e bi Será que o homem soUtário se entrega à mesma fonte de energia,
quínis,cangas,shorts, chinelos de borracha,carregando toalhas, ao pastorear cabras montesas,em plena Copacabana, a pr'
barracas,jornais.De repente,do lado esquerdo,ao pé da parede cesinha do mar? Como wniflash fotográfico, a cena se evap
de concreto do túnel, numa rampa coberta de capim alto e ervas rou da vidraça e se consumiu na velocidade do ônibus. Ai
daninhas,surge um panorama discrepante,como uma colagem, estou perplexa.
superposta à paisagem. Nada tem a ver com o contexto de cidade
Vou saindo do espanto, aos poucos
grande; está fora do tempo,espaço e limite dum Rio de Janei
ro modemo,crivado de arranha-céus, carros, tecnologia. Uma Salto do ônibus, caminho em direção à praia.
cena campestre, descrita nas Éclogas de Virgílio, aqueles ver
sos clássicos que os adolescentes aprendiam, quando ainda se Segundo Instantâneo
ensinava Latim nas escolas. Ou talvez uma cena mais próxima
da Grécia antiga, que acabo de visitar — montes escalpados,sol Andando,nem cinco minutos, na Rua Rainha Elizabeth,cruzo
ardente, pastores,tilintar de cincerros.Pelo seu aspecto bucólico, com um mendigo vestido de Rei- camisolão de cetim amare
a colagem pode se encaixar em qualquer descrição duma vida lo, cinturão de couro cravejado de pedraria e conchas reluzentes;
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coroa de lata dourada, manto de veludo vermelho, comprido, ou entrado num nível de meditação, reza, promessas. Eu saia
arrastando-se pela calçada. Estatura mediana, forte, bronzea de mim e voltava a pisar a calçada, sabendo que o meu ser se
do, cabelos longos, sobrancelhas grossas, expressão serena, esgarçava entre dimensões paralelas, levado por correntes
caminha com dignidade e indiferença; passa pelos seus súdi marinhas, vento, soluços. Eu não me possuía; tinha sido lan
tos sem vê-los. Em seu olhar distante, um universo que não se çada à maré, ao balanço do mundo,sem qualquer leme para
consegue vislumbrar.Lá vai o monarca,compenetrado,vivendo segurar. Intimamente, era assaltada por ondas de euforia infi
sua lenda e destino; caminha, ora com graça — quem sabe vai nita e terror catatônico; entregar-me ao momento era assim como
ao encontro de sua Rainha? -, ora solene e grave — seus con uma dádiva divina e ao mesmo tempo um perigo demoníaco
selheiros oesperam num imenso salão de ouro,tapetes vermelhos, a me arrastar para um precipício; a me arrastar para um onde
pergaminhos lacrados, noticias de guerras,invasões, rebeliões? inominável. A matéria de que eu era feita, passara a ser-me
Uma menina encardida, dessas que vivem nas areias de Copa totalmente desconhecida; a pele ünha a consistência de esca-
cabana, me aponta o Rei pelas costas, dá uma gargalhada, diz, mas; pernas e braços longos de cipós-azougue; a cabeça se
com aquela naturalidade mista de inocência e vivência ao relento: ramificava; meu tronco se alongava e se transformava numa
Não se assuste, moça,o Rei Salomão é boa gente, não faz mal amendoeira frondosa. Eu não era mais eu; mas eu era eu na
a ninguém,de vezem quando dá pra falarsobre bondade e justiça, identidade do espirito. As formas exteriores não correspondi
como se isso existisse no mundo, coitado; fala, fala, fala sem am ao que eu até então tinha pensado de mim mesma.Nenhum
parar,chateia um pouco,só isso...". Desaparece a menina,filha reflexo no espelho, pensava, vai me devolver a forma primei
de ninguém, na sombra do edifício vizinho. A sombra colori ra com que vim ao mundo. E eu caminhava, naquela solidão
da do monarca,projetada no calçadão de pedras portuguesas, de doer os pés que eu não tinha; doiam,sim,o arrastar de tantas
é mais brilhante do que as papoulas vermelhas dos jardins de caudas que arranjei pelo meio do caminho; pelo meio da vida,
Burle Maix. Embora a Bíblia nos ensine que nem as ricas ves por tantas vidas que tenho vivido. O assombro dos instantes,
tes do ReiSalomão podiam se igualar à textura dos luios do campo, a porrada dos instantes,o esfacelamento do que é,do que pen
tenho que dizer: naquele preciso momento,as vestes do nos samos ser, do que não pensamos e somos. O vento momo,a
so Rei Salomão a tudo se sobrepunha. maresia, o fragor das ondas atravessavam meu corpo poroso;
senti-me pedra, peixe, conchas,e me desfiz em areias grossas,
tentando ser castelos das muitas crianças brincando alegres na
Intermezzo praia. Desfiz-me. E me reergui de novo como uma estátua de
sal, devolvida pelos mares, entre polvos, caranguejos e algas.
Caminho pela praia pensando na magnificência dos instantes. Me lambi toda e me satisfiz. Continuei a avançar pelo cimen
E naquele quem onipotente, na força que eu não sabia o nome to,agora com a tola certeza de que seria capazde andar na direção
e que me proporcionava êxtasessem nem ao menos eu ter pedido. escolhida. Sempre fui tola, nas certezas e sonhos e pressenti-
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mentos.De uma tolice parva. Estou sempre querendo contro dras vermelhas e azuis, colocou a mão direita no meu ombro
lar as próprias fantasias, daí"que eu perco o melhor de tudo que esquerdo,não disse nada,foi embora.Quis acompanhá-lo com
é estar à deriva; mas hoje estou sem rumo, e é tão bom estar o olhar, nem isso; ele desapareceu no meio dum grupo de moças
perdida;a esta volúpia nada se compara,nem os lííios do campo, e rapazes barulhentos que estavam voltando da praia, carre
com sxia sensualidade brotando da pureza original. A magnificên gando pranchas, cadeiras, barracas, toalhas. Nem se deram
cia dos instantes.Como a eles me entregara, estava à sua mercê. pela sua presença. Na rua estreita somente o som das vozes
Outro instante se apresentou, súbito, sem preparação. O ins e gargalhadas da moçada bronzeada; um som comprido, que
tante único não precisa de preparação. Existe e pronto. Como foi minguando, minguando,até se dispersar por completo na
a seda selvagem, ele se revela rústico ou sedoso, depende da Gustavo Sampaio. Em meio ao silêncio provisório, uma pena
sensibilidade, se aguçada ou adormecida, de quem o toca. dourada brilhava no asfalto.
Contemplo-o com a alegria dum recém-nascido; nem atônita,
nem desconfiada. Em estado de graça, só isso... Como diria a
menina cinzenta. Só isso... Quase Epílogo

Volto a caminhar pela praia. O cheiro da maresia quase se


Terceiro Instantâneo solidifica na névoa;Copacabana é um arco de vidro e con
a enlaçar a areia suada com seus prédios residenciais, hotéis,
^ Ao chegar no Leme,entro pela Rua Anchieta,ando sem pressa, bares espalhados pela orla viva. As luzes ainda não estão a
nãotenhorumo certo.Do outro lado da calçada,vem atravessando Mal começa a entardecer. Os pescadores do Posto Seis pre
a rua, em minha direção, uma figura, que eu definiria como param as redes para a pescaria noturna. Alguns jã lanç
estranha, não fosse de sabor estranho tudo o que vem acon os barcos na água; outros verificam equipamentos e pr
tecendo nesta tarde. Exótica, talvez lhe assentasse melhor. Ou O vaivém langoroso dos que vivem em comunhão com o mar.
nenhum outro adjetivo, a figura não carece de adornos. Nem Movimentos que prenunciam cestos cheios, não men
de palavras nem de indumentária. Aproxima-se. Lenta, sua dos em para-bolas; o milagre dos peixes no Posto Seis é diá
ve,quase levitando,o ser que parece ter despencado da abóbada rio. Os barcos abarrotados de robalos, namorados,camarões,
celestial da Capela Sistina-um arcanjo. Um arcanjo de túnica polvos, tainhas — aportarão pela manhã,quem vier ve ,
azul-pavão, asas douradas, empunhando uma espada prate Está entardecendo. Gaivotas sobrevoam,brancas de ansiedade,
ada.Alto, magro,cabelos castanhos,encaracolados,rosto muito pelos petiscos futuros. Velhinhas secas de solidão alimentam
branco, olhar em fogo, gesticulando e falando baixo, quase pombos opormnistas.O crepdsculo évermelho,a areia amarelo-
murmurando. Parou perto de mim, me olhou intensamente, ouro,as águas do mar se tingiram de azul-pavão.O vento ainda
mostrou-me a espada de prata, com cabo incrustado de pe- é áspero e morno. Nuvens rarefeitas, como organzas amare-
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lecidas, cobrem os céus de Copacabana. A tarde se esgarça A Rebelião da Magnólia -(1997/1998)
entre umbigos de buganvdeas pardas. E vai se diluindo à sombra
da natureza.

Ao longe, em três veleiros de prata,


reis, pastores, arcanjos,
navegam
na boca da noite,
sob o signo do improvável.
Esta éa história da luta duma árvore contra
o írio nova-iorquino.Uma história que deve
ser narrada em forma de Diário, para que
se possam acompanhar os detalhes iné
ditos do que se tornou uma guerra; uma
guerra emocionante e de resultado impre
visível.

Novembro — Sente-se o início do inverno em New York, na


pele;no calendário,a data oficial é22 de dezembro.Mas os casacos
nâo esperam para sair dos armários, nem a temperatura para
nos pegar pela garganta. A paisagem vai se empalidecendo,gra
dativamente.E as árvores perdendo a vestimenta.Algumasfolhas
ainda resistem e se agarram aos galhos das árvores como ná
ufragos no meio do mar. Mas a luta, mesmo insana, não dura
rá tanto assim. Elas irão por terra. A morte as colherá hoje ou
amanhã. Seu destino não será modificado. Lindas árvores,
perdendo o pêlo, como se perde a carne, esqueleto à mostra.
Algumasse envergonham,encolhem-se pudicas,quando se vêem
desnudadas pelo vento. Outras não se importam, parecem até
se orgulhar de mostrar o corpo nu, por que não? E o que está
acontecendo com o pé de magnólia lá no fundo do quintal?
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Também suas folhas lutam bravamente para não se desgarrar a melhor maneira de sobreviver às intempéries. Evitar, a todo
da segurança dos galhos.Será inútil, já se prevê. Mas a luta que
custo, a solidão. A escolha é dela, de como atravessar o frio.
se quer focalizar não é esta,nada original; seria patética a tentativa
Mas seria realmente a melhor maneira,sacrificar toda uma futura
de mostra-la como tal,já que todas as outras árvores se empenham,
geração de flores camudas e sensuais? Não se sabe. Nem a intenção
nesta época do ano,em igual batalha. A magnòlia trava outro
do pé de magnólia, qual seja; e o desconhecimento da causa
tipo de luta. Resolveu florescer, imagine! Os botões substitu
invalida a tentativa de julgamento apressado. E o visual altivo,
em as folhas arrancadas numa rapidez assustadora. O que deu no meio da paisagem pelada, é duma beleza instigante. Olhar
nela? Enlouqueceu? Enfrentar oinvemo ao reverso é como nadar
para esta árvore, a ponto de florescer, contra quaisquer dita
contra a correnteza de rio encachoeirado. A neve ainda não caiu.
mes de estação, é uma inspiração. E uma alegre surpresa: no
Caira em breve e congelará os tenros botõezinhos numa soprada.
reino vegetal também se exercita a rebeldia? Olhando-a, tem-
A magnólia sabe disso.Sabe e continua em seu projeto que para
se a impressão de que nada vai conseguir interferir em seus
ninguém se evidencia,o objetivo. Sabe por experiência; no seu propósitos. Esta árvore traz a determinação expressa nos ga
tronco,marcas dos invernos passados,sulcos profundos na carne lhos erguidos e tronco ereto e raízes fincadas no solo, que nem
lanhada.Parece não temer.Os botões,duros e arrebitados,como se adivinha a profundidade. Ela tem a postura e as caractens-
tetas de menina-moça, enfrentam o vento garbosamente. Até
ticas de personalidades teimosas e inventivas. Pessoas como
com uma certa volúpia. Mas aos rebentos se atribui inocência,
Eistein, Nostradamus, Galileu que, mesmo acusados de loucos
dai a pose impensada;e o que dizer da árvore-mater? Essa sabe
em determinada época, provaram que estavam certos em suas
(ou pelo menos deveria saber)o que está fazendo. O que pre
tende? Desafiar uma estação de vidro em farpas não é coisa para teorias. Pessoas que revolucionam a Humanidade.Árvores que
uma arvore,em sã consciência,fazê-lo. Reproduzir nesta época revolucionam a Natureza. As grandes transformações vêm dos
écomo engravidar sabendo que vai ter de fazer um aborto. Então? que se aventuram,ousam,desafiam.Em qualquer reino.E o que
Qual o sentido? A vida que se vê pulsando nos botões dá inveja está tentando hoje, aquele pé de magnólia, fazer? Aventar hi
e, as vezes, pena; porque o fim se aproxima, quem não sabe? póteses de suas pretensões, não é difícil. Quanto aos resulta
Eles não sabem.A pena é só nossa, nesta pretensão absurda de dos,impossiVel. Nada se pode concluir durante o processamento
querer anteciparofuturo.Talveza dor seja unicamente do humano da experiência.É necessário paciência, acompanhar de perto,
que os contempla. Talvez, ao viver assim por tão pouco tem e torcer para que a magnólia vença os obstáculos. Pela porta
po(como se a nossa vida também não fosse temporária...), com cnvidraçada se vê que,por enquanto,ela continua firme em seus
a ilusão de que continuarão vivos durante o inverno, não lhes intentos,sejam eles quais forem.Os botões brincam nos ramos,
seja infinitamente gratificante? A felicidade está naquilo que se alegres, alegres. E este episódio se interrompe agora, para
quer e que se acredita possuir. O pé de magnólia, rodeado de prosseguir tão logo se notem quaisquer alterações nos planos
da magnólia-mater. Ou do invemo que,com certeza, procurará
seus rebentos no invemo,sentir-se-á mais aquecido, menos só,
subvertê-los.
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Dezembro-Inverno ameno,igual nunca se viu. O Natal se timamente e escrevo; que as flores saiam vitoriosas. Será que,
aproxima, nem notícias de neve, o trenó de Papai Noel corre ao se transpor a sua luta para a escrita, não se fortalece a idéia
o risco de se tomar um meio de transporte inútil numa temperatura de resistência? Ao ser captada em diferente forma de expressão,
variando entre 17e 19 graus.Pessoas andando de mangas curtas, ela não poderia ampliar suas raízes a ponto de adquirir nova
roupas leves, alguns mais ousados, shorts, i-n-a-c-r-e-d-i-t-á- fonte de energia? Se o ato que aqui se discute fosse dimensio
v-e-l!Dia 31,vésperas de Ano Novo,o barômetro registra queda nado através de outros canais, não seria de extrema utilidade
de temperatura,a noite será muito fria. Foi. Mas a neve não caiu à causa em si? Talvez. E na dúvida, vou fazendo o que julgo,
nas cabeças das milhares de pessoas apinhadas no Times Square. certo. Sou sua aliada, através da palavra; já que nenhuma ação
Nem nas daqueles que lá não foram. Muito menos embranque é possível no sentido de conter os rigores do inverno. Lá fora.
ceram a paisagem repleta de árvores desfolhadas. E o pé de Dentro das casas, aquecedores potentes e lareiras bem acesas
magnólia continua a ostentar os botãozitos saudáveis, balan mantêm os humanos, confortáveis. E quando têm de sair, de
çando de alegria sob os fogos de artifício que anunciam 1998. legam essa tarefa aos capotes,cachecóis,suéteres,luvas,chapéus
A rébellion sobreviveu ao réveillon. e botas acolchoadas.Às árvores nada se reserva e por que ofariam?
Na primavera reverdecerão, darão flores e frutos; o inverno é
Janeiro(início)- A temperatura sobe. Certos dias chega a a época do recolhimento e aceitação à decadência inevitável.
graus. Ninguém acredita. Não acredita, mas se alegra até às Deveria ser, porém o pé de magnólia pensa diferente; não quer
lágrimas. A primeira semana tem sido assim, de júbilo e sur passar o inverno, magro e cinzento, despojado do belo orna
presas agradáveis. O que virá depois? E o nova-iorquino quer mento de suas flores. Por isso resiste. Continua resistindo.Por
saber. Goza o momento,como os ciganos, que não olham para enquanto os botões, embora contritos, não perderam a flexi
o passado ou o futuro, só o agora conta. Desconfio que o pé bilidade, quando açoitados pelo vento gélido; executam mo
de magnólia segue a mesma filosofia. A felicidade ou a dor,cada vimentos, não graciosos e leves como antes; são movimentos
qual no seu tempo.Por enquanto as magnólias se empenham apressados,retos,um pouco rigidos.Em lugar do delicado ballet,
em florescer.
vigorosa mazurca. rapsódia de Lizt, uma sinfonia de Rach
maninoff,estrondosa e exigente.Até quando resistirão,os valentes
Janeiro(meados)-Houve uma estagnação no florescimento. botões? De que recursos dispõe a magnólia-mater para evitar
Ainda se mostram faceiros e resolutos, os botões; mas conti o aniquilamento dos rebentos?
nuam fechados.Defendendo-se do frio que avança dia após dia,
metódico e quase sempre,seco. Chuvas raras. Da neve, ape Janeiro(s:çoi2iSe final)— Recurso nenhum,começo a desconfiar.
nas leve ameaça; caiu duas vezes, feito farinha fina; dissolvi A não ser que ela tenha alguma carta escondida na manga, o
da tão logo alcançou o chão, nem chegou a pintar de branco, que eu duvido. Mas, de repente, tem. O que sabemos sobre a
as calçadas. Observo o pé de magnólia diariamente; torço in- experiência, tirocínio, temperamento, sagacidade, Q.I., dos
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elementos que compõem a Flora da Terra? Pouco ou nada. Os Amanheceu Fevereito,domingo de sol aberto. Segunda-feira,
Botânicos não entram nessa questão. As plantas respiram, têm também, o astro em seu esplendor; tinha de estar: Dia 2 de
vida própria, mas de sentimentos não há referências, cientifi fevereiro /Dia defesta no mar/Eu quero ser o primeiro
camente.No domíhio popular, muita coisa se conta. Minha amiga / A saudarlemanjd— canta Dorival Caymmi,nesta data con
Margarida(que tem o nome da flor, mas não é uma flor, nem sagrada a lemanjá. No Brasil, os festejos sacodem Salvador.
na aparência, nem no trato), contou-me que seu pé de man- Cânticos e louvores ressoam por toda a cidade; nas praias, as
jericão é temperamental e muito ciumento. Quando ela está oferendas, ondas de flores para a rainha do mar. O sol e a fé
de namorado novo(e isso acontece com uma freqüência de esquentando os corações baianos. A temperatura está subin
estarrecer), ele murcha,se encolhe, endurece as folhas; ai dela, do. Na Bahia e em Nova York. Os botõezinhos sorriem. No ar,
se tentar tocá-lo. Quantas vezes já saiu ferida como se tives uma promessa de vitória. Os dias correm entre chuvas,sol ra
se esbarrando em espinhos afiados. Quando está só,ela conversa diante, ventania, gatos espreitando passarinhos, esquilos ca
com ele, molha-o e ele até se sacode, de felicidade. Ela diz vucando o chão em busca de castanhas que não enterraram.
que o manjericão entende tudo o que se passa na casa; ob Observo o pé de magnólia diariamente. Algumas vezes toco
serva-a, toma conta de sua vida; já imaginaram? E Margarida, seus galhos,enternecida; uma sensação de que entre nós se es
como já deu pra sentir, é meio estouvada; não é criatura de tabeleceu um elo de compreensão e solidariedade, uma
prestar atenção a pequenas epifanias^ como diria Caio Fer sação sutil que me amorna o intimo. Ele sabe que eu sei,
nando Abreu. Logo... que ele sabe; nos fechamos em copas. Somos cúmplice
ta luta silenciosa, embora minha contribuição seja apen
Janeiro(final)- Hoje é sábado, dia 31, último dia do mês. niVel intelectual; mas o pensamento positivo tem a força do p
A temperatura(que vinha caindo desde o dia 15)sobe,12 graus, de Davi derrubando o gigante Golias; e,na aparente mi
niuito agradável,roupas leves. A neve, pra valer, até agora não possível da flor, estou envolvida até à raiz da alma. P
se manifestou. Mas a demanda, que nem de leve poderíamos avança veloz. Quase duas semanas de fevereiro. Hoje su
chamar de judicial, continua. Temos de aguardar os desígni escada, apalpei um botão, queria saber com as mãos o q
os da estação e as cartadas secretas do pé de magnólia, caso passa em sua pele e coração. Ele estremeceu. Rocei d
haja necessidade de apelação neste processo inédito, corren contornos,disse em linguagem muda que desejo o se ,P
do num Fórum hipotético,tendo em vista uma ação imprescen- ciso que ele saiba da minha participação no seu calvári
dente.Ou improcedente,diriam os doutos da lei. Comosou leiga sabe, mas e ele?), preciso que saiba através do toque, qu
na legalidade e na controvérsia do termo,afasto-me da contenda. natureza viva está do seu lado. Ele parou de estremec
Temos de aguardar o desenlace do que nos aguarda. Amanhã, acolhi entre meus dedos;como era sedoso e delicado e care
domingo,já será Fevereiro. Alguma novidade há de nos trazer de aconchego! Instantes de ternura; o pequenino botão e
o signo de Aquário. a se entender sem palavras.Só os gestos,os filamentos de energia
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afetuosa que se desprendem dos gestos,os filamentos. Na mudez aram, com um destemor de dar arrepios a qualquer mortal.
de sua essência. A árvore inteira se sacudiu; e não havia ven Estou toda arrepiada. Ao perceber a sensibilidade, despren
to. O sopro veio do profundo das raízes como um suspiro de dimento, sutilezas das plantas. Que inveja! Porém,se voltar
alívio e graças à conexão que se fez,instintiva. Um sopro momo mos aos falares da Bíblia, temos de reconhecer que aos fracos
que entrou pelo meu sangue e me aqueceu de entendimento. se empresta fortaleza, quando necessário se faz cumprir missões
E de admiração por aquela espécie viva, que bem podia ser uma divinas ou humanas, impregnadas de Fé. Novamente a figu
mulher, uma deusa, um mito. Ou tudo isso junto, como uma ra de Davi inunda a tarde e meu coração. A Fé. Aquele sen
trindade unificada. timento que, de repente, apesar de não possuí-lo em sua
plenitude, me impulsiona a considerá-lo através da luta da
Fevereiro(meados)- Que surpreeeesa! Nos canteiros, ao magnólia. Então não é de todo irracional o que pregam sobre
lado da magnólia,começam a brotar as olicas. Inacreditável!!! a remoção de montanhas; parece que no quintal alhures algo
Estas flores abrem-se juntamente com a primavera(nunca antes), se remove, não se sabe se o tempo, as estações, o código dos
amarelas de doer os olhos, refletindo o sol de Março, alegres. homens; algo se rompe e se concretiza adiante, à força do que
Aquele sol de Março,na maioria das vezes,apenas tépido, ainda se constrói com a própria líhgua,que,mesmo não sendo de fogo,
sob os efeitos do frio, que se demora a partir. O que deu ne caiu dos céus e flamejou a terra roxa de paixão pela possibi
las? O pé de magnólia não se perde em questionamentos; parece lidade do novo, do novo a se insurgir contra o ranço de com
estar mais robusto,ergue-se com elegância, movimenta os galhos portamentos tidos como imutáveis. A magnólia é um símbolo,
graciosamente,como uma bela mulher a jogar os cabelos longos uma fábula, ou quem sabe parábola, não há um gênero onde
para tras, faceira. A nova fonte de energia reside bem ali, aos
enquadrá-la porque ela não pertence a nenhum gênero que possa
seus pés: as olicas, a coragem das olicas, a solidariedade das ser enquadrado; como flor é claro, entrou no jogo, mas ela,
olicas. A resplandecer de verde-esmeralda num jardim seco esta magnólia, não é aquela, a catalogada; é outra. E por isso
de marrom.Ah,esta nova aliada, bem-vinda seja; era disto que mesmo não se presta a ficar no nicho, nem da Natureza, nem
mais precisava a magnólia. O apoio de seus semelhantes. O da Ciência, ou de qualquer outro ramo do conhecimento hu
apoio de seres comprometidos com os mesmos problemas e
mano ou dos deuses. Ela é,está sendo,um ser à parte. De qual
alvos dos mesmos revezes da Natureza - aquela mãe autori quer especificação,forma,conspiração. Ela apenas. Na mais
tária. A magnólia não está mais sozinha em sua luta. As oli
cas crescem à sua volta como um grande escudo a proteger
singular das alegorias. É o que é, precisa mais? Balança, es
tremece, retesa, a qualquer ameaça de ser classificada. Por
o terreno onde se abrigam suas raízes. Tomaram uma posi
que toda a sua luta se resume nisso. Cair fora do preestabelecido.
ção temerária, as olicas. Quem diria! Umas florzitas tão de
E está conseguindo. Estamos no dia 25 de fevereiro. Em três
licadas e de vida breve, duas semanas mais ou menos. Não
dias o mês acaba. No quarto será março; e em três semanas
importa. Sentiram o drama do pé de magnólia e a ele se ali-
irromperá a primavera. A magnólia há de vencer.
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Fevereiro(finalizando)- Hoje, dia 26, um fato inédito. Um guerreiros a combater as forças das trevas. Os corvos procu
esquadrão de corvos surgiu, como se diz em inglês, out ofthe ram fugir ante o ataque inesperado. Três gatos de quintais vi
blue e avançou em ordem unida contra o pé de magnólia ten zinhos vêm correndo, dando saltos acrobáticos, olhos e pêlos
tando bicar os botãozitos. Tomada de indignação, espantei-os arregalados, aliam-se às gaivotas, na expectativa de saborear
com a fúria de Cristo quando expulsou os vendilhões do tem algumas presas de guerra. Ah,este reforço inesperado revelou-
plo; embora os alados em nada se assemelhem aos camelôs de se, decisivo. Dispersam-se os inimigos, aos gritos, voando em
outrora, nem a magnólia seja um templo- há algo de sórdido, ziguezague. Em segundos, os corvos não passavam de fiapos
neles\ e algo de sagrado, nela. Diante de minha reação, fingi negros indistintos, dissolvendo-se no horizonte. Nenhum bo
ram que iam embora. Não foram.Sobrevoaram outros quintais, tão chegou a ser ferido. A magnólia-mater se regozija, balan-
disfarçaram,voltaram com toda a carga. Estavam imbuídos duma çando-se ao vento,sorrindo para o sol que hoje despontou cedo,
força destruidora, quase demoníaca. Tive medo. Pela magnó 14 graus, marca o barômetro. Mais 48 horas para terminar o mês.
lia e por mim.Tive a impressão de que, para realizar seus in Menos tempo de vida para o inverno.
tentes, me atacariam,se preciso fosse. Ainda assim,enfrentei-os.
Agitando os braços,armada com um porrete, gritando:fora,fora A estação agoniza. Os gatos vigiam.
<^qui,xô,xô!tentava amedrontá-los, a todo custo; porém nem Fim de Fevereiro.

os gritos, nem os gestos ameaçadores, pareciam surtir efeito.


es não eram corvos comuns. Um clarão súbito, como o ris
"Dl Março — Segunda-feira, dia 2, sol pálido, temperatura em
car dum raio, ampliou minha percepção: eles não são apenas elevação. Os botões das olicas ainda não apareceram, mas as
corvos,não são apenas corvos. Então não tinha sido à-toa que hastes crescem e crescem. Enquanto os botões da magnólia
avia invocado a passagem bíblica; as criaturas diabólicas se aumentam de volume,se arredondam,uma tênue nuance cham
apresentavam sob formas enganadoras. Era preciso agir sem panhe, a pousar na pele aveludada. A pele duma pré-adoles
demora. No desespero,os cânticos para afastar maus espíritos cente, curiosa, experimentando o pó-compacto pela primeira
que aprendi com Teodora, minha bisavó africana, vieram em vez; olha-se no espelho, busca os efeitos do cosmético, ansi
meu socorro. Nem sabia que os trazia frescos na memória. De osa;tentando antecipar sensações quando desabrochar,a mulhe ,
pronto,irromperam no ar como trovões que não se esperam em a flor, a vida. As gaivotas voltaram, três delas; deram um vôo
tardes ensolaradas. Rajadas místicas, poderosas. Nesse instante rasante por cima da magnólia, grasnaram grosso, como a re
surge uma nuvem branca, lá no alto, vai baixando, baixando, afirmar solidariedade e proteção;os corvos que não se atrevam.
não era uma nuvem;era um bando de gaivotas que se arremes Desses, nem vestígios. O malefício, definitivamente, foi afas
saram contra os corvos, os bicos amarelos-dourados, como tado. Bisavó Teodora dança, as saias rodadas, multicoloridas,
espadas afiadas, asas prateadas,cortantes,em evoluções marciais. feixes de energias envolvendo a árvore,que se tomou s^i2.protegée.
Nunca tinha visto gaivotas movidas por ímpetos bélicos; arcanjos Os americanos-do-norte nem sequer desconfiam da trama que
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se esparrama nas terras negras deste quintal pródigo, que acolhe pares. E a visita das gaivotas-arcanjos vem a confirmar o que
a magnólia no seu ventre momo e lhe fomece a seiva de suas há muito se suspeita. Há algo de sagrado neste pé de magnó
entranhas; como outrora as escravas forneciam o leite de suas lia; que doravante chamaremos de Maga\ uma força de aspe-
tetas volumosas às crianças brancas. As mães de seios secos e reza e temura e revelação; como um tapete mágico, trançado
esmirrados não conseguiam nutrir as vorazes boquitas dos nobres com fios de seda selvagem.
rebentos.Não se sabe por que mistério; as mal nutridas mulheres Março — Quarta-feira, dia 4. Maga amanheceu t-o-t-a-l-m-
do continente despojado possuíam o néctar,como uma placenta e-n-t-e florida. Molhada pela névoa da madrugada, as flores
extema a verter o sumo precioso; o sumo vital à sobrevivên camudas brilham de roxo sensual. Sua exuberância intimida e
cia dos infantes de sangue azul. A constatação do que se pro acalenta; escandaliza e acolhe; pensamentos, atitudes, pontos
paga como incoerência. Nem tanto. As leis do Cosmo têm nada de vista, discussões,argumentos.O bairro comenta,aponta,julga;
a ver com a Ciência ou a Lógica dos homens. A disparidade na assombro,censura,receio,o fim do mundo? Como é que pode?
apuração de certos fenômenos não decorrem propriamente do Florescer no invemo? Não é uma aberração? É, não é, parece,
tido como acertado e comprovado sob os ditames do avanço talvez, seria culpa do El Nifio? Será? Mas ela é tão linda... Char
da civilização. Há as lacunas, as exceções, mais freqüentes do mosa... É? Não sei... Tenho medo... Uma sensação estranha...
que se presume.E ai os teóricos ficam de boca aberta, imóveis,
de corpo e de imaginação,correndo o risco de passar por estátuas Os comentários se dissolvem no vento.
obsoletas em parques abandonados. Difícil compreender e Do tronco de Maga escorre um filete
desvendar os mistérios do mundo,quando nós mesmos somos de resina ocre
tim grande mistério, para nós mesmos. Nossas reações podem gelatinosa
nos causar estranhamento,que diria as dos outros? Deste ou de flor/mulher/mito
outros reinos? Animais,vegetais,espirituais? Agora,por exemplo, orgasmo
este pé de magnólia; a fazer uma revolução ímpar na história ♦ vi *
dos seres de sua espécie; e, se digo de sua espécie é porque, * tó *
dois quintais adiante, há outro pé de magnólia, seco, reumá- ♦ ria. *
tico,encolhido de doer os ossos que não tem.Submisso aoinvemo, ♦ * *

curvado;é o tempo de definhar, definhemos. Esse não iniciou * * *

nenhum protesto,tampouco se juntou à luta do seu semelhante. * * *

Então, este, o pé de magnólia de que vos falo, é criativo e fe


cundo, tem nada a ver com a figueira estéril que aparece nas
parábolas de J. Cristo. Esta árvore gera idéias, gestos, contes
ta, revoluciona; esta árvore é uma árvore-maior dentre os seus

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o Furo do Mamão

Ele vinha vestido de Sol, dourado como


tantos outros, recendendo a quintais da
nossa infância, O leite esguichado entre as
estrias dos gomos, coalhando no bico,
azedo-adocicado, o leite materno, acon
chego.O mamão deveria chegar como uma
- dádiva,Ugação entre a casa e o cole'gio,ame
nizando distâncias, saudades, tristezas, deveria. Porqu
das as frutas que as meninas recebiam das fazendas vinha
assim, carregadas de significado. Se fossem comprada ^
mercado,estariam desprovidas da história de cada uma de
qual o sentido? Nossa estabilidade emocional depen ^
quele cordão umbilical que nos ligava à nossa famíl'
assegurava que continuávamos sendo amadas. As fru ,
como os queijos, doces,legumes, verduras, cereais, q
eram enviados mensalmente, serviam também ^
car nosso status no colégio interno. As remessas,exi "
público, nos davam prestígio ou derrocadas, depen
natureza ou qualidade do produto, vejam só. Cenou p
das, bananas raquíticas, abacates cravejados de ponti
negros ou uma couve perfurada por lagartas estouvadas po
deriam ser nossa perdição. Aos olhos das colegas ou o que
47

A
era pior-das mestras insensíveis, muito cedo percebi. As freiras, mento subterrâneo que eu nunca soube ter dividido com uma
que deveriam ser um exemplo de bondade e compreensão, velha amiga. Dum ninho de humilhações e dissabores seme
lideravam o massacre. Do amor próprio de qualquer uma de lhantes, subitamente revelado. Aflorou assim, ambivalente.
nós que, por uma razão ou outra, não recebesse o quinhão de Inocente e cúmplice duma realidade vivida e camuflada no ihlimo
acordo com as normas estabelecidas pelo Sagrado Coração de nós duas,sem prévia deliberação. Ah,o fio que se puxa duma
da Virgem Maria. Que de sagrado pra mim não tinha nada. Não narrativa vivenciada, quem poderá apontar de onde vem? Que
digo o coração da virgem(o que eu poderia provar em con material trará do mergulho sem escafandro? Difícil saber.Puxa-
trário?), mas o regulamento e artimanhas das freiras, guardi- se e pronto. Numa conversa, esquina, bar, o olhar duma cri
ãs da escola,fundada em seu santo nome.Dessas eu questionava ança,um mendigo que passa,um livro,uma história,filme,teatro,
a supremacia e audácia de se colocarem num patamar(e elas ópera, carnaval, banhos de cachoeira - mais outra lista inter
estavam sempre em cima duma escada, palco, tablado) pra minável. Porque é assim a vida. Embora finita, o que se pro
nos olhar e julgar do alto de suas certezas e posições estra põe em tomo dela é duma infinitude escandalosa,dependendo
tégicas, soberanas. Apontando-nos com os dedos em riste, da amplidão de cada um.
condenando-nos ou louvando-nos com o mesmo gesto e ve E agora desponta o mamão.
emência(elas podiam ser contraditórias, e como!), ninguém Mais precisamente,o furo do fruto maduro,que nunca fora
acredita. Tanta impostação à luz do dia ou da noite nas vigí proibido no paraíso de Adão e Eva. Pelo menos, que se tenha
lias dos dormitórios apagados, mas clareados pelas lanternas noticia, a maçã ainda continua invicta em sua forma, sedu
dos olhos delas, as comjas disfarçadas. Aliás, de disfarces nem ção, símbolo de prazer e culpa, por todos os séculos, secu-
e bom começar a falar, era uma prática corriqueira, utiliza lorum. Amém? O mamão,esse, está liberado das controvérsias,
da nos corredores, salas de aulas, igrejas, refeitórios, pátios, não há provas de sua participação na inconfidência do pecado
banheiros, e onde mais? Adianta continuar? Perda de tempo. original. Embora tenha se revelado sensual, camudo e mais
A lista seria interminável porque dependeria da imaginação apetitoso do que a maçã,deixaram-no de lado. Ah,os mistérios
fértil de mestras e discípulas,espremidas num reduto de concreto gozosos... Nem os nossos. Os alheios então, esquece. Se des
armado,cercado de muros altos e portões de ferro aferrolhados. vendá-los no presente é missão impossível, o que fazer com
Um reduto que, de acordo com a sociedade, não era prisão. os primevos,enroscados numa pseudoserpente,cabeça ereta,
Era. Nós o sentíamos na pele do cotidiano. Tinha todos os re boca molhada, pronta a inocular o visgo pecaminoso na tenra
quisitos para. Ser o que fosse, menos uma comunidade livre. polpa da maçãzita? Parece que nem a proibição divina teve forças
Tenho de mudar de parágrafo,senão como reinstalar o mamão para deter os ímpetos da carne dura. Bumba! Deu-se o rasgo
— elemento propulsor desta história, que estou tentando con bíblico que inauguraria a história da humanidade com suor
tar desde o começo? Que aliás não teve começo. Pelo menos e lágrimas. Ah, os mistérios dolorosos... Mas como esta nar
com o mamão propriamente dito. Ele emergiu dum comparti- rativa não tem a intenção de discorrer sobre a ruptura do véu
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de Eva,nem tampouco revelar outros pormenores picantes de a deixavam se esquecer de amamentá-los, lavá-los, catar pio
sua iniciação sexual, voltemos sem demora ao furo do mamão, lhos e carrapatos e mandá-los para a cama com um "Deus te
for God sake\ abençoe",fechando os olhos antes deles,fatigada. Não,ela não
O furo,exibido assim,como o sexo numa praia nudista,sem prestaria atenção à qualidade da encomenda encaixotada às
o mais leve pudor, foi alvo de gracejos e risadas que até hoje pressas, nem teria noção do furor que um simples furo pode
ressoam nos ouvidos de Orlanda.A cena,recheada de comentários ria causar no Sagrado Coração.Se ela presenciasse o episódio,
maldosos, anunciada pela trombeta estridente de Irmã Lures- piscaria os vagos olhos castanhos, passaria a mão pelos lon
Olha aqui o mamão, que a sua mãe te mandou, Orlanda!- o gos cabelos lisos,grande coisa!Puxaria da sacola a faca de cozinha
rosto irônico da freira, o olhar confirmando mais do que a boca, (as meninas se debandando, socorro, socorro, cuidado, essa
a intenção de humilhar. Óbvia como o buraco negro, manchando mulher é louca; é louca e está armada, socooorro!), pegaria o
a pele acetinada e nobre do mamão-castelo. Pelo menos não mamão pelo pescoço e zás,estava resolvido.Decapitado? Claro
era um mamão plebeu,desses que se lançam aos porcos. O fruto que não, o pecado não era assim tão grave; para casos dessa
tinha berço, diria alguém, numa fraca tentativa de salvar um natureza, bastaria uma pequena incisão. Com um só golpe,
pedacito de orgulho da menina, pisoteado sem piedade. Mas habilidoso e certeiro, como o bisturi do Dr. Zelito (único ci
de que adiantava a nobreza de sua origem se agora, como um rurgião da cidade), extirparia a mancha escura, deixando ver
fidalgo arruinado, cobria-se de vestes andrajosas, arrastando que nas entranhas o mamão era saudável,textura consistente,
um manto esburacado, querendo se esconder da sanha do cor de tijolo, como qualquer mamão-castelo que se preza.Doce
populacho? Orlanda também queria encontrar um esconderi e suculento, pronto a ser levado para a mesa, sobremesa de
jo, debaixo da saia da menina da frente, atrás das portas, no baronesa. E Bernarda voltaria para o Sitio do Cumbaru,falan
banheiro,sentia calafrio, dor de barriga,o veneno destilado pela do sozinha pela estrada, gesticulando, irritada com zsfrescu
freira-ferina começava a fazer profundos estragos, inclusive em ras daquela gente da cidade, gente mais sebosa, armar um
seu organismo. Valha-me N.S"do Livramento, vontade de sumir, escarcéu por causa dum buraquinho de nada,falta do que fazer,
não há lugar pra se enfiar a cara. Vermelha de vergonha,revolta, merda! Não escutaria as vaias, gargalhadas,cochichos, risinhos
vitimada pelo ridículo que não provocara. Mãe, pelo amor de marotos fervilhando no cenário armado pelas religiosas, zelosas
Deus, da próxima vez que me mandar qualquer coisa para o de não deixar pedra sobre pedra na auto-estima de Orlanda.Que
colégio, verifique se tem algum defeito. Te suplico. Uma súplica a partir daquele dia receberia bilhetinhos anônimos apelidando
muda que a mãe não atenderia, mesmo se escrita ou sussurrada a de Mamão Podre. Além de indiretas e olhares de desdém de
ao pé do ouvido, nas visitas dominicais. Não por má vontade, certas colegas presunçosas, vindas de famílias ricas e tradici
insensibilidade ou desleixo, mas Bernarda era distrafda de onais do Pantanal. Ninguém se apercebeu do sofrimento de Or
nascença,jamais prestaria atenção a detalhes tão pequeninos. landa, que intimamente trazia uma ferida aberta, maior e mais
A não ser aos pequeninos berrantes, seus sete filhos, que não grave do que o furo do mamão.Lavaram as mãos e desinteres-
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saram-se doseu infortúnio(que nem viam como tal). Mais alienadas nhecimento público, mas que todos fingiam não perceber as
do que Pôncio Pilatos, não chegaram sequer a cogitar da ino aguilhoadas.Transformavam-na em gargalhadas. Maisfádl apelar
cência da condenada.Não éda nossa conta.Sacudiram os ombros. para o riso como disfarce ou escapada.Ninguém queria se envolver
E por que somente agora me recordo da cena, vinte anos ou ser vista com aquela que caifa em desgraça. Fugiam dela.
atrasada? Perguntarão, curiosos, os que me acompanham. En Mesmo se estivessem passando por atribulações semelhantes.
ganam-se. Não se trata de recordações. Não se pode recordar A meta era se colocar a salvo, refugiando-se na própria casca,
o que nunca fora registrado pela memória.Tudo isso me foi contado feito caracol. Como se a couraça imaginária tivesse o poder de
pela própria protagonista. Encontrei-me por acaso com Orlanda nos tomar invulneráveis no meio daquela caldeira em constante
na festa de quinze anos de Adriana,filha de meus amigos Cristóvão ebulição. O individualismo imperava. Mas não creio que fôs
e Corina. Muito elegante, bem vestida, jóias finas. Professora semos más ou egoístas por natureza. A prepotência e o rigor das
universitária, casada com um advogado famoso, belas filhas, normas impostas estimulavam tal comportamento.Jovens e
casa confortável, carros, chácara na beira do rio Cuiabá. Con
inexperientes,seguíamos o risco do bordado.Sem questionar
versamos bastante,relembramos os tempos de colégio e ela me a ausência de borboletas,libélulas, vaga-lumes acesos nos de
contou,ainda num tom de revolta, a passagem do mamão.Você senhos amorfos dos bastidores tensos. As tecelãs-mestras nos
não se lembra? Tive de ser sincera. Disse que não,era a primeira
nianejavam,vigilantes. Nós,as aprendizes,manejávamos a agulha,
vez que ouvia essa história.Seu olhar espantado penetrou no âmago
mecanicamente.Furando a pele da seda,linho,fustão,cambraia,
do meu ser, tocando numa dor antiga(que eu mantinha escon dedos, mente, coração. Nosso coração, não o Sagrado da Vir
dida até de mim mesma),liberando-a instantaneamente.E eu me gem Maria. Troteávamos na cadência do ponto-cruz, escama,
vi,de repente,contando-lhe outra história que se passara comigo,
corrente,espiga,labirinto, bainha, ponto-atrás.Tentando evitar
parecida. Só que em lugar de mamão,o objeto do meu suplício em vão o ponto-cheio. O ponto-cheio de monotonia e solidão.
tinha sidoum saco de feijão mulatinho,crivado de orificios,finamente Que engoliria nossos desejos e sonhos mais secretos durante
trabalhados por uma legião de carunchos. E minha mãe não era quatro anos.
distraída,tampouco papai. No nosso caso era escassez de recursos,
Somente hoje, duas décadas depois,eu e Orlanda nos des
pobreza mesmo.Apelidaram-me de Feijão Bichado,lembra-se? cobrimosfora do alcance dos regulamentos,das ciladas,do campo
Ela se mostrou muito surpresa, também não se lembrava. Ago de força do intramuros,quando lavamos a alma(e não as mãos
ra o espanto era todo meu.Alguém chegou, puxou Orlanda pelo como na adolescência),sem temor. A descoberta espocou feito
braço,a aniversariante estava à sua procura,separamo-nos, pro relâmpago em densa floresta, abrindo uma clareira em nossas
metendo nos rever em breve.
vidas. Ponto-aberto. Desnudando os fios tensos e doloridos;
Continuei parada no meio do salão, segurando a taça seca ocultos na tessitura rústica do tempo.
de champanhe,refletindo sobre o quanto éramos sós no colégio A banda começa a tocar a valsa dos quinze anos. Uma multidão
interno. Tfnhamos de suportar uma dor intima, que era do co- de jovens, alegres e descontraídos,invade a pista de dança. Um
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garçom passa, me oferece outra taça de champanhe. Os pares O Enigma de Violeta H.
rodopiam suavemente. Meu coração galopa, sob o signo das
lembranças: na varanda,um grupo de meninas opacas, uniforme
cinza, meias grossas, sapatos negros, contemplam a festa,
perfiladas.São também jovens e ansiosas. Por que não se atrevem
à travessia? Entre o passado e o presente, ergue-se um inter
valo de desamparo e perplexidade. Questionamentos. Por que
nos infligiram tantas humilhações? E por que consentimos? Não
sei resolver o dilema antigo, como também não sei lidar com
Nasceu uma menina, no nome e delicadeza,
a emoção que em mim perpassa. É por demais recente. Meu
Flor. No preciso instante em que nascia no
reencontro com Orlanda me fala às entranhas e me desbalança.
jardim uma violeta. Na postura e expressão,
Preciso de tempo. Somente uma certeza desponta neste ins
humana.Há de se chamar Violeta, os pais dis
tante. Clara e viva como esta sala iluminada. A responsabili
seram ao mesmo tempo, um olho na meni
dade do que nos aconteceu no colégio intemo não cabe ao pobre
na e outro na flor, que se via pela vidraça da
mamão-castelo, tampouco ao desventurado feijão-mulatinho.
janela. A menina, no berço, agitava as mào-
Qualquer um pode ver que eles não são os verdadeiros vilões
zinhas, parecendo aprovar. A violeta, lá fora, tremia de frio ou
desta história.
regozijo; a ventania dificultava a identificação do gesto. Mas,
ainda que não se conheça sua natureza, a ação é simultânea,
))))VVVV*(((C e obedece a uma força que coloca, na mesma cadência,as recem
nascidas. Como numa partitura musical, onde a combinação
das notas produz sonorldades harmoniosas, as duas parecem
se completar na simbiose de seus princípios vitais. Uma pas
saria a ser a confirmação,física ou mítica, da existência da outra.
E assim foi o começo da vida da flor e da menina Violeta. Que
recebeu o sobrenome dos pais, Hermógenes; um sobrenome
comprido e incômodo,que só prevaleceu enquanto ela não sabia
ler ou escrever. Não gostava da palavra, achava-a ridícula e de
difícil articulação,impondo aos lábios movimentos grotescos.
Tão logo foi para a escola, tratou de abreviá-la; passou a usar
apenas a letra H.,que lhe parecia mais conveniente, na pronúncia
e na sutileza do mistério. Um mistério que pressentia existir desde
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tenra idade; aiguma coisa que lhe falava às entranhas; alguma planos para um futuro hipotético;e riam e debochavam da fantasia
coisa que ela intuía, tinha a ver com a flor desabrochada no dia e se tomavam sérias, e choravam por razões em nada, aparentes;
de seu nascimento. e voltavam a rir e achar o mundo cheio de graça e mágoa e bênçãos
Falando da flor. e sortilégios. Tentar transcrever o sentido e a namreza do vin
Algo estranho acontecera; embora um pouco pálida, con culo que unia as duas criaturas seria um esforço mais do que
tinuava viva, após mais de dez anos, a violeta. Um fenômeno ingênuo, sonhador; mais sonhador do que querer estancar as
que a família, por razões que se desconhece, resolveu manter águas virgens dum rio recém-brotado;um rio povoado de aguapés
em segredo. Transplantada do canteiro para um vaso de bar verdes e recendendo a placenta, a vida em si desabrochada, de
ro branco, foi colocada no fundo da estante, atrás de grossas esperança.Impossível ou quase,reter a força das águas;impossível
enciclopédias; nem a empregada Leonta, intrometida e indis ou quase, reter a força que circulava nas duas fontes de ener
creta, sabia de sua existência. Samira, a mãe de Violeta, mo gia, ligadas desde o nascedouro. E assim se intensificava aquela
lhava a planta, duas vezes por semana, ao anoitecer, sem relação à sombra de acontecimentos, previstos ou não, no
comentários. E o tempo foi passando. Violeta H. foi crescen calendário familiar: aniversários,férias, festas, viagens, doenças,
do,tomou-se uma viçosa adolescente;e a flor,no meio das folhas escolas, discussões, alegrias, tristezas, morte da avó Jacobina,
cada vez mais encorpadas, endurecia as pétalas, encrespava- missas, a fuga do gato Gessé; problemas com empregados,etc.
se, mas continuava a resistir à passagem do tempo. Ambas,sem Luiza, a irmã mais velha, andava muito atarefada, às voltas com
maiores contratempos,seguiam a trajetória de seus destinos pa estágios no curso de Jornalismo; Bernardo, o do meio, no se
ralelos. gundo ano do curso de Botânica da Faculdade de Ecologia, na
Nunca se soube quando ou como se dera a convergência; morador e boêmio, encontrava dificuldades em acompanhar
nem se supõe que Violeta H.,se perguntada, pudesse determinar o programa da escola. Restritos ao imediatismo de seu mun
o instante ou o motivo exato da aproximação. Uma amizade do pessoal, os irmãos nada percebiam. Os pais, sempre ocu
espontânea. A menina se entendia com a flor mais do que com pados e preocupados e casados,de nada desconfiavam.Tudo
a própria mãe. Quantas vezes, enquanto todos dormiam, Vio transconía no ritmo de vida prevista de qualquer família da classe
leta H. ia para a biblioteca e ficava horas em colóquio com a média, sem solavancos maiores.
amiga. Falavam baixinho; ela, a menina,em sua linguagem su Até aquele ceJebre dia.
postamente natural; ela, a flor, respondendo duma maneira que O dia em que as colegas de Violeta H., já com 12 anos, co
só a menina compreendia. A comunicação entre elas parecia meçaram a criticar seus modos e vestuário; cabelos curtos,
não obedecer a nenhum código lingüístico conhecido; talvez nenhuma pintura, gestos bruscos; usava sempre calças com
tivessem inventado um código próprio, sem som ou com sons pridas, camisetas de malhas escuras, sapatos pesados. Não se
insuspeitados pelo resto dos mortais; mas elas se entendiam; interessava por festinhas, assuntos de modas, namoricos, con
e riam, e brincavam e faziam conjeturas e criticas e traçavam versas sobre os garotos da escola. Começaram a isolá-la, des-
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confiavam de sua aparência e natureza. Será que era lésbica? dito. Algo você deve estar escondendo; tem de haver um motivo
Os comentários aumentaram, piadas, indiretas agressivas; H. mais forte; hei de descobrir,custe o que custar. Ou não me chamo
não ésobrenome,deve ser disfarce: H=Homem;grafites no quadro- Manoel Parreira da Silva Hermógenes! Dizendo isso, deu um
negro, risadas, cochichos à sua passagem. A professora resolveu murro tão forte na mesa que balançou a estante, três enciclo
intervir, nada adiantou; a situação se agravava, Violeta já não pédias vieram abaixo e com elas o vaso da violeta que se es
podia assistir às aulas em paz. Evitava os intervalos, refugia patifou no chão de ladrilhos portugueses,florões azuis em fundo
va-se na biblioteca, só saindo para entrar diretamente na sala branco, limpissimo. O pai era português, a casa tinha uma
de aula e, assim que a aula terminava, apanhava a mochila e decoração à moda de sua antiga quinta no Algarve. Tapetes,
saia porta afora, o mais rápido que podia. O caso chegou aos quadros e esculturas do século XVII; madonas,santos, arcanjos,
ouvidos do diretor, este passou um sermão na classe inteira, expostos em oratórios de mognos; gaios de cerâmica, toalhas
severo; melhorou um pouquinho, mas depois, feito erva daninha de rendas de Nazaré. O vaso espatifado - terra, húmus,raízes,
quando se poda, e não se arranca as raízes, ressurgiu mais cacos, misturando-se aos livros, artesanatos e objetos de arte
fortalecida, a pressão sobre Violeta H. Os pais foram avisados, - dava a sensação dum caos culmral e antológico a eclodir num
conversaram com a filha, queriam explicações; a menina as momento que se pressentia, de extrema fragilidade. Um momento
sustada não sabia a que atribuir a campanha contra ela. O fato em que a pele se estica e se toma transparente e as veias revelam
de não se comportar igual às outras meninas não era motivo, o subterrâneo azul de sua essência; aquela essência do lago azul
ou não devia ser. O que queria dizer? Simples. Não apreciava em que Narciso se mirou; um azul aureolado de solidão e verdade
as banalidades em que se envolviam; roupas, pinturas, enfei imaginária.
tes não lhe interessavam; além disso, a mentalidade daquelas
meninas era tão limitada... O que fazer se ela não suportava fo Partiu-se o espelho
focas, troca de bilhetinhos, comentários fnVolos ou maldosos mais do que mitológico
sobre a privacidade alheia? Mas nunca prejudicara ninguém, agia da vida
corretamente e era educada com as colegas e professores. Mas que se pensava possuir
então,se você sempre as tratou bem, por que elas se voltaram os reflexos.
contra você? Por que não te respeitam?, perguntou o pai, mais
ríspido do que a mãe,segurando-a pelo braço. Não sei. Como Violeta H. olhou a flor esmagada, aberta ao meio, vísceras
posso saber o que se passa na cabeça delas? Como não sabe? expostas; encolheu-se, apavorada, foi para o quarto, choran
Você deve ter alguma idéia do que seja.Já disse e repito, papai, do.Samira acompanhou-a,o que é isso, minha filha, não fique
não sei;só se for porque sou diferente,entende? Não,não entendo. assim, haveremos de conseguir outra flor igual, não se preo
Diferente em quê? Na maneira de ser, de agir, não sei, isso que cupe. A mãe não entendia por que a menina chorava tanto, não
acabei de dizer. Só por isso? Ah, desculpe-me, mas não acre- sabia que sua aflição não estava ligada à sorte da flor, unica-
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mente;tampouco podia adivinhar que, naquele instante, algo E tudo ficara assim,como uma névoa suspensa entre a percepção
muito maior se revelava naquela sala. Só Violeta conhecia a pro e a verdadeira natureza do objeto percebido. Mas ela. Violeta
fundidade da cena; conhecia e se desesperava ante o impacto H., interpretara o recolhimento da vida-gêmea, como uma
brutal da traição. Durante doze anos o segredo foi mantido a promessa de silêncio. Equivocara-se.
sete chaves; a menina confiava na parceira de nascença,cega A corola aberta da violeta, recendendo a cio, exibindo gi-
mente.Tinha vindo ao mundo sob o signo da violeta; a formação neceu/estame,à luz do dia,sem pudor,iria destruí-la. E ela não
de sua personalidade e de certos atributos fisiológicos segui tinha esse direito! Sabia que,ao se revelar, estaria entregando-
ram o modelo da flor; viviam se olhando e se compreenden a também; eram reflexos acoplados num espelho íntimo, des
do; quantas confidências trocadas, quanto apoio recebido nos de a germinação;faces do mesmo enigma; moléculas dum corpo
momentos de aflição; nos momentos de assombro,quando des único,de matéria indivisível.Por que a delação? Noseu desespero
cobriu o próprio sexo,quando osentiu diferente,quando percebeu esquecia-se de que tinha sido um acidente. Ou se esquecia ou
a coisa ambígua, o órgão único em sua dualidade macho-fê- não via, na queda,o acaso.Via,sim,uma decisão da outra,tomada
mea,convivendo quieto, entre as penugens que mal brotavam. à sua revelia; uma decisão egoísta de abrir o jogo, por conta e
Correu para a flor, em desespero; ela a consolou, passe a mão risco. Via e não via; começou a ponderar pela primeira vez,
na miiiha corola,eu também nasci assim, por que se desesperar? tentando analisar o lado da amiga.E se estivesse enganada^ Talvez
Nossa natureza -aparência, cores e formas- não depende de ela pensasse que a estava ajudando, tirando-lhe um peso,fa
nosso desejo.Somos parte do grande movimento cósmico que cilitando a abertura para uma melhor comunicação com os pais.
rege o Universo. Mas temos o livre arbítrio de trabalhar na cons Quem sabe o que se passava, agora, no íntimo aos frangalhos
trução do nosso destino; esse sim, o destino, é nossa respon da flor? Não sabia, estava confusa,insegura, agitada demais com
sabilidade. Guarde as lágrimas, Violeta H.,guarde suas energias o desfecho inesperado. Não acreditava que a comunhão entre
para usá-las na concepção da criatura feliz que você será um ambas terminasse assim, de forma tão descuidada. Pensava e
dia. Feliz? Como? Depende unicamente de você; a felicidade é pensava,nenhuma explanação lógica lhe socorria. E Violeta H.
uma conquista pessoal. Mas... E se eles descobrirem? E o que olhava para o restante da família, desamparada; o clímax de-
tem isso? Se você se respeitar, eles te respeitarão também. Não sintegrador da ordem que ela supunha sob controle acabava de
sou tão confiante assim, por favor, tenho medo;jure que esse se manifestar;e ela não sabia o que poderia acontecer no próximo
segredo ficará guardado entre nós para sempre, jura? Sempre segundo;o que seria seus efeitos sobre a sua vida e os demais,
é uma palavra que congela o tempo e empedra o umbigo por os Hermógenes.
onde entram osfilamentos da sabedoria.Esefechou a flor, naquele
dia, num mutismo exilado de seixo no deserto. Agora se lem Passa-se um longo intervalo,
brava, ela não jurara coisa alguma; restringira-se àquela con em que todos se recolhem
versa metafísica, que se desvanecera na ambivalência do texto. às suas reflexões

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gafanhotos azuis e borboletas de asas transparentes; lembraram-
mais intimas.
se de carruagens de ouro, puxadas por doze cavalos brancos,
A casa é um templo
cruzando o jardim entre papoulas vermelhas; lembraram-se
onde o improvável
que da terra adubada dos canteiros viram subir em espirais
não se descarta.
uma substância gasosa, perfumada,feito incenso brotando dum
De repente, ouvem-se passos e a voz espantada de alguém cachimbo de cristal; ah, como se lembraram de tantas e tan
que vai entrando,aos tropeções,rompendo o recato do silêncio,
tas outras coisas, e tiveram saudade do que nem chegaram a
com estardalhaço: Meu Deus, umaflor hermafroditaX, grita viver com tanta intensidade,como na intensidade das lembranças.
Bernardo,eufórico, vindo duma rodada de chopes com amigos. Tinha sido um dia fantástico; tinha sido real a ligação da flor
Que raridade! Vou levá-la amanhã mesmo para o laboratório e da menina; por isso o transplante tão cuidadoso para den
da escola, meu professor vai ficar felicíssimo. Ah, que sorte, tro de casa, o zelo de coisa rara, a sutileza de segredo maior
onde estava essa flor antes? Nunca a tinha visto, engraçado, no miolo de segredos menores. A planta e a filha. Eles sabi
pelo talo e folhas pode-se dizer que é bem antiga, onde es am ou, pelo menos, suspeitavam. Mas preferiram se acomo
tava? A pergunta inoportuna nem eco produziu; ouvidos e bocas dar no simulacro do faz-de-conta; do faz-de-conta que tudo
familiares se fecharam ao mundo outro, que não fosse o de não passa de imaginação. Pressentiram o inusitado e o aco
les, já superlotado de assombro. O boêmio não se importou lheram com receio de questionar a origem e a conseqüência;
com a resposta muda; a raridade se sobrepunha a qualquer pressentiram, mas não quiseram ir além do pressentido. Agora
silêncio. chegara o momento; o momento em que a violeta se permi
Todos, à exceção de Bernardo, compreenderam (inclusi te expor a verdade; não há mais como adiar a revelação. E o
ve a velha tia Gonçalina, surda do ouvido direito, com cata ato em si desta revelação, no fundo, era o que há muito an
ratas; e Leoríta, a espevitada; e sua filha Luíza, de onze anos), siavam ver realizado. Estão plenos. Abraçaram-se os pais e
o pai mais ainda,que Violeta devia ser, na intimidade,igualzinha choraram sem resignação ou raiva, ou alegria ou tristeza, um
à flor, por isso sua reação desmedida. Samira e Manoel Her- no ombro do outro, muito. Choro que dispensa explanaçao
mógenes trocaram olhares expressivos; olhares cúmplices, dum filosófica, religiosa, freudiana. Choro visceral.
tempo que só eles conheciam o significado e ressonância. Lem Bernardo, sem ver motivo para tamanha comoção, meio
braram-se do nascimento de Violeta; da ventania repentina; cambaleante, deixou de lado o que considerava um melo
da tarde sensual e úmida,abelhas e besouros rondando a janela; drama, e tratou de recolher a flor num tubo de vidro, colo
lembraram-se de tantos detalhes que, na ocasião, nem perce cando um rótulo em letras tremidas- Violeta Hermafrodita.
beram;lembraram-se de sensações que não se lembravam de Ao terminar, deu uma gargalhada bêbada, antecipando a alegria
ter experimentado;lembraram-se de presságios amargos e loucas
dos colegas ao contemplar o sexo partido da flor. Recolocou-
a na estante e foi dormir, excitado. Não conseguiu pegar no
euforias; lembraram-se de ter visto passar pelo céu nuvens de
63
62
-m

sono. Aliás, ninguém conseguiu. A casa foi sacudida por uma Cena em Sustenido
ventania perfumada que durou a noite toda. Na manhã se
guinte, o susto da descoberta.

A violeta-flor tinha desaparecido


deixando no tubo de vidro
apenas um rastro difuso
misto de luz e névoa.
Violeta H. ressonava
plácida e nua Desinibida, a jovem loum desabotoa a blusa.
no jardim. O vagão do metrô, lotado. Seis horas da tarde,
E do seu umbigo escorria a hora do aperto. Ela desaperta o sutiã. O
uma seiva seio branco pula, livre. O bebê escancara
espessa e roxa a boca. Fecha a boca no bico rosado. A cara
fecundando a terra do bebê é rosada. O bico aprisionado se
para o próximo plantio. rende. A fome primeva não escolhe hora. Imprópria para alguns.
Invisível para a maioria. A volta do trabalho. A fadiga diária,
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insegurança. O chefe insensível. A promoção que nunca che
ga. O colega invejoso. Os filhos estão em casa. A mulher nao
trabalha fora. Dá de mamar na mamadeira. Quer conservar os
seios arrebitados. Nada de bebê chupando os mamilos. Ela os
quer, anteriores a maternidade. Sensuais. E, de preferência, isentos
do pecado original. Devaneios bestas que vou tecendo, tentando
imaginar o que se passa na cabeça dos passageiros. Olhos
indiferentes, quiçá complacentes. Que importa? Preâmbulo inútil.
A cena que desejo descrever traz em si a urgência dos contrastes.
Rio de leite e mel, escorrendo no deserto. Choque cultural,
geográfico, metafísico? Que importa? A cena, em si, como num
filme de Bunuel, dispensa qualquer enquadramento. A cena.
Que se constata com antenas sensíveis de borboletas. Se hu
manos somos na forma e agilidade, desovamos. No instante da
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anunciação, o eco. E se percebe, e se cogita do infinito, mes dão, senta-se no chão e começa a orar em voz alta. A mulher
mo no burburinho do metrô. O grito do inusitado nos atinge. pensa que é mais um louco no metrô. Ou não pensa. Ou nem
Com uma clava de prata e plumas. E se abre uma clareira, de percebeu, ocupada agora com a troca da fralda do pimpolho.
impensável existência. O ato se deu, na tarde, para quem tinha Que,devidamente alimentado, descarregou o intestino inocente.
olhos de ver e perceber o dose do instante fugidio. Aconteceu. Nu e sorrindo, o bebê é um menino Jesus entre fariseus nova-
No banco,em frente à jovem mãe desinibida, está um mul- iorquinos. Sabe que pode ficar tranqüilo. Na Big Apple,ninguém
çumano. Estatelado. Não conseguiu mover nem as sobrance se importa nem com a nudez de adulto, que diria com a de um
lhas. Nenhum músculo da cara morena ousa se mexer.O homem recém-nascido? Diariamente, renascem na cidade mil espéci
é um susto só. Pregado ao banco, deve estar implorando por mes, mil atos e mil trejeitos. Espantar-se de que jeito? O muçul
~ Deus dos meus antepassados, por que permitis que mano,em genuflexões ritmadas, murmura,bate no peito,contrito.
6U testemunhe tamanha aberraçãdt O bebê suga as tetas. Alheio Carrega os pecados do mundo.Tanto peso,tanta mortificação.
aos conflitos religiosos. Ou a qualquer outro conflito. Políticos, Kjovencita loura sorri. Parece feliz no papel de mãe.Ou des
sociais,individuais. Ele ainda não distingue as diferenças.Pensa lumbrada. O primeiro filho. O bebê banguela mostra as gen-
o mundo como uma necessidade imediata. Alcançou o estado givas rosadas, cúmplice.Os passageiros tendem a se enternecer.
de graça no leite matemo.Doce,momo,escorrendo pela garganta A cena,arremedo da Pietd,chega a suavizar o ambiente pesado
faminta. O muçulmano pensa estar delirando. O choque qua do vagão lotado. Não seise percebem o contraste dos dois mundos;
se o nocauteia.Um golpe de adaga afiada a lhe decepar a memória. não sei se percebem o sofrimento do muçulmano; não sei se
O Afeganistão não está tão distante assim. Lá, as mulheres se duvidam da espontaneidade da jovem; se a condenam ou a
cobrem por inteiro. Nem o tomozelo delas se vê. E se, por acaso, aplaudem, ou. Nem isso de julgamento. O pensamento dos
de esguelha,se vislumbra a carne proibida, zás, o castigo não passageiros pode estar além do vagão,do metrô,de New York,
vem a camelo. Exercita-se a repressão com uma presteza de do Universo. Uma mulher amamentando em público só é uma
tecnologia moderna. Embora os métodos empregados sejam aberração para o indivíduo em decúbito. Lamentando-se,sem
claramente medievais. Nenhuma sutileza. A infeliz é trancafi ao menos procurar um muro para.E por que deveria? Nãoéjudeu,
ada e,conforme o caso,surrada até a morte.Tudo em nome das para. O trem vai parando de estação em estação. Kjovencita
leis divinas do Alcorão. Alá seja louvado!A imagem das mulheres se levanta subitamente com oseu fardo leve,salta na Union Square.
de seu pais desfila pelos olhos, dele, o homem. Que repudia, A união dos opostos, na antanha Nova York.Seu lugar é ime
nas entranhas, o despudor da mulher loura. O bebê, empan- diatamente ocupado por um negão com cara de Michael Tyson,
turrado, arrota. O mulçumano abaixa a cabeça. Olhos fixos nos camisa aberta, correntes de ouro enoveladas no peito cabelu
sapatos rotos. O mundo dolado de cá é uma perdição sem limites. do,serpentes do Nilo, dormindo acordadas. Nem Cleópatra. O
Alá, meu Divino Alá, não me deixes cair em tentação. Os sei muçulmano, voltando das preces, dedo em riste, numa atitu
os dela são tão belos... Ele se levanta, abre espaço na multi- de condenatória, encara o negão, perplexo. Cadê a ímpia pe-
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cadora? Que que é,irmão?Tá me estranhando? A gargalhada ressoa Gatos Eternos, Fantasmas da Ópera, Belas e Feras, Cabarés -
no vagão.Esta cena não escapa do populacho. Ávido por qualquer Os Miseráveis. O vulto minguado vagueia entre os personagens
migalha de catarse. Venha ela de onde vier. O mulçumano salta robotizados. Reluta em voltar para casa. A imagem do metrô con
na primeira estação. Na Rua 42- Times Square. Sem saber se tinua pregada em sua imaginação.Tem medo de macular o lar
delirou ou se viu um seio branco, pele acetinada, uma boqui- com a lembrança torpe. A jovem loura está chegando em casa,
ta vermelha, dando dentadas; um querubim sacana, olhando deposita rapidamente o bebê rosado no colo da baby-sitter
às avessas, para a multidão devassa. Alá, meu Divino Alá, mostre- colombiana, corre para o chuveiro, está atrasada. Quase sete
me o caminho reto, por onde chegarei a Ti, sem o perigo das horas. Marcou um encontro, às oito, com o pai de seu filho, no
alucinações.Times Square e os anúncios luminosos. Cai no centro East Village. Termina o banho, entra apressada no quarto, nua,
do redemunho diabólico. Café- Cigarros - Bebidas - Crimes mal enxugada,abre a gaveta do armário, nervosa.Por Alá, onde
— Guerras- Mulheres Nuas — piscando na fita magnética, ver foi que enfiei minha calcinha preta? O apartamento é uma
melha.De sangue e destruição. Ele é um vulto obsoleto, no coração desordem, às claras. O muçulmano é um ponto escuro na
tecnológico do mundo norte-americano. Repleto de apelos obs luminosidade da praça. Esgueira-se pelas esquinas, anônimo
cenos. Não agüenta mais a sanha do demônio.Implora por uma e pensativo. Leveza de culpa sem sustentação objetiva. Times
trégua. Alá, meu Divino Alá,onde estás que não amparas vosso Square arde em chamas frias. A essência do pecado é um mistério
humilde súdito?Súbito, no alto dum prédio,surge uma luz multicor, insondável. Volta à casa,entra na sala, pálido,olhar vago,a mulher
ele se ajoelha,a resposta ao seu clamor? Uma imagem vai surgindo, o espera. Por Alá, onde foi que você se enfiou?, pergunta,exa-
não sabe exatamente o que é, algum símbolo, algum lenitivo minando-o, atenta. Por quê? Seu semblante traz um sombrea
ao seu tormento? Fé inabalável, espera a revelação da imagem do de véu negro,encobrindo intimidades. Ele não retruca.Segue
que vai se formando no ritmo de dígitos fosforescentes. Ele nada direto à penumbra da biblioteca, retira da estante de mogno
entende de computadores. Mas tem de confiar. Alá pode usar gasto Alcorão esverdeado. E se retira do mundo.
canais insuspeitados pra enviar suas sagradas mensagens. Olhos
e ouvidos alertas, o humilde servo espera. Ele agora é todo ado
ração. Postura de escolhido. A imagem se completa nas altu
ras. Ele cai por terra. O anúncio gigante incentiva as mulheres
a amamentar os filhos. O leite materno é o melhor dos ali
mentos. Uma jovem metálica mostra os seios rijos, o bebê de
boca vermelha, olhos satânicos, a sugar as tetas pontudas da
mãe exibicionista. Times Square é um inferno eletrônico, repleto
de gargalhadas estrangeiras, gritos, sussurros, espantos, a va
rar a noite. Mais de mil e uma noites. Sob o fascíhio de Reis Leões,
68 69
Guilhotina de Veludo

Londres, Hide Park, Primavera, manhã de


sol,vento frio,encolhendo as flores nervosas,
diante de seu assédio,quase sexual. A pele
acetinada das pétalas recém-abertas, tam
bém sem resistência para enfrentar os rai
os solares, avermelhavam-se. Abelhas
excitadas farejavam o pólen que mal se formava no púbis das
flores; abelhas insensíveis aos rubores e temores virginais. An
tecipavam o gozo orgânico, pouco se importando se causari
am prazer ou dor;elas o arrancariam à força, da sedução ou d
sujeição;sabiam como manejar o ferrão afiado; hábitos de insetos,
hábitos humanos.Na caminhada,vôo,intenções,instintos.Jovens
eufóricos pela presença do sol, odor,expectativa de aventuras,
espalhavam-se pelo parque;bandos de pardals ávidos de alpistes
desconhecidos. Esquilos perambulavam de galho em galho,
besouros preguiçosos zumbiam,meio adormecidos. No ar uma
sensação de novidade,romance,reserva exposta,energia mal
disfarçada; vontade de pular, cantar, abrir os braços e se dei
xar tomar pelo calor, mais do que do sol, da vida. Era o rom
per da barreira da estação;o inverno ainda não se fora de todo,
a-r-r-a-s-t-a-v-a-s-e, largava escamas pelo caminho,como uma
imensa serpente, durante a mudança de pele. Demora e dói e
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luta para ficar; resiste a mais não poder; até o seu desprendi e motivo que movimentam seus passos. O velho cego, senta
mento total, muitas nuances de arrepiar hão de se registrar na do no meio do banco escuro, não tem pressa; nem pressa nem
metamorfose. Uma transição que se dá com ansiedade e recuo; desejos; o odor da primavera lhe traz antigas lembranças;lem
pressa e adiamento;como a da criança para o adolescente; cheia branças plácidas que o fazem sorrir sem abrir os lábios; sor
de mistério, medo, melancolia, mas desejada com avidez e riso para dentro, as imagens do passado; e ele enxerga e sente
volúpia.Um perfume sutil envolvia pensamento e olfato de homens e revive,na carne,aquele grande amor de sua vida. E ele se encontra
e insetos; alguns aviões cruzavam os céus; várias crianças com ela, de novo, na primavera, ali naquele banco, entre bei
brincavam; cães pulavam de alegria, um pulo limitado pelas jos e carícias apressadas; promessas; delírios da juventude. Ele
coleiras, ainda assim, alegres. O limite do pulo não lhes tira é feliz no retiocesso do tempo;enquanto sua memória for capaz
o prazer do pulo; no apartamento nem isso; o pouco que ora de lhe trazer aquelas imagens,será feliz em todas as primave
conseguem, desfrutam. Não deve ser o caso da velhinha com ras. Outro velho senta-se ao seu lado, não é cego; começam a
os dois netos;sua nora, uma jovem tensa de vestido azul-claro, conversar em voz baixa; devem estar trocando sabedorias. Ao
a Vigia de perto; com certeza não confia nela ou tem ciúmes redor deles, borboletas sobrevoam a cores, em sua vida bre
dos rebentos. A velhinha, constrangida, não sabe como go ve. As lembranças do cego se recolhem. Como as três freiras
zar o momento partido; não consegue parar de pensar no todo, cinzentas, à sombra dos alamos, quase transparentes de dis
num todo a sós com os netos; e como isso não é possiVel, deixa crição. No ar uma leveza de chumbo.
de gozar o pouco que lhe é concedido. Os cães continuam pu
lando. E os netos continuam felizes; como desconfiar das tramas Tudo é denso, é suscetível, é intenso demais
dos adultos, eles, aos 2 e 3 anos? Os pombos se aproximam, nesta manhã espantada de sol.
os inocentes os alimentam batendo palminhas. A anciã tem Clima de suspense e intriga;
os olhos marejados. Como as plantas que ainda sustentam os punhais escondidos em sorrisos mansos.
últimos pingos de orvalho no clarear do dia; pingos que se
carão antes de alcançar o solo; as lágrimas da anciã também A claridade parece disposta a revelar as entranhas das árvores,
secarão no nascedouro; deixar escorrê-las pela face é satis flores, corações. Segredos não estão seguros; nenhuma garantia
fação que ela não quer dar à nora. E o sentimento das duas de continuarem escondidos sob a terra fofa dos canteiros ou na
se sobrepõe ao instante de soltura das crianças, dos insetos, boca do eventual delator. Há sinais de conspiração, cheiro de
dos jovens pedalando bicicletas, beijos dos namorados, ruído conspiração, pólvora de conspiração. A fina poeira do pólen
surdo dos aviões, feito vespas a cortar o ar denso de emoções. já tomou conta do sensorial; tudo é provocação, anseio, um
Tudo é denso, é suscetível, é intenso demais nesta manhã es momento quase-chegando, ao quê, não se sabe; prenüncios,
pantada de sol. Comerciárias, executivas, babás, professoras prenúncios de alguma coisa que há de marcar a manhã encantadora
atravessam o parque, depressa ou devagar, dependendo do prazo e perigosa no Hide Park. A sensação de perigo também se misturava
72 •7->
ao odor da grama molhada; cheguei a andar com cuidado, O momento do duelo

temendo cobras,aranhas,escorpiões entre pedras úmidas;quando não pactuado


apenas lagartixas descuidadas, camaleões, caracóis inofensi aconteceu;

vos povoavam o gramado. Durante muito tempo foram eles, os sem neblina

apenas, a dominar o verde mais verde do que aquele nunca pistolas


se viu. Até aquele momento,foram. Um momento que come padrinhos.
çou como uma brincadeira inocente, depois se transformou em
perseguição, depois... Ah,o depois, tem de vir com o tempo; O coelho pressentia o perigo, mas não tinha forças para se
é preciso que se trace o desenho, marque as dimensões da livrar da fascinação da doninha; uma corrente magnética os
tapeçaria, antes de se colocar as linhas no tear. Embora não se enlaçava com garras de aço viscoso. Estava sendo atraído para
trate de tecelagem,a relva, palco da ação,sugeria a imagem dum a morte e se colocava à mercê do algoz, sem oferecer resis
tapete de lã,fofo e inocente. Aquela inocência pressentida, de tência. Não que o sacrifício fosse voluntário, ele pulsava de
coisa macia e transparente, muito verde,sem reentrâncias para vida, mas não conseguia escapar ao seu destino trágico. E
subterfúgios. Nem precisava. O que se deu, escancarou-se na esperava o desenlace com a certeza de quem conhece a se
superfície, aos olhos de quem quisesse ver. Às claras, naque qüência dos próximos minutos; esperava com a coragem dos
la claridade que se desconfiava, violenta. E foi. Com a entra primeiros cristãos, enfrentando a bocarra dos leões nas are
da inesperada de dois personagens,rasgando velozes,a paisagem. nas romanas. Só que os cristãos eram alimentados pela fé; e
Primeiro o coelho. Apareceu de repente,saindo da cerca de o que alimentava o coelho à beira do martírio pagão? Que força
arbustos densos; correndo tão rápido que era difícil acompa podia retê-lo, contra a sua vontade, pregado ao solo? Pergunta
nha Io na fuga, com os olhos. Logo atrás dele surge uma do absurda,como absurdo éo principio que gerou a questão insólita.
ninha,mais rápida ainda,tentando alcançá-lo. A corrida continuou Estratégia verbal inútil para se prolongar um ato que, por si
por alguns segundos,até que o coelho deu uma parada, olhou só, é constituído de fascínio irrestrito, a ponto de se entregar
para trás (talvez para medir a distância que o separava do a própria vida.
perseguidor), hesitação fatal. Seu olhar encontrou o olhar da
doninha,pronto, caíra na armadilha. O coelho tremia e tremia, Toda e qualquer explanação
não conseguia se mover. A doninha veio vindo, passos leves, se redundaria
cautelosos, como uma dançarina em arribação; movimentos infrutífera
sinuosos, em sintonia com uma música oculta; uma música diante da crueza da cena
pragmática, puxando cordas de nervos retesados; nervos que que se seguiu
arpejavam, e se compactuavam, e se materializavam sob o indefensável.
compasso da batuta hipnótica.
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Nos olhos da doninha,as farpas incendiárias espocavani;olhos se demorava no esgarçamento das fibras vitais. Os fios doloridos
de adaga de duplo gume,subjugando a presa escolhida. Con se afinavam e resistiam e partiam,um a um;como fios elétricos
tinuava avançando,a dançarina astuta, até que,à curta distância que se distendem e arrebentam e causam curto-circuito e apagam
do coelho,ergueu a pata esquerda;e, naquele segundo,naquele as luzes de mas,túneis,alamedas,Das estradas,estações,estrelas.
exato segundo que se precede à concretização do gesto, fez- A escuridão é presságio do transe inevitável;do transe que conduz
se no ar um instante mudo de dilaceramento e dor, e agonia, a lugar nenhum.Os olhos se fecham,o mundo é o caos primevo,
e amor,e ternura, e destruição; um instante suspenso por fios a vida do coelho se extingue sem um gemido; e se integra ao
gastos; um instante que não se sustenta, por força maior do que nada para onde é empurrado sem piedade.Tudo é devastação
não se adivinha. E a pata desceu, vertiginosa; e atingiu o alvo, e sentimento de piedade e angústia do que poderia ter sido; do
com tamanha violência, que arrancou a cabeça do condena reverso do quadro, da agonia, da morte, do que não estava
do. Pata aveludada, como uma guilhotina de fino corte a pe proposto num mício de primavera. No calendário.Mas no paladar,
netrar a garganta com maciez mortal. Entre a delicadeza da arma um gosto de fel e mel, desde o começo, degustou-se. Aquele
e a intenção do golpe, desvaneceu-se a vida. começo de augürios e apreensões e arrepios de felicidade/
amargura,do que estava porvir e não se sabia e se pensava que
A guilhotina sabia. Um corte se fez no tempo, no espaço, na alma, na rel-
nem arcaica va; na relva conivente do sangramento predestinado; como a
nem francesa primeira menstruação da menina-moça, o corte. Havia uma
era de veludo predestinação no chamamento dos seres que se entrelaçavam
e inglesa. no parque; havia um quê de trágico, de belo, de imolação, de
Baque surdo sacrifício tardio e inútil a alguma divindade profana,e nem um
a cabeça pouco sedenta de sangue. Será? Talvez a doninha fizesse par
sem nobreza te de nenhum plano; talvez sua ação tenha sido um ato isola
rolou. do,e talvez não,quem sabe? Os atos que se pretendem,violentos
ou não, podem fazer parte dum todo cósmico;o comando e o
E a doninha, dum salto, abocanhou-a e começou a devo
porquê desses atos é que nos deixa atônitos e pressurosos em
rar o cérebro do coelho, com voracidade; a menos de meio busca duma explanação lógica; quando não há explanação, nem
metro, o resto do corpo do pobre animal entrava em espas lógica; apenas o embate de forças antagônicas no ciclo da na
mos. A vida ainda perdurava entre os dois pólos; era visível tureza; questão de sobrevivência, hábitos ancestrais; questão
e quase palpável o elo elástico e fosforescente, no intervalo de estar no rederaunho do mundo? Ambivalências. Fogo-fá-
orgânico; o corpo e a cabeça, embora biologicamente sepa tuo sob nevoeiro espesso.
rados, mantinham aquele laço energético, que se esfiapava e O final patético.
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Saciada, a predadora se retira do cenário, lambendo o fo- Georgina na Janela
cmho. Nenhum sinal de pudor ou contrição; a crueldade do ato
só existia em nosso julgamento.

O Big-Ben ressoa.
A Rainha ressona.
A natureza sangra.
A monarquia
decreta:
É o vermelho carmim da boca se impõe
primavera contra o fundo escuro. A moldura da
em Londres. janela é azul-escuro, as vidraças escan
caradas desnudam o interior da casa, mer
Os raios do sol escorrem por entre as folhas tenras; quase gulhado na penumbra. A figura que dele
as queima de virilidade áspera. Os pássaros, em vôos rasantes,
emerge, todas as manhãs,já está no seu
enchem a manhã de goqeios escandalosos. A cena da agonia posto. Cabelos crespos e abundantes,
se desfaz em conta-gotas, como a neblina ante a urgência da rosto redondo e moreno, olhos mornos e negros, langorosos.
luz. A vida é uma filigrana de ouro, entremeada de ônix e di Lábios sensuais,entreabertos,ávidos de beijos.Próspera de carnes,
amante bruto, e invisíveis teias de essência não identificada. O
desejos, exalando cio, como uma matrona dos filmes de Fellini.
ce'u londrino é um teto gótico, distante e sem respostas.
Solteirona, talvez esperançosa, seios exuberantes, quase sal
tando do decote em V profundo. Quando ela se debmça um pouco
mais, é possível ver, através do ângulo, o que de resto se adi
vinha. Não usa sutiã, nunca usou, desde mocinha. Agora que
já passa dos quarenta, não vê razão. Gosta de sentir os seios
livres, como ela gostaria de ter sido; não fossem os deveres da
casa, o pai autoritário, a mãe doente a exigir cuidados. Sendo
a mais velha dos nove irmãos e irmãs, a responsabilidade era
sua. Virou mãe,conselheira, administradora da casa aos quinze
anos. Dizem que esposa também,as más línguas apontando o
homem corpulento, forte, arrogante, Manolo Arroyo, seu pai.
Que nunca a deixou sair de casa, passear, namorar, curtir a
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juventude. Talvez por egoísmo, abuso de poder, comodismo. E a vida foi passando, os irmãos crescendo, se graduando,
Tê-la em casa, à frente de tudo, era muito conveniente. Talvez casando, saindo de casa, voltando só para visitas rápidas, to
não passasse disso, as razões;embora o povo acrescentasse mais mar a bênção da Gina, querida. Dona Herminia, a mãe, mor
uma,difícil de acreditar, mas não impossível: a relação carnal. reu; Miguel Arroyo, após um derrame cerebral,ficou entrevado
Na expressão compacta de Georgina, nenhum indicio. Se existia numa cadeira, dependendo dos cuidados de Georgina. Que não
algum conflito dessa natureza, ela o escondia nos subterrâneos falta aos seus deveres de filha abnegada. Mas também não deixa
do seu mtímo, com muito cuidado. de cumprir o ritual diário. Das nove às dez, bem vestida, blu
Levantava-se muito cedo, e jã saia do quarto com os lábi sas estampadas ou lisas de seda ou algodão, decotadas; maqui
os carnudos pintados de vermelho carmim, invariavelmente. agem exagerada, o eterno batom; cabelos soltos ou presos por
O batom parecia ser, mais do que um produto de beleza, um fivelas de madrepérolas, ela é vista na janela do casarão colo
talismã para ela. Usava-o, sempre. Trabalhadora, metódica, nial. Silenciosa, um sorriso enigmático de Mona Lisa, os olhos
dirigia a casa com mãos experientes e cabeça sensata. Todos fuitivos a observar o movimento da rua. Falante, a voz suave,
a obedeciam e o mais importante,a veneravam. Era boa,crédula, rouca, sensual, quando responde aos cumprimentos, pergun
generosa; firme e enérgica, quando precisava. Não chegava tando pela saúde dos conhecidos que param pra conversar.
a assumir o papel principal no mando doméstico. O pai vi Georgina sabe das novidades, fofocas, ocorrências criminais,
nha em primeiro lugar na hierarquia familiar. Teoricamente. sentimentais, anedotas. Sorri, mostra os dentes imaculados, dá
Por ficar sempre em casa, despender mais tempo com os demais gostosas gargalhadas; na hora certa, desaparece para o fundo
membros da família, estar envolvida em problemas como: de- da casa, engolida pela rotina. Amanhã, estará de volta à jane
veres da escola, higiene,alimentação,roupas, médicos,dentistas la. Em sua postura de matriarca, câmera lenta,dominando a cena.
- ela tinha maior controle da situação. Estava nas mãos dela, Ela é o centro da casa, o centro da pintura, o centro da rua, que
os cordéis da intricada engrenagem do dia-a-dia duma famí fica no centro duma cidade localizada no centro da América do
lia grande,com necessidades as mais variadas. Atendia a todos, Sul. Só não é o centro dela mesma. O que a fez tornar-se dos
tomava decisões, ralhava e lhes fazia as vontades; fogos no outros e não dela, o centro? O que a impeliu a se anular e a se
Ano Novo, árvores de Natal, festas de aniversários, bolos e sal- sentir feliz, assim? Feliz???
gadinhos a granel. Cozinheira excelente, sabia preparar almoços Os olhares dos transeuntes jamais a seguiram no interior do
e jantares fmos,verdadeiros banquetes. Mesmo tendo duas em casarão escuro. Ninguém a acompanhou nas noites solitárias
pregadas,não deixava de fazer seus quitutes divinos, decantados quando em seu quarto chora todas as desditas do mundo. Não
pelos familiares e os amigos que freqüentavam o casarão sabe o que fazer consigo mesma.Entre o dever de se dedicar aos
centenário da Rua do Lavradio. Ela era o esteio, a viga-mes- outros e o dever de assumir o controle de si própria, decidiu-
tra da estrutura dos Arroyos. Nada se fazia sem passar pela sua se pelo que lhe pareceu mais fácil. Até por uma questão de
aprovação. sobrevivência. Ou escape?Ingenuidade?Pressão? Ou ganhar tempo
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enquanto uma solução melhor não aparecia? E dai'o "enquan sonáncia. Deviam ser palavras ásperas e sedosas, espinhos
to", esse, perdurou mais do que o suposto, a vida inteira? O pro aveludados que penetraram a sua carne madura e a fizeram gemer
visório duma situação corre o perigo de se tornar permanente, de prazer doloroso. Georgina correspondeu ao ardor inespe
quando não se reconhece a hora de estancá-la. Sacrificar-se em rado,com o ímpeto de águas represadas; guiada pelo estranho,
favor de outrem devia ter lugar marcado e tempo de duração. deixou-se levar pelos labirintos da volúpia, de olhos fechados.
Caso contrário, vira renúncia obrigatória e irreversível. Não se Eforam horas e horas de amor,despudor,gozos,gemidos roucos.
sabe se esse foi o caso de Georgina. Aliás, não se sabe nada. Como veio, se foi, o homem. Denso de mistério, sua sombra
Suposições apenas,na tentativa de perfurar a casca do ovo,gerado a se dissolver no lusco-fusco, pela janela entreaberta. Dizen
dentro do casarão; uma casca que não se adivinha a origem, do se chamar Dionísio Arcanjo,deixou o aposento, pisando leve,
natureza,consistência; que instrumentos se usam para se penetrar quase levitando. Prometendo voltar na noite seguinte. Mas,entre
em seu âmago? A fortaleza de Georgina parece invencível. a palavra e a ação, se estende uma longa planície, lavrada de
Parecia. O concreto armado também tem poros, embora sonhos,pesadelos,tatuagens do inconsciente,de difícil travessia.
mvisiveis, tem. Ferramentas,força bruta, guindastes nem sempre A promessa se esgarça e se torna del^il e se mistura às heras,
surtem efeito. Para se descobrir o ponto fraco do muro antigo, musgos, limos-resíduos dum passado morto. E o homem não
o tato; das mãos, pele, língua, carícias, fala mansa, promessas volta ao local do pacto; do pacto extinto por covardia, esque
de amor, promessas de alcançar as estrelas. Ah, então foi as cimento ou predestinação. Nunca mais.
sim que os lábios carmins se entreabriram como uma flor de E Georgina o espera, na janela dos fundos,olhando para os
outono à última abelha da estação que se julgava passada? Foi telhados antigos da Rua do Lavradio. Um olhar mudo e amplo
e não foi, tão poético assim.Para nós, talvez não. Para ela, que e elástico, de quem quer alcançar o improvável à custa da per
élivre em seu julgamento e aquiescência,foi, mais do que poético, sistência. E da fé. E do amor. Noites e noites, a espera acumu
uma fresta insuspeitada em sua intimidade; uma fresta de luz lada. Carregando um corpo seco e oco de solidão. Ele vai voltar,
que entrou pela janela, desta vez do seu quarto, iluminando- prometeu, vai voltar. Não sabe que a promessa há muito que
a em sua nudez outonal. se desfez. Apática, perdeu o interesse pela vida, abandonou os
afazeres da casa, só pensa na volta de Dionísio. Fala sozinha,
Um ruído de penas e folhas secas chora, esmurra o peito. Meses.Seus cabelos embranqueceram,
roçando no assoalho de tábuas corridas os olhos turvos sem cor, na boca um arremedo de sorriso. Como
anunciou a presença do sonho. o das estátuas esverdeadas de esquecimento, nos canteiros do
Passeio Público. Nem revolta, nem aceitação, a perplexidade
O homem entrou, com a delicadeza e maciez de pássaro, do abandono. A janela da frente, moldura vazia dos lábios carmms,
acomodou-se ao seu lado,cobriu-a de beijos ardentes,sussnarrando- é uma existência sem sentido. Como a de Georgina, que desa
Ihe aos ouvidos palavras que só ela soube o significado e res- pareceu do quadro, para sempre. Esquizofrenia, segundo os
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Por Onde Andarás?
médicos. Foi levada para o Hospício Santo Inácio, aos gritos,
dizendo que tinha sido deflorada por um arcanjo de pênis
dourado. Os curiosos, acotovelando-se na rua estreita, sob um
calor de quarenta graus, consideraram a cena final, tragicômica.
Outros, uma farsa. Poucos se sensibilizaram com o seu desti
no frágil. Ninguém percebeu um vulto estranho na esquina; o
corpo coberto de penas, feição humana, sorrindo.

Mas quando o perfume das damas-da-noite


Enche o ar de sensualidade e mistério
Um ruflar de asas se ouve ao longe
Mais duradouro do que a própria noite.
Era uma tarde, nem moma,nem púrpura.
««: :»»
Devassa. Pela fresta da janela a luz baça
entrava e safa com uma intimidade de
clientes em cabarés baratos. Nenhuma senha,
contra-senha,reservas antecipadas. Os ges
tos aconteciam e se sucediam com uma
libertinagem assombrosa. Transeuntes desocupados ou empe
nhados em alguma tarefa tardia ou escusa, ou mesmo obtusa,
avançavam sem pudor, nas entrelinhas do desejo. Nas calça
das movimentadas, pernas, calças, saias, sapatos baixos, altos,
sandálias, mocassins, tênis, tamancos, botas abafadas, ousa
das, de doer. Nos olhos de verniz e no baque surdo do calca
nhar. No andar suado,excitado,o resfolegar das têmporas,narinas
abertas, ouvidos moucos,zunidos abstratos. Quantos sobres
saltos! Quanta falta de senso, contra-senso, contraponto. Na
esquina da rua Augusta, nem tão astuta quanto quer parecer,
a moça ausculta. Vem do interior, ausculta. O tempo,nem tanto.
O tampo do esgoto aberto, detritos escorrendo vadios,gosmentos.
No ar o odor pestilento, na cara a dor macilenta. Nos ônibus
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e táxis lotados, um sinal de que a vida se comprime. Como o
E a noite cai, sem alternativas outras que não essa. As leis da
espaço que divide com outras moças esperançosas. Não há vaga.
natureza também tendem a ser específicas. E a nossa emoção
Nem nos empregos nem no coração de alguém nem na cida
de caótica nem nas sarjetas escorregadias. O disponível é um e necessidades imediatas que se acomodem ao noturno. O tom

ponto que não se alcança. Nem por acaso. O ocaso talvez. do quadro se altera por conta e risco. O sombreado entra no
cenário à nossa revelia. E a garota, que pensa ser vivida, entra
Dependendo do ponto em que se encontra. O sol se põe a
distância. As luzes em breve vão se acender. Acenos da vida no redemoinho da cidade. Corpo e alma. Entrega-se às vibra
noturna. Outra face do cotidiano. Outra perspectiva do humano. ções do irresistível, previsível até certo ponto. Perambulara pela
Em busca de si mesmo,ou do deus no qual não acredita. A noite noite sem destino. Pelos bares e infeminhos, vinhos, vodkas,
começa a cair. A cortina desce. De seda transparente e cinza, cigarros. Marlboro, Camel, Hollywood. O mundo é vasto. De
desce. Afaga os dissabores, entrava humores, ameniza dores incongruências, amores,traições, boas trepadas,dores de cotovelo
profundas. Ungüento. Reavivam-se as esperanças. Quem sabe e boleros e melodramas e sacanagens e beberagens infindas.
esta noite. Na avenida movimentada,encontrarei o que procuro. Papos moles, soltos, tensos, banais, pseudo-intelectuais, dei
Mas se nem sei o que procuro. Como encontrar o que não se tando falação, poluindo o ar. Ar enfumaçado. Garoa virando
busca.^ Assusta. Quimeras,era o nome do bar ou o que eu embalava chuva. Vento gelando esperanças. Porres à vista. Na esquina,
dentro de mim,como uma canção que nem era de ninar, mas mendigos pedem esmola para a cachaça. Outros apenas pra
que tinha uma entonação de rede balançando, num rancho de sobreviver. Alguns nem dizem pra quê.A mão estendida,o olhar
palha de minha infância? Ah,se eu dissesse isso para as cole vago,a expressão empedrada de esfinge tropical. Um acordeão
gas paulistas... Tão longe da realidade delas, tão próximo da antigo murmura Astor Piazzola, a música passa despercebida.
minha história, tão distante do meu presente... O que nos co À tragédia dos tangos se sobrepõe a miséria concreta de todo
locaria numa igualdade sem igual. Quer contradição maior? Em o dia. O som se mistura a outros restos de melodias e se per
plena São Paulo das garoas decantadas, quem se assombra? O de pela noite anônima.Um travesti passeia e se exibe pela avenida,
cinzento da cidade é dúbio, como dúbia é nossa estadia nes ponta a ponta, fuma o último cigarro, gesticula, ninguém pa
te planeta. Caio Fernando Abreu que o diga. Onde quer que ele rece percebê-lo. O tempo urge, a vida exige, a fome não espera,
esteja. E quem sabe me inspira neste momento? Comecei a o aluguel atrasado, o telefone cortado, queixar-se a quem? Ao
escrever um conto,depois virou crônica,depois virou o que virou, bispo,é piada caduca. O travesti, conhecido como Liana,redobra
nada. Ou seja, nenhum gênero específico. Mas quem precisa nos requebros, exagera o batido do salto das botas nas calça
se especificar? Afora os americanos do norte, que dizem na cara das frias. Ressonâncias apelativas, no exercício do velho ofi
do latino estupefato: Be specifió.- porque não conseguem lidar cio. Nenhuma artimanha surte efeito. Ódio acumulado. Desgraça
com a obra aberta da vida — afora eles, não é Caio? Quem pre de profissão. Pelos becos o negrume,estrume, picadeiro de circo
cisa de? Ora, direis, vamos ouvir besteiras. Estrangeiras ou caseiras. pobre,desmontado às pressas, a trupe aboletada nos caminhões,
à deriva da sorte. Há um clima ambíguo de luz e dor e sombras
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e solidão e gritos e risos e um leve tremor de terra insone. Exausta, A Fábula do Anjo
Liana está a ponto de desistir. Na última tentativa, um carro pára,
ela entra, o rádio está tocando Vida Breve, de Cazuza.O homem
pergunta, gosta da música? Adoro. Pois eu odeio, rosna o ho
mem.Meia-idade,terno e gravata, careca. Desliga o rádio. Pisa
fundo no acelerador. O perigo se anuncia na noite. Nem mor
na, nem devassa. Púrpura. Liana apalpa a navalha na bolsa,
as longas unhas pintadas de vermelho-cintilante. O mesmo tom Na sala clara o gato dorme.Pousa a cabe
do seu batom Revlon. ça entre as patas, ressona. Contra a luz da
janela seu corpo é uma sombra parda de pê
los fofos. A manhã indecisa infíltra-se pe
las venezianas e na nossa vida, suave. Será
um dia como outros nesta praia quase deserta
de ares da cidade. Quase deserta. Levanto-
me,escancaro a cortina, sondo o céu azul, desenhos abstratos.
Tomo café, saio, chapéu, sandálias, short, camiseta estampa
da, um livro. Vou me sentar à beira-mar, no banco de sempre,
contemplando a paisagem que não muda.Paisagem estática que
se contrapõe ao movimento das ondas provocantes. Gosto do
vaivém belicoso. É a vida tentando quebrar a monotonia des
te recanto de férias, oscilando entre o fim da primavera e o começo
do verão. Neste intermezzo de estação e ambivalências, po
nho-me a pensar em Jerome, no dia em que nos separamos.Dia
nada especial para a natureza. Para nós o rompimento defini
tivo dos fios esgarçados da nossa relação,insustentável. Foi assim
como a última distensâo do elástico que já perdeu a flexibili
dade, estala ossos que não tem, geme, arrebenta nervos, não
suporta mais a tensão. Que não fosse o elástico, seria uma corda
de embira, rota, como aquela que bamboleia no cais obsole
to doJamaica Bay. Ambos sem serventia. Na essência e no con
texto. Não sei por que estou aqui a buscar imagens,símbolos,
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metáforas, que em nada me ajudam na cura dos ferimentos da
Falando de anjos.
alma. Talvez esteja tentando visualizar sentimentos, talvez ao
Eu os encontrei num desfile de Halloween na Washing
lhes dar aparência material, seja mais fácil lidar com a dor. Vê
ton Square. Um grupo de cinco rapazes e duas moças, en
só? Os artifícios de que nos valemos na hora em que nos vemos
tre eles Jerome. Longas batas de cetim salpicadas de estrelas
desamparados. E por que não? Tudo é válido quando se tem o prateadas, asas compridas, penas macias de garça, auréola
vácuo deixado pelo amor que se supunha eterno. Se bem que de brocado fosforescente. Eu e duas amigas, feiticeiras ne
conferir eternidade a pactos humanos foi duma ingenuidade de gras, rostos verdes, chapéus pontudos, unhas postiças, vas
querubim. Lábios roxos, bochechudos, cabelos encaracolados souras de palha, dançando ao redor de fogueiras imaginárias.
de inocência. Masjerome me dava essa sensação. Mesmo quando
Começamos a conversar, separamo-nos do restante do grupo,
mentia. Era demais a pureza de propósitos. De arrepiar a pele
varamos a noite juntos percorrendo os bares lotados e ba
do mais insensível mortal. Ou a pele sedosa de violeta entre-
rulhentos de Manhattan. Divertimo-nos enormemente.
aberta, ainda virgem de abelhas. Ou a do botão fechado de lífio-
Amanheci no apartamento dele, na Marks Place, no East Village.
do-campo, trêmulo de pudor. Minha fantasia de bruxa dormia no chão, debaixo das asas
Jerome era belo e consistente. Na mentira? Tenho dificuldades
e vestes do anjo nu, que agora me abraçava entre almofadões
em rotular suas ações. Hoje não sei se era falsidade premedi
indianos. Ele tinha a cara verde, eu estava coroada de estrelas.
tada. Porque ele não parecia um ator representando um per
Fizemos amor repetidas vezes. O anjo revelou-se um fauno
sonagem.Como nos anfiteatros da Gre'cia antiga, a máscara que
insaciável, eu larguei a couraça de bruxa malvada e me
trazia, pregada na cara, era ele. Em carne e osso. Ele era o
entreguei aos prazeres do paraíso. Conservei as unhas afi
personagem. Que amava, sofria, gargalhava, conforme as ex adas para arranhar a pele acetinada do anjo que, por sua vez,
periências vivenciadas. Ele devia acreditar no que fazia. Por isso
a candidez. Mentira sincera, existe isso? Se não existe,Jerome cravava dentes e líhguas pelos meus seios, ventre, clitóris.
Tesão, gemidos, sussurros. O corpo atlético de Jerome,
inventou o gênero. Ele podia criar acontecimentos e emoções
com tamanha engenhosidade e realismo que o expectador fi inventivas sexuais, orgasmos nunca sentidos. Eu disse, ele
também. Nenhuma mulher como eu. Homem nenhum como
cava fascinado. Ele era todo sedução e carisma.Seus olhos verdes
ele. Não mais nos separamos a partir daquele momento. Nossa
brilhavam de esmeraldas,a expressão serenava, os gestos davam
vida às palavras. Promessas, declarações de amor, planos, paixão, como fogo sagrado, nos envolvia mais que o corpo,
a alma. Tornamo-nos amantes, parceiros, cúmplices, num
trabalho, a família, colegas, viagens, aventuras da adolescên
pacto secreto de felicidade infinita. Ah, como foram mara
cia. Tudo. Uma certa graça o envolvia, ele se tornava quase
vilhosos os dias do East Village...
translúcido, angelical mesmo,as estórias fluíam leves. De uma
Dias longínquos e rarefeitos no tempo. Como a névoa que
leveza de asas de borboletas, pirilampos, anjos peraltas brin
vem surgindo no horizonte desta praia quase deserta. Quase deserta
cando de esconde-esconde entre constelações invisiVeis.
dos ares da cidade. Não das lembranças.
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me'dia, estudei às custas de bolsas e empréstimos bancários, desde
Jerome nascera em New Orleans. Quando tinha dois anos,
cedo venho lutando pra conseguir meu ideal: ser escritora. Eu
a família se mudou para a Califórnia. Tinha uma única irmã de
também tenho um sonho.Jerome entendeu.
nome Geraldine,antropóloga,trabalhando num projeto no Kenia.
Foi o que eu lhe contei.
Os pais,Gregoiy e Violet Porter,eram ricos proprietários de grandes
Pura e simples, a verdade.
fazendas,gados, plantações. Ele estudara Sociologia em Berkeley,
masem pouco tempo descobriu que sua vocação era outra. Queria
Depois me contaram.Outra versão do que ele havia me contado.
ser fotógrafo. Interessara-se por fotografia desde os sete anos, Os pais de Jerome,simples funcionários do City Hall, moravam
quando ganhara a primeira câmera, presente de aniversário do
em Brooklyn, numa casa modesta. Era filho único. Geraldine,
avô Barnard. Tinha caixas e caixas de fotografias acumuladas uma fotógrafa que trabalhava para a Natíonal Geographic Magazine,
durante anos. Viera para New York, matriculara-se na Escola a amante mais velha, bem-sucedida que o sustentava. Ele pas
de Artes Visuais e pouco depois trabalhava comofreelanceno sava os dias perambulando por Manhattan,em cinemas, teatros,
Village Voice e Daily News. Nunca passara apertos financeiros. barzinhos, enquanto ela viajava a trabalho pela Europa. As fo
Se não aparecia trabalho, a família o ajudava prontamente. Assim tografias maravilhosas que havia me mostrado,como sendo tiradas
ele vinha vivendo há dois anos,com um certo conforto, não podia por ele, mentira. Eram de Geraldine Jordan.
se queixar. Mas o seu sonho mesmo era fazer fotografias de arte, Tudo isso me foi dito pelo seu amigo Michael.
ter o próprio estúdio, ser conhecido internacionalmente. Para Um dos anjos do Halloween.
isso vinha se esforçando enormemente. Estudava muito, não E, por coincidência, na Washington Square. Quando um dia
perdia exposições de fotógrafos famosos nas galerias do Soho, nos cruzamos,casualmente. Eu voltava da Bames & Noble,ele
procurava estar inteirado de todos os movimentos e novidades da N.Y.U. onde estudava Direito. Relembramos o desfile, a
nesse campo.Freqüentava workshopse estava sempre fotogra conversa recaiu sobre Jerome e ele desfiou a história, espon
fando. Usava câmeras sofisticadas, tentando obter efeitos ori- tâneo e natural, os olhos plácidos de cordeiro fitando-me sem
gmais e surpreendentes. Vou conseguir o que quero, disse-me piscar. Escutei-o em silêncio. Despedi-me, estou com pressa,
certa vez, acredito no meu sonho. Eu não duvidei. tenho um compromisso.Deve ter notado meu desconcerto ou
Tudo isso ele me contou. o desconcerto das águas em que eu me debatia, esquecida de
Averiguar nem se eu quisesse. nadar. Bye-bye. Seeyou soon. Michael ficou no meio da pra
Andava muito ocupada com a minha dissertação de mestrado ça, penso que boquiaberto, não olhei pra trás. Eu segui na di
em Literatura na N.Y.U.,trabalhava trinta horas por semana na reção da Fifth Avenue,enxergando nada que nãofosse o desespero
Barnes & Noble,fazia economias pra poder pagar as contas no último. Olhos secos,de lágrimas nem noticias.De vezem quando
fim do mês:aluguel,luz,telefone, etc. Dividia uma sala-e-quarto apenas um anjo desnudo cruzava minha retina, gargalhando.
com Marion, uma aspirante a atriz, outra que tinha de se des Apressava o passo cego, meus pés e meu coração conheciam
dobrar para se equilibrar nas finanças. Vim duma família classe o único caminho que naquela hora eu deveria tomar. O cami-
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nho de casa. Cheguei ao meu apartamento do Chelsea,tremendo uma verdade inventada e a realidade conhecida por todos os
de frio, em pleno verão. conhecidos deJerome. Porque eu não tratei de investigar nada.
A noite em claro, a noite clara como esta sala clara. Não sei se por falta de ânimo ou de coragem. Talvez não quisesse
O dia amanhecendo. O dia da confrontação. encarar as asperezas do avesso da fábula.Talvez porque quisesse
Manhã nada indecisa. Confrontei-o. prolongar o quanto possível uma situação que, embora eu sus
Jerome me olhou comose nãosoubesse do que eu estava falando. peitasse fictícia, proporcionava-me tanta felicidade. Recolhi-me.
Escutou em silêncio, mão no queixo,sereno. Quando terminei, Aliás, recolhemo-nos. No refúgio de nossa privacidade,isolados.
um sorriso brando brotava em seus lábios sensuais. Aquele tipo Paredes de aço, à prova de fogo, raio, bala, intrigas. Ali estan-
de sorriso complacente, misto de ironia e candura de quem se amos,segundo Jerome, a salvo da projeção alheia.
coloca numa posição superior em qualquer controvérsia.Segurou Estratégia mais do que ingênua, fugaz.
minhas mãos, beijou-as, você está equivocada, meu amor. Mi- O telefonema de Geraldine Jordan conseguiu abrir crateras
chael estaria mentindo? Não exatamente.Porque é assim que ele na superfície da pseudofortaleza.Com uma facilidade de estarrecer.
desenvolve seu raciocínio para compor minha história. Traba Caiu como uma granada. Que não chegou a explodir porque
lhando com dados imaginários, constrói uma fábula que pensa a intenção era apenas me prevenir do perigo.Largue o meu homem
corresponder à realidade dosfatos. E,de tanto recontá-la, angariou senão... Seu homem? Aí"ouvi o relato completo do caso de amor
uma legião de adeptos que acreditam na veracidade da narrati deles, que já durava três anos. Desta vez eu compreendi.
va.A repetição alegórica éum mantra poderoso.Se você perguntar A mensagem era clara como a sala clara.
a qualquer um dos meus amigos, eles vão confirmar a palavra Onde não cabe mais o verbo ressonar.
de Michael.Todos eles me vêm sob a mesma ótica. Acontece que O gato acorda, espreguiça-se, arregala os olhos amarelos,
não participo desse enredo criado à minha revelia.Sou construtor contempla seu reflexo na vidraça, assusta-se. Salta entre as pol
da minha própria fábula. Posiciono-me no mundo da maneira tronas, pêlo ouriçado, atento. Enrosca-se na cortina, espreita
que desejo me ver e agir e sonhar. Sinto-me livre para criar e o "outro", no qual não se reconhece. As orelhas, par de ante
transformar a trajetória do meu destino.O que lhe contei é a minha nas sensíveis, a captar o possível inimigo, retesadas. Vigilân
verdade. Que é a única. Porque somente eu, a semente-matriz cia e astúcia. Imóvel a mirar a imagem daquele que nunca lhe
da fábula, pode conhecê-la.O resto não passa de projeção alheia. foi mostrado como sendo ele- o gato pardo que em si não per
Assim ele se defendeu. Poeticamente. cebe. Como se precaver do choque da projeção de si mesmo?
Ambiguamente.Dentro da sua estranha filosofia, olhando- Nem os humanos.
me altivo. Cena pré-fabricada. Escape que engendro pra cortar o fio do
Belo e consistente... que ainda me conecta a um estado eletrizante. Do qual eu não
Não fosse o telefonema de Geraldine,eu estaria até hoje,quem soube e nem quis escapar no instante em que reconheci a ne
sabe?, naquele estado indefinido, suspensa entre a sedução de cessidade do pulo. Como posso antecipar os movimentos e
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reações do felino alerta, se a eles me desassemelho na lassidão Seda Selvagem
e destino?
Se ainda continuo na praia quase deserta, desguarnecida? Ah,
os vôos da imaginação... A gaivota que vai sumindo no hori
zonte me lembra o anjo de outrora. Qual será seu disfarce no
próximo Halloween? Uma ventania sopra inesperadamente,o
céu se turva, parece que vai chover. Na praia, o vento em re-
demunhos assovia sons estridentes. Ao longe, entre névoas de
areia, vêm surgindo vultos indistintos que aos poucos vão
adquirindo formas e movimentos. São os vampiros, freiras, Éramos quatro no estúdio pequeno e de
garçonetes,demônios, palhaços,anjos, príncipes, pierrôs,arlequins sarrumado de Daniel Vogel. Numa casa
da Washington Square, dançando frenéticos. Cantam, gritam, de vila, em Botafogo, na década de 70.
gargalham, loucos de alegria, como na noite antiga em que Estúdio de cineasta principiante. Muitos
participei do desfile. A atmosfera é igual na aparência e sorti- sonhos; recursos, nenhum.Os olhos dele
légio. Onde está o grupo de feiticeiras? De repente, no meio da tão azuis. O mar ficava a duas quadras
multidão delirante, uma mulher de negro, cara verde, chapéu dali. Mas ninguém precisava do azul do
pontudo, me acena.Estremeço.Tenho a sensação de estar diante mar pra se entregar ao apelo denso da cor. Os olhos celestes
dum imenso espelho observando meu reflexo vivo que conti se espraiavam pelo espaço inteiro, sobrepondo-se ao cinzento
nua a atuar na outra margem dotempo.Preciso desfazer a conexão, do nevoeiro de outono. Que aparecia no retângulo da jane
se quero alcançar a serenidade. Desvio o olhar para o vaivém la, como pano de fundo para um cenário inexistente. Passá
das ondas,o céu escuro,a praia quase deserta. A chuva começa vamos horas discutindo o roteiro dum curta-metragem, sem
a cair. Levanto-me do banco, pego a bolsa e o livro que não li, ao menos saber se a verba seria ou não liberada. Até que ponto
vou-me embora do passado. teriam interesse em patrocinar um trabalho cujo enfoque tratava
Um barco se solta do cais. duma minoria altamente discriminada? O enredo era basea
As amarras se dissolvem entre seixos e algas. do na vida de Durval Laurindo, um travesti que dois anos atras
aparecera morto na Lapa, estrangulado com uma echarpe de
—AAAA -AAAA- seda indiana, laranja-avermelhada. O rosto queimado, irre
conhecível. No seu bolso, 200 reais e o xerox de sua carteira
de identidade. O crime, aparentemente passional, cercado de
preconceito e descaso total das autoridades, nunca foi des
vendado. Intrigados com a violência e o lado misterioso da
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história, resolvemos montar o projeto, contando, em princi Éramos um grupo heterogêneo até a medula. Quem já não
pio, apenas com as informações dos jornais. Escrevi o rotei percebeu? Cada um com seu código de vida e teoria sobre a razão
ro inicial, sujeito a modificações,conforme o orçamento e outros de estarmos por aqui perambulando. Neste planeta tão vasto
entraves imprevisíveis. Três vezes por semana nos reuníamos de propósitos e oco de sentido. Mas no final nos entendíamos.
discutindo detalhes e mais detalhes. Daniel, o de olhos azuis, Havia um fio condutor que nos ligava fortemente: a obsessão
barbudo, magro, vegetariano, visionário - o diretor; eu, Kari- de fazer o filme. Ou a obsessão pelo personagem, que foi in
na, morena,cabelos curtos, encaracolados, rosto de lua cheia, vadindo nosso cotidiano, de maneira assombrosa. Falávamos
virginiana, carnívora - a roteirista; Margô, uma garota magra, sobre Durval Laurindo o tempo todo. Tentando adivinhar seu
bronzeada,cabelos escorridos, boca pequena, materialista, olhar caráter, amigos,amores,solidão.Surgiam controvérsias nos pontos
de jaguatirica desmamada — assistente de produção; e Acimar, de enfoque, levando a discussões acaloradas. E foi num des
fotógrafo,iluminador, pesquisador, muito inteligente e vaidoso. ses dias de intensa falação, já quase de madrugada, que a luz
Óculos de grau,franzino, nem-bonito-nem-feio, gestos largos, se fez no retângulo da janela. A luz duma flor desabrochando.
teatrais. Calçasjeanse camisa branca de algodão cru,seu uniforme. Na frente do prédio de dois andares, havia um jardinzinho.
Entendia de tudo, paria idéias a cada cinco minutos, falando Mal cuidado, as trepadeiras e folhagens cresciam de teimosas.
sem parar. Algumas válidas, outras louquissimas,sempre citando Ou de galhardia, como algumas plantas parecem possuir, so
Glauber Rocha, seu guru idolatrado. Difícil interrompê-lo. O brevivendo a todas as intempéries. Rente à parede, havia uma
rapaztinha fôlego de onça-pintada perseguindo veado-campeiro. árvore, não muito alta, cuja copa chegava a alcançar a meta
Sua voz era bonita, veludosa, quase sedativa. Voz romântica de da janela. Velha, meio torta,sob o peso de orquídeas opor
de Rodolfo Valentino, não fosse mudo o cinema, na época.Já tunistas, que ninguém sabia ou se interessava em saber como
Daniel, era exatamente o oposto. Nosso diretor gostava de foram pousar ali. Trazidas talvez pelos pássaros,freqüentadores
escutar. Falava pouco. Não sei se refletia muito ou se ausen doJardim Botânico,rico em espécimes nacionais e estrangeiras.
tava da gente e ia caminhar solitário pelas matas da Tijuca. Em Aquele espaço paradisíaco do Rio de Janeiro, onde Clarice
pensamento. Como costumava fazer, sumindo por dias. Na Lispector ia espairecer por longas horas,reclusiva/reflexiva no
realidade. Reaparecia com a barba mais longa, cabelos em seu monólogo interior/exterior, descobrindo o mundo.Pois bem.
desalinho, olheiras, o azul dos olhos meio esmaecido, feito Na quase madrugada,sem nenhuma intenção, me peguei tri
águas de cacimba rasa no sertão. Seu andar tinha a leveza de lhando o mesmo caminho.Da descoberta, não de mim,mas da
plumas roçando o chão de tábuas corridas. Seus gestos, os de Natureza que se revelava,imprecedente. Ou improcedente se
um místico,em profunda conexão com Deus. Quieto e recolhido discutido fosse, em termos legais. Mas não estávamos num
num mundo distante, que só ele conhecia. Respeitávamos seu Tribunal. O estúdio era pequeno,acanhado,e abrigava jovens
alheamento, que não durava tanto assim. Algumas horas e ele esperançosos e sonhadores de realizar o maior projeto de suas
estava de novo envolvido no projeto, corpo e alma. vidas. Aos 22 anos. Um filme que nem sequer tinha título. Ou
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seja, uma obra sem identidade, buscando se afirmar num es - E eu sei?
paço turvo de inquietações e ingenuidades. A perplexidade tomava conta de todos nós. O instantâneo
Como a flor,forçando passagem no nevoeiro. Resto de fogo da orquídea vindo ao mundo nos colocava numa igualdade jamais
tentando emergir das cinzas. Entre a janela e a rua adormeci experimentada. Amanhecia em Botafogo. Os primeiros raios de
da, a imagem se expandia em proporções e desejos. Via-se a sol ameaçavam despontar no horizonte. Margô, mãos cruzadas
luta da flor para rasgar o véu do anonimato. Seu supremo es no peito, ar de bem-aventurança, parecia ter tido uma visão
forço de vir ao mundo em nossa presença. Por que seria? O celestial.
nevoeiro resistia à invasão da luz. Capitulou finalmente. E foi - Vocês viram o que eu vi? - perguntou.
se dissipando aos poucos na atmosfera meio surreal do bair - Vimos.
ro,da rua sem saída,da vila quieta demais para o pulsar de nossos - Então não foi alucinação?
anseios. Vivíamos a galope de emoções desencontradas. Len - Claro que não - o coro uníssono da concórdia.
tidão era tudo que não desejávamos. Não acreditávamos que - Espera aí". Há alguma coisa de humano nessa orquídea -
a realização de um sonho pudesse vir em conta-gotas. Tinha disse Acimar, aproximando-se da janela e estendendo a mão
de ser rápido e certeiro como um golpe de sabre afiado. Ou tudo para tocá-la. Uma súbita ventania balançou o galho, colocan
ou nada, dizia Acimar, o punho cerrado, socando o ar de im do a flor fora de seu alcance. Todos nós fomos para a janela.
paciência. Mas o que se deu,e que nos maravilhou, deu-se ao A orquídea faceira brilhava e dançava ao ritmo do vento, e se
tempo que necessitava para se dar. Fugaz e eterno,como os ins desdobrava em trejeitos sensuais, e exalava um perfume forte
tantes de anunciação. A visão se impregnara duma beleza clara. e adocicado,feito incenso indiano em plena manhã.Como era
Na ponta do galho mais alto da árvore, uma orqufdea laranja- bela. As pétalas macias e carnudas e rijas e viris e femininas
avermelhada desabrochava. Seus movimentos pareciam obe desafiavam nossa inteligência. E o instinto também.E toda uma
decer a um ritmo oculto. Coordenados e precisos. Ia soltando concepção anterior do que se supunha ser próprio do reino vegetal.
cada pétala,graciosa e dura,simétrica.Suave e selvagem, mostrava -Essa flor não apenasparece,ela É,humana. Não éincrível?
as entranhas sem pudor. Contei as pétalas, cinco ao todo. O -Incrível está sendo sua interpretação, caro m/o- protestou
nascimento dasformas não durou dois segundos.A flor se impôs Margô, sarcástica.
na janela,senhora de si e de seus encantos e do seu triunfo. Tinha - Você não entende de plantas, my dear- disse Acimar. —
a nós como testemunhas de seus feitos. Não tinha? Sabia que certas plantas podem reagir como seres humanos? Ouvi
— Daniel, de onde saiu essa orquídea? — perguntou Acimar, dizer que diferentes tipos de orquídeas especializam-se em atrair
apontando para a janela, espantado. E devia estar, muito, para diferentes tipos de insetos,seduzindo-os com estímulos sexuais
interromper a si mesmo. que evocam o aspecto, a coloração e o odor das suas respec
— Não sei. Apareceu. tivas fêmeas. Right, Daniel?-(Acimar tinha a mania de inter
— Apareceu como? calar palavras em inglês em seu discurso.)Antes mesmo de Daniel
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abrir a boca sensual, Margô,a jaguatirica inquieta, abriu as narinas, e'ramos outras pessoas. Deixamos de lado as picuinhas, teorias
fungou, deu um pulo de lado, pegou a bolsa, disse: estéreis, e passamos a encarar a realização do filme sob dife
— Depois dessa, io me ne vado. É muita doideira pro meu rentes perspectivas. Mais práticas e objetivas, centralizando todo
gosto. Vou pra casa dormir — neta de italianos, possuía um nosso esforço na pessoa de Durval Laurindo.Tínhamos de levantar
vocabulário básico, que usava com ar superior, como se conhe mais dados pessoais do nosso anti-herói. Suas contradições,lutas,
cesse profundamente a língua de Dante Alighieri.Já estávamos visão de mundo. Resolvemos também que faríamos algumas
acostumados com os estrangeirismos, dela e de Acimar. E a an investigações sobre os motivos do crime, os suspeitos, as cir
tipatia mutua. Brigavam por qualquer motivo, insultavam-se, cunstâncias, enfim, uma porção de coisas que a polícia não teve
quase partindo para a agressão física. Daniel tinha de intervir interesse em investigar. Saímos em campo. O primeiro passo
para acalmar os ânimos,- Arrivedercci bambini\ - o último foi perambular pela Lapa,especialmente à noite, passando por
miado da jaguatirica, ecoando no estúdio, arrepiando a pele de inferninhos, bocas-de-fumo, bares e pensões suspeitas. Ten
Acimar. taríamos descobrir quem eram seus amigos, o que sabiam da
—Merda!E mesmo uma ignorante-resmungou Acimar,quando vida dele e talvez da sua morte. Não foi fácil, a tarefa. Primei
Margô bateu a porta.Daniel continuou calado,o olhar vago,como ro disseram que nunca tinham ouvido falar desse sujeito, e era
se estivesse a Ie'guas de distância do local, havia se esquecido verdade. Descobrimos que o seu nome de guerra era Escorpicina.
de nós. Seu alheamento costumeiro. Ficamos os três isolados Pouco adiantou. Olhavam pra nós, desconfiados,fechavam-se,
e fechados, cada um com sua reflexão. A orquídea, escanca como se tivessem obedecendo a um pacto de silêncio. Ou então
rada, curtia a cena, a distância. Tive a sensação de que estava saíam com frases vagas: não me lembro bem,ouvi falar, parece
satisfeita com o rebuliço que causara. que andava por aqui, etc. E as parcas informações dos que diziam
O sol agora se mostrava em todo o seu esplendor.A rua acordou tê-lo conhecido não passavam de relatos folclóricos sobre sua
barulhenta,o dia começava em Botafogo — como em todo o Rio beleza e valentia. Sedutora,ciumenta,enfrentava qualquer parada,
de Janeiro - ao som de ônibus, motocicletas, caminhões, manejava a navalha como ninguém, botava muito machão pra
buzinadas de carros particulares, impacientes com o trânsito. correr. Belíssima, morena-jambo,olhos violetas, tinha uma porção
Fomos embora, eu e Acimar. Daniel ficou, ele morava no es de admiradores, homens ricos, dispostos a bancar qualquer coisa
túdio. Deve ter adormecido em seguida. Ali mesmo, no chão, por ela. Generosa e de coração aberto, ajudava os outros sem
no meio da papelada, livros, tocos de cigarros, copos, garra visar recompensa. Defendia os fracos e oprimidos com a co
fas, cartuchos de filmes, câmeras, mochilas, tripe's, refletores ragem e abnegação dum mártir religioso. Só faltaram dizer que
queimados. Como de costume. a tal Escorpiana era uma Joana D'Arc dos prostíbulos. Algu
Nada nos prevenia que a passagem da flor traria profundas ma coisa soava falso. Precisávamos de dados mais concretos.
mudanças em nossos hábitos e comportamentos em relação ao Alguém tinha de ter chegado mais perto do verdadeiro Durval,
projeto e ao mundo.Quando dois dias depois voltamos ao estúdio, não era possível! Deixamos a Lapa.

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o Mangue — nossa próxima estação.Também lá, com algumas que agora já é de maior,tá lá, apodrecendo na cadeia. Mas isso
variações, pouco tivemos a acrescentar ao nosso"banco de dados". éde menos.Coisas mais graves pesam em suas costas. Desconfiam
Até a noite em que fomos conversar com uma prostituta de nome que andou despachando muita gente deste mundo.Era valente,
Tita, uma espécie de líder na área. Talvez pela sua forte perso sabia lutar jiu-jitsu, capoeira,e andava sempre armada.Mau caráter,
nalidade,ou pelo fato de ter cursado até o segundo ano de Direito dedurava amigos,chantageava colegas,só vendo. Não tinha ban
na Faculdade Estácio de Sá ou, o que era mais provável, pela deiras, transava com homens e mulheres, numa boa. Era muito
sua condição financeira. A única que tinha casa própria e uma sabida,já tinha vivido no estrangeiro,falava francês,estava sempre
renda mensal razoável que Rachid Mamed,um cliente apaixonado metida com uns gringos de dinheiro e mulheres da alta soci
- um turco, velho e caquético, mas ainda admirável nas pro edade. E viajava bastante pela Europa e grande parte do Ori
ezas da cama -,lhe deixara de herança. A família Mamed não ente. Diziam que estava metida em narcóticos, outros falavam
contestou, pra evitar escândalo. Pra que enxovalhar a memó que eram pedras preciosas, outros que fazia contrabandos de
ria do velho? Além disso, eram riquíssimos. Que diferença faria plantas e flores exóticas do mundo inteiro. Ia e vinha sem
essa pensãozinha miserável? Tita não dependia de clientela pra problemas na Alfândega."Altas conexões" com os homens da
viver, mas, ainda assim, gostava da profissão, e a exercia com Federal,sabe-se lá o que mais traficava? Ao certo, ninguém sabia.
prazer. Quando lhe apetecia, claro. Escorpiana não abria o jogo com ninguém, claro.
Sou independente,ninguém manda em mim,quer orgasmo — Ela era sua amiga?- perguntou Acimar,abordando o ponto
maior. - perguntou-nos, em meio às suas declarações sobre que nos interessava.
^corpiana.-Eu a conhecia muito bem,e não estou aqui pra - Vira essa boca pra lá, moço!Nem pensar.E "aquilo" tinha
tar pano quente em seus malfeitos — disse, botando as mãos amigos?
na cintura.- Não é porque morreu que vou dizer que era uma - E como é que você pode saber de tudo isso?- perguntou
santa. Ninguém merece morrer desse jeito, gente, mas ela era Margô.
uma criatura perversa. E muito traiçoeira. Usava as pessoas e — Ora, queridinha, porque as noticias correm por aqui.Tudo
depoisjogava fora,feito trapos.Comigo não foi diferente. Bancou se sabe na "aldeia".
minha amiga até a hora em que precisou de mim.Tenho aqui - Mas Escorpiana não tinha nenhuma amiga? Ou amigo?Tem
um bilhete dela,me pedindo pra dar guarida ao Piolho,um pivete, certeza?-perguntei,tentando reatar o pontolevantado por Acimar.
seu protegido. Querem ver?- abriu a gaveta da penteadeira e — Que eu saiba... Pra não dizer que não teve... Talvez S.S.
de lá retirou o tal bilhete,amassado e cheirando a perfume barato. tenha sido sua amiga. Ou sua amante. Assim mesmo,por pouco
— Estão vendo só?Pois é.Atendi ao pedido da infeliz. E logo depois tempo.Separaram,ninguém ficou sabendo exatamente o motivo.
o garoto foi preso, deu meu endereço pros homens, tive de Mas só pode ter sido algum golpe de Escorpiana.S.S.tinha uma
comparecer na Delegacia, e cadê que Escorpiana moveu um coleção de orquídeas raras, tinha paixão pelas flores, quem sabe
dedo pelo coitado? Nem se mexeu,a cadela. Até hoje o Piolho, não está ai'o nó da questão?
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-Quem é S.S.?- perguntei,lembrando-me da sigla da temível mas uma criatura boníssima e prestativa. Aprontava escânda
polícia alemã, na época do nazismo. los quando se embriagava nos bares, quebrava tudo, mas de
- Uma drag queenmuito chic. Começou aqui no Mangue, pois pedia desculpas, reembolsava os prejuízos. Não tinha
mas hoje tem cobertura na Vieira Souto,freqüenta as altas rodas inimigos, não guardava rancor de ninguém. Não,definitivamente,
da zona sul. Eu também fui sua amiga, nos tempos da vaca magra, não acredito que Seda tenha nada a ver com isso.
mas depois perdemos o contato. Há dois anos atrás, soube que - E, na sua opinião, quem poderia ter cometido o crime?-
se mudou para Portugal, definitivamente.Pouco antes da morte perguntei.
de Escorpiana. — Não arrisco nenhum palpite.Só o Demônio sabe,minha filha.
- O que quer dizer S.S.?- perguntou Daniel, saindo do seu — E por que a policia não deu andamento às investigações?
mutismo. — Ora, tá na cara, queridinha. Escorpiana parentes
- Salviano Souza -o nome da certidão de nascimento. Mas influentes e os "amigos da alta" que ela dizia ter, num momento
ela dizia que S.S. eram as iniciais do nome que tinha escolhi desses, querem mais é manter distância. E depois, como vocês
do para viver — Seda Selvagem. Adorava cores fortes, princi sabem,crimes contra homossexuais e prostitutas não merecem
palmente rosa choque,laranja, vermelho berrante. E bordava a atenção das autoridades. Não há cobrança da sociedade, que
o monograma S.S. nos lenços, echarpes, calcinhas, toalhas de também nos discrimina. Portanto...
banho,tudo.Era sua marca registrada. Olha só,querem ver?Tenho - Tita, sabe de uma coisa? Volte para a Faculdade de Di
aqui uma lembrancinha dela — abriu o armário e de lá retirou reito, termine o curso, e vá ser uma ativista pela causa desta
uma echarpe laranja-avermelhada, de seda indiana, com o minoria-disse Acimar,apertando as mãos dela,as faces coradas
minúsculo monograma S.S. bordado em fios dourados, na ponta. de emoção sincera.
Ficamos estatelados. - Ah, Ah, Ah - a gargalhada escandalosa de Tita encerrou
Títa, você sabia que Durval Laurindo foi estrangulado com a entrevista.
uma echarpe igualzinho a essa?- perguntou de repente Dani Saímos do Mangue com a gravação da valiosa matéria, to
el, levantando-se,encarando a prostituta com aqueles olhos azuis dos falando ao mesmo tempo,alvoroçados.Inamos diretamente
de doer nos olhos de quem os encarasse. para o estúdio.Tínhamos vários pontos a refazer no roteiro. Muita
Sabia. Mas se fizeram isso pra incriminar Seda,não funcionou. coisa pra conversar e discutir. Quase duas horas da manhã,nem
Primeiro, a Policia não deve ter visto o monograma; e se viu e vimos o tempo passar. Valeu a pena,que importa o tempo?Parecia
averiguou-o que eu duvido-deixou pra lá, pois Seda disüibuiá ser a pergunta que todos se faziam, intimamente. Ao chegar à
echarpes como essas para todo mundo.Era seu brinde de Natal, Avenida Presidente Vargas, a essa altura deserta, tivemos a
presentes de aniversários e até de casamentos. Isso sem con sensação de que estávamos sendo seguidos. Margô jurou ter visto
tar que ela não estava no pais quando aconteceu o crime. Além uma sombra se esgueirando na esquina da Rua Moncorvo Fi
disso, era boa gente e muito querida. Estourada, escandalosa, lho. Fomos ficando cada vez mais apreensivos, nenhum táxi
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aparecia, olhávamos para todos os lados, ressabiados. De re —Embora o diretor também não estivesse do meu lado,com certeza
pente, o vulto dum homem grandalhão surgiu no canteiro do teria outi"os argumentos, menos radicais do que os do guerreiro.
outro lado da avenida,caminhando em nossa direção. Apavorados, E tinha: acho que devemos continuar a colher mais dados para
sem saber pra onde correr,fomos socorridos pelo acaso, ou pela o nosso projeto, a experiência de hoje mostrou que estamos no
Divina Providência, diria minha mãe,católica, apostólica, romana. caminho certo. Quanto às sombras, talvez tudo não passe de
Nossa salvador motorizado freou estridente, pra nossa alegria impressão. Nas ruas do Rio tem muita gente esquisita vagan
e redenção. Entramos no táxi, mudos. O motorista perguntou do pela noite, certo? Vamos aguardar.
duas vezes:Pra onde? Pra onde? Ate'que Acimar respondeu, meio Nem bem Daniel fechou a boca,uma pedra estilhaçou a vidraça
apatetado: pra Botafogo-e deu o endereço.Chegamos ao estúdio. da janela esquerda e caiu bem no meio do estúdio. Enrolada
Entramos, e resolvemos, por medida de segurança, pernoitar num pedaço de papel de embrulho, onde escreveram, em
lá mesmo. Daniel trancou a porta, e foi cerrar as cortinas das excelente caligrafia, a frase:"Se tentarem enxovalhar a memória
janelas da frente, que davam para o jardinzinho. Olhou pra rua de Escorpiana, terão o mesmo fim de Tita".
e nos chamou pra ver. Na calçada em frente, debaixo duma amen- -Tita'-dissemos ao mesmo tempo,aparvalhados.E dainenhum
doeíra copada, um vulto obeso nos espreitava. Tivemos a músculo mexia em nosso corpo.Perdemos a fala. O silêncio foi
impressão de que usava um binóculo ou uma teleobjetiva. Ou cortado, curiosamente, por Daniel. A voz compassada repetiu
quem sabe um rifle de longo alcance? a mesma frase, dita antes de a janela ter sido apedrejada:
-Caralho!-disse Margô.-Era só o que nos faltava! Isso está - Vamos aguardar.
ficando perigoso. - Aguardar o quê?- perguntei,sentindo aquele medo irraa-
- Vamos parar de bancar os detetives. Não somos policiais. onal, que me dominava desde a infância, quando mamãe me
Estamos apenas tentando fazer um filme, uma obra de ficção, deixava sozinha no berço. No meu quarto enorme e branco,paredes
nada mais, por que se arriscar?- perguntei, encolhendo-me no nuas, mobílias antigas de mogno,cheiro de mofo e naftalina, no
canto, sentindo um frio no estômago. Morrendo de medo. primeiro andar daquele casarão cinzento, por onde haviam passado
-Deixa de exagero,Karina.Por que iriam nos fazer mal? Como quatro gerações inteiras da nossa família. As janelas altas do quarto,
você mesma disse, estamos apenas tentando fazer um filme. Qual com cortinas rendadas, davam para o jardim escuro e silencio
o perigo?- perguntou Acimar, ajeitando os óculos de grau, so. De vez em quando se ouvia apenas o ruído de folhas secas,
belicoso. grilos, gorjeios de passarinhos cortando a tarde monótona, ou
- Não sei, mas sou de opinião que não devíamos buscar os a noite comprida de incertezas. Tão amedrontados como eu,os
pormenores desse crime.Sabe-se lá em que estamos nos metendo? pobrezitos.Pela entonação e timidez do canto,qualquerum percebia.
De repente, essa gente e' perigosa... Mesmo uma criança de dois anos. Nunca mais me esqueci do medo
- Não concordo contigo, Karina - disse Daniel, saívando- em farpas, que espetava minhas entranhas. Igualzinho ao cac-
me de Acimar, que já vinha de língua afiada, na minha direção. tus que crescia audacioso, no meio do canteiro, repleto de de-
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licadas violetas. Medo arraigado. Medo ancestral.- Aguardar o Fomos para o Mangue.
quê, Daniel? — repeti a pergunta. De nada adiantou. Na casa,interditada e guardada pela policia
-Aguardar os acontecimentos-respondeu Daniel,sem alterar e cães ferozes, nem mosca entrava.E olha que,na área, os insetos
o tom de voz. proliferavam.
- Será que mataram Tita?- perguntou Margô, arreganhan- Saímos do Mangue.
do as narinas, mais do que a boca de jaguatirica. Ai, meu San Ressabiados. Com um sentimento misto de tristeza e apre
Genaro, agora eles vêm atrás de nós. O que vamos fazer? ensão. Mal viramos a esquina da rua,uma senhora morena,baixa,
-Devagar com os dramalhões! — berrou Acimar. Margô calou cabelos grisalhos, usando bermudas vermelhas e blusa de malha
a boca.
branca, veio ao nosso encontro, saindo duma rua transversal.
De manhã compramos oJB, O Globo, nada. No dia seguinte Meio ofegante, com um envelope pardo na mão, perguntou:
saiu em O Dia a noticia sobre o assassinato de Tita, uma co — É vocês que tão fazendo o filme da Escoipiana? — respon
nhecida prostituta do Mangue. Encontrada morta em sua casa, demos que sim, ela continuou, esbaforida:
estrangulada com uma echarpe de seda laranja-avermelhada, - Madrugada passada,logo depois que vocês foram embo
em cuja ponta aparecia o monograma S.S. bordado em fios dou ra, Tita me chamou e me deu isto, dizendo que tinha tido um
rados. Vingança, desavenças, rixas antigas, hipóteses variadas pressentimento e que,se alguma coisa acontecesse com ela, que
de ocorrências como essas, na zona do meretrício. As inves eu entregasse para os meninos do filme. Não deixe ninguém ver,
tigações, como de praxe, não passariam de promessas formais. recomendou. Enfiei o envelope por baixo da blusa e na saída
Claro. Se nem chegaram a fazer ligação com a morte de Dur esbarrei com um sujeito grandalhão,chapéu e óculos preto,um
ai Laurindo, assassinado no mesmo estilo... E com instrumento tipo esquisito. Não dei muita bola porque Tita tinha vários
idêntico, uma echarpe de seda indiana, laranja-avermelhada, "amiguinhos da alta", que vinham pra casa dela disfarçados.Devia
com o mesmo monograma S.S. Um dado importantíssimo, que ser um deles, pensei. Mas não era. Tá na cara que esse sujeito
jamais poderia ter sido ignorado. Foi. liquidou a coitada. Olha,toma o envelope, não sei o que tem
Essa história está mal contada.Por que Seda Selvagem mataria af, não quero saber,não me envolvam nisso, pelo amor de Deus.
Tita. Se tinham sido amigas e Tita inclusive falou muito bem dela, — e dizendo isso, a velhota, que se chamava Rosária, soltou o
durante a entrevista?- perguntei intrigada. envelope na mão de Daniel e saiu correndo.Com uma velocidade
Sabe-se lá? De repente,ela não disse toda a verdade. Queria espantosa para sua idade, mais ou menos sessenta anos.
se proteger de alguma coisa,-wbo knows? — comentou Acimar, Voltamos para Botafogo.
pensativo.
Falando em voz baixa, olhando de lado, no ônibus, todo o
- Vamos voltar à casa de Tita, esta noite - ordenou nosso trajeto. Direto para o estúdio, onde abrimos o envelope ime
capitão, o de olhos azuis. Sem deixar a menor fresta para pro diatamente. Era uma carta de cinco páginas de Seda Selvagem
testos.
para Tita, denunciando todos os crimes de Escorpiana. Fala-
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va também das suas desastrosas relações comerciais com o travesti. - É, de repente, esse é o melhor caminho - disse Daniel.
Em detalhes, dizia o quanto a outra a enganara e que, final E foi o que fizemos. Sem desconfiar da rapidez do contra-
mente,"aquele inseto venenoso e traiçoeiro" roubara toda a sua ataque. Antes mesmo de Acimar voltar do Correio, o telefone
coleção de orquídeas raras que havia trazido da China, índia tocou e uma voz cavernosa disse:
e África. De pura maldade, não precisava do dinheiro; a sádi - Estamos sabendo que vocês estão de posse dum perten
ca só queria vê-la sofrer;sabia muito bem que ela tinha verdadeira ce de Tita. Deixem a mercadoria no cemitério S.João Batis
obsessão pelas flores. E que,não contente com isso, a perversa, ta, no mausoléu do Dr. Romeo Capixaba. Muito cuidado, não
em conluio com seus amiguinhos corruptos da policia(e nes abram o bico,com ninguém.Um passo em falso e nós liquidamos
se ponto citava diversos nomes), andava extorquindo-a. Ven todos vocês, seus imbecis!
dia proteção" como os mafiosos. Se ela não pagasse, seria - E agora? Estamos fodidos, tá vendo só?-esbravejou Mar
denunciada e presa como traficante. Estava revoltada e humi gô.- Bem que eu queria...
lhada com a situação, mas não via outra saida senão ceder às -O que está acontecendo? — perguntou Acimar,entrando no
exigências de Escorpiana.Até quando,não sabia, uma vez que estúdio. Contamos sobre o telefonema.
a owím aumentava constantemente o montante da extorsão. Fi - Agora é tarde. Já mandei a carta.
nalizava dizendo que temia pela sua vida, por saber demais,e -Nem tanto assim.Podemosfazer outra cópia da carta e deixar
que por isso mesmo resolvera botar tudo no papel. Queria que no tal mausoléu.Só pra ganhar tempo.Enquanto isso,quem sabe,
Tita,a grande amiga de outrora, guardasse a carta pra servir de a imprensa bota a boca no mundo e esses caras que estão nos
prova contra a maldita, caso, no futuro, algo de ruim lhe acon ameaçando recuam?- falou Daniel, naquele seu jeito especi
tecesse. Agradecia e assinava com as iniciais S.S. Terminada a al de conciliar as coisas.
leitura ficamos em silêncio, um olhando pra cara do outro sem - É possível - falei, sem muita convicção.
saberoquefazer.Margô resolveu agir.Colocou a carta no envelope -Tudo é possível, Karina.Inclusive que eles cumpram a ameaça.
pardo e disse: Podem aparecer ai"com uma metralhadora e era uma vez um
Só temos uma saída: entregar este material para a policia. bando de ingênuos entrando de gaiatos.
Que policia, que nada, não está vendo a lista de nomes - Margô, pelo amor de Deus, pára de agourar. Que mulher
importantes? A coisa é séria. O mais sensato é tirar uma cópia mais negativa! - explodiu Acimar. Rompendo semanas de
da carta e mandar os originais para os jornais. Com a mídia em harmoniosa convivência.
cima,a policia vai ter de reabrir o caso- disse Acimar.- O que O telefone começou a tocar de novo,ninguém teve coragem
você acha, Daniel? de atender. E deve ter continuado a tocar o dia inteiro. Deixa
- Estou de acordo com Margô, e você, Karina? mos o estúdio imediatamente e resolvemos que, por medida de
— Minha opinião é a mesma de Acimar, devíamos mandar segurança, devíamos nos separar por uns dias e manter con
a carta para os jornais. tato apenas por telefone. Até que as coisas se esclarecessem.
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Resolvemostambém não levar o envelope para o cemitério, porra como explicar o aparecimento daquelaote^iàe2i desabrochando
nenhuma! De repente, tem alguém de tocaia por lá. bem em frente à janela do estúdio?E laranja-avermelhada,a mesma
- Cruzes!- disse Margô, benzendo-se. cor da echarpe de S.S.? Outra coisa era o roubo de sua coleção
A única solução, no momento,era ficarmos quietinhos, tor de orquídeas.Por que alguém roubaria flores? E por que tinham
cendo para que os jornais publicassem a matéria, em grande tamanho valor estimativo para S.S.? Qual a importância das or
estilo. O estardalhaço da notícia seria nossa salvação. A esta quídeas? Quando fui à Biblioteca para pesquisar sobre o assunto,
altura, sabíamos que estávamos lidando com gente perigosa e descobri o quanto meus conhecimentos de Botânica são min
o pior, sem ter a menor idéia de quem se tratava. E se a coisa guados, pra não dizer, nenhum. Fiquei sabendo tanta coisa...
continuasse na calada, vagando nas entrelinhas da realidade, Sabiam que a orquídea é considerada a mais 563^das flores sobre
comamos sério perigo. Não havia dúvida. O silêncio não nos a Terra? Pois é. Começa que seu nome vem da raiz latina or-
interessava.De forma alguma. Olha só em que fomos nos meter, chis^ que quer dizer testículo. Não só por causa da forma de seus
pensei, preocupada.Sou uma romancista,escrevo ficção,e agora bulbos, mas também porque, durante muito tempo,acreditou-
me vem toda essa realidade violenta despencando em nosso roteiro se que as orquídeas surgiam do esperma respingado pelos animais
de amadores. Não tíhhamos experiência nem intenção de nos durante a cópula.Há uma história milenar recheada de mistérios,
envolver com o mundo do crime. Aos 22 anos,em início de car na trajetória das orquídeas. História de crimes,traições,subornos,
reira, o que tíhhamos de sobra eram os sonhos. Esses,sim,gran contrabandos, mortes acidentais, dentro e fora do país, desde
diosos e abundantes. O resto, o que vinha acontecendo, era 1833,envolvendo nobresingleses que pagavam umasoma absurda
puramente fora do nosso controle e previsão. De repente, es para certos "caçadores" de orquídeas raras, que partiam em
távamos sendo seguidos por um bando de criminosos e talvez perigosas expedições pelos cinco continentes em busca da
caçados por policiais corruptos, também. Cercados por todos preciosidade. Um Guia de Plantas britânico, de l653, aconse
os lados.Sem apelação. Great.Era só o que nos faltava. Fui ficando lhava que as orquídeas devem ser vistas com discrição porque
nervosa e irritada, só de pensar em nossa situação. Até que,em "são quentes e úmidas em sua essência,seduzem e despertam
dado momento, resolvi dar um basta a esses pensamentos intensos desejos sexuais." Quem cai em seus encantos nunca
negativos,que em nada contribuíam para a continuidade de nosso mais se liberta. Nem o canto da sereia parece se comparar. Os
projeto. Decidi então aproveitar o tempo de reclusão voluntária colecionadores arriscam a própria vida, se preciso for, para
para ampliar e melhorar o roteiro do filme. Os acontecimen adquirir determinadas espécies. Algumas,inclusive,em extinção.
tos recentes abriram novas perspectivas de abordagem da história. Há toda uma manobra e ritual e convenções e estratégias e
Por exemplo, o texto da carta de Seda Selvagem me deixava trapaças, entre eles, os que se especializam na matéria. Os
intrigada em vários pontos. O principal era no que dizia res colecionadores de orquídeas sofrem duma avidez insaciável,
peito às orquídeas.Em primeiro lugar, coincidência ou não,devia como se fossem viciados. Não medem esforços nem dinheiro
haver alguma ligação energética circulando entre nós. Se não, para conseguir as cobiçadas. Qual o valor das orquídeas? Em
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nível emocional,incalculável. Financeiro? Custam fortunas, as abafaram o caso?Por que não interrogaram S.S.? Por onde andaria
raras. Por isso Escorpiana roubara a coleção de Seda Selva a drag queen? Quem estava interessado no seu silêncio? E Tita,
gem. Que por sua vez, tinha motivos de sobra para se sentir a prostituta^ Por que fora assassinada^ A reportagem tocou na ferida.
ultrajada. Mais do que a perda do dinheiro e a traição da ou Começou a aparecer uma porção de denúncias anônimas con
tra, martirizava-a a perda do objeto de sua obsessão. Insubsti tra certos nomes conhecidos. A pressão foi tanta que o Ministé
tuível. Fiquei pensando na drag queen,no seu exílio voluntário rio Público prometeu instalar uma CPI para apurar as
em Portugal. Será que a mágoa era tão insuportável, a ponto de respionsabilidades dosenvolvidos nocaso.Ea coisa foiaumentando,
fazê-la mudar de pais? Devia ser. Depois de toda essa literatura feito uma bola de neve. Cada dia, surgiam novos suspeitos.
sobre as orquídeas, o que mais se pode concluir? Ainda assim, Comentários,acusações,suposições,valia tudo.As investigações
uma certa sensação de desconforto, ternura, uma empatia que seguiam em ritmo eletrônico.Em menos de dois meses,o resultado
eu não sabia de onde vinha me tocava estranhamente. E a cena brilhou nas manchetes:Escorpiana es\áviv2i\ Estrangulara Seda
daquela orquídea desabrochando alaranjou meu pensamento. Selvagem, deformara seu rosto com ácido e colocara a cópia de
De solidão e dor e angústia,inexplicáveis. Loucura.Eu devia estar sua carteira de identidade no bolso da drag queen. Escorpia
sendo afetada pelo clima de tensão e confinamento. Novamen na estava na mira de outros tubarões do tráfico, por isso,de comum
te a imagem do meu quarto, no casarão cinzento.Isolada do resto acordo com sua quadrilha, planejou a farsa. Como a polícia nada
da casa, quantas vezes chorei até quase perder o fôlego e nin investigou, ficou por isso mesmo.Para todos os efeitos, Escor
guém vinha me atender.Mamãe,comosempre,fazendo compras, piana estava morta.Fizera uma plástica, mudara de nome,nova
encontrando as amigas, nos salões de beleza, chás de caridade. carteira de identidade,e tinha o seu quartel-general sediado em
A empregada, muito ocupada,vendo televisão, não podia per São Paulo.De onde comandava todo um tráfico internacional de
der a novela preferida.Gritos de criança,nessa hora,não se escuta. drogas,prostituição,contrabandos de pedras preciosase orquídeas.
Menina manhosa,o que está lhe faltando? Carinho. Eu teria dito, Continuava sua carreira de crimes, impunemente,sob a prote
se pudesse colocar em palavras,os estragos da solidão. Por isso ção dos policiais corruptos. Seda Selvagem tinha sido assassi
o choro prolongado.Em vão.Até hoje,isolamento é algo que não nada porque ameaçara denunciar esses mesmos policiais. E Tita,
tenho condição emocional de suportar. a prostituta? Ela também sabia quem eram os homens. Silenci
Três dias durou nossa reclusão. Ainda bem. Acabou-se o aram a coitada,sem hesitar. E fariam o mesmo com qualquer um
pesadelo. Fosse quem fosse o perseguidor, mudara de rumo e que cruzasse o caminho da quadrilha.
tática. Por força da mídia, que entrou firme no jogo. A notícia — Então, pelo jeito, os próximos seríamos nós? — perguntou
explodiu como uma bomba.Gente graüda na polícia e no meio Margô, arreganhando a boquita de jaguatirica.
empresarial, de rabo encolhido. Os jornais estamparam na pri — Sem dúvida, o que você acha, cara micQ — disse Acimar,
meira página toda a história,exigindo providências na apuração batendo nas costas da assistente de produção.Todos nram,não
do assassinato de Durval Laurindo, vulgo Escorpiana.Por que sei se de nervoso represado ou de puro alívio.
116 117
Escorpiana foi presa, levada para a Bangu III, incomuni A Ilha das Cigarras
cável, máxima segurança. Meses depois, já com o julgamento
marcado, Escorpiana prometendo botar a boca no mundo,
encontraram-na esfaqueada na cela. Briga entre gangs rivais,
rixas antigas, as hipóteses de sempre,quando tudo indicava se
tratar de "queima de arquivo". Antes que as desconfianças se
confirmassem, alguém se responsabilizou pelo crime.
— Ajuste de contas, a bicha me sacaneou — dissera Piolho,
o assassino confesso, diante das câmeras de televisão. A últi
ma cena da tragédia.Para nós,a cena final foi uma parede imunda, o silêncio da ilha, ao escurecer, não é cor
repleta de rabiscos, grafites, palavrões, símbolos religiosos, tado abruptamente. Quase impercepüvel,
obscenos, versos de amor, maldições — a parede da cela onde osom vem surgindo como um leve sussurro
Escorpiana deixara uma frase escrita com batom vermelho- dos galhos de árvores,ao balanço do vento
carmim,em francês:/e nepeuxpas écbapper à mon destin. momo. Não é o volume do som;é o pre-
Terminamosofilme.Pío/6ocontinua vivo.Pausa duma história, núncio do tempo de duração,que traz ar
cujo final se desconhece.Sabemos das flores, pouco sabemos repios.A sensação de impotência. Nada vai
do destino dos homens. estancar a sinfonia obsessiva; em breve o ar será tomado pe
O pé de orquídea,na árvore em frente da janela do estúdio, los estribilhos irritantes;o ar e as ruas,o corpo,o ouvido,a mente,
nunca mais deu flor. a vida dos habitantes da ilha. A sinfonia começa com acordes
Secou e morreu, em plena primavera. delicados,em diversos pontos;a desconexão das notas dá a falsa
idéia de que tudo não passa de rufdos isolados; ruídos de ino
**** *ik «***«****414,4i^ *
fensivos insetos espalhados pela folhagem. O verde da ilha é
abundante,espesso, adocicado. Natural que atraia inúmeros e
variados espécimes.Seria natural, não fossem os espécimes,da
mesma família. São. Nesta hora.E parecem estar unidos por um
minúsculo eletrodo localizado no extremo das suas antenas
sensíveis. Que, ao primeiro sinal, aciona um movimento sin-
crônico, comandado por maestros invisíveis; a música se es
palha como ondas mansas pela areia macia;cresce e se transforma
em vagas aflitas, os prováveis náufragos que se acautelem. Não
se sabe se por instinto, ou se governadas por uma inteligência
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superior,as cigarras são duma disciplina de fazer inveja a muitos E veio pousar na Ilha que ela não sabia se chamar das Cigar
monges em anos de clausura. Com precisão e cadência, assestam ras. Pousou, peito arfante,o vôo longo,cansativo; mas os pulmões
as baterias sonoras, como poucas academias militares saberi resistiram bem à travessia dos mares; os pulmões das cigarras
am precisar. A cronometria da orquestra é impecável. Nenhu são possantes; o que as matam, já se sabe, é a compulsão do
ma falha ou intervalo ocioso; conspiração de Primeiro Mundo. canto. E Hunno,como ficou conhecida a cigarra exilada, tinha
Já é noite. Ningue'm dorme. O zumbido estridente pretende vontade férrea e determinação de propósitos. Morreria sim,um
continuar ininterrupto até de madrugada. Tortura chinesa, na dia; mas de morte natural; esquecendo-se que, entre as cigar
repetição da melodia, para os homens.Japonesa, pelo araki- ras, a morte natural era exatamente aquela da qual fugia. O fim
ri vocal, para as cigarras. Muitas amanhecerão mortas. Nas comum dos seres de sua espécie. Mas Hunno não era uma cigarra
calçadas,seus corpos expostos ao sol; cinzentos, verde-escuros, comum. Por isso a rebelião, que culminou em fuga e exílio, o
cascudos, horrendos; os corpos; carregados ou não pelas for que lhe daria direito a asilo político, se humana fosse, a figu
migas,varridos pelos empregados da limpeza pública, pelas donas ra do fugitivo. Perseguido e ameaçado de morte no seu pais,tinha
de casa, alarmadas com a quantidade. Outros continuam gru todo o direito de invocar a proteção de um pais estrangeiro. Tinha.
dados nas árvores; o pulmão seco, patas secas, asas encolhi Só que a ilha em que pousou, inadvertidamente, não perten
das. Alguns abraçados ou agarrados às costas dos outros. Mon ei^am cia a nenhum pais democrático, que respeita os direitos humanos,
copulando. Orgasmo mortal, o das cigarras. Extinguem-se du- muito menos o direito de cigarras rebeldes, que têm a ousadia
ran-te,o que quer que estejam fazendo;o importante é não parar de ir contra a tradição secular dos Cicadídeos. A Ilha das Cigarras
de exercitar as membranas musicais. À estranha compulsão,nada pertencia às cigarras. Essa legião indesejável que infestava a ilha,
se interpõe. A forma de morrer parece obedecer a um pathos anualmente; uma legião com poderes ilimitados. Os humanos
inevitável.Já nascem sabendo como vão terminar. Os machos, viviam sob o seu jugo. Um jugo passageiro, como a vida das
especialmente, que trazem, de nascença, uma bolsa musical no cigarras. No verão, apenas, é verdade, mas de domínio abso
baixo ventre. Aceitam o destino trágico e a eles se entregam com luto. O pesadelo daquele som esganiçado, constantemente a
a volúpia de heróis gregos. Nem todos. Ouvi dizer que,num certo ferir os ouvidos dos moradores, seria capaz de desafiar a pa
pomar italiano, várias cigarras se recusaram a entrar na sinfo ciência milenar dos monges do Tibete.E Hunno chegou,exausto,
nia; fizeram greve de voz, protestaram. Foram cercadas e gol desnorteado, em pleno verão; e pousou, aliviado, na Ilha que
peadas na garganta por um esquadrão de machos enfurecidos; não sabia ser das Cigarras. Era.
minutos depois os assassinos, lambendo as patas, se juntaram
à maioria e foram morrer de tanto cantar. Conforme o costu E a patrulha ideológica, que viceja
me herdado dos ancestrais ou a sina atávica, sem qualquer ex às claras ou às sombras
planação lógica. também nas sociedades
Uma única cigarra escapou ao massacre da Ilha de Capri. animais
ou a cantar até morrer,como qualquer cigarra comum.Mas Hunno
vegetais não era uma cigarra comum.Considerava ignóbil procurar um
Farejaria a pista fim que não desejava. Não acreditava em destino cego e se
E em breve marcharia à sua procura. recusava a participar dum ritual que via claramente como suiadio
em massa,semelhante à tragédia liderada porJohn Jones, nas
Uma cigarra viajada, com idéias revolucionárias, poderia Guianas. Não acreditava, não estava disposto, e não executa
representar uma grave ameaça à Ordem e à Moral daquela ria a performance exigida por uma lei absurda. Fosse ela da
comunidade. Desconheciam o treinamento de Hunno, mas Natureza, de Deus, ou dos Homens. Falou grosso, batendo as
presumiam que deveria ter tido mentores excepcionais de calibre patinhas na areia molhada pela baba de seus algozes. Decidi
internacional. Sabe-se lá de que táticas dispunha o subversi- ram executá-lo ali mesmo, na praia, em plena manhã de sol.
vóíTinha de ser eliminado antes que se infiltrasse entre as pacatas O despudor dos tiranos.Também não havia testemunhas...Moscas,
cigarras locais e as incitasse à desobediência. Morrer cantan mosquitos, caranguejos vadios não contavam. Nem percebe
doénossolema,glória e tradição!, bradaram os zelosos guardiões. ram que, do alto das dunas, um pintor solitário acompanhava
E o Maestro(ou qual fosse o codinome do Ifder dos Cicadídeos), a cena; em rápidos movimentos, traços firmes, passou para a
ordenou a caçada e extermínio do vil traidor. Tarde demais. O tela o instante da execução.Tendo perpetuado o tempo e a ação
ISRUCC (Inteligência Secreta do Reino Unido das Cigarras na obra, desmontou o cavalete, enfiou tintas e pincéis na sa
Conservadoras) informou que em 48 horas o mal havia se cola de couro, saiu apressado. Carregando o quadro como se
alastrado, muitas cigarras mostravam sinais inequívocos de fosse um estandarte sagrado,atravessou a ilha,solene.Enquanto
contágio. Diante do quadro alarmante, decidiram mudar o isso os carrascos lançavam à maré alta o corpo daquele que eles
esquema da Operação Caçada. A ordem inicial foi revogada, não desejavam fosse mártir. A seguir, partiram em marcha lenta,
por unanimidade.
zumbindo em coro:- Que os tubarões devorem o proscri-
to\ Que os tubarões devorem, o proscritol — Não devoraram.
E a falange alada partiu com a missão
de trazer Hunno - VIVO! A maré baixou, o corpo de Hunno reapareceu,
todo prateado,
Politicamente, o assassinato não seria a melhor solução. e foi visto por todas as cigarras da Ilha.
Segundo os informantes, a notícia de sua chegada e da atua Muitas guardaram silêncio naquela noite.
ção no levante de Capri já havia se espalhado pela Ilha intei
ra;formavam-se comitês de apoio,assembléias populares,crescia «' -»

o número de simpatizantes;àquela altura,transformá-lo em mártir


seria um erro de estratégia. O plano era prendê-lo e obrigá-lo
122 123
o Rapto de Cora Mara

^ Nem arena nem ringue.Cora Mara enfrentou


o primeiro round, no metrô. Nos vagões
1 lotados de solidão,rostos anônimos e tensos
e desconfiados e indiferentes. Foi ali que
^ tudo começou.Sem ao menos uma vaga pre-
\ J paração. Bastava olhar para os passagei-
J 1 ros. As revelações zumbiam em seus
ouvidos,como vespas ocultas em flores ou-
tonais. Ou borboletas perdidas no asfalto. Via o desenrolar do
histórico psíquico com uma clareza assustadora. Não como
no cinema, com seqüência e tudo. Era mais assim, pedaços
soltos, fatos passados ou atuais, a energia maior que a cria
tura carregava na hora. Passou a /era mente das pessoas. Não
que ela quisesse ou pedisse para. Era um ato totalmente in
dependente de sua vontade. Acontecia, e pronto. Sensações
perturbadoras do que captava influíam terrivelmente no seu
cotidiano. Safa do metrô apressada, tentando se livrar das
seqüelas da experiência. Uma espécie de pudor, certo descon
forto, perplexidade. Varar a mente alheia, nunca pensou fosse
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capaz de. Invadir intimidades que, de repente, se tornavam go, preso à memória por invisíveis fios de seda natural. Ou uma
parte do seu pensamento,tinha um sabor de manga roubada miragem salvadora, que às vezes aparecia como o maná caindo
no quintal do vizinho. Quando morava naquela casa de vila no deserto de Saara. Exatamente na hora de maior aflição, li-
no Encantado,quantas vezes pulou a cerca para roubar as frutas. berando-a das agruras de sua vida adulta. Mais especificamente,
Se bem que roubar erz um conceito que não estava de todo de sua vida profissional. Trabalhava como publicitária numa
definido em sua mentalidade de sete anos. Mesmo assim, uma grande Agência, no centro da cidade. Muito movimento, cli
leve sensação de estar fazendo alguma coisa que não devia entes importantes, serviços de última hora. E ainda por cima
estragava o paladar. Ainda não tinha se transformado em culpa, tinha de agüentar o mau humor do chefe, sempre reclaman
essa sensação. Que só viria mais tarde,com a religião — o pecado do,o desenho está cru, o cliente vai cancelar a conta, depressa,
da cobiça,o pecado da gula, da concupiscência, do furto, do... crie algo diferente, original,rápido. Como se criação fosse assim
Ah, os pecados... Quando se lembrava que a venda das fru algo que se compra numa quitanda ou supermercado. Pron
tas era parte do sustento do vizinho... Lá vinha a alfinetada da to e acabado, para ser digerido pelo consumidor ávido. Nem
culpa.Sentimento posseiro. Do qual não se livraria, ainda que se espremesse os miolos. Várias vezes sentia náuseas,tonturas,
lutasse com todas as garras do gato que não possuía. As mangas dor de cabeça, nervosismo, vontade de largar tudo e ir viver
do vizinho nem mais existiam, cortaram a mangueira e todas na Ilha Grande, numa cabana de pescadores. A pressão no
as outras árvores frutíferas. No lote vazio, nem as raízes. Foram
trabalho ficava cada vez mais insustentável. Os amigos a
removidascom enormes escavadeiras; monstros de metal, bocarra aconselhavam a mudar de emprego, mas ela relutava. Nesse
faminta,devorando as entranhas da terra. Em breve,os alicerces ramo,o ritmo é esse,acreditem.Conheço pessoas que trabalham
dum edifício de quinze andares brotariam do chão;e outros viriam, para outras agências, não há escapatória. E o tempo ia pas
feito cogumelos venenosos,proliferando impunemente.O bairro, sando e ela continuava na mesma Agência de Publicidade
sob a compulsão da voracidade imobiliária, ia perdendo seu Belvedere. Ainda bem que tinha apartamento próprio,confor
contomo antigo.Masa herança sensorial-emotiva do ftxito proibido, tável, sala/dois quartos, no Flamengo, herança deixada pelos
essa, não se perdeu. Seguia plena de doçura/acidez, temor/
pais- Túlio e Viona Visconti, para a filha única. Com apenas
excitação, prazer/remorso,desafiando o tempo. A força da iden 24 anos, curso superior, morena bonita, alta, magra, cabelos
tidade dos contrários. Beirando ao eterno. Às vezes chegava a e olhos cor de mel- Cora Mara curtia a vida. Nos fins de se
sonhar com o quintal, todo verde, como uma floresta densa e mana ia à praia, encontrava os amigos, chopinhos, cinemas,
misteriosa, resistindo às serras elétricas. Sonhos. A realidade teatros, shows, namorados. E às vezes ficava em casa,lendo,
era de concreto.
escrevendo, vendo filmes na TV ou desenhando. Desenhan
Cora Mara cresceu e se mudou do Encantado, levando a do? É. Mas nada a ver com aquela coisa encomendada, que
recordação da Rua Goiás, da Vila Alcobaça, do bairro intei tinha de parir às pressas, antes da germinação do rebento. Era
ro, antes da invasão das máquinas. Feito cartão postal anti- muito diferente quando pegava lápis e papel e seguia apenas
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uma intuição e ia deslizando pelos traços que surgiam ao deus- o céu. E saiu voando numa espiral de fogo,deixando no ar uma
dará, livres, e se espraiavam pela brancura do papel, assim, fina poeira azulada, que parecia desprender-se de seu corpo.
como fios de seda virgem, a dançar e a se multiplicar e a se Estranhou a criatura e o gesto, mas a felicidade de ganhar o
retorcer na espontaneidade das formas. Arte pura no conteúdo brinco(com o qual há muito tempo vinha sonhando)era maior.
e despida de qualquer significado arbitrário. Ah,como era bom Muito maior. Correu para dar as boas novas pra mãe. Excita
poder se soltar assim. Sem ninguém a lhe dirigir pensamen da. Falando atropeladamente, o rosto afogueado, quase sem
tos, idéias, inspiração... fôlego. Viona Visconti, mãe e professora e compreensiva e
Segunda-feira, tudo recomeçava. As exigências do patrão, experiente, balançava a cabeça, ah, quanta imaginação nes
a rotina massacrante. sa cabecinha linda, cadê o brinco, menina? Cora Mara passou
E agora, mais essas experiências do metrô. Como fazer pra a mão na orelha, que estranho, o brinco havia sumido. Nin
se livrar delas? guém acreditou na história. Nem podia. A orelha intacta. Agora
Por que eu? Por que eu? perguntava-se, meio irritada. Não voltava a enfrentar uma situação tão estapafúrdia quanto a da
tenho nada a ver com essas pessoas, não quero saber de suas meninice. Quem acreditaria? Será que estava ficando louca?
vidas, por que se revelam a mim, contra a minha vontade? No desespero, chegou a aventar uma hipótese absurda: será
Lembrou-se dum episódio quando tinha oito anos, sentiu um que aquela criatura tinha implantado algum device em seu
leve estremecimento,teria alguma coisa a ver? Era um domingo cérebro? Ou se tratava de alguma manifestação espiritual, pa-
à tarde,logo depois do almoço,do lauto almoço domingueiro ranormal, telepática? E daí? Viesse de onde viesse, este poder
que os pais sempre ofereciam para os amigos, parentes, co- que nunca encomendara só tinha lhe trazido aborrecimentos.
egas de trabalho.Sua mãe era professora de Geografia no Colégio E medo. Sensação de leveza, de perder o chão e entrar num
to II e o pai engenheiro eletrônico; muito sociáveis, ani vácuo existencial,sem retorno. Era assim que se sentia todas
mados, adoravam ter a casa cheia. Cora Mara, nessas ocasi as vezes que. Sensação horrível. Por que eu? Tornava a se
ões, sentia-se um pouco deixada de lado e saía sozinha pelo perguntar, revoltada. Num desses dias, em crescente irritação,
quintal com seu cachorrinho Siegfried. Ninguém daria por sua raiva mesmo,ao se ver de novo diante do problema,no metrô,
falta, anyway. E não davam mesmo. Podia ficar horas brin não se conteve. Levantou-se, olhou para a mulher de vestido
cando lá fora. E foi numa dessas escapadas que ela se encontrou vermelho que estava à sua frente, cuja vida, através da leitu
com a estranha figura, nem-homem-nem-menino-nem-gen- ra mental^ mostrava que era casada, tinha um amante, e ia
te, a pele azulada e brilhante, usando um capacete metálico, ao seu encontro — olhou para a mulher e disse: Me deixe em
triangular,com uma pedra vermelha no centro. Não teve medo, paz, criatura! A mulher encarou-a com olhos íhvios de vaca
a criatura parecia inofensiva. E era. Ofereceu-lhe um brinco indiana, nem tanto; profana mesmo,e falou: Não percebes o
de prata, ela aceitou, ele espetou-o na sua orelha esquerda, que está se passando contigo, sua estúpida? Eles já te pega
nem doeu. Em seguida,sem dizer uma palavra, apontou-lhe ram. Eles quem? O que você quer dizer?, perguntou Cora Mara,
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espantada. A mulher não respondeu,limitou-se a piscar os olhos dievais, tão arrogante quanto, a inquirir,sem compaixão: Não
redondos,vidrados, pestanas longas, recurvadas de nmel azul percebes o que estásepassando contigo, sua estúpidáí Não,
profundo. A expressão era mais de vaca holandesa, dessas que não percebia, pensou. Mas nesse ponto, a mulher estava certa.
ganham prêmio. Orgulhosa das tetas e da superioridade da raça. Fosse o que fosse, não tinha a menor idéia do que se passa
Crachá nos comos. Nesse instante o trem parou, a porta se abriu, va, com ela. Saltou do trem duas paradas antes de sua esta
e a desconhecida saltou na estação da Cinelândia. Subiu a escada, ção. Precisava andar,respirar o ar da manhã,embora poluído,
veloz, esgueirando-se entre os passageiros, tentando passar a atmosfera das ruas, avenidas, praças, seria mais arejada do
despercebida. Estratégia inútil. O ruído seco dos cascos ecoava que o ambiente claustrofóbico do metrô. Onde ela sentia aquele
acima da multidão. sufoco de entrar sem querer na mente alheia. Que coisa horrível!
Que mulher atrevida! Cora Mara reagiu, em voz alta, vol Nunca mais andaria de metrô. Pronto, encontrou a solução.
tando do susto. Chocada com a fala enigmática e rascante da Por que não havia pensado nisso antes? Podia muito bem ir
bovina figura. Um senhor de mais ou menos setenta anos,temo de ônibus para o trabalho. Afinal, não era tão longe assim.
escuro, sapatos de verniz, camisa social branca, gravata lis Decidiu e cumpriu.Levantava mais cedo,ia para o ponto de
trada de azul e vermelho, completou. Ou louca! - não se ônibus, pegava o 123 e saltava quase em frente ao seu escritó
incomode moça,é o que mais tem por aqui. Esta cidade está rio. Sem problemas. E o mais importante. Livre do estranho fe
cheia de lunáticos. Andam soltos por af, aos montes. O Rio nômeno que tanto a perturbava. O ônibus lotado, ela no meio
de Janeiro está infestado. Igual Nova York. Não se tem mais de todo tipo de gente,e nada de passeios obrigatórios pela mente
sossego. Ah que saudades que eu tenho /Da aurora da alheia. Sentia-se feliz e até deu pra escrever versos nas horas
minha vida/Da minha infância querida /Que os anos vagas, tão leve a vida se tornara. O vento da noite incerta/
não trazem mais... Começou a recitar, olhos brilhantes, Faz meu coração ansiar/Pela tua volta/Amor/Dos meus
esbugalha-dos, mirando um tempo que só ele conhecia. E outro dias/De outrora.E maum rapaz moreno,olhos verdes, a lhe
passageiro, aparentando a mesma idade, continuou os versos estender um cristal sextavado,sorrindo,os dentes brancos entre
de Cassimiro de Abreu... Que amor/Que sonhos/Queflores lábiossuculentos de pêssego maduro.Sonhava.Com Pedro Aramis,
/Naquelas tardesfagueiras/À sombra das bananeiras o publicitário que encontrara num Simpósio de Comunicação,
/Debaixo dos laranjais... E Cora Mara pensou na mangueira em Brasília. Só passaram uma noité juntos, mas a cancia de suas
do Encantado, na sombra copada, e tudo ficou assim mistu mãos ásperas/macias persistia na lembrança.E no corpo. A fala
rado e denso e leve e sem limite, como os desenhos de fim de rouca e mansa a lhe sussurrar palavras ternas pela madruga
semana — as lembranças dos velhos, as dela, a grosseria da da afora. Ah, os momentos maravilhosos com Pedro Aramis.
mulher de vermelho, sapatos e chapéu preto, um véu negro Inesquecíveis. E a leveza das horas ia se prolongando nas grandes
cobrindo-lhe o rosto, somente a boca vermelho-carmim a se e pequeninas coisas boas do dia-a-dia ou do passado, remoto
sobressair, tão vermelha quanto a capa de inquisidores me- nem tanto. A cara amarrada do chefe não a incomodava mais.

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Fazia algumas caricaturas dele, depois ria, amassava, jogava- força o filho de dois anos; outra se encolheu mais para o canto
as no lixo. A catarse funcionava. Passava o dia inteiro de bom do banco, olhando de soslaio. Calma,calma,falou uma freira
humor. Não se deixava influenciar por energias negativas. Nem cinzenta - olhar manso, nem um pouco parecido com o da
no ambiente do trabalho, nem fora dele. Depois que se livra mulher de vermelho do metrô-calma, minha filha, você está
ra das experiências do metrô,a vida tinha outro sabor. Não mais nervosa, sem razão. Pense na fase boa que está atravessan
de mangas roubadas.De favos de mel,isso sim. O mel de abelhas do,no escritório, na sua vida amorosa,não há porque se exasperar.
laboriosas de Friburgo. Entre rios de leite e prados de capim- Ah,então você sabe?Sabe o que estou passando?Sei,respondeu
gordura,adocicados e cheirando a volúpia e cio. Cora Mara ficou a freira, porque pertenço à mesma legião. Que legião? Ah,aqui
madura, por dentro. Exalando um perfume moreno de fêmea não é um lugar bom pra conversar. Toma o meu cartão, me
disponível. E passou a atrair admiradores, aos borbotões, a telefona. Certo, respondeu Cora Mara, atarantada, enquanto
humana-abelha-rainha. Que era tudo, menos uma pessoa ator a freira ia abrindo caminho no ônibus superlotado. Desapa
mentada. Gozava. receu. Deixando em sua mão uma placa metálica, cor de
chumbo, nenhum nome ou número,somente uns sinais in
Mas como tudo é provisório
decifráveis, feito hieróglifos. Uma freira pirada! Vejam só!-
no paraíso terrestre
esbravejou Cora Mara, mostrando o cartão aos passageiros,
desvaneceu-se o clima
como comprovante. Ninguém se mexeu ou disse uma palavra.
de veludo e plumas
Continuavam sob o impacto da agressividade gratuita con
de Cora Mara
tra o rapaz louro. Que a essa altura já havia saltado, sem
A paz da fase-ònibus se esvaiu como que por encanto. Em ninguém perceber. Cora Mara, a partir desse dia, desistiu de
plena quarta-feira, a realidade se plantou diante dela, crua de andar de ônibus. Deixara de ser seguro,o meio de transporte.
metáforas. O rapaz louro,sentado ao seu lado,lendo um jornal, Melhor seria ir a pé para o escritório. E foi o que fez. Durante
absorto. Na aparência.Sua mente fervilhava de ódio pelo amigo três meses. Ou mais. Não se sabe ao certo. Sabe-se que as
que o traíra covardemente. Enquanto ele estava viajando, o caminhadas lhe foram muito benéficas. Chegara até a per
amigo começou a dar em cima de sua namorada Jandira, até der alguns quilos, tinha mais disposição, melhor apetite, mais
que conseguiu levá-la para a cama,em seu próprio apartamento. alegria. Os colegas estranhavam, nunca a tinham visto tão
Ah, mas isso não ia ficar assim. Planejava se vingar, compraria bem disposta. Alguns a flagraram cantando baixinho, asso-
um revólver e... Eu não quero saber de nada, vá para o inferno, viando,sorrindo para si mesma.Cora Mara era toda serenidade;
me deixe em paz, gritou Cora Mara, levantando-se de supe- como as criaturas que encontram neste mundo aquela paz
tão. O rapaz empalideceu, as pessoas em volta se encolheram, interior profunda, digna de santos e gurus e profetas antigos
uma velha de teminho cinza,chapéu de flores silvestres,segurou ou modernos. Alguns até falsos, mas vá lá, a Fé não remo
firme sua bengala, cabo de marfim; uma senhora abraçou com ve montanhas?

132 133
Mas um belo dia, a montanha leitura. Socoorro! Socoorro! Muitas vezes saia correndo pelas
que não era de Maomé ruas, gritando esbaforida,fugindo de algo que os transeuntes
desmoronou. não viam. Deve ser louca, coitadinha. O que será que acon
Sem aviso, intuição, arrepios. teceu? Tão jovem...
Ninguém soube quando,exatamente,o fenômeno passou a
Cora Mara, na hora do almoço, depois de ter comprado um ser chamado de sintomas-sinalizcidores-de-estresse-agudo.l^uáo
sanduíche de pernil com abacaxi, foi se sentar no Passeio Pú indica que foi quando Cora Mara resolveu consultar um psica
blico, entre pombos e árvores frondosas. Gostava da sombra nalista. Cabelos brancos, ar paternal. Que a escutou sem inter
das árvores. Quando roubava as mangas, não saía correndo, romper,anotando,anotando,os mínimos detalhes. No primeiro
como é de se esperar de qualquer gatuno. Não.Ficava um pou dia da consulta, ele a aconselhou a tirar umas férias, nada de
quinho debaixo da mangueira,só pra sentir a companhia fresca trabalho, hora marcada,compromissos; devia se empenhar em
e macia da sombra. Como uma capa de delicada seda a cair fazer tudo o que sempre gostara de fazer,sem pensar em mais
sobre seu corpinho magro. Mais suave do que seu lençol de nada. O que a menina gostava de fazer? Ir à praia? Fosse a praia.
cambraia rosa. Suspirou de contente. Sentou-se num banco Dançar? Comer bem?Trepar? Fizesse. O que mais lhe apetecesse.
de pedra,tirou do saco de papel marrom o sanduíche de pemil. E se o fenômeno voltar, doutor? Gostava de usar essa palavra.
Quentinho e cheiroso. Ai que fome!Mal dera a primeira dentada, Fenômeno tinha algo a ver assim com a terminologia de ficção
aparece um mendigo, branco, esquelético, o olhar em fogo, científica. Colecionava uma porrada de artigos, livros e revis
parado em pé,à sua frente. Cora Mara /eque ele fora um homem tas sobre. UFO - era um dos assuntos de sua predileção. Ah,
rico,malvado e injusto com seus empregados,que tinha perdido e?, perguntou o psicanalista, entusiasmado. Eu também gosto
a fortuna quando se apaixonou por uma francesa vigarista. muito desse tipo de literatura. Que literatura, doutor? Essa que
A mulher raspara seu último tostão, depois fugiu para a França a menina acabou de mencionar. Eu não mencionei, porra ne
com um garotão, mas... Cora Mara não quer saber do resto nhuma,doutor,só pensei. Ah, não? De repente também estou
da história, levanta-se, sai correndo, o sanduíche se espa lendo pensamentos, como a menina. Ah, Ah, Ah. É, deve ser,
tifa no chão, o mendigo apanha-o e começa a devorá-lo, en respondeu Cora Mara,sem rir, apanhando a bolsa e o guarda
quanto grita: Não adianta fugir, moça,já estás sob o controle chuva azul-marinho, cabo de madrepérola, comprado num
da Galáxia Espiral.E solta um risinho estridente, que mais parece brechó do Lido. Adorava comprar objetos antigos. Fascinação
chiado de cutia no cio. E aponta para o céu,o indicador des mesmo.Quase orgasmo ao tocá-los. Acreditava que tinham alma
carnado, como um graveto ressequido das caatingas. A par e carregavam energias de seus donos anteriores. Incorporava-
tir desse dia. Cora Mara não conseguiu mais caminhar em paz. os à sua vida, com cuidado e respeito. Sabia-se lá dos amores,
Topava a todo o momento com algum desconhecido,com uma humores,terrores passados? Não se esqueça da nossa próxima
multidão de desconhecidos, todos com a mente aberta para sessão, na semana que vem, quarta-feira, dia 17 — gritou o
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psicanalista. Cora Mara já não o ouviu. E se ouviu não registrou
a fala; não tinha a intenção de comparecer, anyway. Fechan
do a porta com um estrondo, pensava: aqui não ponho mais os o táxi azul

pés. Estão todos mancomunados. Toodoos, Toodoos, foi gri


que não era táxi
tando pelo corredor. E saiu correndo do prédio, desarvorada;
e, à medida que corria, ia ouvindo uma voz que não sabia de mas uma espaçonave em forma de pássaro
onde vinha: você é uma das nossas, você é uma das nos começou a subir
sas. Que não era bem uma voz, mas uma espécie de mensagem
telepática que vinha chegando feito ondas magnéticas, tomando a subir

conta de seu cérebro. Continuou a correr pela calçada apinhada a subir


de gente,fazendo sinais para uma porção de táxis na Rio Branco,
todos ocupados, até que finalmente um táxi azul parou, nun em espiral
ca tinha visto um táxi azul, não importa, estava desesperada,
numa velocidade
tinha de sair do centro da cidade o mais rápido possiVel, por
quê? Não sabia, sabia que tinha de sair, urgente. O centro da ver

cidade passou a ser, de repente, o ponto perigoso, o 5/íoí onde


ti
se sentia vulnerável a todas as forças negativas. Entrou no táxi,
pediu ao motorista: me leva pro Flamengo, rápido, por favor. gi
Sim senhora. Para a Rua Machado de Assis, 137, certo? Como é
no
que o senhor sabe onde moro? Nós sabemos de tudo, senho
ra. Foi ai que ela olhou para o taxista e se encolheu, aterrada. sa.

Parecia um robô. Corpo de aço acobreado, cabeça triangular,


rosto de vidro, dois olhos fosforescentes e verdes de esmeral Na cabine de comando, havia mais duas figuras, clones do
das, as mãos feito garras segurando o volante, com força. Pára piloto, sentadas ao seu lado, manejando uma série de instru
esse carro, agora!- ordenou Cora Mara, com as ultimas forças mentos esquisitos, numa tela vermelha fosforescente. A pri
que lhe restavam do assombro. O homem,ou o que quer que meira criatura apertou outro botão, desta vez verde, abriu-se
fosse o ser que dirigia o carro, apertou um botão amarelo à sua um compartimento,e dele foi saindo os dois velhos e a mulher
direita, com o polegar de garra adunca. E com o dedo anular de vermelho do metrô; a freira e o rapaz louro do ônibus; o
puxou uma alavanca de bronze até a altura de seu peito metálico. mendigo do Passeio Público e, por último,o psicanalista. Cora
Ouviu-se um som esgarçado de vento ponteiro, surpreenden Mara entendeu, afinal, o que estava se passando com ela. Mas
do embarcações. não sentiu medo, raiva ou aflição. Nenhuma emoção huma-
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na. Desviou o olhar, aproximou-se duma janelinha de vidro A Visita do Duque
oval e olhou para baixo. Lá estava a paisagem de sua infân
cia: a casa de vila, o quintal do vizinho, a mangueira carre
gada de mangas,e uma menininha de sete anos,tentando pular
a cerca do mundo. Foi sua última visão da Terra.

Acabou ou começou
uma grande aventura
humana
No hospital, recebi uma visita inesperada
no Cosmo?
(depois vocês vão ver que não era tão ines-
perada assim). Um cachorro nos braços da
SI assistente social. Você gosta de cachorros?,

o •n*oo^ perguntou-me a mulherzinha, baixa, branca,
olhos castanhos por trás dos óculos de grau,
aros de tartaruga. Sorriso complacente. Olhei pro cachorro que
ITL o me pareceu um pouco nervoso, à espera de minha resposta. Disse
□ © t:> ♦ que sim, correndo. Afligi-lo não queria. Tenho um cachorro,
sei o quanto são sensíveis. Eu também estava muito sensível,
er 53 física e psicologicamente. Tinha acabado de sair duma operação
séria, havia apenas três dias. Não posso dizer que não me alegrei
□ ao ver o animal, mas, lembrando-me do meu querido Zig,
perguntei esperançosa: Então é permitido trazer cachorro para
Verão 2000 - New York o Hospital?, a pergunta já me trazendo euforia antecipada. A
assistente social aumentou a complacência do sorriso. Claro que
não, este aqui, o Duque, é um funcionário da casa, treinado,
muito obediente. A função dele é minimizar a aflição dos pa
cientes. Nós o levamos de quarto em quarto para uma visitinha
de cinco minutos. Que tal? Olhei pra ela, olhei pro cachorro,
olhei pros olhos do cachorro. Neles divisei uma pontinha de
satisfação. Parecia reconhecer e agradecer as palavras de apre-
139
sentação. Mas será que era feliz numa função que não escolhera? de extrema fragilidade. Sabem como? Não? Então me acom
Ah,se os cães falassem. O que não diriam, por exemplo,aqueles panhem na experiência. Quase hilária, não fosse a gravida
que guiam cegos, puxam trenós,fazem acrobacias nos circos? de do momento.

E Duque? Que não fazia outra coisa senão visitar doentes dia Minutos antes de entrar na sala de operação me apareceu uma
e noite? Toquei o pêlo dele, fiz um cafuné na sua cabeça, ten mulher gorda, morena, uniforme impecável, no bolso o nome
tei falar alguma coisa agradável, tipo: que bonitinho que ele é, bordado Rossi. Armada de um bloco, três canetas(se falhasse
parece ser muito inteligente... A mulherzinha aprovou,tremendo uma,teria outra,e outra), a mulherona me encarou com aquela
de gozo íhtimo. pose de dona da verdade e disparou: Se necessitar dum con
Pois foi ali, exatamente ali, entre o olhar do cachorro e o solo espiritual, você quer um pastor, um rabino, ou um padre?
olhar daquela que o carregava, que me brotou um pensamento Olhei pra ela e, com toda força e lucidez que ainda me resta
brusco.Um pensamento desagregador de qualquer boa intenção. va,respondi. Nenhum deles.Então o que você quer? Quero viver.
Mas eu não amo esse cachorro. Ele não é o meu Zig. Pra me Foi a minha resposta, voz fraca de quem está já sentindo os
confortar pra valer, só o meu Zig. Como fazer de conta que primeiros efeitos da anestesia. Ora vai pentear macaco, ave
a substituição me embevecia? Nem a pau. Como transferir em agourenta, pensei,não disse. Nem podia.Apaguei.Só fui acordar
cinco minutos toda minha afeição para aquele nobre desco na Sala de Recuperação, ofegante, pedindo ar, preciso de ar,
nhecido? Usado pra distrair os pacientes? Ele não tinha cul preciso de ar. Os enfermeiros me colocaram uma máscara de
pa,claro.De quantas veleidades são capazes os seres humanos. oxigênio, respirei. Mas ainda assim me sentia mal, muito mal.
Se bem que, no caso, não era o caso. Via-se que ele se sen Lembrei-me das perguntas da tal Rossi e tratei de usar todas as
tia confortável no seu papel de bondade encomendada. Vá lá. armas ao meu alcance pra sair daquela situação. Rezei, cantei
Mas como eu disse, transferir de repente toda minha afeição baixinho, implorei a proteção de meus guias espirituais. Fui
para aquele cachorrão malhado, orelhudo, comportado de recobrando a consciência aos poucos e lá vinha a voz da
mais, não tinha cabimento. Impossível fabricar um amor às mulherona assombrando: Quer um pastor, um padre ou um
pressas pra me entrosar com Duque. Mas senti um certo ca rabino? Quero ninguém. Quero viver! Repetia pra mim mesma,
lor quando coloquei as mãos no dorso peludo do cão missi com a teimosia dos desenganados. Quero viver!
onário. E fiquei pensando. Melhor me entender, de uma forma Finalmente me levaram pro meu quarto. Meu marido e al
ou de outra, com o Duque do que ter de me entender com as guns amigos estavam lá me esperando,fiquei contente ao vê-
criaturas que, antes dele, chegaram a me oferecer,sem cons los, não estava mais sozinha,à mercê do agouro da grandalhona.
trangimento. Que criaturas? Do que você está falando? Explico. Isso não é agouro Tereza, alguém me disse, é apenas uma
Falo de certas personagens que a direção, penso eu,de qualquer formalidade que eles têm de cumprir.Para mim,continua sendo
hospital tem à disposição dos enfermos. Criaturas essas que agouro do mesmo jeito. Seja como for, estava livre da pergun
nos são apresentadas duma tacada,sem pudor, num momento ta funesta, safda da imensa boca,lábios grossos, me oferecendo
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opções para um final que eu não desejava. Imagine! Disso eu respondi,apontei pra minha boca,indicando que não podia falar.
estava livre. Pois sim! Quem disse que ele desistiu? Mais que depressa,sacou do bolso
Dois dias depois, quem me aparece? Um rabino solicito, do paletó um bloquinho e uma caneta, poderíamos conversar
querendo prosear comigo. Não acreditei. Estava muito fraca, por escrito,certo? Não,não estava certo, mas aceitei a parafernália
física e emocionalmente, o braço roxo de picadas de injeções, que ele me entregou,expressão vitoriosa, crente que tinha vencido
uma agulha enfiada na veia, o soro pingando, pingando, um as dificuldades. Vendo que ele não sairia dali tão cedo, escre
aparelho no nariz, me sentia impotente. O rabino, todo à vontade, vi: sou judia. Ele leu, ensaiou um sorrisinho um pouco mais largo,
já foi puxando uma cadeira pra perto da cama e, antes de se sentar, não conseguiu,arrancou-me das mãos bloco e caneta,agradeceu,
ainda bem,fez a primeira pergunta. Primeira e última. A senhora me desejou uma boa noite e saiu do meu quarto, rápido. A sua
é judia, certo? Perguntou, sorrindo, confiante numa resposta visita não surtira nenhum efeito, certamente ia pensando,frustrado,
afirmativa que o meu sobrenome antecipava. Não,não sou judia. contando os passos corredor afora.
Sou católica, respondi,firme. Nada contra os judeus(meu marido Puro engano. Surtiu sim, um efeito corrosivo. Comecei a
é judeu), mas eu sabia que, com uma resposta, naquele tom, duvidar de minha médica, estaria ocultando a verdade so pra
estaria encerrando um papo que eu não desejava, tivesse co me poupar nas primeiras horas cruciais do pós-operatório? Meu
meço. E encerrou mesmo. O rabino botou a cadeira no lugar, Deus,e se a minha vez se aproximava e eu ali, prostrada,sendo
me desejou boa sorte e foi saindo de fininho. Respirei fundo. assediada pelos mensageiros do além,dispostos a ganhar minha
Livre? Que nada. O assédio mal começara. Em poucos minu alma de qualquer forma? Porra! Que merda! E por afconünu-
tos,outro visitante. Um pastor,todo sorridente, me perguntando aria o desabafo, que minha mãe chamaria de blasfêmias imper
se não queria conversar um pouco sobre a vida eterna, sem doáveis. Continuaria nada. Meu pensamento teve um corte súbito.
pre alivia as dores, minha filha. Alivia coisa nenhuma. O que Lindo como um deus-menino,um querubim barroco ou um
me aliviava naquele momento era a morfina pingando, pingando arcanjo anundador,quem entra no quarto? Nada mais nada menos
no meu sangue. Não que eu duvidasse que uma conversa do do que um sacerdote superjovem,a camisa branquinha de goma,
nível que o pastor me propunha fosse de todo desperdiçada, ainda cheirando a noviciado. Entra e vai logo me oferecendo
numa outra ocasião. Porém, naquelas circunstâncias, ela me um papei com uma oração,vamos rezar juntos o Pai Nosso, minha
soava como uma preparação pra morte. E disso eu não queria filha. Nem encostei a mão esquerda(a única que podia mover)
tratar. Minha médica já havia me assegurado que a operação tinha no tal papel. Em resposta, encarando-o de frente, disse, cate
sido um sucesso, que eu não deveria temer nada, que a partir górica: sou protestante. Desculpando-se, a figura angelical
dali eu começaria a me recuperar. E agora vinha o pastor,sorriso recolheu o papelito,saiu do quarto rápido como um coelho em
delicado, nem se via os dentes, a Bíblia negra que te quero negra fuga.Tão veloz que cheguei a duvidar se ele realmente estivera
nas mãos magras, querendo me introduzir num conceito reli ali em carne e osso. Ou se tinha sido uma alucinação, daque
gioso a todo custo? E então, minha filha, vamos conversar? Não las que a gente tem quando ainda está sob o efeito da aneste-
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J
Tereza Albues, escritora mato-
grossense, graduada pela UFIU em
sia. Não sei. Só sei que, depois dessa, a peregrinação dos que Direito, Letras e Jornalismo, tem
quatro romances publicados no
tinham a chave do ceu terminou. Dormi sossegada. Daíem diante Brasil: Pedra Canga (Philobiblion:
foi só recuperação, conforme a minha me'dica afirmara. Esta Rio de Janeiro, 1987), Chapada da
Palma Roxa (Atheneu: Rio de Ja
va salva.
neiro, 1991), A Travessia dos Sem
E o Duque? O que aconteceu com ele? Não se preocupem, pre Vivos (Cuiabá: EdUFMT, 1993),
O Berro do Cordeiro em Nova York
não vou abandoná-lo, afinal ele foi o começo de toda esta via-
(Rio de Janeiro: Civilização Brasi
sacra hospitalar. Pois e', o Duque.Como disse, não é que eu não leira, 1995), sendo os três últimos
lançados na Bienal Internacio
tenha gostado dele. É que ele não era o meu Zig. Como demonsti^ar nal do Livro, no Rio de Janeiro.
um afeto que não possuía? E, mesmo se o fizesse. Duque per Tem ainda contos publicados na
ceberia minha falsidade, no ato. Os cães têm uma percepção antologia Na Margem Esquerda do
Rio: Contos de Fim de Século (São
assustadora, quem não sabe disso? Duque pressentiria o meu Paulo: Via Lettera, 2002). Na Fran
íntimo. Daíque nos despedimos meio sem-graça. Os dois, um ça, publicou o romance A Dança
do Jaguar(Paris: Editions OOhOO,
olhando pro outro com cara de desamparado. Nunca mais o vi, 2001), lançado no Salão do Livro.
nem pretendo, não por ingratidão, mas por temor. Pra ver Duque O romance Pedra Canga, traduzi
do para o inglês por Clifford E.
de novo, só numa cama de hospital e isso não está nos meus Landers, foi publicado pela Green
planos. Nem nos planos de ninguém. Interger, Press (EUA, 2001). Em
1999, recebeu Menção Honrosa
no Concurso de Contos Guimarães
Rosa, promovido pala "adio Franco
InternatiOTialo,doParis,como
nome ■Bupué
conto consta node livro
Línguas. Seu da
Hrstona
Literatura de KBto6tosso -Sec.
XX de Hilda Magalhaes (Umcen
publicações, 2001);
pédia de Literatura Bras,terra
direção de Afrânio Coutinho e J.
StedeSoutaíRiodeãane,^
FBN/PNL/Academia Brasil
de Letras, 2001); e no Draorra
Critico de p^nio;

rorb™r2o'osem-vor",
onde residia, deixando vanos
trabalhos inéditos.

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