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Tereza Albues
Contos
CarlinijZoniato
^ ed.tarial
Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução de panes ou do todo desta obra sem autorização expressa da Editora (an. IB-t do
Código Penal e Lei 9.610,de 19 de fevereiro de 1Ç>98).
Albues,Tereza
Bucpiê delúiguas:contos/Tereza Albues. —
Cuiabá,MT:Cailini&Caniato,2008.
ISBN978^5^146-58-3
OBOTffiO CDD869.93
Índices para catãlcrgosistemático:
1.Contos:Literatura brasileira 869-93
Editores
Elaine Caniato
Ramon Carlini
Capa
Elaine Caniato
Diagramação
Ramon Carlini
Revisão
Cristina Campos
Ilustrações
Adir Sodré
Buquê de Línguas 13
Três Instantâneos na Cidade Maravilhosa 25
O Enigma de Violeta H 55
Cena em Sustenido 65
Guilhotina de Veludo 71
Georgina na Janela 79
Por Onde Andarás? 85
A Fábula do Anjo 89
Seda Selvagem 97
A Ilha das Cigarras 119
O Rapto de Cora Mara 125
A Visita do Duque 139
Tereza Albues:
a apaixonada cosmovisõo
interceder no caso, mas, realisticamente, as chances são mí Nem por falta de talentos,
nimas. Como enfrentar a violência legitimada por um siste nem por ausência de desespero.
ma arbitrário? Preencher o vão do destino,
ele conhecia as agruras, ausentou-se de nós. Sua expressão se a única arma capaz de derrotar o inimigo comum:
suavizara, algo nele nos fazia crer que, através de seu próprio o PÂNICO.
discurso,ele começara a vislumbrar alguma esperança para Samir. Tanto que a ele se interpôs um recurso urgente,
No canto da boca um sorriso brando ensaiava despontar, en sem amparo legal,
saiava... Fechou-se. puramente circunstancial,
MÚSICA.
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Arrefecida a vibração latina, surgiu um russo, aparentando em nível experimental, nesta Babilônia americana?, exclamou
trinta e cinco anos, olhos ariscos, meio indeciso, a roupa amar- um rapaz com sotaque de brasileiro. Não sei. E quem have
fanhada. Explicou qualquer coisa, gesticulou, riu, sob o bigo- ria de? Estamos chegando à estação. O trem pára, com um
dão avermelhado, dentes amarelos de nicotina, os lábios não rangido seco.
deu pra ver. A voz se ouviu, o canto, as palmas, o plac plac
das botas frenéticas. Dançou a balalaika no espaço espremi Abre-se a boca do dragão de aço
do,com maestria.Parecia voar. O público a marcar o compasso Os prisioneiros escapam
com os pés,Wladimir caprichava nas evoluções.Fez um intervalo, molhados
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o Furo do Mamão
A
era pior-das mestras insensíveis, muito cedo percebi. As freiras, mento subterrâneo que eu nunca soube ter dividido com uma
que deveriam ser um exemplo de bondade e compreensão, velha amiga. Dum ninho de humilhações e dissabores seme
lideravam o massacre. Do amor próprio de qualquer uma de lhantes, subitamente revelado. Aflorou assim, ambivalente.
nós que, por uma razão ou outra, não recebesse o quinhão de Inocente e cúmplice duma realidade vivida e camuflada no ihlimo
acordo com as normas estabelecidas pelo Sagrado Coração de nós duas,sem prévia deliberação. Ah,o fio que se puxa duma
da Virgem Maria. Que de sagrado pra mim não tinha nada. Não narrativa vivenciada, quem poderá apontar de onde vem? Que
digo o coração da virgem(o que eu poderia provar em con material trará do mergulho sem escafandro? Difícil saber.Puxa-
trário?), mas o regulamento e artimanhas das freiras, guardi- se e pronto. Numa conversa, esquina, bar, o olhar duma cri
ãs da escola,fundada em seu santo nome.Dessas eu questionava ança,um mendigo que passa,um livro,uma história,filme,teatro,
a supremacia e audácia de se colocarem num patamar(e elas ópera, carnaval, banhos de cachoeira - mais outra lista inter
estavam sempre em cima duma escada, palco, tablado) pra minável. Porque é assim a vida. Embora finita, o que se pro
nos olhar e julgar do alto de suas certezas e posições estra põe em tomo dela é duma infinitude escandalosa,dependendo
tégicas, soberanas. Apontando-nos com os dedos em riste, da amplidão de cada um.
condenando-nos ou louvando-nos com o mesmo gesto e ve E agora desponta o mamão.
emência(elas podiam ser contraditórias, e como!), ninguém Mais precisamente,o furo do fruto maduro,que nunca fora
acredita. Tanta impostação à luz do dia ou da noite nas vigí proibido no paraíso de Adão e Eva. Pelo menos, que se tenha
lias dos dormitórios apagados, mas clareados pelas lanternas noticia, a maçã ainda continua invicta em sua forma, sedu
dos olhos delas, as comjas disfarçadas. Aliás, de disfarces nem ção, símbolo de prazer e culpa, por todos os séculos, secu-
e bom começar a falar, era uma prática corriqueira, utiliza lorum. Amém? O mamão,esse, está liberado das controvérsias,
da nos corredores, salas de aulas, igrejas, refeitórios, pátios, não há provas de sua participação na inconfidência do pecado
banheiros, e onde mais? Adianta continuar? Perda de tempo. original. Embora tenha se revelado sensual, camudo e mais
A lista seria interminável porque dependeria da imaginação apetitoso do que a maçã,deixaram-no de lado. Ah,os mistérios
fértil de mestras e discípulas,espremidas num reduto de concreto gozosos... Nem os nossos. Os alheios então, esquece. Se des
armado,cercado de muros altos e portões de ferro aferrolhados. vendá-los no presente é missão impossível, o que fazer com
Um reduto que, de acordo com a sociedade, não era prisão. os primevos,enroscados numa pseudoserpente,cabeça ereta,
Era. Nós o sentíamos na pele do cotidiano. Tinha todos os re boca molhada, pronta a inocular o visgo pecaminoso na tenra
quisitos para. Ser o que fosse, menos uma comunidade livre. polpa da maçãzita? Parece que nem a proibição divina teve forças
Tenho de mudar de parágrafo,senão como reinstalar o mamão para deter os ímpetos da carne dura. Bumba! Deu-se o rasgo
— elemento propulsor desta história, que estou tentando con bíblico que inauguraria a história da humanidade com suor
tar desde o começo? Que aliás não teve começo. Pelo menos e lágrimas. Ah, os mistérios dolorosos... Mas como esta nar
com o mamão propriamente dito. Ele emergiu dum comparti- rativa não tem a intenção de discorrer sobre a ruptura do véu
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de Eva,nem tampouco revelar outros pormenores picantes de a deixavam se esquecer de amamentá-los, lavá-los, catar pio
sua iniciação sexual, voltemos sem demora ao furo do mamão, lhos e carrapatos e mandá-los para a cama com um "Deus te
for God sake\ abençoe",fechando os olhos antes deles,fatigada. Não,ela não
O furo,exibido assim,como o sexo numa praia nudista,sem prestaria atenção à qualidade da encomenda encaixotada às
o mais leve pudor, foi alvo de gracejos e risadas que até hoje pressas, nem teria noção do furor que um simples furo pode
ressoam nos ouvidos de Orlanda.A cena,recheada de comentários ria causar no Sagrado Coração.Se ela presenciasse o episódio,
maldosos, anunciada pela trombeta estridente de Irmã Lures- piscaria os vagos olhos castanhos, passaria a mão pelos lon
Olha aqui o mamão, que a sua mãe te mandou, Orlanda!- o gos cabelos lisos,grande coisa!Puxaria da sacola a faca de cozinha
rosto irônico da freira, o olhar confirmando mais do que a boca, (as meninas se debandando, socorro, socorro, cuidado, essa
a intenção de humilhar. Óbvia como o buraco negro, manchando mulher é louca; é louca e está armada, socooorro!), pegaria o
a pele acetinada e nobre do mamão-castelo. Pelo menos não mamão pelo pescoço e zás,estava resolvido.Decapitado? Claro
era um mamão plebeu,desses que se lançam aos porcos. O fruto que não, o pecado não era assim tão grave; para casos dessa
tinha berço, diria alguém, numa fraca tentativa de salvar um natureza, bastaria uma pequena incisão. Com um só golpe,
pedacito de orgulho da menina, pisoteado sem piedade. Mas habilidoso e certeiro, como o bisturi do Dr. Zelito (único ci
de que adiantava a nobreza de sua origem se agora, como um rurgião da cidade), extirparia a mancha escura, deixando ver
fidalgo arruinado, cobria-se de vestes andrajosas, arrastando que nas entranhas o mamão era saudável,textura consistente,
um manto esburacado, querendo se esconder da sanha do cor de tijolo, como qualquer mamão-castelo que se preza.Doce
populacho? Orlanda também queria encontrar um esconderi e suculento, pronto a ser levado para a mesa, sobremesa de
jo, debaixo da saia da menina da frente, atrás das portas, no baronesa. E Bernarda voltaria para o Sitio do Cumbaru,falan
banheiro,sentia calafrio, dor de barriga,o veneno destilado pela do sozinha pela estrada, gesticulando, irritada com zsfrescu
freira-ferina começava a fazer profundos estragos, inclusive em ras daquela gente da cidade, gente mais sebosa, armar um
seu organismo. Valha-me N.S"do Livramento, vontade de sumir, escarcéu por causa dum buraquinho de nada,falta do que fazer,
não há lugar pra se enfiar a cara. Vermelha de vergonha,revolta, merda! Não escutaria as vaias, gargalhadas,cochichos, risinhos
vitimada pelo ridículo que não provocara. Mãe, pelo amor de marotos fervilhando no cenário armado pelas religiosas, zelosas
Deus, da próxima vez que me mandar qualquer coisa para o de não deixar pedra sobre pedra na auto-estima de Orlanda.Que
colégio, verifique se tem algum defeito. Te suplico. Uma súplica a partir daquele dia receberia bilhetinhos anônimos apelidando
muda que a mãe não atenderia, mesmo se escrita ou sussurrada a de Mamão Podre. Além de indiretas e olhares de desdém de
ao pé do ouvido, nas visitas dominicais. Não por má vontade, certas colegas presunçosas, vindas de famílias ricas e tradici
insensibilidade ou desleixo, mas Bernarda era distrafda de onais do Pantanal. Ninguém se apercebeu do sofrimento de Or
nascença,jamais prestaria atenção a detalhes tão pequeninos. landa, que intimamente trazia uma ferida aberta, maior e mais
A não ser aos pequeninos berrantes, seus sete filhos, que não grave do que o furo do mamão.Lavaram as mãos e desinteres-
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saram-se doseu infortúnio(que nem viam como tal). Mais alienadas nhecimento público, mas que todos fingiam não perceber as
do que Pôncio Pilatos, não chegaram sequer a cogitar da ino aguilhoadas.Transformavam-na em gargalhadas. Maisfádl apelar
cência da condenada.Não éda nossa conta.Sacudiram os ombros. para o riso como disfarce ou escapada.Ninguém queria se envolver
E por que somente agora me recordo da cena, vinte anos ou ser vista com aquela que caifa em desgraça. Fugiam dela.
atrasada? Perguntarão, curiosos, os que me acompanham. En Mesmo se estivessem passando por atribulações semelhantes.
ganam-se. Não se trata de recordações. Não se pode recordar A meta era se colocar a salvo, refugiando-se na própria casca,
o que nunca fora registrado pela memória.Tudo isso me foi contado feito caracol. Como se a couraça imaginária tivesse o poder de
pela própria protagonista. Encontrei-me por acaso com Orlanda nos tomar invulneráveis no meio daquela caldeira em constante
na festa de quinze anos de Adriana,filha de meus amigos Cristóvão ebulição. O individualismo imperava. Mas não creio que fôs
e Corina. Muito elegante, bem vestida, jóias finas. Professora semos más ou egoístas por natureza. A prepotência e o rigor das
universitária, casada com um advogado famoso, belas filhas, normas impostas estimulavam tal comportamento.Jovens e
casa confortável, carros, chácara na beira do rio Cuiabá. Con
inexperientes,seguíamos o risco do bordado.Sem questionar
versamos bastante,relembramos os tempos de colégio e ela me a ausência de borboletas,libélulas, vaga-lumes acesos nos de
contou,ainda num tom de revolta, a passagem do mamão.Você senhos amorfos dos bastidores tensos. As tecelãs-mestras nos
não se lembra? Tive de ser sincera. Disse que não,era a primeira
nianejavam,vigilantes. Nós,as aprendizes,manejávamos a agulha,
vez que ouvia essa história.Seu olhar espantado penetrou no âmago
mecanicamente.Furando a pele da seda,linho,fustão,cambraia,
do meu ser, tocando numa dor antiga(que eu mantinha escon dedos, mente, coração. Nosso coração, não o Sagrado da Vir
dida até de mim mesma),liberando-a instantaneamente.E eu me gem Maria. Troteávamos na cadência do ponto-cruz, escama,
vi,de repente,contando-lhe outra história que se passara comigo,
corrente,espiga,labirinto, bainha, ponto-atrás.Tentando evitar
parecida. Só que em lugar de mamão,o objeto do meu suplício em vão o ponto-cheio. O ponto-cheio de monotonia e solidão.
tinha sidoum saco de feijão mulatinho,crivado de orificios,finamente Que engoliria nossos desejos e sonhos mais secretos durante
trabalhados por uma legião de carunchos. E minha mãe não era quatro anos.
distraída,tampouco papai. No nosso caso era escassez de recursos,
Somente hoje, duas décadas depois,eu e Orlanda nos des
pobreza mesmo.Apelidaram-me de Feijão Bichado,lembra-se? cobrimosfora do alcance dos regulamentos,das ciladas,do campo
Ela se mostrou muito surpresa, também não se lembrava. Ago de força do intramuros,quando lavamos a alma(e não as mãos
ra o espanto era todo meu.Alguém chegou, puxou Orlanda pelo como na adolescência),sem temor. A descoberta espocou feito
braço,a aniversariante estava à sua procura,separamo-nos, pro relâmpago em densa floresta, abrindo uma clareira em nossas
metendo nos rever em breve.
vidas. Ponto-aberto. Desnudando os fios tensos e doloridos;
Continuei parada no meio do salão, segurando a taça seca ocultos na tessitura rústica do tempo.
de champanhe,refletindo sobre o quanto éramos sós no colégio A banda começa a tocar a valsa dos quinze anos. Uma multidão
interno. Tfnhamos de suportar uma dor intima, que era do co- de jovens, alegres e descontraídos,invade a pista de dança. Um
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garçom passa, me oferece outra taça de champanhe. Os pares O Enigma de Violeta H.
rodopiam suavemente. Meu coração galopa, sob o signo das
lembranças: na varanda,um grupo de meninas opacas, uniforme
cinza, meias grossas, sapatos negros, contemplam a festa,
perfiladas.São também jovens e ansiosas. Por que não se atrevem
à travessia? Entre o passado e o presente, ergue-se um inter
valo de desamparo e perplexidade. Questionamentos. Por que
nos infligiram tantas humilhações? E por que consentimos? Não
sei resolver o dilema antigo, como também não sei lidar com
Nasceu uma menina, no nome e delicadeza,
a emoção que em mim perpassa. É por demais recente. Meu
Flor. No preciso instante em que nascia no
reencontro com Orlanda me fala às entranhas e me desbalança.
jardim uma violeta. Na postura e expressão,
Preciso de tempo. Somente uma certeza desponta neste ins
humana.Há de se chamar Violeta, os pais dis
tante. Clara e viva como esta sala iluminada. A responsabili
seram ao mesmo tempo, um olho na meni
dade do que nos aconteceu no colégio intemo não cabe ao pobre
na e outro na flor, que se via pela vidraça da
mamão-castelo, tampouco ao desventurado feijão-mulatinho.
janela. A menina, no berço, agitava as mào-
Qualquer um pode ver que eles não são os verdadeiros vilões
zinhas, parecendo aprovar. A violeta, lá fora, tremia de frio ou
desta história.
regozijo; a ventania dificultava a identificação do gesto. Mas,
ainda que não se conheça sua natureza, a ação é simultânea,
))))VVVV*(((C e obedece a uma força que coloca, na mesma cadência,as recem
nascidas. Como numa partitura musical, onde a combinação
das notas produz sonorldades harmoniosas, as duas parecem
se completar na simbiose de seus princípios vitais. Uma pas
saria a ser a confirmação,física ou mítica, da existência da outra.
E assim foi o começo da vida da flor e da menina Violeta. Que
recebeu o sobrenome dos pais, Hermógenes; um sobrenome
comprido e incômodo,que só prevaleceu enquanto ela não sabia
ler ou escrever. Não gostava da palavra, achava-a ridícula e de
difícil articulação,impondo aos lábios movimentos grotescos.
Tão logo foi para a escola, tratou de abreviá-la; passou a usar
apenas a letra H.,que lhe parecia mais conveniente, na pronúncia
e na sutileza do mistério. Um mistério que pressentia existir desde
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tenra idade; aiguma coisa que lhe falava às entranhas; alguma planos para um futuro hipotético;e riam e debochavam da fantasia
coisa que ela intuía, tinha a ver com a flor desabrochada no dia e se tomavam sérias, e choravam por razões em nada, aparentes;
de seu nascimento. e voltavam a rir e achar o mundo cheio de graça e mágoa e bênçãos
Falando da flor. e sortilégios. Tentar transcrever o sentido e a namreza do vin
Algo estranho acontecera; embora um pouco pálida, con culo que unia as duas criaturas seria um esforço mais do que
tinuava viva, após mais de dez anos, a violeta. Um fenômeno ingênuo, sonhador; mais sonhador do que querer estancar as
que a família, por razões que se desconhece, resolveu manter águas virgens dum rio recém-brotado;um rio povoado de aguapés
em segredo. Transplantada do canteiro para um vaso de bar verdes e recendendo a placenta, a vida em si desabrochada, de
ro branco, foi colocada no fundo da estante, atrás de grossas esperança.Impossível ou quase,reter a força das águas;impossível
enciclopédias; nem a empregada Leonta, intrometida e indis ou quase, reter a força que circulava nas duas fontes de ener
creta, sabia de sua existência. Samira, a mãe de Violeta, mo gia, ligadas desde o nascedouro. E assim se intensificava aquela
lhava a planta, duas vezes por semana, ao anoitecer, sem relação à sombra de acontecimentos, previstos ou não, no
comentários. E o tempo foi passando. Violeta H. foi crescen calendário familiar: aniversários,férias, festas, viagens, doenças,
do,tomou-se uma viçosa adolescente;e a flor,no meio das folhas escolas, discussões, alegrias, tristezas, morte da avó Jacobina,
cada vez mais encorpadas, endurecia as pétalas, encrespava- missas, a fuga do gato Gessé; problemas com empregados,etc.
se, mas continuava a resistir à passagem do tempo. Ambas,sem Luiza, a irmã mais velha, andava muito atarefada, às voltas com
maiores contratempos,seguiam a trajetória de seus destinos pa estágios no curso de Jornalismo; Bernardo, o do meio, no se
ralelos. gundo ano do curso de Botânica da Faculdade de Ecologia, na
Nunca se soube quando ou como se dera a convergência; morador e boêmio, encontrava dificuldades em acompanhar
nem se supõe que Violeta H.,se perguntada, pudesse determinar o programa da escola. Restritos ao imediatismo de seu mun
o instante ou o motivo exato da aproximação. Uma amizade do pessoal, os irmãos nada percebiam. Os pais, sempre ocu
espontânea. A menina se entendia com a flor mais do que com pados e preocupados e casados,de nada desconfiavam.Tudo
a própria mãe. Quantas vezes, enquanto todos dormiam, Vio transconía no ritmo de vida prevista de qualquer família da classe
leta H. ia para a biblioteca e ficava horas em colóquio com a média, sem solavancos maiores.
amiga. Falavam baixinho; ela, a menina,em sua linguagem su Até aquele ceJebre dia.
postamente natural; ela, a flor, respondendo duma maneira que O dia em que as colegas de Violeta H., já com 12 anos, co
só a menina compreendia. A comunicação entre elas parecia meçaram a criticar seus modos e vestuário; cabelos curtos,
não obedecer a nenhum código lingüístico conhecido; talvez nenhuma pintura, gestos bruscos; usava sempre calças com
tivessem inventado um código próprio, sem som ou com sons pridas, camisetas de malhas escuras, sapatos pesados. Não se
insuspeitados pelo resto dos mortais; mas elas se entendiam; interessava por festinhas, assuntos de modas, namoricos, con
e riam, e brincavam e faziam conjeturas e criticas e traçavam versas sobre os garotos da escola. Começaram a isolá-la, des-
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confiavam de sua aparência e natureza. Será que era lésbica? dito. Algo você deve estar escondendo; tem de haver um motivo
Os comentários aumentaram, piadas, indiretas agressivas; H. mais forte; hei de descobrir,custe o que custar. Ou não me chamo
não ésobrenome,deve ser disfarce: H=Homem;grafites no quadro- Manoel Parreira da Silva Hermógenes! Dizendo isso, deu um
negro, risadas, cochichos à sua passagem. A professora resolveu murro tão forte na mesa que balançou a estante, três enciclo
intervir, nada adiantou; a situação se agravava, Violeta já não pédias vieram abaixo e com elas o vaso da violeta que se es
podia assistir às aulas em paz. Evitava os intervalos, refugia patifou no chão de ladrilhos portugueses,florões azuis em fundo
va-se na biblioteca, só saindo para entrar diretamente na sala branco, limpissimo. O pai era português, a casa tinha uma
de aula e, assim que a aula terminava, apanhava a mochila e decoração à moda de sua antiga quinta no Algarve. Tapetes,
saia porta afora, o mais rápido que podia. O caso chegou aos quadros e esculturas do século XVII; madonas,santos, arcanjos,
ouvidos do diretor, este passou um sermão na classe inteira, expostos em oratórios de mognos; gaios de cerâmica, toalhas
severo; melhorou um pouquinho, mas depois, feito erva daninha de rendas de Nazaré. O vaso espatifado - terra, húmus,raízes,
quando se poda, e não se arranca as raízes, ressurgiu mais cacos, misturando-se aos livros, artesanatos e objetos de arte
fortalecida, a pressão sobre Violeta H. Os pais foram avisados, - dava a sensação dum caos culmral e antológico a eclodir num
conversaram com a filha, queriam explicações; a menina as momento que se pressentia, de extrema fragilidade. Um momento
sustada não sabia a que atribuir a campanha contra ela. O fato em que a pele se estica e se toma transparente e as veias revelam
de não se comportar igual às outras meninas não era motivo, o subterrâneo azul de sua essência; aquela essência do lago azul
ou não devia ser. O que queria dizer? Simples. Não apreciava em que Narciso se mirou; um azul aureolado de solidão e verdade
as banalidades em que se envolviam; roupas, pinturas, enfei imaginária.
tes não lhe interessavam; além disso, a mentalidade daquelas
meninas era tão limitada... O que fazer se ela não suportava fo Partiu-se o espelho
focas, troca de bilhetinhos, comentários fnVolos ou maldosos mais do que mitológico
sobre a privacidade alheia? Mas nunca prejudicara ninguém, agia da vida
corretamente e era educada com as colegas e professores. Mas que se pensava possuir
então,se você sempre as tratou bem, por que elas se voltaram os reflexos.
contra você? Por que não te respeitam?, perguntou o pai, mais
ríspido do que a mãe,segurando-a pelo braço. Não sei. Como Violeta H. olhou a flor esmagada, aberta ao meio, vísceras
posso saber o que se passa na cabeça delas? Como não sabe? expostas; encolheu-se, apavorada, foi para o quarto, choran
Você deve ter alguma idéia do que seja.Já disse e repito, papai, do.Samira acompanhou-a,o que é isso, minha filha, não fique
não sei;só se for porque sou diferente,entende? Não,não entendo. assim, haveremos de conseguir outra flor igual, não se preo
Diferente em quê? Na maneira de ser, de agir, não sei, isso que cupe. A mãe não entendia por que a menina chorava tanto, não
acabei de dizer. Só por isso? Ah, desculpe-me, mas não acre- sabia que sua aflição não estava ligada à sorte da flor, unica-
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mente;tampouco podia adivinhar que, naquele instante, algo E tudo ficara assim,como uma névoa suspensa entre a percepção
muito maior se revelava naquela sala. Só Violeta conhecia a pro e a verdadeira natureza do objeto percebido. Mas ela. Violeta
fundidade da cena; conhecia e se desesperava ante o impacto H., interpretara o recolhimento da vida-gêmea, como uma
brutal da traição. Durante doze anos o segredo foi mantido a promessa de silêncio. Equivocara-se.
sete chaves; a menina confiava na parceira de nascença,cega A corola aberta da violeta, recendendo a cio, exibindo gi-
mente.Tinha vindo ao mundo sob o signo da violeta; a formação neceu/estame,à luz do dia,sem pudor,iria destruí-la. E ela não
de sua personalidade e de certos atributos fisiológicos segui tinha esse direito! Sabia que,ao se revelar, estaria entregando-
ram o modelo da flor; viviam se olhando e se compreenden a também; eram reflexos acoplados num espelho íntimo, des
do; quantas confidências trocadas, quanto apoio recebido nos de a germinação;faces do mesmo enigma; moléculas dum corpo
momentos de aflição; nos momentos de assombro,quando des único,de matéria indivisível.Por que a delação? Noseu desespero
cobriu o próprio sexo,quando osentiu diferente,quando percebeu esquecia-se de que tinha sido um acidente. Ou se esquecia ou
a coisa ambígua, o órgão único em sua dualidade macho-fê- não via, na queda,o acaso.Via,sim,uma decisão da outra,tomada
mea,convivendo quieto, entre as penugens que mal brotavam. à sua revelia; uma decisão egoísta de abrir o jogo, por conta e
Correu para a flor, em desespero; ela a consolou, passe a mão risco. Via e não via; começou a ponderar pela primeira vez,
na miiiha corola,eu também nasci assim, por que se desesperar? tentando analisar o lado da amiga.E se estivesse enganada^ Talvez
Nossa natureza -aparência, cores e formas- não depende de ela pensasse que a estava ajudando, tirando-lhe um peso,fa
nosso desejo.Somos parte do grande movimento cósmico que cilitando a abertura para uma melhor comunicação com os pais.
rege o Universo. Mas temos o livre arbítrio de trabalhar na cons Quem sabe o que se passava, agora, no íntimo aos frangalhos
trução do nosso destino; esse sim, o destino, é nossa respon da flor? Não sabia, estava confusa,insegura, agitada demais com
sabilidade. Guarde as lágrimas, Violeta H.,guarde suas energias o desfecho inesperado. Não acreditava que a comunhão entre
para usá-las na concepção da criatura feliz que você será um ambas terminasse assim, de forma tão descuidada. Pensava e
dia. Feliz? Como? Depende unicamente de você; a felicidade é pensava,nenhuma explanação lógica lhe socorria. E Violeta H.
uma conquista pessoal. Mas... E se eles descobrirem? E o que olhava para o restante da família, desamparada; o clímax de-
tem isso? Se você se respeitar, eles te respeitarão também. Não sintegrador da ordem que ela supunha sob controle acabava de
sou tão confiante assim, por favor, tenho medo;jure que esse se manifestar;e ela não sabia o que poderia acontecer no próximo
segredo ficará guardado entre nós para sempre, jura? Sempre segundo;o que seria seus efeitos sobre a sua vida e os demais,
é uma palavra que congela o tempo e empedra o umbigo por os Hermógenes.
onde entram osfilamentos da sabedoria.Esefechou a flor, naquele
dia, num mutismo exilado de seixo no deserto. Agora se lem Passa-se um longo intervalo,
brava, ela não jurara coisa alguma; restringira-se àquela con em que todos se recolhem
versa metafísica, que se desvanecera na ambivalência do texto. às suas reflexões
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gafanhotos azuis e borboletas de asas transparentes; lembraram-
mais intimas.
se de carruagens de ouro, puxadas por doze cavalos brancos,
A casa é um templo
cruzando o jardim entre papoulas vermelhas; lembraram-se
onde o improvável
que da terra adubada dos canteiros viram subir em espirais
não se descarta.
uma substância gasosa, perfumada,feito incenso brotando dum
De repente, ouvem-se passos e a voz espantada de alguém cachimbo de cristal; ah, como se lembraram de tantas e tan
que vai entrando,aos tropeções,rompendo o recato do silêncio,
tas outras coisas, e tiveram saudade do que nem chegaram a
com estardalhaço: Meu Deus, umaflor hermafroditaX, grita viver com tanta intensidade,como na intensidade das lembranças.
Bernardo,eufórico, vindo duma rodada de chopes com amigos. Tinha sido um dia fantástico; tinha sido real a ligação da flor
Que raridade! Vou levá-la amanhã mesmo para o laboratório e da menina; por isso o transplante tão cuidadoso para den
da escola, meu professor vai ficar felicíssimo. Ah, que sorte, tro de casa, o zelo de coisa rara, a sutileza de segredo maior
onde estava essa flor antes? Nunca a tinha visto, engraçado, no miolo de segredos menores. A planta e a filha. Eles sabi
pelo talo e folhas pode-se dizer que é bem antiga, onde es am ou, pelo menos, suspeitavam. Mas preferiram se acomo
tava? A pergunta inoportuna nem eco produziu; ouvidos e bocas dar no simulacro do faz-de-conta; do faz-de-conta que tudo
familiares se fecharam ao mundo outro, que não fosse o de não passa de imaginação. Pressentiram o inusitado e o aco
les, já superlotado de assombro. O boêmio não se importou lheram com receio de questionar a origem e a conseqüência;
com a resposta muda; a raridade se sobrepunha a qualquer pressentiram, mas não quiseram ir além do pressentido. Agora
silêncio. chegara o momento; o momento em que a violeta se permi
Todos, à exceção de Bernardo, compreenderam (inclusi te expor a verdade; não há mais como adiar a revelação. E o
ve a velha tia Gonçalina, surda do ouvido direito, com cata ato em si desta revelação, no fundo, era o que há muito an
ratas; e Leoríta, a espevitada; e sua filha Luíza, de onze anos), siavam ver realizado. Estão plenos. Abraçaram-se os pais e
o pai mais ainda,que Violeta devia ser, na intimidade,igualzinha choraram sem resignação ou raiva, ou alegria ou tristeza, um
à flor, por isso sua reação desmedida. Samira e Manoel Her- no ombro do outro, muito. Choro que dispensa explanaçao
mógenes trocaram olhares expressivos; olhares cúmplices, dum filosófica, religiosa, freudiana. Choro visceral.
tempo que só eles conheciam o significado e ressonância. Lem Bernardo, sem ver motivo para tamanha comoção, meio
braram-se do nascimento de Violeta; da ventania repentina; cambaleante, deixou de lado o que considerava um melo
da tarde sensual e úmida,abelhas e besouros rondando a janela; drama, e tratou de recolher a flor num tubo de vidro, colo
lembraram-se de tantos detalhes que, na ocasião, nem perce cando um rótulo em letras tremidas- Violeta Hermafrodita.
beram;lembraram-se de sensações que não se lembravam de Ao terminar, deu uma gargalhada bêbada, antecipando a alegria
ter experimentado;lembraram-se de presságios amargos e loucas
dos colegas ao contemplar o sexo partido da flor. Recolocou-
a na estante e foi dormir, excitado. Não conseguiu pegar no
euforias; lembraram-se de ter visto passar pelo céu nuvens de
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-m
sono. Aliás, ninguém conseguiu. A casa foi sacudida por uma Cena em Sustenido
ventania perfumada que durou a noite toda. Na manhã se
guinte, o susto da descoberta.
vos povoavam o gramado. Durante muito tempo foram eles, os sem neblina
O Big-Ben ressoa.
A Rainha ressona.
A natureza sangra.
A monarquia
decreta:
É o vermelho carmim da boca se impõe
primavera contra o fundo escuro. A moldura da
em Londres. janela é azul-escuro, as vidraças escan
caradas desnudam o interior da casa, mer
Os raios do sol escorrem por entre as folhas tenras; quase gulhado na penumbra. A figura que dele
as queima de virilidade áspera. Os pássaros, em vôos rasantes,
emerge, todas as manhãs,já está no seu
enchem a manhã de goqeios escandalosos. A cena da agonia posto. Cabelos crespos e abundantes,
se desfaz em conta-gotas, como a neblina ante a urgência da rosto redondo e moreno, olhos mornos e negros, langorosos.
luz. A vida é uma filigrana de ouro, entremeada de ônix e di Lábios sensuais,entreabertos,ávidos de beijos.Próspera de carnes,
amante bruto, e invisíveis teias de essência não identificada. O
desejos, exalando cio, como uma matrona dos filmes de Fellini.
ce'u londrino é um teto gótico, distante e sem respostas.
Solteirona, talvez esperançosa, seios exuberantes, quase sal
tando do decote em V profundo. Quando ela se debmça um pouco
mais, é possível ver, através do ângulo, o que de resto se adi
vinha. Não usa sutiã, nunca usou, desde mocinha. Agora que
já passa dos quarenta, não vê razão. Gosta de sentir os seios
livres, como ela gostaria de ter sido; não fossem os deveres da
casa, o pai autoritário, a mãe doente a exigir cuidados. Sendo
a mais velha dos nove irmãos e irmãs, a responsabilidade era
sua. Virou mãe,conselheira, administradora da casa aos quinze
anos. Dizem que esposa também,as más línguas apontando o
homem corpulento, forte, arrogante, Manolo Arroyo, seu pai.
Que nunca a deixou sair de casa, passear, namorar, curtir a
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juventude. Talvez por egoísmo, abuso de poder, comodismo. E a vida foi passando, os irmãos crescendo, se graduando,
Tê-la em casa, à frente de tudo, era muito conveniente. Talvez casando, saindo de casa, voltando só para visitas rápidas, to
não passasse disso, as razões;embora o povo acrescentasse mais mar a bênção da Gina, querida. Dona Herminia, a mãe, mor
uma,difícil de acreditar, mas não impossível: a relação carnal. reu; Miguel Arroyo, após um derrame cerebral,ficou entrevado
Na expressão compacta de Georgina, nenhum indicio. Se existia numa cadeira, dependendo dos cuidados de Georgina. Que não
algum conflito dessa natureza, ela o escondia nos subterrâneos falta aos seus deveres de filha abnegada. Mas também não deixa
do seu mtímo, com muito cuidado. de cumprir o ritual diário. Das nove às dez, bem vestida, blu
Levantava-se muito cedo, e jã saia do quarto com os lábi sas estampadas ou lisas de seda ou algodão, decotadas; maqui
os carnudos pintados de vermelho carmim, invariavelmente. agem exagerada, o eterno batom; cabelos soltos ou presos por
O batom parecia ser, mais do que um produto de beleza, um fivelas de madrepérolas, ela é vista na janela do casarão colo
talismã para ela. Usava-o, sempre. Trabalhadora, metódica, nial. Silenciosa, um sorriso enigmático de Mona Lisa, os olhos
dirigia a casa com mãos experientes e cabeça sensata. Todos fuitivos a observar o movimento da rua. Falante, a voz suave,
a obedeciam e o mais importante,a veneravam. Era boa,crédula, rouca, sensual, quando responde aos cumprimentos, pergun
generosa; firme e enérgica, quando precisava. Não chegava tando pela saúde dos conhecidos que param pra conversar.
a assumir o papel principal no mando doméstico. O pai vi Georgina sabe das novidades, fofocas, ocorrências criminais,
nha em primeiro lugar na hierarquia familiar. Teoricamente. sentimentais, anedotas. Sorri, mostra os dentes imaculados, dá
Por ficar sempre em casa, despender mais tempo com os demais gostosas gargalhadas; na hora certa, desaparece para o fundo
membros da família, estar envolvida em problemas como: de- da casa, engolida pela rotina. Amanhã, estará de volta à jane
veres da escola, higiene,alimentação,roupas, médicos,dentistas la. Em sua postura de matriarca, câmera lenta,dominando a cena.
- ela tinha maior controle da situação. Estava nas mãos dela, Ela é o centro da casa, o centro da pintura, o centro da rua, que
os cordéis da intricada engrenagem do dia-a-dia duma famí fica no centro duma cidade localizada no centro da América do
lia grande,com necessidades as mais variadas. Atendia a todos, Sul. Só não é o centro dela mesma. O que a fez tornar-se dos
tomava decisões, ralhava e lhes fazia as vontades; fogos no outros e não dela, o centro? O que a impeliu a se anular e a se
Ano Novo, árvores de Natal, festas de aniversários, bolos e sal- sentir feliz, assim? Feliz???
gadinhos a granel. Cozinheira excelente, sabia preparar almoços Os olhares dos transeuntes jamais a seguiram no interior do
e jantares fmos,verdadeiros banquetes. Mesmo tendo duas em casarão escuro. Ninguém a acompanhou nas noites solitárias
pregadas,não deixava de fazer seus quitutes divinos, decantados quando em seu quarto chora todas as desditas do mundo. Não
pelos familiares e os amigos que freqüentavam o casarão sabe o que fazer consigo mesma.Entre o dever de se dedicar aos
centenário da Rua do Lavradio. Ela era o esteio, a viga-mes- outros e o dever de assumir o controle de si própria, decidiu-
tra da estrutura dos Arroyos. Nada se fazia sem passar pela sua se pelo que lhe pareceu mais fácil. Até por uma questão de
aprovação. sobrevivência. Ou escape?Ingenuidade?Pressão? Ou ganhar tempo
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enquanto uma solução melhor não aparecia? E dai'o "enquan sonáncia. Deviam ser palavras ásperas e sedosas, espinhos
to", esse, perdurou mais do que o suposto, a vida inteira? O pro aveludados que penetraram a sua carne madura e a fizeram gemer
visório duma situação corre o perigo de se tornar permanente, de prazer doloroso. Georgina correspondeu ao ardor inespe
quando não se reconhece a hora de estancá-la. Sacrificar-se em rado,com o ímpeto de águas represadas; guiada pelo estranho,
favor de outrem devia ter lugar marcado e tempo de duração. deixou-se levar pelos labirintos da volúpia, de olhos fechados.
Caso contrário, vira renúncia obrigatória e irreversível. Não se Eforam horas e horas de amor,despudor,gozos,gemidos roucos.
sabe se esse foi o caso de Georgina. Aliás, não se sabe nada. Como veio, se foi, o homem. Denso de mistério, sua sombra
Suposições apenas,na tentativa de perfurar a casca do ovo,gerado a se dissolver no lusco-fusco, pela janela entreaberta. Dizen
dentro do casarão; uma casca que não se adivinha a origem, do se chamar Dionísio Arcanjo,deixou o aposento, pisando leve,
natureza,consistência; que instrumentos se usam para se penetrar quase levitando. Prometendo voltar na noite seguinte. Mas,entre
em seu âmago? A fortaleza de Georgina parece invencível. a palavra e a ação, se estende uma longa planície, lavrada de
Parecia. O concreto armado também tem poros, embora sonhos,pesadelos,tatuagens do inconsciente,de difícil travessia.
mvisiveis, tem. Ferramentas,força bruta, guindastes nem sempre A promessa se esgarça e se torna del^il e se mistura às heras,
surtem efeito. Para se descobrir o ponto fraco do muro antigo, musgos, limos-resíduos dum passado morto. E o homem não
o tato; das mãos, pele, língua, carícias, fala mansa, promessas volta ao local do pacto; do pacto extinto por covardia, esque
de amor, promessas de alcançar as estrelas. Ah, então foi as cimento ou predestinação. Nunca mais.
sim que os lábios carmins se entreabriram como uma flor de E Georgina o espera, na janela dos fundos,olhando para os
outono à última abelha da estação que se julgava passada? Foi telhados antigos da Rua do Lavradio. Um olhar mudo e amplo
e não foi, tão poético assim.Para nós, talvez não. Para ela, que e elástico, de quem quer alcançar o improvável à custa da per
élivre em seu julgamento e aquiescência,foi, mais do que poético, sistência. E da fé. E do amor. Noites e noites, a espera acumu
uma fresta insuspeitada em sua intimidade; uma fresta de luz lada. Carregando um corpo seco e oco de solidão. Ele vai voltar,
que entrou pela janela, desta vez do seu quarto, iluminando- prometeu, vai voltar. Não sabe que a promessa há muito que
a em sua nudez outonal. se desfez. Apática, perdeu o interesse pela vida, abandonou os
afazeres da casa, só pensa na volta de Dionísio. Fala sozinha,
Um ruído de penas e folhas secas chora, esmurra o peito. Meses.Seus cabelos embranqueceram,
roçando no assoalho de tábuas corridas os olhos turvos sem cor, na boca um arremedo de sorriso. Como
anunciou a presença do sonho. o das estátuas esverdeadas de esquecimento, nos canteiros do
Passeio Público. Nem revolta, nem aceitação, a perplexidade
O homem entrou, com a delicadeza e maciez de pássaro, do abandono. A janela da frente, moldura vazia dos lábios carmms,
acomodou-se ao seu lado,cobriu-a de beijos ardentes,sussnarrando- é uma existência sem sentido. Como a de Georgina, que desa
Ihe aos ouvidos palavras que só ela soube o significado e res- pareceu do quadro, para sempre. Esquizofrenia, segundo os
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Por Onde Andarás?
médicos. Foi levada para o Hospício Santo Inácio, aos gritos,
dizendo que tinha sido deflorada por um arcanjo de pênis
dourado. Os curiosos, acotovelando-se na rua estreita, sob um
calor de quarenta graus, consideraram a cena final, tragicômica.
Outros, uma farsa. Poucos se sensibilizaram com o seu desti
no frágil. Ninguém percebeu um vulto estranho na esquina; o
corpo coberto de penas, feição humana, sorrindo.
ponto que não se alcança. Nem por acaso. O ocaso talvez. do quadro se altera por conta e risco. O sombreado entra no
cenário à nossa revelia. E a garota, que pensa ser vivida, entra
Dependendo do ponto em que se encontra. O sol se põe a
distância. As luzes em breve vão se acender. Acenos da vida no redemoinho da cidade. Corpo e alma. Entrega-se às vibra
noturna. Outra face do cotidiano. Outra perspectiva do humano. ções do irresistível, previsível até certo ponto. Perambulara pela
Em busca de si mesmo,ou do deus no qual não acredita. A noite noite sem destino. Pelos bares e infeminhos, vinhos, vodkas,
começa a cair. A cortina desce. De seda transparente e cinza, cigarros. Marlboro, Camel, Hollywood. O mundo é vasto. De
desce. Afaga os dissabores, entrava humores, ameniza dores incongruências, amores,traições, boas trepadas,dores de cotovelo
profundas. Ungüento. Reavivam-se as esperanças. Quem sabe e boleros e melodramas e sacanagens e beberagens infindas.
esta noite. Na avenida movimentada,encontrarei o que procuro. Papos moles, soltos, tensos, banais, pseudo-intelectuais, dei
Mas se nem sei o que procuro. Como encontrar o que não se tando falação, poluindo o ar. Ar enfumaçado. Garoa virando
busca.^ Assusta. Quimeras,era o nome do bar ou o que eu embalava chuva. Vento gelando esperanças. Porres à vista. Na esquina,
dentro de mim,como uma canção que nem era de ninar, mas mendigos pedem esmola para a cachaça. Outros apenas pra
que tinha uma entonação de rede balançando, num rancho de sobreviver. Alguns nem dizem pra quê.A mão estendida,o olhar
palha de minha infância? Ah,se eu dissesse isso para as cole vago,a expressão empedrada de esfinge tropical. Um acordeão
gas paulistas... Tão longe da realidade delas, tão próximo da antigo murmura Astor Piazzola, a música passa despercebida.
minha história, tão distante do meu presente... O que nos co À tragédia dos tangos se sobrepõe a miséria concreta de todo
locaria numa igualdade sem igual. Quer contradição maior? Em o dia. O som se mistura a outros restos de melodias e se per
plena São Paulo das garoas decantadas, quem se assombra? O de pela noite anônima.Um travesti passeia e se exibe pela avenida,
cinzento da cidade é dúbio, como dúbia é nossa estadia nes ponta a ponta, fuma o último cigarro, gesticula, ninguém pa
te planeta. Caio Fernando Abreu que o diga. Onde quer que ele rece percebê-lo. O tempo urge, a vida exige, a fome não espera,
esteja. E quem sabe me inspira neste momento? Comecei a o aluguel atrasado, o telefone cortado, queixar-se a quem? Ao
escrever um conto,depois virou crônica,depois virou o que virou, bispo,é piada caduca. O travesti, conhecido como Liana,redobra
nada. Ou seja, nenhum gênero específico. Mas quem precisa nos requebros, exagera o batido do salto das botas nas calça
se especificar? Afora os americanos do norte, que dizem na cara das frias. Ressonâncias apelativas, no exercício do velho ofi
do latino estupefato: Be specifió.- porque não conseguem lidar cio. Nenhuma artimanha surte efeito. Ódio acumulado. Desgraça
com a obra aberta da vida — afora eles, não é Caio? Quem pre de profissão. Pelos becos o negrume,estrume, picadeiro de circo
cisa de? Ora, direis, vamos ouvir besteiras. Estrangeiras ou caseiras. pobre,desmontado às pressas, a trupe aboletada nos caminhões,
à deriva da sorte. Há um clima ambíguo de luz e dor e sombras
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e solidão e gritos e risos e um leve tremor de terra insone. Exausta, A Fábula do Anjo
Liana está a ponto de desistir. Na última tentativa, um carro pára,
ela entra, o rádio está tocando Vida Breve, de Cazuza.O homem
pergunta, gosta da música? Adoro. Pois eu odeio, rosna o ho
mem.Meia-idade,terno e gravata, careca. Desliga o rádio. Pisa
fundo no acelerador. O perigo se anuncia na noite. Nem mor
na, nem devassa. Púrpura. Liana apalpa a navalha na bolsa,
as longas unhas pintadas de vermelho-cintilante. O mesmo tom Na sala clara o gato dorme.Pousa a cabe
do seu batom Revlon. ça entre as patas, ressona. Contra a luz da
janela seu corpo é uma sombra parda de pê
los fofos. A manhã indecisa infíltra-se pe
las venezianas e na nossa vida, suave. Será
um dia como outros nesta praia quase deserta
de ares da cidade. Quase deserta. Levanto-
me,escancaro a cortina, sondo o céu azul, desenhos abstratos.
Tomo café, saio, chapéu, sandálias, short, camiseta estampa
da, um livro. Vou me sentar à beira-mar, no banco de sempre,
contemplando a paisagem que não muda.Paisagem estática que
se contrapõe ao movimento das ondas provocantes. Gosto do
vaivém belicoso. É a vida tentando quebrar a monotonia des
te recanto de férias, oscilando entre o fim da primavera e o começo
do verão. Neste intermezzo de estação e ambivalências, po
nho-me a pensar em Jerome, no dia em que nos separamos.Dia
nada especial para a natureza. Para nós o rompimento defini
tivo dos fios esgarçados da nossa relação,insustentável. Foi assim
como a última distensâo do elástico que já perdeu a flexibili
dade, estala ossos que não tem, geme, arrebenta nervos, não
suporta mais a tensão. Que não fosse o elástico, seria uma corda
de embira, rota, como aquela que bamboleia no cais obsole
to doJamaica Bay. Ambos sem serventia. Na essência e no con
texto. Não sei por que estou aqui a buscar imagens,símbolos,
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metáforas, que em nada me ajudam na cura dos ferimentos da
Falando de anjos.
alma. Talvez esteja tentando visualizar sentimentos, talvez ao
Eu os encontrei num desfile de Halloween na Washing
lhes dar aparência material, seja mais fácil lidar com a dor. Vê
ton Square. Um grupo de cinco rapazes e duas moças, en
só? Os artifícios de que nos valemos na hora em que nos vemos
tre eles Jerome. Longas batas de cetim salpicadas de estrelas
desamparados. E por que não? Tudo é válido quando se tem o prateadas, asas compridas, penas macias de garça, auréola
vácuo deixado pelo amor que se supunha eterno. Se bem que de brocado fosforescente. Eu e duas amigas, feiticeiras ne
conferir eternidade a pactos humanos foi duma ingenuidade de gras, rostos verdes, chapéus pontudos, unhas postiças, vas
querubim. Lábios roxos, bochechudos, cabelos encaracolados souras de palha, dançando ao redor de fogueiras imaginárias.
de inocência. Masjerome me dava essa sensação. Mesmo quando
Começamos a conversar, separamo-nos do restante do grupo,
mentia. Era demais a pureza de propósitos. De arrepiar a pele
varamos a noite juntos percorrendo os bares lotados e ba
do mais insensível mortal. Ou a pele sedosa de violeta entre-
rulhentos de Manhattan. Divertimo-nos enormemente.
aberta, ainda virgem de abelhas. Ou a do botão fechado de lífio-
Amanheci no apartamento dele, na Marks Place, no East Village.
do-campo, trêmulo de pudor. Minha fantasia de bruxa dormia no chão, debaixo das asas
Jerome era belo e consistente. Na mentira? Tenho dificuldades
e vestes do anjo nu, que agora me abraçava entre almofadões
em rotular suas ações. Hoje não sei se era falsidade premedi
indianos. Ele tinha a cara verde, eu estava coroada de estrelas.
tada. Porque ele não parecia um ator representando um per
Fizemos amor repetidas vezes. O anjo revelou-se um fauno
sonagem.Como nos anfiteatros da Gre'cia antiga, a máscara que
insaciável, eu larguei a couraça de bruxa malvada e me
trazia, pregada na cara, era ele. Em carne e osso. Ele era o
entreguei aos prazeres do paraíso. Conservei as unhas afi
personagem. Que amava, sofria, gargalhava, conforme as ex adas para arranhar a pele acetinada do anjo que, por sua vez,
periências vivenciadas. Ele devia acreditar no que fazia. Por isso
a candidez. Mentira sincera, existe isso? Se não existe,Jerome cravava dentes e líhguas pelos meus seios, ventre, clitóris.
Tesão, gemidos, sussurros. O corpo atlético de Jerome,
inventou o gênero. Ele podia criar acontecimentos e emoções
com tamanha engenhosidade e realismo que o expectador fi inventivas sexuais, orgasmos nunca sentidos. Eu disse, ele
também. Nenhuma mulher como eu. Homem nenhum como
cava fascinado. Ele era todo sedução e carisma.Seus olhos verdes
ele. Não mais nos separamos a partir daquele momento. Nossa
brilhavam de esmeraldas,a expressão serenava, os gestos davam
vida às palavras. Promessas, declarações de amor, planos, paixão, como fogo sagrado, nos envolvia mais que o corpo,
a alma. Tornamo-nos amantes, parceiros, cúmplices, num
trabalho, a família, colegas, viagens, aventuras da adolescên
pacto secreto de felicidade infinita. Ah, como foram mara
cia. Tudo. Uma certa graça o envolvia, ele se tornava quase
vilhosos os dias do East Village...
translúcido, angelical mesmo,as estórias fluíam leves. De uma
Dias longínquos e rarefeitos no tempo. Como a névoa que
leveza de asas de borboletas, pirilampos, anjos peraltas brin
vem surgindo no horizonte desta praia quase deserta. Quase deserta
cando de esconde-esconde entre constelações invisiVeis.
dos ares da cidade. Não das lembranças.
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me'dia, estudei às custas de bolsas e empréstimos bancários, desde
Jerome nascera em New Orleans. Quando tinha dois anos,
cedo venho lutando pra conseguir meu ideal: ser escritora. Eu
a família se mudou para a Califórnia. Tinha uma única irmã de
também tenho um sonho.Jerome entendeu.
nome Geraldine,antropóloga,trabalhando num projeto no Kenia.
Foi o que eu lhe contei.
Os pais,Gregoiy e Violet Porter,eram ricos proprietários de grandes
Pura e simples, a verdade.
fazendas,gados, plantações. Ele estudara Sociologia em Berkeley,
masem pouco tempo descobriu que sua vocação era outra. Queria
Depois me contaram.Outra versão do que ele havia me contado.
ser fotógrafo. Interessara-se por fotografia desde os sete anos, Os pais de Jerome,simples funcionários do City Hall, moravam
quando ganhara a primeira câmera, presente de aniversário do
em Brooklyn, numa casa modesta. Era filho único. Geraldine,
avô Barnard. Tinha caixas e caixas de fotografias acumuladas uma fotógrafa que trabalhava para a Natíonal Geographic Magazine,
durante anos. Viera para New York, matriculara-se na Escola a amante mais velha, bem-sucedida que o sustentava. Ele pas
de Artes Visuais e pouco depois trabalhava comofreelanceno sava os dias perambulando por Manhattan,em cinemas, teatros,
Village Voice e Daily News. Nunca passara apertos financeiros. barzinhos, enquanto ela viajava a trabalho pela Europa. As fo
Se não aparecia trabalho, a família o ajudava prontamente. Assim tografias maravilhosas que havia me mostrado,como sendo tiradas
ele vinha vivendo há dois anos,com um certo conforto, não podia por ele, mentira. Eram de Geraldine Jordan.
se queixar. Mas o seu sonho mesmo era fazer fotografias de arte, Tudo isso me foi dito pelo seu amigo Michael.
ter o próprio estúdio, ser conhecido internacionalmente. Para Um dos anjos do Halloween.
isso vinha se esforçando enormemente. Estudava muito, não E, por coincidência, na Washington Square. Quando um dia
perdia exposições de fotógrafos famosos nas galerias do Soho, nos cruzamos,casualmente. Eu voltava da Bames & Noble,ele
procurava estar inteirado de todos os movimentos e novidades da N.Y.U. onde estudava Direito. Relembramos o desfile, a
nesse campo.Freqüentava workshopse estava sempre fotogra conversa recaiu sobre Jerome e ele desfiou a história, espon
fando. Usava câmeras sofisticadas, tentando obter efeitos ori- tâneo e natural, os olhos plácidos de cordeiro fitando-me sem
gmais e surpreendentes. Vou conseguir o que quero, disse-me piscar. Escutei-o em silêncio. Despedi-me, estou com pressa,
certa vez, acredito no meu sonho. Eu não duvidei. tenho um compromisso.Deve ter notado meu desconcerto ou
Tudo isso ele me contou. o desconcerto das águas em que eu me debatia, esquecida de
Averiguar nem se eu quisesse. nadar. Bye-bye. Seeyou soon. Michael ficou no meio da pra
Andava muito ocupada com a minha dissertação de mestrado ça, penso que boquiaberto, não olhei pra trás. Eu segui na di
em Literatura na N.Y.U.,trabalhava trinta horas por semana na reção da Fifth Avenue,enxergando nada que nãofosse o desespero
Barnes & Noble,fazia economias pra poder pagar as contas no último. Olhos secos,de lágrimas nem noticias.De vezem quando
fim do mês:aluguel,luz,telefone, etc. Dividia uma sala-e-quarto apenas um anjo desnudo cruzava minha retina, gargalhando.
com Marion, uma aspirante a atriz, outra que tinha de se des Apressava o passo cego, meus pés e meu coração conheciam
dobrar para se equilibrar nas finanças. Vim duma família classe o único caminho que naquela hora eu deveria tomar. O cami-
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nho de casa. Cheguei ao meu apartamento do Chelsea,tremendo uma verdade inventada e a realidade conhecida por todos os
de frio, em pleno verão. conhecidos deJerome. Porque eu não tratei de investigar nada.
A noite em claro, a noite clara como esta sala clara. Não sei se por falta de ânimo ou de coragem. Talvez não quisesse
O dia amanhecendo. O dia da confrontação. encarar as asperezas do avesso da fábula.Talvez porque quisesse
Manhã nada indecisa. Confrontei-o. prolongar o quanto possível uma situação que, embora eu sus
Jerome me olhou comose nãosoubesse do que eu estava falando. peitasse fictícia, proporcionava-me tanta felicidade. Recolhi-me.
Escutou em silêncio, mão no queixo,sereno. Quando terminei, Aliás, recolhemo-nos. No refúgio de nossa privacidade,isolados.
um sorriso brando brotava em seus lábios sensuais. Aquele tipo Paredes de aço, à prova de fogo, raio, bala, intrigas. Ali estan-
de sorriso complacente, misto de ironia e candura de quem se amos,segundo Jerome, a salvo da projeção alheia.
coloca numa posição superior em qualquer controvérsia.Segurou Estratégia mais do que ingênua, fugaz.
minhas mãos, beijou-as, você está equivocada, meu amor. Mi- O telefonema de Geraldine Jordan conseguiu abrir crateras
chael estaria mentindo? Não exatamente.Porque é assim que ele na superfície da pseudofortaleza.Com uma facilidade de estarrecer.
desenvolve seu raciocínio para compor minha história. Traba Caiu como uma granada. Que não chegou a explodir porque
lhando com dados imaginários, constrói uma fábula que pensa a intenção era apenas me prevenir do perigo.Largue o meu homem
corresponder à realidade dosfatos. E,de tanto recontá-la, angariou senão... Seu homem? Aí"ouvi o relato completo do caso de amor
uma legião de adeptos que acreditam na veracidade da narrati deles, que já durava três anos. Desta vez eu compreendi.
va.A repetição alegórica éum mantra poderoso.Se você perguntar A mensagem era clara como a sala clara.
a qualquer um dos meus amigos, eles vão confirmar a palavra Onde não cabe mais o verbo ressonar.
de Michael.Todos eles me vêm sob a mesma ótica. Acontece que O gato acorda, espreguiça-se, arregala os olhos amarelos,
não participo desse enredo criado à minha revelia.Sou construtor contempla seu reflexo na vidraça, assusta-se. Salta entre as pol
da minha própria fábula. Posiciono-me no mundo da maneira tronas, pêlo ouriçado, atento. Enrosca-se na cortina, espreita
que desejo me ver e agir e sonhar. Sinto-me livre para criar e o "outro", no qual não se reconhece. As orelhas, par de ante
transformar a trajetória do meu destino.O que lhe contei é a minha nas sensíveis, a captar o possível inimigo, retesadas. Vigilân
verdade. Que é a única. Porque somente eu, a semente-matriz cia e astúcia. Imóvel a mirar a imagem daquele que nunca lhe
da fábula, pode conhecê-la.O resto não passa de projeção alheia. foi mostrado como sendo ele- o gato pardo que em si não per
Assim ele se defendeu. Poeticamente. cebe. Como se precaver do choque da projeção de si mesmo?
Ambiguamente.Dentro da sua estranha filosofia, olhando- Nem os humanos.
me altivo. Cena pré-fabricada. Escape que engendro pra cortar o fio do
Belo e consistente... que ainda me conecta a um estado eletrizante. Do qual eu não
Não fosse o telefonema de Geraldine,eu estaria até hoje,quem soube e nem quis escapar no instante em que reconheci a ne
sabe?, naquele estado indefinido, suspensa entre a sedução de cessidade do pulo. Como posso antecipar os movimentos e
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reações do felino alerta, se a eles me desassemelho na lassidão Seda Selvagem
e destino?
Se ainda continuo na praia quase deserta, desguarnecida? Ah,
os vôos da imaginação... A gaivota que vai sumindo no hori
zonte me lembra o anjo de outrora. Qual será seu disfarce no
próximo Halloween? Uma ventania sopra inesperadamente,o
céu se turva, parece que vai chover. Na praia, o vento em re-
demunhos assovia sons estridentes. Ao longe, entre névoas de
areia, vêm surgindo vultos indistintos que aos poucos vão
adquirindo formas e movimentos. São os vampiros, freiras, Éramos quatro no estúdio pequeno e de
garçonetes,demônios, palhaços,anjos, príncipes, pierrôs,arlequins sarrumado de Daniel Vogel. Numa casa
da Washington Square, dançando frenéticos. Cantam, gritam, de vila, em Botafogo, na década de 70.
gargalham, loucos de alegria, como na noite antiga em que Estúdio de cineasta principiante. Muitos
participei do desfile. A atmosfera é igual na aparência e sorti- sonhos; recursos, nenhum.Os olhos dele
légio. Onde está o grupo de feiticeiras? De repente, no meio da tão azuis. O mar ficava a duas quadras
multidão delirante, uma mulher de negro, cara verde, chapéu dali. Mas ninguém precisava do azul do
pontudo, me acena.Estremeço.Tenho a sensação de estar diante mar pra se entregar ao apelo denso da cor. Os olhos celestes
dum imenso espelho observando meu reflexo vivo que conti se espraiavam pelo espaço inteiro, sobrepondo-se ao cinzento
nua a atuar na outra margem dotempo.Preciso desfazer a conexão, do nevoeiro de outono. Que aparecia no retângulo da jane
se quero alcançar a serenidade. Desvio o olhar para o vaivém la, como pano de fundo para um cenário inexistente. Passá
das ondas,o céu escuro,a praia quase deserta. A chuva começa vamos horas discutindo o roteiro dum curta-metragem, sem
a cair. Levanto-me do banco, pego a bolsa e o livro que não li, ao menos saber se a verba seria ou não liberada. Até que ponto
vou-me embora do passado. teriam interesse em patrocinar um trabalho cujo enfoque tratava
Um barco se solta do cais. duma minoria altamente discriminada? O enredo era basea
As amarras se dissolvem entre seixos e algas. do na vida de Durval Laurindo, um travesti que dois anos atras
aparecera morto na Lapa, estrangulado com uma echarpe de
—AAAA -AAAA- seda indiana, laranja-avermelhada. O rosto queimado, irre
conhecível. No seu bolso, 200 reais e o xerox de sua carteira
de identidade. O crime, aparentemente passional, cercado de
preconceito e descaso total das autoridades, nunca foi des
vendado. Intrigados com a violência e o lado misterioso da
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história, resolvemos montar o projeto, contando, em princi Éramos um grupo heterogêneo até a medula. Quem já não
pio, apenas com as informações dos jornais. Escrevi o rotei percebeu? Cada um com seu código de vida e teoria sobre a razão
ro inicial, sujeito a modificações,conforme o orçamento e outros de estarmos por aqui perambulando. Neste planeta tão vasto
entraves imprevisíveis. Três vezes por semana nos reuníamos de propósitos e oco de sentido. Mas no final nos entendíamos.
discutindo detalhes e mais detalhes. Daniel, o de olhos azuis, Havia um fio condutor que nos ligava fortemente: a obsessão
barbudo, magro, vegetariano, visionário - o diretor; eu, Kari- de fazer o filme. Ou a obsessão pelo personagem, que foi in
na, morena,cabelos curtos, encaracolados, rosto de lua cheia, vadindo nosso cotidiano, de maneira assombrosa. Falávamos
virginiana, carnívora - a roteirista; Margô, uma garota magra, sobre Durval Laurindo o tempo todo. Tentando adivinhar seu
bronzeada,cabelos escorridos, boca pequena, materialista, olhar caráter, amigos,amores,solidão.Surgiam controvérsias nos pontos
de jaguatirica desmamada — assistente de produção; e Acimar, de enfoque, levando a discussões acaloradas. E foi num des
fotógrafo,iluminador, pesquisador, muito inteligente e vaidoso. ses dias de intensa falação, já quase de madrugada, que a luz
Óculos de grau,franzino, nem-bonito-nem-feio, gestos largos, se fez no retângulo da janela. A luz duma flor desabrochando.
teatrais. Calçasjeanse camisa branca de algodão cru,seu uniforme. Na frente do prédio de dois andares, havia um jardinzinho.
Entendia de tudo, paria idéias a cada cinco minutos, falando Mal cuidado, as trepadeiras e folhagens cresciam de teimosas.
sem parar. Algumas válidas, outras louquissimas,sempre citando Ou de galhardia, como algumas plantas parecem possuir, so
Glauber Rocha, seu guru idolatrado. Difícil interrompê-lo. O brevivendo a todas as intempéries. Rente à parede, havia uma
rapaztinha fôlego de onça-pintada perseguindo veado-campeiro. árvore, não muito alta, cuja copa chegava a alcançar a meta
Sua voz era bonita, veludosa, quase sedativa. Voz romântica de da janela. Velha, meio torta,sob o peso de orquídeas opor
de Rodolfo Valentino, não fosse mudo o cinema, na época.Já tunistas, que ninguém sabia ou se interessava em saber como
Daniel, era exatamente o oposto. Nosso diretor gostava de foram pousar ali. Trazidas talvez pelos pássaros,freqüentadores
escutar. Falava pouco. Não sei se refletia muito ou se ausen doJardim Botânico,rico em espécimes nacionais e estrangeiras.
tava da gente e ia caminhar solitário pelas matas da Tijuca. Em Aquele espaço paradisíaco do Rio de Janeiro, onde Clarice
pensamento. Como costumava fazer, sumindo por dias. Na Lispector ia espairecer por longas horas,reclusiva/reflexiva no
realidade. Reaparecia com a barba mais longa, cabelos em seu monólogo interior/exterior, descobrindo o mundo.Pois bem.
desalinho, olheiras, o azul dos olhos meio esmaecido, feito Na quase madrugada,sem nenhuma intenção, me peguei tri
águas de cacimba rasa no sertão. Seu andar tinha a leveza de lhando o mesmo caminho.Da descoberta, não de mim,mas da
plumas roçando o chão de tábuas corridas. Seus gestos, os de Natureza que se revelava,imprecedente. Ou improcedente se
um místico,em profunda conexão com Deus. Quieto e recolhido discutido fosse, em termos legais. Mas não estávamos num
num mundo distante, que só ele conhecia. Respeitávamos seu Tribunal. O estúdio era pequeno,acanhado,e abrigava jovens
alheamento, que não durava tanto assim. Algumas horas e ele esperançosos e sonhadores de realizar o maior projeto de suas
estava de novo envolvido no projeto, corpo e alma. vidas. Aos 22 anos. Um filme que nem sequer tinha título. Ou
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seja, uma obra sem identidade, buscando se afirmar num es - E eu sei?
paço turvo de inquietações e ingenuidades. A perplexidade tomava conta de todos nós. O instantâneo
Como a flor,forçando passagem no nevoeiro. Resto de fogo da orquídea vindo ao mundo nos colocava numa igualdade jamais
tentando emergir das cinzas. Entre a janela e a rua adormeci experimentada. Amanhecia em Botafogo. Os primeiros raios de
da, a imagem se expandia em proporções e desejos. Via-se a sol ameaçavam despontar no horizonte. Margô, mãos cruzadas
luta da flor para rasgar o véu do anonimato. Seu supremo es no peito, ar de bem-aventurança, parecia ter tido uma visão
forço de vir ao mundo em nossa presença. Por que seria? O celestial.
nevoeiro resistia à invasão da luz. Capitulou finalmente. E foi - Vocês viram o que eu vi? - perguntou.
se dissipando aos poucos na atmosfera meio surreal do bair - Vimos.
ro,da rua sem saída,da vila quieta demais para o pulsar de nossos - Então não foi alucinação?
anseios. Vivíamos a galope de emoções desencontradas. Len - Claro que não - o coro uníssono da concórdia.
tidão era tudo que não desejávamos. Não acreditávamos que - Espera aí". Há alguma coisa de humano nessa orquídea -
a realização de um sonho pudesse vir em conta-gotas. Tinha disse Acimar, aproximando-se da janela e estendendo a mão
de ser rápido e certeiro como um golpe de sabre afiado. Ou tudo para tocá-la. Uma súbita ventania balançou o galho, colocan
ou nada, dizia Acimar, o punho cerrado, socando o ar de im do a flor fora de seu alcance. Todos nós fomos para a janela.
paciência. Mas o que se deu,e que nos maravilhou, deu-se ao A orquídea faceira brilhava e dançava ao ritmo do vento, e se
tempo que necessitava para se dar. Fugaz e eterno,como os ins desdobrava em trejeitos sensuais, e exalava um perfume forte
tantes de anunciação. A visão se impregnara duma beleza clara. e adocicado,feito incenso indiano em plena manhã.Como era
Na ponta do galho mais alto da árvore, uma orqufdea laranja- bela. As pétalas macias e carnudas e rijas e viris e femininas
avermelhada desabrochava. Seus movimentos pareciam obe desafiavam nossa inteligência. E o instinto também.E toda uma
decer a um ritmo oculto. Coordenados e precisos. Ia soltando concepção anterior do que se supunha ser próprio do reino vegetal.
cada pétala,graciosa e dura,simétrica.Suave e selvagem, mostrava -Essa flor não apenasparece,ela É,humana. Não éincrível?
as entranhas sem pudor. Contei as pétalas, cinco ao todo. O -Incrível está sendo sua interpretação, caro m/o- protestou
nascimento dasformas não durou dois segundos.A flor se impôs Margô, sarcástica.
na janela,senhora de si e de seus encantos e do seu triunfo. Tinha - Você não entende de plantas, my dear- disse Acimar. —
a nós como testemunhas de seus feitos. Não tinha? Sabia que certas plantas podem reagir como seres humanos? Ouvi
— Daniel, de onde saiu essa orquídea? — perguntou Acimar, dizer que diferentes tipos de orquídeas especializam-se em atrair
apontando para a janela, espantado. E devia estar, muito, para diferentes tipos de insetos,seduzindo-os com estímulos sexuais
interromper a si mesmo. que evocam o aspecto, a coloração e o odor das suas respec
— Não sei. Apareceu. tivas fêmeas. Right, Daniel?-(Acimar tinha a mania de inter
— Apareceu como? calar palavras em inglês em seu discurso.)Antes mesmo de Daniel
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abrir a boca sensual, Margô,a jaguatirica inquieta, abriu as narinas, e'ramos outras pessoas. Deixamos de lado as picuinhas, teorias
fungou, deu um pulo de lado, pegou a bolsa, disse: estéreis, e passamos a encarar a realização do filme sob dife
— Depois dessa, io me ne vado. É muita doideira pro meu rentes perspectivas. Mais práticas e objetivas, centralizando todo
gosto. Vou pra casa dormir — neta de italianos, possuía um nosso esforço na pessoa de Durval Laurindo.Tínhamos de levantar
vocabulário básico, que usava com ar superior, como se conhe mais dados pessoais do nosso anti-herói. Suas contradições,lutas,
cesse profundamente a língua de Dante Alighieri.Já estávamos visão de mundo. Resolvemos também que faríamos algumas
acostumados com os estrangeirismos, dela e de Acimar. E a an investigações sobre os motivos do crime, os suspeitos, as cir
tipatia mutua. Brigavam por qualquer motivo, insultavam-se, cunstâncias, enfim, uma porção de coisas que a polícia não teve
quase partindo para a agressão física. Daniel tinha de intervir interesse em investigar. Saímos em campo. O primeiro passo
para acalmar os ânimos,- Arrivedercci bambini\ - o último foi perambular pela Lapa,especialmente à noite, passando por
miado da jaguatirica, ecoando no estúdio, arrepiando a pele de inferninhos, bocas-de-fumo, bares e pensões suspeitas. Ten
Acimar. taríamos descobrir quem eram seus amigos, o que sabiam da
—Merda!E mesmo uma ignorante-resmungou Acimar,quando vida dele e talvez da sua morte. Não foi fácil, a tarefa. Primei
Margô bateu a porta.Daniel continuou calado,o olhar vago,como ro disseram que nunca tinham ouvido falar desse sujeito, e era
se estivesse a Ie'guas de distância do local, havia se esquecido verdade. Descobrimos que o seu nome de guerra era Escorpicina.
de nós. Seu alheamento costumeiro. Ficamos os três isolados Pouco adiantou. Olhavam pra nós, desconfiados,fechavam-se,
e fechados, cada um com sua reflexão. A orquídea, escanca como se tivessem obedecendo a um pacto de silêncio. Ou então
rada, curtia a cena, a distância. Tive a sensação de que estava saíam com frases vagas: não me lembro bem,ouvi falar, parece
satisfeita com o rebuliço que causara. que andava por aqui, etc. E as parcas informações dos que diziam
O sol agora se mostrava em todo o seu esplendor.A rua acordou tê-lo conhecido não passavam de relatos folclóricos sobre sua
barulhenta,o dia começava em Botafogo — como em todo o Rio beleza e valentia. Sedutora,ciumenta,enfrentava qualquer parada,
de Janeiro - ao som de ônibus, motocicletas, caminhões, manejava a navalha como ninguém, botava muito machão pra
buzinadas de carros particulares, impacientes com o trânsito. correr. Belíssima, morena-jambo,olhos violetas, tinha uma porção
Fomos embora, eu e Acimar. Daniel ficou, ele morava no es de admiradores, homens ricos, dispostos a bancar qualquer coisa
túdio. Deve ter adormecido em seguida. Ali mesmo, no chão, por ela. Generosa e de coração aberto, ajudava os outros sem
no meio da papelada, livros, tocos de cigarros, copos, garra visar recompensa. Defendia os fracos e oprimidos com a co
fas, cartuchos de filmes, câmeras, mochilas, tripe's, refletores ragem e abnegação dum mártir religioso. Só faltaram dizer que
queimados. Como de costume. a tal Escorpiana era uma Joana D'Arc dos prostíbulos. Algu
Nada nos prevenia que a passagem da flor traria profundas ma coisa soava falso. Precisávamos de dados mais concretos.
mudanças em nossos hábitos e comportamentos em relação ao Alguém tinha de ter chegado mais perto do verdadeiro Durval,
projeto e ao mundo.Quando dois dias depois voltamos ao estúdio, não era possível! Deixamos a Lapa.
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o Mangue — nossa próxima estação.Também lá, com algumas que agora já é de maior,tá lá, apodrecendo na cadeia. Mas isso
variações, pouco tivemos a acrescentar ao nosso"banco de dados". éde menos.Coisas mais graves pesam em suas costas. Desconfiam
Até a noite em que fomos conversar com uma prostituta de nome que andou despachando muita gente deste mundo.Era valente,
Tita, uma espécie de líder na área. Talvez pela sua forte perso sabia lutar jiu-jitsu, capoeira,e andava sempre armada.Mau caráter,
nalidade,ou pelo fato de ter cursado até o segundo ano de Direito dedurava amigos,chantageava colegas,só vendo. Não tinha ban
na Faculdade Estácio de Sá ou, o que era mais provável, pela deiras, transava com homens e mulheres, numa boa. Era muito
sua condição financeira. A única que tinha casa própria e uma sabida,já tinha vivido no estrangeiro,falava francês,estava sempre
renda mensal razoável que Rachid Mamed,um cliente apaixonado metida com uns gringos de dinheiro e mulheres da alta soci
- um turco, velho e caquético, mas ainda admirável nas pro edade. E viajava bastante pela Europa e grande parte do Ori
ezas da cama -,lhe deixara de herança. A família Mamed não ente. Diziam que estava metida em narcóticos, outros falavam
contestou, pra evitar escândalo. Pra que enxovalhar a memó que eram pedras preciosas, outros que fazia contrabandos de
ria do velho? Além disso, eram riquíssimos. Que diferença faria plantas e flores exóticas do mundo inteiro. Ia e vinha sem
essa pensãozinha miserável? Tita não dependia de clientela pra problemas na Alfândega."Altas conexões" com os homens da
viver, mas, ainda assim, gostava da profissão, e a exercia com Federal,sabe-se lá o que mais traficava? Ao certo, ninguém sabia.
prazer. Quando lhe apetecia, claro. Escorpiana não abria o jogo com ninguém, claro.
Sou independente,ninguém manda em mim,quer orgasmo — Ela era sua amiga?- perguntou Acimar,abordando o ponto
maior. - perguntou-nos, em meio às suas declarações sobre que nos interessava.
^corpiana.-Eu a conhecia muito bem,e não estou aqui pra - Vira essa boca pra lá, moço!Nem pensar.E "aquilo" tinha
tar pano quente em seus malfeitos — disse, botando as mãos amigos?
na cintura.- Não é porque morreu que vou dizer que era uma - E como é que você pode saber de tudo isso?- perguntou
santa. Ninguém merece morrer desse jeito, gente, mas ela era Margô.
uma criatura perversa. E muito traiçoeira. Usava as pessoas e — Ora, queridinha, porque as noticias correm por aqui.Tudo
depoisjogava fora,feito trapos.Comigo não foi diferente. Bancou se sabe na "aldeia".
minha amiga até a hora em que precisou de mim.Tenho aqui - Mas Escorpiana não tinha nenhuma amiga? Ou amigo?Tem
um bilhete dela,me pedindo pra dar guarida ao Piolho,um pivete, certeza?-perguntei,tentando reatar o pontolevantado por Acimar.
seu protegido. Querem ver?- abriu a gaveta da penteadeira e — Que eu saiba... Pra não dizer que não teve... Talvez S.S.
de lá retirou o tal bilhete,amassado e cheirando a perfume barato. tenha sido sua amiga. Ou sua amante. Assim mesmo,por pouco
— Estão vendo só?Pois é.Atendi ao pedido da infeliz. E logo depois tempo.Separaram,ninguém ficou sabendo exatamente o motivo.
o garoto foi preso, deu meu endereço pros homens, tive de Mas só pode ter sido algum golpe de Escorpiana.S.S.tinha uma
comparecer na Delegacia, e cadê que Escorpiana moveu um coleção de orquídeas raras, tinha paixão pelas flores, quem sabe
dedo pelo coitado? Nem se mexeu,a cadela. Até hoje o Piolho, não está ai'o nó da questão?
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-Quem é S.S.?- perguntei,lembrando-me da sigla da temível mas uma criatura boníssima e prestativa. Aprontava escânda
polícia alemã, na época do nazismo. los quando se embriagava nos bares, quebrava tudo, mas de
- Uma drag queenmuito chic. Começou aqui no Mangue, pois pedia desculpas, reembolsava os prejuízos. Não tinha
mas hoje tem cobertura na Vieira Souto,freqüenta as altas rodas inimigos, não guardava rancor de ninguém. Não,definitivamente,
da zona sul. Eu também fui sua amiga, nos tempos da vaca magra, não acredito que Seda tenha nada a ver com isso.
mas depois perdemos o contato. Há dois anos atrás, soube que - E, na sua opinião, quem poderia ter cometido o crime?-
se mudou para Portugal, definitivamente.Pouco antes da morte perguntei.
de Escorpiana. — Não arrisco nenhum palpite.Só o Demônio sabe,minha filha.
- O que quer dizer S.S.?- perguntou Daniel, saindo do seu — E por que a policia não deu andamento às investigações?
mutismo. — Ora, tá na cara, queridinha. Escorpiana parentes
- Salviano Souza -o nome da certidão de nascimento. Mas influentes e os "amigos da alta" que ela dizia ter, num momento
ela dizia que S.S. eram as iniciais do nome que tinha escolhi desses, querem mais é manter distância. E depois, como vocês
do para viver — Seda Selvagem. Adorava cores fortes, princi sabem,crimes contra homossexuais e prostitutas não merecem
palmente rosa choque,laranja, vermelho berrante. E bordava a atenção das autoridades. Não há cobrança da sociedade, que
o monograma S.S. nos lenços, echarpes, calcinhas, toalhas de também nos discrimina. Portanto...
banho,tudo.Era sua marca registrada. Olha só,querem ver?Tenho - Tita, sabe de uma coisa? Volte para a Faculdade de Di
aqui uma lembrancinha dela — abriu o armário e de lá retirou reito, termine o curso, e vá ser uma ativista pela causa desta
uma echarpe laranja-avermelhada, de seda indiana, com o minoria-disse Acimar,apertando as mãos dela,as faces coradas
minúsculo monograma S.S. bordado em fios dourados, na ponta. de emoção sincera.
Ficamos estatelados. - Ah, Ah, Ah - a gargalhada escandalosa de Tita encerrou
Títa, você sabia que Durval Laurindo foi estrangulado com a entrevista.
uma echarpe igualzinho a essa?- perguntou de repente Dani Saímos do Mangue com a gravação da valiosa matéria, to
el, levantando-se,encarando a prostituta com aqueles olhos azuis dos falando ao mesmo tempo,alvoroçados.Inamos diretamente
de doer nos olhos de quem os encarasse. para o estúdio.Tínhamos vários pontos a refazer no roteiro. Muita
Sabia. Mas se fizeram isso pra incriminar Seda,não funcionou. coisa pra conversar e discutir. Quase duas horas da manhã,nem
Primeiro, a Policia não deve ter visto o monograma; e se viu e vimos o tempo passar. Valeu a pena,que importa o tempo?Parecia
averiguou-o que eu duvido-deixou pra lá, pois Seda disüibuiá ser a pergunta que todos se faziam, intimamente. Ao chegar à
echarpes como essas para todo mundo.Era seu brinde de Natal, Avenida Presidente Vargas, a essa altura deserta, tivemos a
presentes de aniversários e até de casamentos. Isso sem con sensação de que estávamos sendo seguidos. Margô jurou ter visto
tar que ela não estava no pais quando aconteceu o crime. Além uma sombra se esgueirando na esquina da Rua Moncorvo Fi
disso, era boa gente e muito querida. Estourada, escandalosa, lho. Fomos ficando cada vez mais apreensivos, nenhum táxi
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aparecia, olhávamos para todos os lados, ressabiados. De re —Embora o diretor também não estivesse do meu lado,com certeza
pente, o vulto dum homem grandalhão surgiu no canteiro do teria outi"os argumentos, menos radicais do que os do guerreiro.
outro lado da avenida,caminhando em nossa direção. Apavorados, E tinha: acho que devemos continuar a colher mais dados para
sem saber pra onde correr,fomos socorridos pelo acaso, ou pela o nosso projeto, a experiência de hoje mostrou que estamos no
Divina Providência, diria minha mãe,católica, apostólica, romana. caminho certo. Quanto às sombras, talvez tudo não passe de
Nossa salvador motorizado freou estridente, pra nossa alegria impressão. Nas ruas do Rio tem muita gente esquisita vagan
e redenção. Entramos no táxi, mudos. O motorista perguntou do pela noite, certo? Vamos aguardar.
duas vezes:Pra onde? Pra onde? Ate'que Acimar respondeu, meio Nem bem Daniel fechou a boca,uma pedra estilhaçou a vidraça
apatetado: pra Botafogo-e deu o endereço.Chegamos ao estúdio. da janela esquerda e caiu bem no meio do estúdio. Enrolada
Entramos, e resolvemos, por medida de segurança, pernoitar num pedaço de papel de embrulho, onde escreveram, em
lá mesmo. Daniel trancou a porta, e foi cerrar as cortinas das excelente caligrafia, a frase:"Se tentarem enxovalhar a memória
janelas da frente, que davam para o jardinzinho. Olhou pra rua de Escorpiana, terão o mesmo fim de Tita".
e nos chamou pra ver. Na calçada em frente, debaixo duma amen- -Tita'-dissemos ao mesmo tempo,aparvalhados.E dainenhum
doeíra copada, um vulto obeso nos espreitava. Tivemos a músculo mexia em nosso corpo.Perdemos a fala. O silêncio foi
impressão de que usava um binóculo ou uma teleobjetiva. Ou cortado, curiosamente, por Daniel. A voz compassada repetiu
quem sabe um rifle de longo alcance? a mesma frase, dita antes de a janela ter sido apedrejada:
-Caralho!-disse Margô.-Era só o que nos faltava! Isso está - Vamos aguardar.
ficando perigoso. - Aguardar o quê?- perguntei,sentindo aquele medo irraa-
- Vamos parar de bancar os detetives. Não somos policiais. onal, que me dominava desde a infância, quando mamãe me
Estamos apenas tentando fazer um filme, uma obra de ficção, deixava sozinha no berço. No meu quarto enorme e branco,paredes
nada mais, por que se arriscar?- perguntei, encolhendo-me no nuas, mobílias antigas de mogno,cheiro de mofo e naftalina, no
canto, sentindo um frio no estômago. Morrendo de medo. primeiro andar daquele casarão cinzento, por onde haviam passado
-Deixa de exagero,Karina.Por que iriam nos fazer mal? Como quatro gerações inteiras da nossa família. As janelas altas do quarto,
você mesma disse, estamos apenas tentando fazer um filme. Qual com cortinas rendadas, davam para o jardim escuro e silencio
o perigo?- perguntou Acimar, ajeitando os óculos de grau, so. De vez em quando se ouvia apenas o ruído de folhas secas,
belicoso. grilos, gorjeios de passarinhos cortando a tarde monótona, ou
- Não sei, mas sou de opinião que não devíamos buscar os a noite comprida de incertezas. Tão amedrontados como eu,os
pormenores desse crime.Sabe-se lá em que estamos nos metendo? pobrezitos.Pela entonação e timidez do canto,qualquerum percebia.
De repente, essa gente e' perigosa... Mesmo uma criança de dois anos. Nunca mais me esqueci do medo
- Não concordo contigo, Karina - disse Daniel, saívando- em farpas, que espetava minhas entranhas. Igualzinho ao cac-
me de Acimar, que já vinha de língua afiada, na minha direção. tus que crescia audacioso, no meio do canteiro, repleto de de-
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licadas violetas. Medo arraigado. Medo ancestral.- Aguardar o Fomos para o Mangue.
quê, Daniel? — repeti a pergunta. De nada adiantou. Na casa,interditada e guardada pela policia
-Aguardar os acontecimentos-respondeu Daniel,sem alterar e cães ferozes, nem mosca entrava.E olha que,na área, os insetos
o tom de voz. proliferavam.
- Será que mataram Tita?- perguntou Margô, arreganhan- Saímos do Mangue.
do as narinas, mais do que a boca de jaguatirica. Ai, meu San Ressabiados. Com um sentimento misto de tristeza e apre
Genaro, agora eles vêm atrás de nós. O que vamos fazer? ensão. Mal viramos a esquina da rua,uma senhora morena,baixa,
-Devagar com os dramalhões! — berrou Acimar. Margô calou cabelos grisalhos, usando bermudas vermelhas e blusa de malha
a boca.
branca, veio ao nosso encontro, saindo duma rua transversal.
De manhã compramos oJB, O Globo, nada. No dia seguinte Meio ofegante, com um envelope pardo na mão, perguntou:
saiu em O Dia a noticia sobre o assassinato de Tita, uma co — É vocês que tão fazendo o filme da Escoipiana? — respon
nhecida prostituta do Mangue. Encontrada morta em sua casa, demos que sim, ela continuou, esbaforida:
estrangulada com uma echarpe de seda laranja-avermelhada, - Madrugada passada,logo depois que vocês foram embo
em cuja ponta aparecia o monograma S.S. bordado em fios dou ra, Tita me chamou e me deu isto, dizendo que tinha tido um
rados. Vingança, desavenças, rixas antigas, hipóteses variadas pressentimento e que,se alguma coisa acontecesse com ela, que
de ocorrências como essas, na zona do meretrício. As inves eu entregasse para os meninos do filme. Não deixe ninguém ver,
tigações, como de praxe, não passariam de promessas formais. recomendou. Enfiei o envelope por baixo da blusa e na saída
Claro. Se nem chegaram a fazer ligação com a morte de Dur esbarrei com um sujeito grandalhão,chapéu e óculos preto,um
ai Laurindo, assassinado no mesmo estilo... E com instrumento tipo esquisito. Não dei muita bola porque Tita tinha vários
idêntico, uma echarpe de seda indiana, laranja-avermelhada, "amiguinhos da alta", que vinham pra casa dela disfarçados.Devia
com o mesmo monograma S.S. Um dado importantíssimo, que ser um deles, pensei. Mas não era. Tá na cara que esse sujeito
jamais poderia ter sido ignorado. Foi. liquidou a coitada. Olha,toma o envelope, não sei o que tem
Essa história está mal contada.Por que Seda Selvagem mataria af, não quero saber,não me envolvam nisso, pelo amor de Deus.
Tita. Se tinham sido amigas e Tita inclusive falou muito bem dela, — e dizendo isso, a velhota, que se chamava Rosária, soltou o
durante a entrevista?- perguntei intrigada. envelope na mão de Daniel e saiu correndo.Com uma velocidade
Sabe-se lá? De repente,ela não disse toda a verdade. Queria espantosa para sua idade, mais ou menos sessenta anos.
se proteger de alguma coisa,-wbo knows? — comentou Acimar, Voltamos para Botafogo.
pensativo.
Falando em voz baixa, olhando de lado, no ônibus, todo o
- Vamos voltar à casa de Tita, esta noite - ordenou nosso trajeto. Direto para o estúdio, onde abrimos o envelope ime
capitão, o de olhos azuis. Sem deixar a menor fresta para pro diatamente. Era uma carta de cinco páginas de Seda Selvagem
testos.
para Tita, denunciando todos os crimes de Escorpiana. Fala-
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va também das suas desastrosas relações comerciais com o travesti. - É, de repente, esse é o melhor caminho - disse Daniel.
Em detalhes, dizia o quanto a outra a enganara e que, final E foi o que fizemos. Sem desconfiar da rapidez do contra-
mente,"aquele inseto venenoso e traiçoeiro" roubara toda a sua ataque. Antes mesmo de Acimar voltar do Correio, o telefone
coleção de orquídeas raras que havia trazido da China, índia tocou e uma voz cavernosa disse:
e África. De pura maldade, não precisava do dinheiro; a sádi - Estamos sabendo que vocês estão de posse dum perten
ca só queria vê-la sofrer;sabia muito bem que ela tinha verdadeira ce de Tita. Deixem a mercadoria no cemitério S.João Batis
obsessão pelas flores. E que,não contente com isso, a perversa, ta, no mausoléu do Dr. Romeo Capixaba. Muito cuidado, não
em conluio com seus amiguinhos corruptos da policia(e nes abram o bico,com ninguém.Um passo em falso e nós liquidamos
se ponto citava diversos nomes), andava extorquindo-a. Ven todos vocês, seus imbecis!
dia proteção" como os mafiosos. Se ela não pagasse, seria - E agora? Estamos fodidos, tá vendo só?-esbravejou Mar
denunciada e presa como traficante. Estava revoltada e humi gô.- Bem que eu queria...
lhada com a situação, mas não via outra saida senão ceder às -O que está acontecendo? — perguntou Acimar,entrando no
exigências de Escorpiana.Até quando,não sabia, uma vez que estúdio. Contamos sobre o telefonema.
a owím aumentava constantemente o montante da extorsão. Fi - Agora é tarde. Já mandei a carta.
nalizava dizendo que temia pela sua vida, por saber demais,e -Nem tanto assim.Podemosfazer outra cópia da carta e deixar
que por isso mesmo resolvera botar tudo no papel. Queria que no tal mausoléu.Só pra ganhar tempo.Enquanto isso,quem sabe,
Tita,a grande amiga de outrora, guardasse a carta pra servir de a imprensa bota a boca no mundo e esses caras que estão nos
prova contra a maldita, caso, no futuro, algo de ruim lhe acon ameaçando recuam?- falou Daniel, naquele seu jeito especi
tecesse. Agradecia e assinava com as iniciais S.S. Terminada a al de conciliar as coisas.
leitura ficamos em silêncio, um olhando pra cara do outro sem - É possível - falei, sem muita convicção.
saberoquefazer.Margô resolveu agir.Colocou a carta no envelope -Tudo é possível, Karina.Inclusive que eles cumpram a ameaça.
pardo e disse: Podem aparecer ai"com uma metralhadora e era uma vez um
Só temos uma saída: entregar este material para a policia. bando de ingênuos entrando de gaiatos.
Que policia, que nada, não está vendo a lista de nomes - Margô, pelo amor de Deus, pára de agourar. Que mulher
importantes? A coisa é séria. O mais sensato é tirar uma cópia mais negativa! - explodiu Acimar. Rompendo semanas de
da carta e mandar os originais para os jornais. Com a mídia em harmoniosa convivência.
cima,a policia vai ter de reabrir o caso- disse Acimar.- O que O telefone começou a tocar de novo,ninguém teve coragem
você acha, Daniel? de atender. E deve ter continuado a tocar o dia inteiro. Deixa
- Estou de acordo com Margô, e você, Karina? mos o estúdio imediatamente e resolvemos que, por medida de
— Minha opinião é a mesma de Acimar, devíamos mandar segurança, devíamos nos separar por uns dias e manter con
a carta para os jornais. tato apenas por telefone. Até que as coisas se esclarecessem.
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Resolvemostambém não levar o envelope para o cemitério, porra como explicar o aparecimento daquelaote^iàe2i desabrochando
nenhuma! De repente, tem alguém de tocaia por lá. bem em frente à janela do estúdio?E laranja-avermelhada,a mesma
- Cruzes!- disse Margô, benzendo-se. cor da echarpe de S.S.? Outra coisa era o roubo de sua coleção
A única solução, no momento,era ficarmos quietinhos, tor de orquídeas.Por que alguém roubaria flores? E por que tinham
cendo para que os jornais publicassem a matéria, em grande tamanho valor estimativo para S.S.? Qual a importância das or
estilo. O estardalhaço da notícia seria nossa salvação. A esta quídeas? Quando fui à Biblioteca para pesquisar sobre o assunto,
altura, sabíamos que estávamos lidando com gente perigosa e descobri o quanto meus conhecimentos de Botânica são min
o pior, sem ter a menor idéia de quem se tratava. E se a coisa guados, pra não dizer, nenhum. Fiquei sabendo tanta coisa...
continuasse na calada, vagando nas entrelinhas da realidade, Sabiam que a orquídea é considerada a mais 563^das flores sobre
comamos sério perigo. Não havia dúvida. O silêncio não nos a Terra? Pois é. Começa que seu nome vem da raiz latina or-
interessava.De forma alguma. Olha só em que fomos nos meter, chis^ que quer dizer testículo. Não só por causa da forma de seus
pensei, preocupada.Sou uma romancista,escrevo ficção,e agora bulbos, mas também porque, durante muito tempo,acreditou-
me vem toda essa realidade violenta despencando em nosso roteiro se que as orquídeas surgiam do esperma respingado pelos animais
de amadores. Não tíhhamos experiência nem intenção de nos durante a cópula.Há uma história milenar recheada de mistérios,
envolver com o mundo do crime. Aos 22 anos,em início de car na trajetória das orquídeas. História de crimes,traições,subornos,
reira, o que tíhhamos de sobra eram os sonhos. Esses,sim,gran contrabandos, mortes acidentais, dentro e fora do país, desde
diosos e abundantes. O resto, o que vinha acontecendo, era 1833,envolvendo nobresingleses que pagavam umasoma absurda
puramente fora do nosso controle e previsão. De repente, es para certos "caçadores" de orquídeas raras, que partiam em
távamos sendo seguidos por um bando de criminosos e talvez perigosas expedições pelos cinco continentes em busca da
caçados por policiais corruptos, também. Cercados por todos preciosidade. Um Guia de Plantas britânico, de l653, aconse
os lados.Sem apelação. Great.Era só o que nos faltava. Fui ficando lhava que as orquídeas devem ser vistas com discrição porque
nervosa e irritada, só de pensar em nossa situação. Até que,em "são quentes e úmidas em sua essência,seduzem e despertam
dado momento, resolvi dar um basta a esses pensamentos intensos desejos sexuais." Quem cai em seus encantos nunca
negativos,que em nada contribuíam para a continuidade de nosso mais se liberta. Nem o canto da sereia parece se comparar. Os
projeto. Decidi então aproveitar o tempo de reclusão voluntária colecionadores arriscam a própria vida, se preciso for, para
para ampliar e melhorar o roteiro do filme. Os acontecimen adquirir determinadas espécies. Algumas,inclusive,em extinção.
tos recentes abriram novas perspectivas de abordagem da história. Há toda uma manobra e ritual e convenções e estratégias e
Por exemplo, o texto da carta de Seda Selvagem me deixava trapaças, entre eles, os que se especializam na matéria. Os
intrigada em vários pontos. O principal era no que dizia res colecionadores de orquídeas sofrem duma avidez insaciável,
peito às orquídeas.Em primeiro lugar, coincidência ou não,devia como se fossem viciados. Não medem esforços nem dinheiro
haver alguma ligação energética circulando entre nós. Se não, para conseguir as cobiçadas. Qual o valor das orquídeas? Em
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nível emocional,incalculável. Financeiro? Custam fortunas, as abafaram o caso?Por que não interrogaram S.S.? Por onde andaria
raras. Por isso Escorpiana roubara a coleção de Seda Selva a drag queen? Quem estava interessado no seu silêncio? E Tita,
gem. Que por sua vez, tinha motivos de sobra para se sentir a prostituta^ Por que fora assassinada^ A reportagem tocou na ferida.
ultrajada. Mais do que a perda do dinheiro e a traição da ou Começou a aparecer uma porção de denúncias anônimas con
tra, martirizava-a a perda do objeto de sua obsessão. Insubsti tra certos nomes conhecidos. A pressão foi tanta que o Ministé
tuível. Fiquei pensando na drag queen,no seu exílio voluntário rio Público prometeu instalar uma CPI para apurar as
em Portugal. Será que a mágoa era tão insuportável, a ponto de respionsabilidades dosenvolvidos nocaso.Ea coisa foiaumentando,
fazê-la mudar de pais? Devia ser. Depois de toda essa literatura feito uma bola de neve. Cada dia, surgiam novos suspeitos.
sobre as orquídeas, o que mais se pode concluir? Ainda assim, Comentários,acusações,suposições,valia tudo.As investigações
uma certa sensação de desconforto, ternura, uma empatia que seguiam em ritmo eletrônico.Em menos de dois meses,o resultado
eu não sabia de onde vinha me tocava estranhamente. E a cena brilhou nas manchetes:Escorpiana es\áviv2i\ Estrangulara Seda
daquela orquídea desabrochando alaranjou meu pensamento. Selvagem, deformara seu rosto com ácido e colocara a cópia de
De solidão e dor e angústia,inexplicáveis. Loucura.Eu devia estar sua carteira de identidade no bolso da drag queen. Escorpia
sendo afetada pelo clima de tensão e confinamento. Novamen na estava na mira de outros tubarões do tráfico, por isso,de comum
te a imagem do meu quarto, no casarão cinzento.Isolada do resto acordo com sua quadrilha, planejou a farsa. Como a polícia nada
da casa, quantas vezes chorei até quase perder o fôlego e nin investigou, ficou por isso mesmo.Para todos os efeitos, Escor
guém vinha me atender.Mamãe,comosempre,fazendo compras, piana estava morta.Fizera uma plástica, mudara de nome,nova
encontrando as amigas, nos salões de beleza, chás de caridade. carteira de identidade,e tinha o seu quartel-general sediado em
A empregada, muito ocupada,vendo televisão, não podia per São Paulo.De onde comandava todo um tráfico internacional de
der a novela preferida.Gritos de criança,nessa hora,não se escuta. drogas,prostituição,contrabandos de pedras preciosase orquídeas.
Menina manhosa,o que está lhe faltando? Carinho. Eu teria dito, Continuava sua carreira de crimes, impunemente,sob a prote
se pudesse colocar em palavras,os estragos da solidão. Por isso ção dos policiais corruptos. Seda Selvagem tinha sido assassi
o choro prolongado.Em vão.Até hoje,isolamento é algo que não nada porque ameaçara denunciar esses mesmos policiais. E Tita,
tenho condição emocional de suportar. a prostituta? Ela também sabia quem eram os homens. Silenci
Três dias durou nossa reclusão. Ainda bem. Acabou-se o aram a coitada,sem hesitar. E fariam o mesmo com qualquer um
pesadelo. Fosse quem fosse o perseguidor, mudara de rumo e que cruzasse o caminho da quadrilha.
tática. Por força da mídia, que entrou firme no jogo. A notícia — Então, pelo jeito, os próximos seríamos nós? — perguntou
explodiu como uma bomba.Gente graüda na polícia e no meio Margô, arreganhando a boquita de jaguatirica.
empresarial, de rabo encolhido. Os jornais estamparam na pri — Sem dúvida, o que você acha, cara micQ — disse Acimar,
meira página toda a história,exigindo providências na apuração batendo nas costas da assistente de produção.Todos nram,não
do assassinato de Durval Laurindo, vulgo Escorpiana.Por que sei se de nervoso represado ou de puro alívio.
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Escorpiana foi presa, levada para a Bangu III, incomuni A Ilha das Cigarras
cável, máxima segurança. Meses depois, já com o julgamento
marcado, Escorpiana prometendo botar a boca no mundo,
encontraram-na esfaqueada na cela. Briga entre gangs rivais,
rixas antigas, as hipóteses de sempre,quando tudo indicava se
tratar de "queima de arquivo". Antes que as desconfianças se
confirmassem, alguém se responsabilizou pelo crime.
— Ajuste de contas, a bicha me sacaneou — dissera Piolho,
o assassino confesso, diante das câmeras de televisão. A últi
ma cena da tragédia.Para nós,a cena final foi uma parede imunda, o silêncio da ilha, ao escurecer, não é cor
repleta de rabiscos, grafites, palavrões, símbolos religiosos, tado abruptamente. Quase impercepüvel,
obscenos, versos de amor, maldições — a parede da cela onde osom vem surgindo como um leve sussurro
Escorpiana deixara uma frase escrita com batom vermelho- dos galhos de árvores,ao balanço do vento
carmim,em francês:/e nepeuxpas écbapper à mon destin. momo. Não é o volume do som;é o pre-
Terminamosofilme.Pío/6ocontinua vivo.Pausa duma história, núncio do tempo de duração,que traz ar
cujo final se desconhece.Sabemos das flores, pouco sabemos repios.A sensação de impotência. Nada vai
do destino dos homens. estancar a sinfonia obsessiva; em breve o ar será tomado pe
O pé de orquídea,na árvore em frente da janela do estúdio, los estribilhos irritantes;o ar e as ruas,o corpo,o ouvido,a mente,
nunca mais deu flor. a vida dos habitantes da ilha. A sinfonia começa com acordes
Secou e morreu, em plena primavera. delicados,em diversos pontos;a desconexão das notas dá a falsa
idéia de que tudo não passa de rufdos isolados; ruídos de ino
**** *ik «***«****414,4i^ *
fensivos insetos espalhados pela folhagem. O verde da ilha é
abundante,espesso, adocicado. Natural que atraia inúmeros e
variados espécimes.Seria natural, não fossem os espécimes,da
mesma família. São. Nesta hora.E parecem estar unidos por um
minúsculo eletrodo localizado no extremo das suas antenas
sensíveis. Que, ao primeiro sinal, aciona um movimento sin-
crônico, comandado por maestros invisíveis; a música se es
palha como ondas mansas pela areia macia;cresce e se transforma
em vagas aflitas, os prováveis náufragos que se acautelem. Não
se sabe se por instinto, ou se governadas por uma inteligência
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superior,as cigarras são duma disciplina de fazer inveja a muitos E veio pousar na Ilha que ela não sabia se chamar das Cigar
monges em anos de clausura. Com precisão e cadência, assestam ras. Pousou, peito arfante,o vôo longo,cansativo; mas os pulmões
as baterias sonoras, como poucas academias militares saberi resistiram bem à travessia dos mares; os pulmões das cigarras
am precisar. A cronometria da orquestra é impecável. Nenhu são possantes; o que as matam, já se sabe, é a compulsão do
ma falha ou intervalo ocioso; conspiração de Primeiro Mundo. canto. E Hunno,como ficou conhecida a cigarra exilada, tinha
Já é noite. Ningue'm dorme. O zumbido estridente pretende vontade férrea e determinação de propósitos. Morreria sim,um
continuar ininterrupto até de madrugada. Tortura chinesa, na dia; mas de morte natural; esquecendo-se que, entre as cigar
repetição da melodia, para os homens.Japonesa, pelo araki- ras, a morte natural era exatamente aquela da qual fugia. O fim
ri vocal, para as cigarras. Muitas amanhecerão mortas. Nas comum dos seres de sua espécie. Mas Hunno não era uma cigarra
calçadas,seus corpos expostos ao sol; cinzentos, verde-escuros, comum. Por isso a rebelião, que culminou em fuga e exílio, o
cascudos, horrendos; os corpos; carregados ou não pelas for que lhe daria direito a asilo político, se humana fosse, a figu
migas,varridos pelos empregados da limpeza pública, pelas donas ra do fugitivo. Perseguido e ameaçado de morte no seu pais,tinha
de casa, alarmadas com a quantidade. Outros continuam gru todo o direito de invocar a proteção de um pais estrangeiro. Tinha.
dados nas árvores; o pulmão seco, patas secas, asas encolhi Só que a ilha em que pousou, inadvertidamente, não perten
das. Alguns abraçados ou agarrados às costas dos outros. Mon ei^am cia a nenhum pais democrático, que respeita os direitos humanos,
copulando. Orgasmo mortal, o das cigarras. Extinguem-se du- muito menos o direito de cigarras rebeldes, que têm a ousadia
ran-te,o que quer que estejam fazendo;o importante é não parar de ir contra a tradição secular dos Cicadídeos. A Ilha das Cigarras
de exercitar as membranas musicais. À estranha compulsão,nada pertencia às cigarras. Essa legião indesejável que infestava a ilha,
se interpõe. A forma de morrer parece obedecer a um pathos anualmente; uma legião com poderes ilimitados. Os humanos
inevitável.Já nascem sabendo como vão terminar. Os machos, viviam sob o seu jugo. Um jugo passageiro, como a vida das
especialmente, que trazem, de nascença, uma bolsa musical no cigarras. No verão, apenas, é verdade, mas de domínio abso
baixo ventre. Aceitam o destino trágico e a eles se entregam com luto. O pesadelo daquele som esganiçado, constantemente a
a volúpia de heróis gregos. Nem todos. Ouvi dizer que,num certo ferir os ouvidos dos moradores, seria capaz de desafiar a pa
pomar italiano, várias cigarras se recusaram a entrar na sinfo ciência milenar dos monges do Tibete.E Hunno chegou,exausto,
nia; fizeram greve de voz, protestaram. Foram cercadas e gol desnorteado, em pleno verão; e pousou, aliviado, na Ilha que
peadas na garganta por um esquadrão de machos enfurecidos; não sabia ser das Cigarras. Era.
minutos depois os assassinos, lambendo as patas, se juntaram
à maioria e foram morrer de tanto cantar. Conforme o costu E a patrulha ideológica, que viceja
me herdado dos ancestrais ou a sina atávica, sem qualquer ex às claras ou às sombras
planação lógica. também nas sociedades
Uma única cigarra escapou ao massacre da Ilha de Capri. animais
ou a cantar até morrer,como qualquer cigarra comum.Mas Hunno
vegetais não era uma cigarra comum.Considerava ignóbil procurar um
Farejaria a pista fim que não desejava. Não acreditava em destino cego e se
E em breve marcharia à sua procura. recusava a participar dum ritual que via claramente como suiadio
em massa,semelhante à tragédia liderada porJohn Jones, nas
Uma cigarra viajada, com idéias revolucionárias, poderia Guianas. Não acreditava, não estava disposto, e não executa
representar uma grave ameaça à Ordem e à Moral daquela ria a performance exigida por uma lei absurda. Fosse ela da
comunidade. Desconheciam o treinamento de Hunno, mas Natureza, de Deus, ou dos Homens. Falou grosso, batendo as
presumiam que deveria ter tido mentores excepcionais de calibre patinhas na areia molhada pela baba de seus algozes. Decidi
internacional. Sabe-se lá de que táticas dispunha o subversi- ram executá-lo ali mesmo, na praia, em plena manhã de sol.
vóíTinha de ser eliminado antes que se infiltrasse entre as pacatas O despudor dos tiranos.Também não havia testemunhas...Moscas,
cigarras locais e as incitasse à desobediência. Morrer cantan mosquitos, caranguejos vadios não contavam. Nem percebe
doénossolema,glória e tradição!, bradaram os zelosos guardiões. ram que, do alto das dunas, um pintor solitário acompanhava
E o Maestro(ou qual fosse o codinome do Ifder dos Cicadídeos), a cena; em rápidos movimentos, traços firmes, passou para a
ordenou a caçada e extermínio do vil traidor. Tarde demais. O tela o instante da execução.Tendo perpetuado o tempo e a ação
ISRUCC (Inteligência Secreta do Reino Unido das Cigarras na obra, desmontou o cavalete, enfiou tintas e pincéis na sa
Conservadoras) informou que em 48 horas o mal havia se cola de couro, saiu apressado. Carregando o quadro como se
alastrado, muitas cigarras mostravam sinais inequívocos de fosse um estandarte sagrado,atravessou a ilha,solene.Enquanto
contágio. Diante do quadro alarmante, decidiram mudar o isso os carrascos lançavam à maré alta o corpo daquele que eles
esquema da Operação Caçada. A ordem inicial foi revogada, não desejavam fosse mártir. A seguir, partiram em marcha lenta,
por unanimidade.
zumbindo em coro:- Que os tubarões devorem o proscri-
to\ Que os tubarões devorem, o proscritol — Não devoraram.
E a falange alada partiu com a missão
de trazer Hunno - VIVO! A maré baixou, o corpo de Hunno reapareceu,
todo prateado,
Politicamente, o assassinato não seria a melhor solução. e foi visto por todas as cigarras da Ilha.
Segundo os informantes, a notícia de sua chegada e da atua Muitas guardaram silêncio naquela noite.
ção no levante de Capri já havia se espalhado pela Ilha intei
ra;formavam-se comitês de apoio,assembléias populares,crescia «' -»
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Fazia algumas caricaturas dele, depois ria, amassava, jogava- força o filho de dois anos; outra se encolheu mais para o canto
as no lixo. A catarse funcionava. Passava o dia inteiro de bom do banco, olhando de soslaio. Calma,calma,falou uma freira
humor. Não se deixava influenciar por energias negativas. Nem cinzenta - olhar manso, nem um pouco parecido com o da
no ambiente do trabalho, nem fora dele. Depois que se livra mulher de vermelho do metrô-calma, minha filha, você está
ra das experiências do metrô,a vida tinha outro sabor. Não mais nervosa, sem razão. Pense na fase boa que está atravessan
de mangas roubadas.De favos de mel,isso sim. O mel de abelhas do,no escritório, na sua vida amorosa,não há porque se exasperar.
laboriosas de Friburgo. Entre rios de leite e prados de capim- Ah,então você sabe?Sabe o que estou passando?Sei,respondeu
gordura,adocicados e cheirando a volúpia e cio. Cora Mara ficou a freira, porque pertenço à mesma legião. Que legião? Ah,aqui
madura, por dentro. Exalando um perfume moreno de fêmea não é um lugar bom pra conversar. Toma o meu cartão, me
disponível. E passou a atrair admiradores, aos borbotões, a telefona. Certo, respondeu Cora Mara, atarantada, enquanto
humana-abelha-rainha. Que era tudo, menos uma pessoa ator a freira ia abrindo caminho no ônibus superlotado. Desapa
mentada. Gozava. receu. Deixando em sua mão uma placa metálica, cor de
chumbo, nenhum nome ou número,somente uns sinais in
Mas como tudo é provisório
decifráveis, feito hieróglifos. Uma freira pirada! Vejam só!-
no paraíso terrestre
esbravejou Cora Mara, mostrando o cartão aos passageiros,
desvaneceu-se o clima
como comprovante. Ninguém se mexeu ou disse uma palavra.
de veludo e plumas
Continuavam sob o impacto da agressividade gratuita con
de Cora Mara
tra o rapaz louro. Que a essa altura já havia saltado, sem
A paz da fase-ònibus se esvaiu como que por encanto. Em ninguém perceber. Cora Mara, a partir desse dia, desistiu de
plena quarta-feira, a realidade se plantou diante dela, crua de andar de ônibus. Deixara de ser seguro,o meio de transporte.
metáforas. O rapaz louro,sentado ao seu lado,lendo um jornal, Melhor seria ir a pé para o escritório. E foi o que fez. Durante
absorto. Na aparência.Sua mente fervilhava de ódio pelo amigo três meses. Ou mais. Não se sabe ao certo. Sabe-se que as
que o traíra covardemente. Enquanto ele estava viajando, o caminhadas lhe foram muito benéficas. Chegara até a per
amigo começou a dar em cima de sua namorada Jandira, até der alguns quilos, tinha mais disposição, melhor apetite, mais
que conseguiu levá-la para a cama,em seu próprio apartamento. alegria. Os colegas estranhavam, nunca a tinham visto tão
Ah, mas isso não ia ficar assim. Planejava se vingar, compraria bem disposta. Alguns a flagraram cantando baixinho, asso-
um revólver e... Eu não quero saber de nada, vá para o inferno, viando,sorrindo para si mesma.Cora Mara era toda serenidade;
me deixe em paz, gritou Cora Mara, levantando-se de supe- como as criaturas que encontram neste mundo aquela paz
tão. O rapaz empalideceu, as pessoas em volta se encolheram, interior profunda, digna de santos e gurus e profetas antigos
uma velha de teminho cinza,chapéu de flores silvestres,segurou ou modernos. Alguns até falsos, mas vá lá, a Fé não remo
firme sua bengala, cabo de marfim; uma senhora abraçou com ve montanhas?
132 133
Mas um belo dia, a montanha leitura. Socoorro! Socoorro! Muitas vezes saia correndo pelas
que não era de Maomé ruas, gritando esbaforida,fugindo de algo que os transeuntes
desmoronou. não viam. Deve ser louca, coitadinha. O que será que acon
Sem aviso, intuição, arrepios. teceu? Tão jovem...
Ninguém soube quando,exatamente,o fenômeno passou a
Cora Mara, na hora do almoço, depois de ter comprado um ser chamado de sintomas-sinalizcidores-de-estresse-agudo.l^uáo
sanduíche de pernil com abacaxi, foi se sentar no Passeio Pú indica que foi quando Cora Mara resolveu consultar um psica
blico, entre pombos e árvores frondosas. Gostava da sombra nalista. Cabelos brancos, ar paternal. Que a escutou sem inter
das árvores. Quando roubava as mangas, não saía correndo, romper,anotando,anotando,os mínimos detalhes. No primeiro
como é de se esperar de qualquer gatuno. Não.Ficava um pou dia da consulta, ele a aconselhou a tirar umas férias, nada de
quinho debaixo da mangueira,só pra sentir a companhia fresca trabalho, hora marcada,compromissos; devia se empenhar em
e macia da sombra. Como uma capa de delicada seda a cair fazer tudo o que sempre gostara de fazer,sem pensar em mais
sobre seu corpinho magro. Mais suave do que seu lençol de nada. O que a menina gostava de fazer? Ir à praia? Fosse a praia.
cambraia rosa. Suspirou de contente. Sentou-se num banco Dançar? Comer bem?Trepar? Fizesse. O que mais lhe apetecesse.
de pedra,tirou do saco de papel marrom o sanduíche de pemil. E se o fenômeno voltar, doutor? Gostava de usar essa palavra.
Quentinho e cheiroso. Ai que fome!Mal dera a primeira dentada, Fenômeno tinha algo a ver assim com a terminologia de ficção
aparece um mendigo, branco, esquelético, o olhar em fogo, científica. Colecionava uma porrada de artigos, livros e revis
parado em pé,à sua frente. Cora Mara /eque ele fora um homem tas sobre. UFO - era um dos assuntos de sua predileção. Ah,
rico,malvado e injusto com seus empregados,que tinha perdido e?, perguntou o psicanalista, entusiasmado. Eu também gosto
a fortuna quando se apaixonou por uma francesa vigarista. muito desse tipo de literatura. Que literatura, doutor? Essa que
A mulher raspara seu último tostão, depois fugiu para a França a menina acabou de mencionar. Eu não mencionei, porra ne
com um garotão, mas... Cora Mara não quer saber do resto nhuma,doutor,só pensei. Ah, não? De repente também estou
da história, levanta-se, sai correndo, o sanduíche se espa lendo pensamentos, como a menina. Ah, Ah, Ah. É, deve ser,
tifa no chão, o mendigo apanha-o e começa a devorá-lo, en respondeu Cora Mara,sem rir, apanhando a bolsa e o guarda
quanto grita: Não adianta fugir, moça,já estás sob o controle chuva azul-marinho, cabo de madrepérola, comprado num
da Galáxia Espiral.E solta um risinho estridente, que mais parece brechó do Lido. Adorava comprar objetos antigos. Fascinação
chiado de cutia no cio. E aponta para o céu,o indicador des mesmo.Quase orgasmo ao tocá-los. Acreditava que tinham alma
carnado, como um graveto ressequido das caatingas. A par e carregavam energias de seus donos anteriores. Incorporava-
tir desse dia. Cora Mara não conseguiu mais caminhar em paz. os à sua vida, com cuidado e respeito. Sabia-se lá dos amores,
Topava a todo o momento com algum desconhecido,com uma humores,terrores passados? Não se esqueça da nossa próxima
multidão de desconhecidos, todos com a mente aberta para sessão, na semana que vem, quarta-feira, dia 17 — gritou o
134 135
psicanalista. Cora Mara já não o ouviu. E se ouviu não registrou
a fala; não tinha a intenção de comparecer, anyway. Fechan
do a porta com um estrondo, pensava: aqui não ponho mais os o táxi azul
Acabou ou começou
uma grande aventura
humana
No hospital, recebi uma visita inesperada
no Cosmo?
(depois vocês vão ver que não era tão ines-
perada assim). Um cachorro nos braços da
SI assistente social. Você gosta de cachorros?,
♦
o •n*oo^ perguntou-me a mulherzinha, baixa, branca,
olhos castanhos por trás dos óculos de grau,
aros de tartaruga. Sorriso complacente. Olhei pro cachorro que
ITL o me pareceu um pouco nervoso, à espera de minha resposta. Disse
□ © t:> ♦ que sim, correndo. Afligi-lo não queria. Tenho um cachorro,
sei o quanto são sensíveis. Eu também estava muito sensível,
er 53 física e psicologicamente. Tinha acabado de sair duma operação
séria, havia apenas três dias. Não posso dizer que não me alegrei
□ ao ver o animal, mas, lembrando-me do meu querido Zig,
perguntei esperançosa: Então é permitido trazer cachorro para
Verão 2000 - New York o Hospital?, a pergunta já me trazendo euforia antecipada. A
assistente social aumentou a complacência do sorriso. Claro que
não, este aqui, o Duque, é um funcionário da casa, treinado,
muito obediente. A função dele é minimizar a aflição dos pa
cientes. Nós o levamos de quarto em quarto para uma visitinha
de cinco minutos. Que tal? Olhei pra ela, olhei pro cachorro,
olhei pros olhos do cachorro. Neles divisei uma pontinha de
satisfação. Parecia reconhecer e agradecer as palavras de apre-
139
sentação. Mas será que era feliz numa função que não escolhera? de extrema fragilidade. Sabem como? Não? Então me acom
Ah,se os cães falassem. O que não diriam, por exemplo,aqueles panhem na experiência. Quase hilária, não fosse a gravida
que guiam cegos, puxam trenós,fazem acrobacias nos circos? de do momento.
E Duque? Que não fazia outra coisa senão visitar doentes dia Minutos antes de entrar na sala de operação me apareceu uma
e noite? Toquei o pêlo dele, fiz um cafuné na sua cabeça, ten mulher gorda, morena, uniforme impecável, no bolso o nome
tei falar alguma coisa agradável, tipo: que bonitinho que ele é, bordado Rossi. Armada de um bloco, três canetas(se falhasse
parece ser muito inteligente... A mulherzinha aprovou,tremendo uma,teria outra,e outra), a mulherona me encarou com aquela
de gozo íhtimo. pose de dona da verdade e disparou: Se necessitar dum con
Pois foi ali, exatamente ali, entre o olhar do cachorro e o solo espiritual, você quer um pastor, um rabino, ou um padre?
olhar daquela que o carregava, que me brotou um pensamento Olhei pra ela e, com toda força e lucidez que ainda me resta
brusco.Um pensamento desagregador de qualquer boa intenção. va,respondi. Nenhum deles.Então o que você quer? Quero viver.
Mas eu não amo esse cachorro. Ele não é o meu Zig. Pra me Foi a minha resposta, voz fraca de quem está já sentindo os
confortar pra valer, só o meu Zig. Como fazer de conta que primeiros efeitos da anestesia. Ora vai pentear macaco, ave
a substituição me embevecia? Nem a pau. Como transferir em agourenta, pensei,não disse. Nem podia.Apaguei.Só fui acordar
cinco minutos toda minha afeição para aquele nobre desco na Sala de Recuperação, ofegante, pedindo ar, preciso de ar,
nhecido? Usado pra distrair os pacientes? Ele não tinha cul preciso de ar. Os enfermeiros me colocaram uma máscara de
pa,claro.De quantas veleidades são capazes os seres humanos. oxigênio, respirei. Mas ainda assim me sentia mal, muito mal.
Se bem que, no caso, não era o caso. Via-se que ele se sen Lembrei-me das perguntas da tal Rossi e tratei de usar todas as
tia confortável no seu papel de bondade encomendada. Vá lá. armas ao meu alcance pra sair daquela situação. Rezei, cantei
Mas como eu disse, transferir de repente toda minha afeição baixinho, implorei a proteção de meus guias espirituais. Fui
para aquele cachorrão malhado, orelhudo, comportado de recobrando a consciência aos poucos e lá vinha a voz da
mais, não tinha cabimento. Impossível fabricar um amor às mulherona assombrando: Quer um pastor, um padre ou um
pressas pra me entrosar com Duque. Mas senti um certo ca rabino? Quero ninguém. Quero viver! Repetia pra mim mesma,
lor quando coloquei as mãos no dorso peludo do cão missi com a teimosia dos desenganados. Quero viver!
onário. E fiquei pensando. Melhor me entender, de uma forma Finalmente me levaram pro meu quarto. Meu marido e al
ou de outra, com o Duque do que ter de me entender com as guns amigos estavam lá me esperando,fiquei contente ao vê-
criaturas que, antes dele, chegaram a me oferecer,sem cons los, não estava mais sozinha,à mercê do agouro da grandalhona.
trangimento. Que criaturas? Do que você está falando? Explico. Isso não é agouro Tereza, alguém me disse, é apenas uma
Falo de certas personagens que a direção, penso eu,de qualquer formalidade que eles têm de cumprir.Para mim,continua sendo
hospital tem à disposição dos enfermos. Criaturas essas que agouro do mesmo jeito. Seja como for, estava livre da pergun
nos são apresentadas duma tacada,sem pudor, num momento ta funesta, safda da imensa boca,lábios grossos, me oferecendo
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opções para um final que eu não desejava. Imagine! Disso eu respondi,apontei pra minha boca,indicando que não podia falar.
estava livre. Pois sim! Quem disse que ele desistiu? Mais que depressa,sacou do bolso
Dois dias depois, quem me aparece? Um rabino solicito, do paletó um bloquinho e uma caneta, poderíamos conversar
querendo prosear comigo. Não acreditei. Estava muito fraca, por escrito,certo? Não,não estava certo, mas aceitei a parafernália
física e emocionalmente, o braço roxo de picadas de injeções, que ele me entregou,expressão vitoriosa, crente que tinha vencido
uma agulha enfiada na veia, o soro pingando, pingando, um as dificuldades. Vendo que ele não sairia dali tão cedo, escre
aparelho no nariz, me sentia impotente. O rabino, todo à vontade, vi: sou judia. Ele leu, ensaiou um sorrisinho um pouco mais largo,
já foi puxando uma cadeira pra perto da cama e, antes de se sentar, não conseguiu,arrancou-me das mãos bloco e caneta,agradeceu,
ainda bem,fez a primeira pergunta. Primeira e última. A senhora me desejou uma boa noite e saiu do meu quarto, rápido. A sua
é judia, certo? Perguntou, sorrindo, confiante numa resposta visita não surtira nenhum efeito, certamente ia pensando,frustrado,
afirmativa que o meu sobrenome antecipava. Não,não sou judia. contando os passos corredor afora.
Sou católica, respondi,firme. Nada contra os judeus(meu marido Puro engano. Surtiu sim, um efeito corrosivo. Comecei a
é judeu), mas eu sabia que, com uma resposta, naquele tom, duvidar de minha médica, estaria ocultando a verdade so pra
estaria encerrando um papo que eu não desejava, tivesse co me poupar nas primeiras horas cruciais do pós-operatório? Meu
meço. E encerrou mesmo. O rabino botou a cadeira no lugar, Deus,e se a minha vez se aproximava e eu ali, prostrada,sendo
me desejou boa sorte e foi saindo de fininho. Respirei fundo. assediada pelos mensageiros do além,dispostos a ganhar minha
Livre? Que nada. O assédio mal começara. Em poucos minu alma de qualquer forma? Porra! Que merda! E por afconünu-
tos,outro visitante. Um pastor,todo sorridente, me perguntando aria o desabafo, que minha mãe chamaria de blasfêmias imper
se não queria conversar um pouco sobre a vida eterna, sem doáveis. Continuaria nada. Meu pensamento teve um corte súbito.
pre alivia as dores, minha filha. Alivia coisa nenhuma. O que Lindo como um deus-menino,um querubim barroco ou um
me aliviava naquele momento era a morfina pingando, pingando arcanjo anundador,quem entra no quarto? Nada mais nada menos
no meu sangue. Não que eu duvidasse que uma conversa do do que um sacerdote superjovem,a camisa branquinha de goma,
nível que o pastor me propunha fosse de todo desperdiçada, ainda cheirando a noviciado. Entra e vai logo me oferecendo
numa outra ocasião. Porém, naquelas circunstâncias, ela me um papei com uma oração,vamos rezar juntos o Pai Nosso, minha
soava como uma preparação pra morte. E disso eu não queria filha. Nem encostei a mão esquerda(a única que podia mover)
tratar. Minha médica já havia me assegurado que a operação tinha no tal papel. Em resposta, encarando-o de frente, disse, cate
sido um sucesso, que eu não deveria temer nada, que a partir górica: sou protestante. Desculpando-se, a figura angelical
dali eu começaria a me recuperar. E agora vinha o pastor,sorriso recolheu o papelito,saiu do quarto rápido como um coelho em
delicado, nem se via os dentes, a Bíblia negra que te quero negra fuga.Tão veloz que cheguei a duvidar se ele realmente estivera
nas mãos magras, querendo me introduzir num conceito reli ali em carne e osso. Ou se tinha sido uma alucinação, daque
gioso a todo custo? E então, minha filha, vamos conversar? Não las que a gente tem quando ainda está sob o efeito da aneste-
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J
Tereza Albues, escritora mato-
grossense, graduada pela UFIU em
sia. Não sei. Só sei que, depois dessa, a peregrinação dos que Direito, Letras e Jornalismo, tem
quatro romances publicados no
tinham a chave do ceu terminou. Dormi sossegada. Daíem diante Brasil: Pedra Canga (Philobiblion:
foi só recuperação, conforme a minha me'dica afirmara. Esta Rio de Janeiro, 1987), Chapada da
Palma Roxa (Atheneu: Rio de Ja
va salva.
neiro, 1991), A Travessia dos Sem
E o Duque? O que aconteceu com ele? Não se preocupem, pre Vivos (Cuiabá: EdUFMT, 1993),
O Berro do Cordeiro em Nova York
não vou abandoná-lo, afinal ele foi o começo de toda esta via-
(Rio de Janeiro: Civilização Brasi
sacra hospitalar. Pois e', o Duque.Como disse, não é que eu não leira, 1995), sendo os três últimos
lançados na Bienal Internacio
tenha gostado dele. É que ele não era o meu Zig. Como demonsti^ar nal do Livro, no Rio de Janeiro.
um afeto que não possuía? E, mesmo se o fizesse. Duque per Tem ainda contos publicados na
ceberia minha falsidade, no ato. Os cães têm uma percepção antologia Na Margem Esquerda do
Rio: Contos de Fim de Século (São
assustadora, quem não sabe disso? Duque pressentiria o meu Paulo: Via Lettera, 2002). Na Fran
íntimo. Daíque nos despedimos meio sem-graça. Os dois, um ça, publicou o romance A Dança
do Jaguar(Paris: Editions OOhOO,
olhando pro outro com cara de desamparado. Nunca mais o vi, 2001), lançado no Salão do Livro.
nem pretendo, não por ingratidão, mas por temor. Pra ver Duque O romance Pedra Canga, traduzi
do para o inglês por Clifford E.
de novo, só numa cama de hospital e isso não está nos meus Landers, foi publicado pela Green
planos. Nem nos planos de ninguém. Interger, Press (EUA, 2001). Em
1999, recebeu Menção Honrosa
no Concurso de Contos Guimarães
Rosa, promovido pala "adio Franco
InternatiOTialo,doParis,como
nome ■Bupué
conto consta node livro
Línguas. Seu da
Hrstona
Literatura de KBto6tosso -Sec.
XX de Hilda Magalhaes (Umcen
publicações, 2001);
pédia de Literatura Bras,terra
direção de Afrânio Coutinho e J.
StedeSoutaíRiodeãane,^
FBN/PNL/Academia Brasil
de Letras, 2001); e no Draorra
Critico de p^nio;
rorb™r2o'osem-vor",
onde residia, deixando vanos
trabalhos inéditos.
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