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Dor (2007) 15

Dor Total vs Sofrimento: a Interface


com os Cuidados Paliativos
Paula Sapeta

Resumo
O artigo parte do conceito de dor para a análise das diferentes componentes do sofrimento. Recorre ao conceito
de dor total de Cicely Saunders e à visão antropológica e holística de Robert Twycross. Na interface com os
cuidados paliativos, apoia-se nos pilares desta filosofia para explicar o trabalho interdisciplinar e a acção
do enfermeiro junto do doente com dor, designadamente na avaliação diagnóstica e no alívio do sofrimento.

Palavras-chave: Dor. Sofrimento. Cuidados Paliativos. Enfermagem.

Abstract
Starting with the concept of pain and based on the «total pain» concept from Cecily Saunders and the an-
thropological and holistic vision of Robert Twycross, the different components of suffering are analysed.
In the interface with palliative care, the pillars of this philosophy are used to explain the interdisciplinary
work and the nurse’s action towards the patient with pain, namely in the diagnostic evaluation and in the
relief of the suffering. (DOR 2007;15(1):16-21)
Corresponding author: Paula Sapeta, paulasapeta@ess.ipcb.pt

Key words: Pain. Suffering. Palliative care. Nursing.

Introdução conhecimento). O outro é de ordem afectivo-


emocional (algotimia, como algo da alma, da
A dor é considerada como uma resposta neu-
vida), apresenta um carácter desagradável e
rofisiológica muito complexa, que se diferencia
tem também um substrato morfofuncional espe-
notavelmente de qualquer outra experiência
cífico no SNC, determinando uma alteração de
sensorial. Entende-se como a percepção da no-
comportamento que conduz a uma série de mo-
cicepção e esta define-se como a actividade
dificações motoras, posturais ou de hábitos,
produzida no sistema nervoso por efeito de es-
orientados para deter ou diminuir a dor, tão rá-
tímulos que, real ou potencialmente, lesionam os
pido quanto possível e de qualquer modo. Em
tecidos. Na experiência ou vivência dolorosa
determinadas circunstâncias dá lugar a reac-
constam dois componentes (Fig. 1).
ções depressivas, de ansiedade, medo e isola-
Um é sensorial propriamente dito e é através
mento (Gonzalez Barón M, 1996; Bayés R, 2001;
dele que se detectam as características do es-
Gonzalez Barón M e Ordóñez Gallego A, 2003).
tímulo nociceptivo e que permitem precisar a
Pelo facto da dor ser uma experiência única,
sua localização, intensidade, modificação tem-
uma sensação íntima e pessoal, é impossível
poral, etc. É o elemento objectivo básico da
conhecer com exactidão a dor do outro. Apesar
sensação dolorosa (algognosia, como algo do
dos grandes avanços técnicos e científicos ve-
rificados, nos últimos anos, e de dispormos de
armas terapêuticas quase definitivamente efica-
zes, a dor oncológica continua, em muitos ca-
Professora Coordenadora
sos, a não merecer a atenção devida.
Escola Superior de Saúde Dr. Lopes Dias
Castelo Branco, Portugal
Especialista em Enfermagem Médico-Cirúrgica Dor total
Mestre em Sociologia
Pós-graduada em Cuidados Paliativos
Foi Cicely Saunders a primeira pessoa que falou
DOR

Doutoranda em Enfermagem de dor total, para descrever todos os aspectos e


Portugal matizes que rodeiam o doente com dor, sobre-
16 E-mail: paulasapeta@ess.ipcb.pt tudo os que apresentavam doença oncológica
P. Sapeta: Dor Total vs Sofrimento: a Interface com os Cuidados Paliativos

Barón M e Ordoñez Gallego A, 2003; Catalã L e


Componentes Aliaga L, 2003) (Fig. 2).
A dor resulta de uma complexa e dinâmica
interacção de sensações, cognições, condutas
Objectivo Subjectivo e emoções. São vários os factores que modulam
a intensidade da percepção dolorosa:
Nocicepção Factores: – Aumentam o limiar de dor: o sono, repouso,
Dor Sofrimento – Psicológicos simpatia, compreensão, solidariedade, redu-
– Sociais
Mecanismos – Espirituais ção da ansiedade e actividades de distrac-
neuropáticos ção; ao potenciar estes factores estamos a
Ameaça: diminuir a dor (p.e. um jogo de futebol, um
– Tempo
filme, um álbum de fotografias, a narrativa
de vida, a música ou a visita de um bom
Componente sensitivo Componente amigo ou familiar podem fazer «esquecer»
afectivo-emocional
a dor).
Algognosia Algotimia – Diminuem o seu limiar: insónia, cansaço,
(algo do conhecimento) (algo da alma, da vida) ansiedade, medo, tristeza, raiva, depres-
são, isolamento, introversão ou abandono
Figura 1. Componentes da dor (adapt. de Gonzalez
social; qualquer doente que se encontre
Barón S. Emoción y dolor: bases neurofisiológicas. em alguma(s) destas circunstâncias expres-
Em: Gonzalez Barón M, Ordoñez Gallego A. Dolor y sa «mais» dor (intensidade, duração) e maior
cancér-hacia una oncologia sin dolor. Ed dificuldade no alívio, mesmo com analgési-
Panamericana; 2003). cos potentes e em doses elevadas.
Robert Twycross explica o conceito dor total
relacionando-o com a trajectória de doença,
com os efeitos colaterais do tratamento, de pa-
incurável. Na sua prática e no acompanhamento tologias concomitantes, como a fonte somática
desses doentes constatou que os tratamentos da dor, mas avança, de igual modo, para uma
para aliviar a dor crónica eram insuficientes. Fez visão antropológica e holística, relacionada com
pesquisas sobre a administração oral de morfina, uma rede de factores psicoemocionais, sociais
reafirmando que a dor não é apenas física mas e culturais que prenunciam a sua complexidade,
interactua com as dimensões psicológica, fami- tais como:
liar, social e espiritual da pessoa. Acentuou que – A atitude paternalista e de desinformação,
é necessário cuidar a dor, entendendo a pessoa que lhe aumentam a incerteza e angústia,
como um ser global (Bounon L, 1999*; Gonzalez o possível isolamento afectivo determinado

Dor emocional
– Isolamento
– Solidão
– Medo, temor
– Ansiedade depressão

Dor social Dor espiritual


– Crise nos laços familiares – Sentimento de vazio
– Tensão ou ruptura Dor – Culpa
– Problemas financeiros total – Arrependimento
– Problemas profissionais – Incapacidade de comunicar
– Filhos !!! e receber ajuda a este nível

– Obstrução Dor física – Obstipação


– Derrames – Da doença 65% – Náuseas
– Imobilidade – Do tratamento 5% – Vómitos
• Esquelética – Debilidade geral – Insónias
• Muscular – Outros problemas 5% – Anorexia
– Hipercalcemia – Outras doenças – Diarreia
– Desidratação – Flebites
– Desequilíbrios iónicos

Figura 2. Dor total, segundo Cicely Saunders.


DOR

http://perso.wanadoo.fr/usp-lamirandiere/historique_Ib.htm 17
Dor (2007) 15

pela «ausência» de amigos e familiares, a A interface com os cuidados paliativos


desumanização dos cuidados, a ineficácia
A interface entre dor e sofrimento é inegável,
e burocratização dos serviços, e o entendi-
e sendo o alívio e prevenção do sofrimento o
mento da dor como um mero problema téc-
principal objectivo dos cuidados paliativos, tor-
nico, acabando por resultar em diferentes
na-se indiscutível o papel deste tipo de cuida-
níveis de ira e revolta.
dos no tratamento de doentes com doença gra-
– As diferentes e sucessivas perdas, de pa-
ve e/ou incurável, avançada e progressiva. A
péis sociais e familiares, de prestígio, de
concepção curativa e a concepção paliativa não
controle sobre si, sobre o seu corpo e sobre
são mutuamente exclusivas, pelo contrário, têm
a sua vida, em geral, como uma ameaça
de ser duas concepções complementares e de-
real à integridade da pessoa;
vem constituir duas atitudes assistenciais sincró-
– Os medos e incertezas da condição em que
nicas (Doyle D, et al., 1998; Gomez Sancho M,
vive, de intranquilidade face ao futuro, de
1999). Toda a prática clínica está impregnada
desesperança e de sofrimento espiritual,
de uma secular ideia expressa no século XVI de
que no seu conjunto são geradores de va-
«curar às vezes, aliviar frequentemente, cuidar
riável grau de ansiedade e depressão.
sempre». Os cuidados paliativos, de acordo
A vivência de dor tem grande influência na
com a OMS, são «uma abordagem que visa
qualidade de vida, interferindo ao nível do funcio-
melhorar a qualidade de vida dos doentes com
namento físico, psicológico e social, é por muitos
doenças que colocam a vida em risco, e suas
mais temida que a própria doença ou morte.
famílias, através da prevenção e alívio do sofri-
mento, com recurso à identificação precoce e
Dor vs sofrimento tratamento rigoroso dos problemas não só físi-
cos, como a dor, mas também dos psicossociais
A dor e sofrimento não são sinónimos (Bayés
e espirituais» (WHO, 2002; DGS, 2004). Sabe-
R, 2001). O sofrimento é a vivência da dor em
mos que muitos doentes com dor vêem o seu
cada pessoa, constitui um fenómeno mais am-
sofrimento agravado pela progressão da doen-
plo, definido por Cassell EJ como «um estado
ça, pela presença de outros sintomas e por um
de mal-estar induzido pela ameaça da perda de
certo «abandono» enquanto pessoa, levando-os,
integridade ou desintegração da pessoa, inde-
por vezes, a retirar-se de si próprios e a desistir
pendentemente da sua causa» (Cassell EJ,
de viver (Fig. 3).
1982; Bayés R, 2001). Abarca mais dimensões
A complexidade do sofrimento, resultante de
e tem muitas causas potenciais, das quais a dor
factores físicos, psicossociais e existenciais obri-
é só uma delas. A quebra total de recursos físi-
gam a uma abordagem interdisciplinar, no âmbi-
cos, psicológicos e sociais determina-lhe uma
to dos cuidados de saúde. Tendo como referên-
situação indefesa, de solidão afectiva e de de-
cia os pilares centrais desta filosofia, a abordagem
bilidade, em que o doente sente que os aconte-
e o tratamento do doente com sofrimento intenso
cimentos estão/são incontroláveis.
devem ser implementados mediante o trabalho
De um outro ponto de vista, é de assinalar que
interdisciplinar (médico, enfermeiro, psicólogo,
existe uma certa similitude entre sofrimento e de-
fisioterapeuta, assistente social, capelão, voluntá-
pressão e, em alguns casos, pode até confundir-
rios, etc.), em que todos se centram na mesma
se com ela, mas é também um conceito mais
missão e objectivos, traçados de modo persona-
vasto que esta última. O sofrimento não tem ne-
lizado para cada doente; cuidam da sua família
cessariamente de coincidir com um estado psico-
e, em simultâneo, envolvem-na no processo de
patológico, associado a culpabilização ou baixa
cuidar, pois como contexto social de referência e
auto-estima (Bayés R, 2001; Doyle D, 2004; Neto
de significado para o doente, tem uma função
IG, 2006). O sofrimento é mais dependente que a
crucial, quer no diagnóstico, quer no tratamento,
depressão da consciência de futuro (Bayés R,
2001) e David Morris sugere de modo pragmático
que a melhor forma de os distinguir é que a de-
pressão responde à medicação antidepressiva e
o sofrimento não (Morris D, 1998). Os antidepres-
sivos podem ajudar a minimizar o sofrimento se Dor total Interface Sofrimento
tiver uma depressão associada, mas só por si não
acabam com o sofrimento. Com efeito, o sofrimen-
to decorrente da dor, particularmente na situação Cuidados
de dor crónica associada a doença incurável e paliativos
progressiva, pode ser devastador se o doente não
for ajudado, pela família e amigos e pelos profis-
sionais de saúde, a mobilizar os seus recursos Trabalho Apoio à
internos para o enfrentar, a modificar os seus va- de equipa Comunicação Controle de sintomas família
DOR

lores pessoais, procurando aceitá-lo, adaptando-


se e (re)encontrando um sentido para a doença, Figura 3. Interface com os cuidados paliativos.
18 para o sofrimento e para a sua vida.
P. Sapeta: Dor Total vs Sofrimento: a Interface com os Cuidados Paliativos

Quadro 1. História de dor

Características da dor (PQRST)

P: factores que Q: qualidade da dor, R: região ou local S: severidade da T: tempo de duração


precipitam e/ou valorizando os doloroso aponta para intensidade, indica se indica se a dor é
aliviam adjectivos que o órgão ou tecidos é ligeira, moderada aguda, subaguda ou
(medicamentos, doente usa para a doentes, envolvidos ou severa (EVA, crónica; o padrão de
posicionamento, caracterizar, o que no processo verbal, numérica) dor e a cronologia
calor, frio, ou outros) pode permitir doloroso, localmente
distinguir uma dor ou à distância
somática de uma dor (diagrama corporal)
neuropática
Outras características: estado de consciência e/ou cognitivo (Mini-Mental Scale), indicadores fisiológicos e
comportamentais de dor, outros sintomas presentes, efeitos colaterais do tratamento, patologias concomitantes (Brief
Pain Inventory; Avaliação de Sintomas de Edmonton – ESAS)
Dimensão familiar e social
Caracterização da Caracterizar a Grupo social de Situação profissional Avaliar situação
família nuclear e relação com o pertença, cultura, e económica socioeconómica,
extensa ou alargada potencial cuidador crenças, religião, etc. (estatuto e papeis qualidade
(genograma familiar) (estimar força do relacionados, habitacional,
vínculo afectivo) situações não acessibilidade aos
resolvidas, eventuais serviços de saúde
perdas)
Dimensão psicoemocional
Presença de ansiedade, depressão, angústia, raiva, cólera, frustração relacionadas com:
– Significado atribuído à dor (de castigo, culpa, medo da proximidade da morte).
– Perdas (perda de controle sobre si, posição social, trabalho, prestigio, rendimento, dos papéis familiares, forças e de
privacidade, sensação de desamparo, alteração da imagem corporal, etc.).
– Medos: medo do hospital, da dor, da morte, preocupação pela família, desassossego, insegurança futura afectiva,
financeira.

como aliado e como cuidador informal, particu- cação que dê lhe oportunidades de expressar
larmente em situação de dor e sofrimento. Para livremente os seus sentimentos, medos e angús-
além da dor, a equipa deve valorizar e tratar ou- tias. Perguntar-lhe directamente «o que sabe
tros sintomas presentes e que concorrem para sobre a sua doença», «se está a sofrer e por-
agravar esse sofrimento e, transversalmente, pau- quê?», «o que mais o amedronta?», «que alte-
tar toda a sua acção num padrão de comunica- rações esta situação lhe trouxe para a sua
ção, culturalmente sensível, de informação, orien- vida?», «como lida com a situação?», «o que faz
tação, honestidade e de ajuda verdadeira, ou para se sentir melhor?» (Cassell EJ, 1999). A
seja, procurando fomentar a aliança terapêutica. mensagem para o doente, deve veicular a espe-
Os cuidados paliativos propõem-se acima de rança realista, a garantia do conforto, de saber
tudo a aliviar o sofrimento, para isso a motivação, que não está sozinho e de que toda a equipa se
a sensibilidade, a disponibilidade e a adequada mobilizou para resolver o seu problema e aliviar
formação do enfermeiro, ou de outro profissional, o seu sofrimento. A honestidade e genuinidade
resultam determinantes na qualidade do atendi- são essenciais nesta relação, que se pretende
mento e dos cuidados. terapêutica e de ajuda. A estratégia terapêutica
A primeira fase, de exploração e diagnóstico deve seguir as guidelines da OMS no controlo
da situação de dor, é muito importante. O enfer- da dor (Quadro 2), ser multimodal e estar em
meiro, dada a sua presença constante junto do conformidade com a complexidade da situação
doente, deve elaborar a história o mais comple- e vivência.
ta possível (Quadro 1), ainda que num primeiro Deve incluir as medidas farmacológicas, que
contacto não fique completa, deverá ser cons- não cabe desenvolver no âmbito deste artigo,
truída paulatinamente, procurando identificar mas que constituem apenas uma parte do tra-
todas as características da dor (que vão mais balho a desenvolver pela equipa multidisciplinar,
além do que só intensidade) e, sobretudo, esti- pois se queremos optimizar a qualidade de cui-
mar o nível de sofrimento do doente, com a fi- dados prestados, é indispensável ir mais longe
nalidade de estabelecer com a restante equipa no atendimento destes doentes, aplicando ou-
uma estratégia terapêutica apropriada. tras medidas físicas e psicossociais, para lhes
Toma particular importância conhecer em pro- aumentar o conforto, a qualidade de vida e aju-
fundidade o significado da dor para o doente, e dá-los a encontrar sentido no sofrimento e na
DOR

não obstante a subjectividade da mesma, evitar doença. Na sua célebre frase, Víktor Frankl ga-
interpretações prematuras. Nesse sentido, é rante que o Homem não se destrói por sofrer,
conveniente desenvolver um padrão de comuni- mas por sofrer sem nenhum sentido. 19
Dor (2007) 15

Quadro 2. Guidelines da OMS para alívio da dor

– Acreditar sempre nas queixas do doente.


– Avaliar antes de tratar: estabelecer uma causa clara; conhecer as experiências anteriores do doente nesta área:
colher história detalhada da dor (semiologia); proceder a um exame físico cuidadoso e a eventuais exames
complementares úteis; caracterizá-la quanto à sua intensidade, qualidade, cronologia, repercussão nas actividades
diárias e no modo de alívio.
– Avaliar o estado psicológico do doente (conhecer o peso de outras variáveis).
– Adoptar uma estratégia terapêutica mista: métodos farmacológicos e não-farmacológicos.
– Explicar de modo acessível ao doente e família a causa do sintoma e envolvê-los no plano terapêutico possível e a
propor.
– Rever... Rever... Rever: rever e avaliar periodicamente a dor, toda a actuação e a eficácia.
– Registar todas as ocorrências relativas à avaliação, medidas implementadas para analgesia, resultados e eficácia
obtida, reacções e dúvidas do doente e família.

(WHO, 2002)

Para encontrar o seu sentido, supõe mitigar o os outros, aceitando seus defeitos e as suas
próprio sofrimento, ou seja, baixar a sua intensi- limitações.
dade, para permitir a sua compreensão, tal – Mudar/readaptar os seus valores pessoais
como a luminosidade, que no seu auge pode A experiência de doença e de sofrimento,
provocar uma espécie de «cegueira». Yepes R, particularmente daqueles que percebem a
citado por Gonzalez Barón M e Ordóñez Gallego sua finitude, permite distinguir o essencial
A (2003, p. 347), aponta a necessidade de cum- do acessório, ajuda a relativizar a importân-
prir as três funções antropológicas da dor: cia de algumas actividades ou desejos. É
1. Saber o que fazer e aceitá-la. frequente que os homens e mulheres que
2. Mudar/readaptar os seus valores pessoais. sofreram tenham uma consciência mais
3. Encontrar/dar-lhe um sentido. profunda e real de si mesmos e do que os
Sem pretender definir exaustivamente estes rodeia, apresentam maior serenidade pe-
objectivos, é importante deixar linhas de reflexão rante as dificuldades e são menos propen-
para a abordagem, sempre interdisciplinar, e sos à frivolidade, elegendo uma nova hie-
que se sabe de crucial importância. rarquia de valores. No entanto, devemos
– Saber o que fazer e aceitar a dor salientar que no confronto com o sofrimento
Uma das primeira tarefas passa por ajudar nem todos reagem de igual modo. Uns «en-
o doente a entender que a dor está aí e venenam-se», outros diminuem-se e um pe-
portanto há que aceitá-la e enfrentá-la com queno número engrandece (Gomez Sancho
«as armas» possíveis e ao seu alcance M, 1998a). Não depende do tipo de sofri-
(Gonzalez Barón M e Ordóñez Gallego A, mento, depende dos homens, são eles que
2003). Quem aceita a realidade, ainda que se destroem ou se edificam (Albom M,
dura, percebe que tem responsabilidades e 1997). É nessa diferença que a dignidade
é parte activa na sua resolução. Faz-se um complementar se evidencia. O apelo é à
apelo à mobilização dos seus recursos in- interioridade e ao desenvolvimento pessoal
ternos (locus de controle interno), na dimen- de cada um. O doente deve ser conduzido
são pessoal (convicção pessoal de contro- nesta reflexão e neste trajecto adaptativo.
lar a sua vida), procurando evitar que o – Encontrar/dar-lhe um sentido
doente centre o foco da sua atenção no Qualquer pessoa, a dado momento, ques-
exterior e nos outros (locus de controle ex- tiona qual o sentido da vida e da existência,
terno), na dimensão social (os outros pode- mas a vivência de uma situação de profun-
rosos) e na dimensão impessoal (sorte, o do sofrimento torna-a mais apta para o fa-
acaso, o destino) (Kurita GP e Pimenta CM, zer, obriga a parar e a questão surge com
2004), ajudando-o a perceber as suas ca- maior acuidade e profundidade.
pacidades cognitivas, os recursos próprios, Existem pessoas que, pela sua personalida-
os apoios familiares, fazendo com que par- de e atitude face à vida, se realizam apenas
ticipe activamente na tomada de decisões, a trabalhar, a fazer, a produzir – homo faber
com implicação e responsabilidade (Durán – só aceitam duas categorias, o êxito e o
C, 2003), como a melhor forma de lhe de- fracasso. Sempre que alguma fatalidade ou
volver o controle sobre si. A pessoa que acontecimento o impeça de fazer alguma
sofre e aceita o seu sofrimento compreende coisa, que inviabilize o seu projecto vital,
e assume uma dimensão básica da vida desespera face ao sofrimento, revolta-se
DOR

humana. Além disso, essa experiência pode com ódio e renuncia continuar a lutar e a
enriquecer a sua personalidade e torná-la viver. Não aceita o que está a suceder e,
20 mais madura, paciente, compreensiva com sobretudo, não retira proveito nenhum da

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