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NÚMERO 111 OUTUBRO 2020

DE OLHO
ABERTO
A régua subiu, mas
falta dar velocidade e
escala à transparência

Amazônia
Alta exposição joga luz
nas caixas-pretas da região
José Eli da Veiga
Empresas devem prestar muita
atenção às vozes da juventude

Cultura e democracia
Campo ambiental saiu na frente
graças à mobilização social
EDITORIAL
Próximo desafio:
escala e velocidade
Em maio de 2008, a P ágina 22 publicou uma edição explicando por
que era tão importante o mercado financeiro se integrar ao debate
JORNALISTAS FUNDADORAS Amália Safatle e Flavia Pardini
da sustentabilidade. Doze anos depois, é gratificante noticiar que, EDITORA Amália Safatle

antes tarde do que nunca, as finanças não só embarcaram no tema, EDIÇÃO DE ARTE José Roosevelt Junior
como estão puxando a régua para cima, ao precificar o risco das www.mediacts.com
EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA Flavia Sakai
más práticas ambientais, sociais e de governança. As boas notícias, REVISÃO Carolina Machado
entretanto, dependerão da escala e da celeridade dessas mudanças. PRODUÇÃO Jorge Novais Telles

COLABORARAM NESTA EDIÇÃO


Andrea Vialli, Diego Viana, Magali Cabral,
A sustentabilidade, que requer uma abordagem sistêmica, está Sérgio Adeodato e Bruno Kelly
aprisionada a um debate polarizado que adiciona dificuldades. No Brasil,
JORNALISTA RESPONSÁVEL
assim como em diversos países do mundo, governos de orientação Amália Safatle (MTb 22.790)
retrógrada agem como um freio de mão, enquanto empresas que FOTOGRAFIA DA CAPA
dependem de inserção internacional precisam desvincular sua imagem André Pessoa
Acesse aqui para conhecer a história desta fotografia, que
da agenda autoritária. Como diz Valdemar de Oliveira Neto, o Maneto, envolve uma descoberta geológica na Serra da Capivara

na reportagem de capa desta edição, a melhor forma de fazer isso é CONSELHO EDITORIAL
Ana Luiza Aranha, Glaucia Terreo, Daniela Lerda, José Eli da
com mais transparência na gestão e uma agenda ambiental forte. Veiga, Juliana Lopes, Marco van der Ree, Malu Paiva, Natalie
Assis, Paulo Moutinho, Roberto Silva Waack, Vânia Bueno

A Amazônia, fronteira de grandes disputas, é um exemplo dessas agendas PARCERIAS EM PROJETOS ESPECIAIS
conflitantes. A clareza dos dados territoriais sobre ocupação e uso do solo Para informações, escreva para contato@pagina22.com.br

propiciada pelas imagens de satélite contrasta com obscuras transações Os artigos e textos de caráter opinativo assinados

em meio a mentiras e meias-verdades. A região é marcada por um contexto por colaboradores expressam a visão de seus autores,
não representando, necessariamente, o ponto de vista
de violência e ilegalidade: grilagem de terras, conflitos fundiários, tráfico de Página22.

de drogas, animais e pessoas, desmatamento. Mas a crescente exposição www.pagina22.com.br


global da maior floresta tropical do mundo joga holofotes na escuridão www.p22on.com.br

da floresta e pode, gradativamente, abrir as caixas-pretas de atividades


como agropecuária, garimpo, exploração de madeira e mineração.
APOIAM ESTA EDIÇÃO:

Mais uma vez, o engajamento dos diversos atores da sociedade


será fundamental para vencer esses desafios e romper com a cultura
patrimonialista e pouco transparente que historicamente caracteriza a
sociedade brasileira. Embora o atual governo brasileiro esteja fora desse
debate, a sociedade civil e a empresarial estão mais dentro do que nunca e
continuam pautando grande parte desse movimento, na avaliação de Roberto
Silva Waack, integrante da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia.

Na Entrevista, o professor José Eli da Veiga, da USP, enfatiza os movimentos


puxados pelos jovens, que poderão influenciar de forma poderosa e positiva
o andamento dessa agenda. E recomenda que as empresas prestem muita
atenção na mudança de comportamento e de valores que vem por aí.

Boa leitura!

A REVISTA Página22 ADERIU À LICENÇA


CREATIVE COMMONS. ASSIM, É LIVRE
A REPRODUÇÃO DO CONTEÚDO – EXCETO
IMAGENS – DESDE QUE SEJAM CITADOS COMO FONTES A PUBLICAÇÃO E O AUTOR.

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ÍNDICE Use o QR Code para acessar Página22
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14
CAPA

Para além da polarização


O Brasil segue aprisionado a um debate binário. Mas a esperança é que as recentes manifestações advindas do
mainstream econômico e financeiro internacional sejam capazes de forçar um outro patamar de transparência

6 Entrevista Para o professor José Eli da Veiga, o movimento da jovem ativista ambiental sueca Greta Thunberg, o
Fridays for Future, terá muito mais peso do que diversos políticos estão imaginando, simpáticos ou não à causa. Segundo ele,
as empresas também precisam prestar muita atenção na mudança de comportamento e de valores da juventude

20 Cultura Instaurar uma cultura da transparência no Brasil é um longo processo, em estreita relação com o avanço da
democracia, o combate à corrupção e a superação da "tradição patrimonialista". O campo ambiental chama atenção
por ter obtido avanços antes mesmo da Constituição de 1988 – e isso tem muito a ver com a mobilização da sociedade civil

26 Amazônia A riqueza natural convive com a desigualdade social e o submundo da violência e da ilegalidade: grilagem
de terras, conflitos fundiários, tráfico de drogas, animais e pessoas, desmatamento. Mas a crescente exposição global da
Amazônia, devido à demanda pela mitigação climática, joga holofotes na escuridão da floresta

33 Engajamento Investidores, consumidores e empresas dão sinais de que as mudanças sistêmicas rumo à
sustentabilidade estão em curso. O desafio ainda é dar escala e celeridade a este movimento – impulsado também pela
pandemia do novo coronavírus, que agiu como um catalisador

SEÇÕES CAPA: ANDRÉ PESSOA

5 Projeto Especial 12 Notas 13 Drops 40 Última

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PROJETO ESPECIAL

E a régua subiu?
Bem-vindos à segunda edição especial sobre transparência da Página22, idealizada
em parceria com a Global Reporting Initiative (GRI). Este projeto traz uma avaliação geral
do estado da transparência no Brasil na perspectiva de diversos setores da sociedade.
Em que avançamos e no que precisamos melhorar desde a primeira edição, em 2019?

O debate sobre a necessidade de complementar as informações das empresas para além


dos costumeiros demonstrativos e balanços financeiros não vem de hoje. Podemos dizer
que o verdadeiro ano de nascimento da GRI foi 1989, por conta do acidente da Exxon
Valdez no Alasca. O desastre levou investidores institucionais a questionarem suas
práticas, pois ficou clara a relação entre a criação de valor das empresas e o que hoje
chamamos de ESG (critérios ambientais, sociais e de governança, na sigla em inglês).
Nos dias atuais, a diferença é que o debate saiu de um nicho e ganhou tração, ocupando
espaços em grandes fóruns de negócios, legislações e fundos de investidores. Com a
evolução acelerada da tecnologia e o aumento do escrutínio público potencializado pela
pandemia, a transparência deixa de ser voluntária para ocupar cada vez mais espaços
em agendas de governos e esferas reguladoras.

É preciso celebrar e agradecer a todos que estão juntos nesta jornada desde o início. E
lembrar que as grandes decisões tomadas nas instituições são feitas por pessoas, nos seus
papéis de ativista, funcionário, mãe, pai, professor, jornalista, empresário, investidor,
estudante etc. Ou seja, um futuro melhor também depende da evolução pessoal de cada um.

Leituras como esta contribuem para abrir a cabeça e ampliar a visão. Por isso,
agradecemos à equipe da revista, que novamente provou seu profissionalismo e
compromisso com a informação, e também à Agência Sueca de Cooperação Internacional
(SIDA), patrocinadora deste projeto da GRI. Agradecimentos especiais aos entrevistados
e membros do Comitê Editorial desta edição.

Glaucia Terreo, diretora da GRI no Brasil

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ENTREVISTA JOSÉ ELI DA VEIGA

Isso é só o começo
POR AM ÁL I A SAF AT L E FOTO REPRODUÇÃO

O debate sobre uma retomada econômica verde não vem de hoje. Quando o mundo tentava se reerguer da
crise que sacudiu os mercados financeiros e a economia global a partir de 2008, o assunto já tinha vindo
à tona. Mas de lá pra cá, especialmente desde 2015, houve uma aceleração do processo. Muitos setores
sociais e agentes econômicos importantes que antes eram reticentes, ou tinham uma certa indiferença,
passaram a se engajar, sendo o setor financeiro um dos últimos a embarcar. “Os fundos que demoraram
para entrar nisso agora entraram com tudo”, diz José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Energia
e Ambiente da Universidade de São Paulo.
Há um componente geracional forte nessa evolução. Nos bancos centrais, por exemplo, hoje se vê um corpo
técnico formado por excelentes economistas que são muito jovens, e já discutiam questões relacionadas
a clima e sustentabilidade quando estavam na faculdade. Segundo Veiga, muitos autores têm enfatizado
que o movimento da jovem ativista ambiental sueca Greta Thunberg, o Fridays for Future, vai pesar no que
vamos assistir na próxima década. “Terá muito mais peso do que diversos políticos estão imaginando, sim-
páticos ou não à causa da Greta”. Segundo ele, as empresas também precisam prestar muita atenção na
mudança de comportamento e de valores da juventude. “A gente está vivendo só o início”, afirma.

Professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP (IEA-USP). Por 30 anos (1983-2012), foi docente do Departamento de Economia da Faculdade
de Economia, Administração e Contabilidade (FEA-USP), onde obteve o título de professor titular em 1996. Tem 29 livros publicados, entre os quais O
Antropoceno e a Ciência do Sistema Terra (2019); Amor à Ciência (2017); Para entender o desenvolvimento sustentável (2015) e A desgovernança mundial
da sustentabilidade (2013). É colunista da Página22, do Valor Econômico e da Rádio USP.

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JOSÉ ELI DA VEIGA

Qual é a sua visão sobre o Green Deal europeu,


especialmente neste debate sobre a retomada
outra abrangência? Fala-se em Green New
Deal para todo lado.
centrais se juntaram para buscar uma articulação
voltada à questão climática. Eles já estavam cien- A grande novidade à qual
deve ser dada muita atenção
econômica pós-pandemia? Sim, mas veja bem, a mesma coisa aconteceu em tes de que teriam de levar muito a sério a questão
O Green Deal europeu foi lançado no início de 2008. Naquela época, ressuscitaram o New Deal climática, até mesmo sob a perspectiva daquilo que
dezembro de 2019, portanto muito antes de se co- [programa implementado entre 1933 e 1937 para os bancos centrais mais têm que fazer, que é serem
meçar a discutir a retomada. Ninguém sabia, em de-
zembro, que um novo coronavírus viria fazer este
recuperar a economia americana após a Grande De-
pressão] para dizer que ele devia ser esverdeado.
previdentes em relação a futuras crises. De certa
forma, apelidaram isso de cisne verde. Esta expres-
é a dos jovens pelo clima
estrago todo. É um documento geral de declaração Foi por iniciativa da Inglaterra, principalmente, onde são, “cisne verde”, causa uma certa confusão por-
de intenções como outros que a gente já tinha vis- desde 2008 existe um grupo permanente de think que é usada de outras formas por mais atores. imaginando, simpáticos ou não ou à causa da Greta.
to, exceto pela ênfase no hidrogênio. Falava sobre tanks pensando nesse termo. Hoje, o número de bancos centrais engajados As manifestações na Europa foram impressionan-
a necessidade de haver uma estratégia de transição Recentemente, bem antes da pandemia, a [con- na articulação para esverdear o sistema financeiro tes. Pesquisas feitas junto aos jovens para tentar
ecológica na Europa em geral, com uma lei climá- gressista na Câmara dos Representantes por Nova chega a 69 bancos e mais um monte de observado- entender como tinham conhecimento da questão
tica. Durante o primeiro semestre, foram lançados York] Alexandria Ocasio-Cortez, juntamente com res, como o Banco Mundial, o FMI [Fundo Monetário climática e por que achavam importante estar na
vários documentos mais específicos, setoriais, de um movimento que se chama Sunrise, lançou um Internacional] e o Banco de Compensações Interna- rua revelaram novidades promissoras. Ou seja, será
como colocar isso em prática, voltados para a indús- projeto de lei com a expressão Green New Deal. Cla- cionais. É algo recente e é impressionante ler os do- um fator essencial.
tria, economia circular, agricultura, biodiversidade. ro que, com a pandemia, começou a se falar muito cumentos que estão produzindo nesta articulação.
Tenho a impressão de que ainda faltam questões em retomada econômica e aí a expressão tem sido Um deles, do Banco de Compensações Internacio- Podemos dizer que são um grupo pequeno,
centrais, como mobilidade e construção civil. usada muito nesse sentido. nais, junto com o Banco da França, ganhou esse tí- mas barulhento a ponto de influenciar, ou um
Mas, antes dos documentos específicos, saiu tulo, de “cisne verde”. É uma coisa que, se você me nicho que faz a sua manifestação enquanto o
um documento com a expressão “mecanismos de De 2008 para cá o senhor vê um avanço? perguntasse alguns anos atrás se iria acontecer, eu restante da juventude continua apática?
transição justa”. A primeira vez que eu vi, pensei: Porque embora já houvesse essa discussão, diria que não. Eu seria cético em relação à possibili- Varia muito dependendo do país que você obser-
“Que raio é isso?”. Depois vi que se tratava de algo a retomada verde acabou não acontecendo dade de haver um movimento dessa envergadura. var. Tive a impressão de que, no ano passado, foi mui-
bastante evidente sobre qual era a preocupação na velocidade que se imaginava. Atualmente, to mais do que um nicho na Inglaterra, na França, na
principal: para cada medida que fosse adotada, se- com o aumento da pressão de investidores e O que motivou esse movimento foi a percep- Alemanha. Eu me lembro de uma manifestação feita
ria preciso visualizar o tipo de conflito social que a agenda ESG [voltada a questões ambientais, ção mais clara da crise climática e dos riscos em 17 capitais, praticamente todas europeias. Com a
poderia ocorrer. O fato de esse documento ter saí- sociais e de governança, na sigla em inglês], associados aos investimentos? Ficou mais pandemia, evidentemente isso tudo foi interrompido
do já em janeiro evidentemente reflete a percepção estamos em um outro momento? difícil ser negacionista? [na última sexta-feira de setembro, uma manifestação
das elites – que elaboram esses documentos – a Nessa reconstituição histórica, eu recuaria bem Hoje se vê, nos bancos centrais, um corpo téc- foi retomada]. Quando se atua na área de Ciências Hu-
respeito do que houve na França com os coletes mais, pelo menos desde a Rio 92, que consagrou a nico formado por excelentes economistas que são manas, o que vai acontecer mesmo a gente não sabe.
amarelos, que foi um conflito quase sem preceden- ideia do movimento sustentável, que por sua vez muito jovens. Eles discutiam essas questões de Em todo caso, olhando para o que ocorreu nos últimos
tes, originado por uma medida a princípio justa e tinha sido lançada um pouco antes, em 1987. Isso clima, sustentabilidade etc. quando já estavam na tempos, a grande novidade à qual deve ser dada muita
na direção da chamada transição ecológica, que é a porque a gente vem observando um movimento faculdade. Então vão assumir essas posições com importância é esta dos jovens pelo clima.
necessidade de um imposto sobre os combustíveis. em várias áreas da sociedade, mas é difícil entender essa consciência. Observo essas mudanças em vá-
Mas isso causou uma revolta muito grande porque quais são os momentos em que isso se acelera ou os rios setores há muito tempo. Quando a gente ouvia As empresas têm que prestar atenção nisso?
sempre haveria um prejudicado. momentos em que parece não acontecer nada, e de depoimentos de empresários mais avançados em Certamente! Mas eu queria voltar a uma
Um outro exemplo da transição ecológica é que repente surge uma notícia que mostra que as coisas relação às questões ambientais, era frequente o de- pergunta anterior que é sobre o uso da expressão
os prédios e casas na Europa terão de passar por estavam acontecendo, mas sem muita visibilidade. poimento sobre a influência dos filhos. O sujeito está ESG. No âmbito empresarial, a primeira coisa que
uma renovação. Do ponto de vista térmico, há um Sem dúvida, desde 2007, e com muito mais for- no banco e tem um filho de 15 anos no movimento da surgiu foi o famoso tripé do John Elkington sobre
exagero de consumo energético, principalmente em ça desde 2015, houve uma aceleração do processo. Greta [Thunberg, ativista ambiental sueca] que vai os 3 Ps – profit, planet e people [lucro, planeta e
um longo inverno, pois foram construídos quando Muitos setores sociais e agentes econômicos impor- cobrá-lo. Hoje, não só é mais difícil ser negacionista, pessoas]. Em seguida, houve uma série de idas
nem se pensava em aquecimento global. Como fi- tantes que eram reticentes, ou tinham uma certa in- como há uma mudança de geração e uma influência e vindas nessa história. O seu último livro tem o
nanciar um programa dessa envergadura sem, por diferença, passaram a se engajar. O mais recente foi da juventude sobre os seus pais. título Cisnes Verdes, no plural. Então, estamos
exemplo, penalizar uma quantidade imensa de apo- o setor financeiro, que antes tinha ficado com uma analisando um processo evolutivo, seletivo e
sentados que possui só uma casa própria e não pode espécie de “pé atrás”. A geração de jovens como a Greta ainda não adaptativo. Eu, por exemplo, não imaginava que
fazer esse tipo de investimento? Já existem incenti- Todos os bancos centrais não estavam nem aí está no poder, mas já tem uma força política os 3 Ps do Elkington seriam assim substituídos por
vos creditícios para que as pessoas possam pedir ao para esta discussão do clima. E em 2017, começou para pressionar quem está? uma sigla. Agora só se fala em ESG, mas não é que
banco um financiamento, mas o problema é muito com aquela convocatória do [presidente da França, Com certeza. A gente está vivendo só o início dis- tenha tomado o lugar da sigla anterior. Há muitas
maior. E nem estamos falando em constranger as Emmanuel] Macron, a One Planet Summit – que foi so. Muitos autores que lidam com estas questões maneiras de ver essa questão no meio empresarial.
grandes empresas a fazerem alguma coisa. inclusive uma reação contra o [presidente dos EUA, têm enfatizado que o movimento da Greta, o Fridays
Donald] Trump, que tinha anunciado a saída dos Es- for Future, vai pesar no que vamos assistir na pró- Elkington reviu o próprio conceito do triple
Com a pandemia e a necessidade da reto- tados Unidos da Convenção do Clima. xima década – dos anos 2020 aos anos 2030. Terá bottom line, porque acabou separando e deu
mada, a expressão Green Deal ganhou uma Quando Macron fez essa cúpula, alguns bancos muito mais peso do que diversos políticos estão pesos iguais às três pernas – a econômica, a

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JOSÉ ELI DA VEIGA

Em Davos, os últimos anos uma atitude importante nesta direção [em julho, apre-
sentaram ao governo federal 10 medidas para o de-
Analisando a possibilidade de evolução dessas
agendas em plano internacional, a grande incógnita O Brasil virou um vilão de
foram impressionantes primeira linha. Se alguém
senvolvimento sustentável na região]. Esses bancos é a relação entre Estados Unidos e China. São poucas
deram um recado que deve ter sido ouvido pelo me- as pessoas com capacidade de observar o que está
nos no âmbito do superministério da Economia, mes- acontecendo na China. Mas para aquilo que nos inte-
na mudança da percepção mo que não tenha sido em outras áreas do governo.
Mas imagino também que o vice-presidente [Hamilton
ressa e até onde as informações estão disponíveis,
há coisas altamente avançadas. Outro dia estava
quiser dar um exemplo ruim,
sobre a crise climática Mourão] e a Casa Civil também estejam atentos.
Na verdade, o governo está tendo uma atitude
ouvindo um brasileiro que vive lá e conhece muito
bem o país dizer que no ano que vem será proibido
vai lembrar do Brasil, até
e da biodiversidade desastrosa nas questões ambientais em geral e,
particularmente, no aspecto Amazônia, o que dá
usar carro com motor a explosão na sua cidade. Isso
é quase a vanguarda, porque isso se planeja muito na
antes de lembrar do Trump
uma visibilidade muito grande. O Brasil virou um Europa, mas até agora as datas não são assim.
vilão de primeira linha. Se alguém quiser dar um Na Europa, há uma ambição clara de acelerar
social e a ambiental –, quando, na verdade, a exemplo ruim, nunca vai lembrar dos negacionistas o processo de transição ecológica, mas ela ainda
ambiental é a grande base para tudo. O uso da da Europa do Leste. Vai lembrar do Brasil, até an- está muito amarrada às energias fósseis. A China
sigla ESG estaria fazendo uma nova separa- tes de lembrar do Trump. Isso está sendo negativo parece em ascensão, na vanguarda, mas ao mes- termos de formulação da governança. Vou dar um
ção em áreas? Seria um novo modismo para para o Brasil economicamente. Não é tão sério para mo tempo se tem notícia de que está usando cada exemplo que é quase que uma curiosidade histórica,
dizer a mesma coisa? alguns setores do agronegócio porque as exporta- vez mais carvão, que é o pior dos combustíveis fós- mas para dizer que a maneira como essas organiza-
Quando ele fez uma espécie de autocrítica com ções, de certa forma, continuam bombando e são seis. Então é difícil interpretar. ções internacionais evoluem não é nada óbvia.
relação a isso, chamou a atenção de que o tripé tinha principalmente dirigidas à Ásia e ao Oriente Médio. O fato é que a China está empenhada em ter um Hoje a gente fala muito dos ODS [Objetivos de
virado uma maneira de as empresas simplesmente Com isso, a péssima imagem do Brasil na Europa papel muito mais importante no plano geopolítico e Desenvolvimento Sustentável], que foram assina-
subdividirem a questão e criarem métricas específi- para que o Brasil seja boicotado ainda não assusta que isto entra em contradição com as vocações dos dos em 2015, e vieram substituir os ODM [Objetivos
cas. Assim, podiam dizer: “Ah, eu não vou tão bem no essa parcela do agronegócio. EUA. E caso o Trump se reeleja, vamos entrar em um do Milênio] – que já tinham sido uma grande inova-
resultado ambiental, mas estou tão bem no social Mas pelo lado da capitalização, a coisa está séria, período pior do que este, sem perspectivas mesmo. ção a partir de 2000. O componente sustentabilida-
que isso compensa”. A crítica dele foi de que isso ri- porque os fundos que demoraram para entrar nisso Aí o que a Europa poderá fazer sozinha? de nos ODM era muito fraco. Recentemente, fazen-
fou a ideia central do valor novo que era a sustenta- agora entraram com tudo. Teve aquele anúncio do Ao mesmo tempo, a Europa vai ficar cada vez mais do pesquisas, acabei notando que, na verdade, os
bilidade, que exigiria uma visão mais holística e não BlackRock no começo do ano, e já são não sei mais exigente. Dá para ver isso na tramitação do tal acordo ODM nasceram na OCDE. Havia um departamento
subdividida e usada mecanicamente. Nesse sentido, quantos grandes fundos estão nessa linha de adotar, União Europeia e Mercosul. Um ano atrás eu escrevi na OCDE que procurava assessorar os países a gerir
o ESG não mudaria grande coisa. por exemplo, o ESG. E se você adotar o ESG, a última na Página22 um artigo elogiando o texto do acordo. a aplicação de recursos de cooperação internacio-
O mais surpreendente na sigla ESG é que o lucro coisa que vai topar é bancar investimento em um país Tenho a impressão de que se o governo Bolsonaro fizer nal. Antes de ser da ONU, portanto, os ODM foram
“sumiu”. Quando Elkington lançou a ideia, falou: “É com esta imagem que o Brasil está criando. Ou já criou. mesmo este acordo, vai se arrepender logo, porque uma ideia da OCDE, do Banco Mundial e do Fundo Mo-
claro que a empresa precisa lucrar, mas também Não creio que esses três bancos, por exemplo, um acordo deste tipo teria a possibilidade de judiciali- netário Internacional.
tem de se preocupar com as pessoas e com o plane- tenham evoluído para essa condição só por causa zar as relações comerciais quando ocorrer o que está Se 10 anos atrás me dissessem que a OMC esta-
ta”. Essa era a mensagem, que foi muito boa do ponto das relações econômicas do Brasil com a Europa. acontecendo neste momento na Amazônia. ria condenada e nós estaríamos falando muito bem
de vista pedagógico no âmbito empresarial. Agora De certa forma, também refletem esse sentimen- Mas a possibilidade de esse acordo de livre comér- da OCDE, eu consideraria um “chute” muito grande.
está se falando em ambiente, social e governança. Eu to mais geral que a gente estava descrevendo. Por cio vingar é mínima, por várias razões. Uma delas é o Mas é isto que acabamos vendo.
acho estranho, mas de fato é como se tivesse acon- exemplo, todas as grandes empresas, e particular- fato de que a Argentina já não está tão interessada, e Nesse período todo de evolução oscilante em
tecido o seguinte: “É óbvio que tem lucro, mas lucro mente esses bancos, estão sempre em Davos. Nes- sim meio inclinada a fazer um pacto com a China. Para relação à transição ecológica, algumas iniciativas
a gente mede de outra forma. Para aquilo que é o pa- te ano, o encontro foi adiado por conta da pandemia, entrar em vigor, o acordo precisará ser ratificado em foram importantíssimas, sem as quais dificilmente
pel mais filantrópico das empresas, a gente vai usar mas os dois ou três últimos anos foram impressio- todos os países da União Europeia e do Mercosul – e o a gente estaria assistindo ao que há agora de positi-
essa sigla ESG”. Vejo na Harvard Business Review nantes como sinalização de uma mudança de per- segundo principal membro do Mercosul já está dando vo. Por exemplo, o reporting, como faz a GRI [Global
autores procurando discutir se ESG já é mainstream cepção da questão climática, em primeiro lugar, e pra trás. Além disso, há forças contrárias na Europa, Reporting Initiative], foi uma das iniciativas que pre-
ou ainda não. Talvez a gente esteja em um momento também da biodiversidade. por exemplo, Holanda, Áustria, França. cisam ser colocadas como admiráveis, assim como
de difícil avaliação do que vai ficar como convenção. Eu não sei como isso vai se resolver, mas não é foi a criação de índices, como o Bloomberg e o Dow
possível que dure por muito mais tempo o Brasil ser Então a governança global está mais compli- Jones Sustainability, pois era um período desfavo-
O atual governo brasileiro atrapalha a considerado o vilão, sendo que justamente é um dos cada do que a governança nas empresas? rável. Hoje, com a chancela do Fórum Econômico
evolução dessas práticas ou pode até mesmo países com maior condição de apresentar resulta- Isso com certeza. Agora a gente está assistindo Mundial de Davos, a coisa mudou completamente de
estimulá-las na medida em que provoca uma dos. Não apresenta e é uma pena. a OMC [Organização Mundial do Comércio] a andar figura. Mas essas foram iniciativas heroicas, porque
contrarreação, uma mobilização por parte do para trás. E por outro lado, tudo indica que a OCDE não era assim tão fácil vender esse tipo de ideia para
setor privado e da sociedade civil organizada? Como a governança global vai interferir na [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento muitos setores sociais e políticos.
Vamos pegar a iniciativa recente dos três grandes tendência de uma recuperação verde, uma vez Econômico], que no início era considerada uma orga-
Assista aqui ao vídeo com trechos desta entrevista.
bancos – Itaú, Santander e Bradesco –, que tomaram que o multilateralismo está em xeque? nização regional, tem um papel cada vez maior em

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NOTAS
FAKE NEWS RELATÓRIOS PANDEMIA

Pega na Métricas Transparência


mentira em comum é saúde

F
alácias, mentiras e meias-verdades O Fórum Econômico Mundial lançou em Como parte de sua contribuição à transpa-
são comuns na narrativa antiam- setembro um conjunto básico de métricas rência empresarial durante a pandemia, o
bientalista. Mas ganham expres- ESG e critérios de transparência que pode Instituto Ethos lançou o Covid Radar, um co-
são em um governo negacionista como ser usado pelos membros do International letivo de mais de 40 empresas que se junta-
o brasileiro. Diante disso, a plataforma Business Council. O IBC reúne mais de 120 ram para enfrentar os desafios do sistema
Fakebook.eco procura restabelecer os CEOs globais, com participação do Bank of de saúde e auxiliar na retomada da eco-
fatos e desfazer os principais mitos e America e das chamadas Big Four (Deloitte, nomia. Entre os conteúdos disponíveis no
desinformações no campo ambiental. EY, KPMG e PwC). O documento é intitulado site, há um guia com oito recomendações
Recentemente, dissecou o discurso do Measuring Stakeholder Capitalism To- relacionadas à responsabilidade social no
presidente da República Jair Bolsonaro wards Common Metrics and Consistent contexto da pandemia. Uma delas trata da
na abertura da Assembleia Geral da ONU Reporting of Sustainable Value Creation, transparência empresarial e abertura das
em 22 de setembro. traduzido livremente como “Medindo o decisões, e pode ser acessada aqui.
A plataforma traz ainda uma lista dos mi- capitalismo das partes interessadas em di-
AGENDA 2030
tos ambientais mais frequentes e permite reção a métricas comuns e relatórios con-
a interação com o público, que pode su-
gerir a verificação de informações. Criada
sistentes de criações de valor sustentável”.
Com isso, será possível alinhar os rela-
Apagão de
este ano, é resultado da união entre dois tórios sobre o desempenho em relação a dados
projetos anteriores: o Fakebook, pro- indicadores ambientais, sociais e de go-
O Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a
duzido pelo Observatório do Clima (OC), vernança, e identificar contribuições para
Agenda 2030, que acompanha o andamento
Greenpeace e ClimaInfo, e o Agromitôme- os Objetivos de Desenvolvimento Susten-
dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Susten-
tro, uma iniciativa de checagem de infor- tável, por meio de uma base consistente e
tável (ODS) no Brasil, não traz boas notícias.
mações ambientais do OC. com maior convergência.
Nesta quarta edição, foram analisadas 145
das 169 metas da Agenda 2030, sendo que 17
metas nem sequer possuem dados para aná-
lise e sete não se aplicam ao Brasil. Mesmo na
análise das 145 metas, especialistas tiveram
dificuldades no levantamento de informa-
RASTREABILIDADE ções devido ao “apagão de dados” no País,

Outra pecuária é possível refletindo a ausência ou ineficiência de polí-


ticas públicas, inexistência ou insuficiência de
informações ou de séries históricas.
A origem da carne na Amazônia e no Cerrado pode ser monitorada com a inte- Nos casos em que inexistem informações
gração de informações entre a Guia de Transporte Animal e o Cadastro Ambiental oficiais, foram utilizados estudos produzi-
Rural, e os respectivos mecanismos legais que permitam sua validação conjunta. dos pela sociedade civil ou pesquisas acadê-
Seguindo também as exigências estabelecidas no âmbito do Sistema Brasileiro de micas catalogadas na biblioteca SciELO ou
Rastreabilidade da Cadeia de Bovinos e Bubalinos e dos Termos de Ajuste de Con- no Portal Capes, observados os critérios de
duta assinados entre o Ministério Público Federal e os processadores de carne que série histórica e metodologia consolidada.
operam na Amazônia Legal. Nas páginas 96 e 97 do relatório, é possí-
Esta é uma das conclusões do estudo A rastreabilidade da cadeia de carne bo- vel obter um panorama geral das metas
vina no Brasil, publicado em setembro pela Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agri- dos 17 ODS, com desempenho classifi-
cultura, como resultado da iniciativa Amazônia Possível, lançada na Climate Week cado como “retrocesso”, “ameaçado”,
de Nova York de 2019. Além de reconhecer a complexidade da cadeia, o documen- “estagnado”, “insuficiente” ou “satisfa-
to salienta os avanços tecnológicos que podem contribuir para a rastreabilidade tório”. A publicação foi lançada nacional
e traz uma série de recomendações para que as melhores práticas se efetivem. e internacionalmente em julho, por meio
Acesse o estudo completo e o sumário executivo. de três eventos. Assista aos debates em
youtube.com/gtagenda2030.

12 PÁ G I N A 2 2 O U T U B R O 2 0 2 0
DROPS

ANIMAÇÃO DEPOIMENTOS DESTAQUES

O que você O que as Trechos da


precisa novas entrevista
saber sobre gerações com José Eli
transparência pensam sobre da Veiga
empresarial as empresas?

S
er transparente significa ser sin- Quatro adolescentes trazem suas opiniões Acompanhe os momentos em que o pro-
cero. Sinceridade gera confiança. sobre os atributos que o mundo empresa- fessor aborda a agenda ESG, o papel dos
Mas, nas relações empresariais, rial deve oferecer para atrair investimen- bancos, a influência das novas gerações,
esse encadeamento é mais desafiador, tos e os melhores talentos. E contam o a sustentabilidade diante de um multila-
principalmente quando se trata de uma que esperam em termos de diversidade no teralismo em xeque e os sinais contradi-
grande empresa que possui extensa cadeia mercado de trabalho. Veja também o reca- tórios que vêm da China (leia a entrevista
produtiva. Entenda por que e como as em- do que elas deixam para as empresas. completa à pág. 6).
presas podem evoluir em transparência.

MAKING OF

Furo de reportagem
Ouça o depoimento do fotógrafo André Pessoa, sobre a produção da imagem
que ilustra a capa desta edição. A foto registra uma nova pedra furada, recen-
te descoberta geológica no Piauí, em pleno século XXI. A descoberta simboliza
a riqueza histórica, ambiental e cultural da região, com imenso potencial para o
turismo sustentável em uma região ainda tão pouco explorada.

PÁ G I N A 2 2 O U T U B R O 2 0 2 0 13
REPORTAGEM CAPA

Quanto mais, melhor


As recentes – e inéditas – manifestações
advindas do mainstream econômico
e financeiro internacional, que ameaçam
boicotar produtos contaminados por
desmatamento, serão capazes de forçar
um outro patamar de transparência?
Conceito que já
havia sido tema
de relatório da
Organização das
POR M AGALI CABRAL FOTO ELEM ENTS
Nações Unidas no
final da década

E
passada, sob o
m um extremo, regimes com tendência autoritária des- slogan Green New
Deal, e entrou na
constroem conquistas socioambientais recentes, nutrindo pauta da Comissão
uma briga contra o próprio passado. Na outra ponta, so- Europeia em
ciedades progressistas seguem na luta pela construção de dezembro de 2019

um futuro sobre bases econômicas transparentes, verdes e


menos desiguais, o chamado European Green Deal. Acrescente-
-se a essa polarização global uma pandemia que já tirou a vida de
Abreviação
mais de 1 milhão de pessoas e continua tirando a saúde também para o termo em
dos sistemas econômicos e financeiros mundo afora. Está posto um inglês Business to
Business, que se
cenário de grandes incertezas.
atribui às relações
Esse retrato de polarização também se reproduz dentro do Brasil comerciais entre
e pode ser observado com clareza no meio empresarial. Enquanto empresas
grande parte do empresariado brasileiro, com uma situação fiscal
muito afetada pela pandemia, tende a reforçar a tendência do dis-
curso conservador, empresas líderes, integradas nas cadeias globais
Compliance
de produção, sentem a pressão de conviver com uma política interna – estar em
totalmente avessa às pressões que chegam do mercado externo. conformidade
Essas pressões internacionais nas relações B2B não com leis, normas,
controles internos
buscam apenas um posicionamento frente a temas so- e externos, além de
cioambientais, mas cobram sobretudo transparência, todas as políticas
compliance, rastreabilidade da produção, entre outras ações de e diretrizes
estabelecidas para
governança, diz o diretor de impacto global da World-Transforming o seu negócio
Technologies Foundation e diretor da empresa PERA Complexity

14 PÁ G I N A 2 2 O U T U B R O 2 0 2 0 PÁ G I N A 2 2 O U T U B R O 2 0 2 0 15
CAPA

B.V., da Holanda, Valdemar de Oliveira Neto, podem escapar da necessidade de abraçar na cadeia produtiva se tornou avassaladora surfar na onda do Green New Deal, jogará fora
Disclosure
mais conhecido por Maneto. “Empresas que o tema da responsabilidade social. Para ele, nesse último ano” , informa. essa oportunidade” , diz.
significa tornar
dependem de inserção no mundo de forma as pessoas perderam a confiança nos gover- No entanto, esse tipo de mensagem atin- A diretora-executiva de Sustentabilidade algo conhecido. Nos
ampla, com acesso a mercado e a capital ex- nos e pressionam as empresas a ocupar esse ge somente um núcleo de empresas de pon- da Suzano, Maria Luiza (Malu) Paiva, tem negócios, se refere
à divulgação, por
terno, precisam desvincular sua imagem da vazio. A dúvida é se a pressão às empresas é ta e internacionalizadas, o topo da pirâmide uma percepção similar. No período recente, a
exemplo, de um
agenda autoritária brasileira, e a melhor for- mais eficaz quando feita por meio de boicote empresarial. A massa das grandes empre- evolução da transparência no ambiente em- risco que pode ser
ma de fazer isso é com mais transparência na e desinvestimento, ou por meio do convenci- sas brasileiras, em boa parte, ainda não está presarial vem se dando no aumento de cons- relevante para o
público
gestão e uma agenda ambiental forte” , diz. mento e do engajamento. instrumentalizada para atender essas exi- ciência dos executivos. Algumas empresas
Na opinião de Maneto, o Brasil já não podia Esse é o tema do estudo que Hart assina em gências. Na avaliação de Waack, a maioria já partem para uma segunda fase, que é a da
se dar ao luxo de virar as costas ao mundo em parceria com Luigi Zingales, da Universidade encontra-se na fase do awareness [tomada mobilização para a mudança. A qualidade do
razão de suas necessidades comerciais, e pode de Chicago, e Eleonora Broccardo, da Univer- de consciência], e umas poucas já estão em conteúdo dos principais mecanismos de
menos ainda agora, com o agravamento da si- sidade de Trento. O desinvestimento em em- busca das instrumentalizações necessárias disclosure – sejam os relatos socioambientais Traduzido
tuação fiscal provocada pela crise econômica e presas não sustentáveis pode, sim, provocar para implementação de modelos de avaliação ou os índices de sustentabilidade – também como “partes
sanitária. Para ele, a saída da crise exigirá um uma redução no preço das ações e forçar o seu de externalidades. “São raras as empre- está em estado de transição: “Os stakehol- interessadas”,
designa as pessoas
esforço de atração de capital cada vez maior e a “esverdeamento”. sas brasileiras que sabem como aplicar, por ders já não aceitam receber somente boas e os grupos mais
polarização nos negócios em nada ajuda. Mas é bem possível que investidores inte- exemplo, um mapa de externalidades”. notícias. Expor vulnerabilidades, erros e fra- importantes e
Ele explica que, de um lado, há uma massa ressados apenas em lucro imediato comprem Assim como há mapas de risco, normal- cassos, e os respectivos aprendizados, é uma estratégicos para o
relacionamento de
de pequenos empresários ressentidos com o essas ações subvalorizadas, anulando even- mente avaliados em comitês de auditoria, necessidade para conquistar e manter a cre- uma empresa, tais
impacto econômico provocado pela pandemia tuais impactos sociais. O mesmo pode acon- esse mapa aponta quais são as externalidades dibilidade junto ao público interessado. Esta como funcionários,
e atribuindo o problema não ao governo fede- tecer com os boicotes dos consumidores. Os na empresa, se positivas ou negativas. Indica não é uma evolução fácil para empresas, mas fornecedores,
clientes,
ral, mas a governadores que não priorizaram produtos boicotados tendem a cair de preço, também as ações para eliminar, reduzir, miti- é cada vez mais necessária” , afirma a execu- investidores etc.
suas necessidades nesse momento difícil; de o que pode atrair uma onda de novos consu- gar ou compensar as negativas e as ações para tiva.
outro, o discurso dos setores mais sofistica- midores interessados apenas em preço baixo. potencializar as positivas. Idealmente, esse
dos e internacionalizados em relação à cen- mapa deve também mostrar como essas ocor- HORA DE RASTREAR A BOIADA
Reflexos tralidade da questão da sustentabilidade, da O BRASIL SEGUE NO JOGO rências podem afetar o valor da empresa. Para a ex-ministra do Meio Ambiente e
negativos ou A BlackRock é
conservação ambiental e das políticas trans- Apesar de avaliar o momento atual como “Esse repertório é muito novo. Imagine senior fellow do Centro Brasileiro de Relações
positivos de uma a maior gestora
parentes, que são compromissos do País com volátil e de grandes incertezas em razão das uma pirâmide empresarial. Faça um corte na Internacionais (Cebri), Izabella Teixeira, uma de investimentos
atividade que
são sentidos o sistema global. “O fim desse ambiente pola- polarizações locais e globais, Roberto Silva metade. A parte de cima já ouviu falar nesses nova conformação de mundo vem ocorrendo do mundo, com
por aqueles que US$ 7 trilhões em
rizado pode levar até uma década para acon- Waack, presidente do conselho do Institu- conceitos e sabe que é algo relevante. Subin- há tempos, embora em alguns países de ma-
pouco ou nada ativos. Em 2019,
tecer. Não vejo perspectiva de curto e médio to Arapyaú e conselheiro da Marfrig, se diz do a barra para o topo, um quinto da pirâmide neira mais pontual. A ativista Greta Thunberg, seu presidente
contribuíram para
gerá-los. No caso prazo e acho que questões de conservação am- otimista em relação à participação do Bra- está efetivamente tentando usá-los. E, ali, só a Encíclica Laudato Si’, a carta da BlackRock, Larry Fink, em sua
de externalidades carta anual aos CEO
biental e de políticas mais transparentes, por sil nos debates internacionais no campo da um décimo está usando de verdade”. O qua- as ameaças dos grandes mercados consumi-
negativas, os globais, convidou
enquanto, estarão apenas na agenda de uma sustentabilidade. “O governo brasileiro está dro parece ruim, mas o otimismo de Waack dores de boicotar o comércio com países não os executivos a
prejuízos impostos
à sociedade não elite do mundo empresarial” , deduz. fora desse debate, mas a sociedade civil e a se baseia justamente neste momento inédi- comprometidos com agendas ESG, a pro- reavaliarem os
são arcados por pressupostos
Compõem essa elite, por exemplo, os três sociedade empresarial estão mais dentro to de muita busca por conscientização e ins- posta de decrescimento econômico da Holan-
aqueles que os básicos de suas
maiores bancos privados do País – Bradesco, do que nunca e continuam pautando grande trumentalização, em um período de pande- da não são fatos isolados, são resultados desse empresas,
provocam, e sim
pagos por todos Itaú Unibanco e Santander – que, em agosto parte desse movimento.” Segundo ele, per- mia com grande restrição de recursos. Esse processo de transformação. Segundo ela, a considerando os
riscos climáticos
passado, propuseram ao governo brasileiro siste uma conexão forte entre a sociedade avanço pode ser parte do aprendizado que a Covid-19 chega escancarando a globalização
e seus impactos
um plano de desenvolvimento sustentável brasileira – civil e empresarial – e o sistema pandemia deixará para a civilização. Waack e tem um efeito catalisador que sinaliza a ur- sobre o mundo
para Amazônia. Segundo Maneto, esse mo- financeiro internacional, tanto no main- acredita que o momento joga luz sobre as de- gência de um novo business as usual. tangível e o sistema
que financia o
Maior produtora vimento foi importante, não apenas pela stream econômico (fundos de investimento) sigualdades, sobre o excesso de coisas inúteis O ritmo das mudanças dependerá das es-
crescimento
global de papel proposta em si, mas porque mostra que fi- quanto na filantropia. Essas atividades só não sendo consumidas, sobre a necessidade de um colhas de cada sociedade. “Estamos vivendo econômico
e de celulose de
eucalipto, além
nalmente os bancos privados decidiram mi- estão mais tão explícitas, talvez para evitar maior equilíbrio das relações humanas com a esse momento de mundo que pode resultar em
de estar entre as grar de um compromisso mais conceitual, eventuais retaliações. Ou seja, de acordo com questão ambiental. E lembra que as projeções uma transição passo a passo, bem articulada e
líderes brasileiras com pouco enraizamento em ações, que são Waack, investimentos voltados à sustenta- do mundo pós-Covid-19 já estão mostrando calibrada, ou pode ser um processo disrupti-
em ações
socioambientais,
os Princípios do Equador. “Após cerca de 20 bilidade, e muito particularmente à trans- que, se é para recuperar a economia global, vo. Eu aposto em um processo mais calibrado e
Sigla em inglês
é também climate anos de aparente contradição entre o dis- parência, continuam fluindo para dentro do que a recuperem mais verde e com mais jus- coordenado, mesmo sabendo que vamos lidar para ambiental,
positive, isto é, curso e a prática, os bancos deram um passo País. “O que os investidores internacionais tiça social. Essa tendência está muito clara e cada vez mais com as incertezas e a volatilida- social e governança
retira da atmosfera (ASG), critérios
mais carbono do
realmente importante.” mais estão pedindo é rastreabilidade. Eles surpreendentemente intensa na Alemanha, de dos fenômenos naturais” , afirma.
aplicáveis às
que sua cadeia de Ao jornal Valor Econômico, o professor de têm interesse na commodity brasileira, mas França, China, e entre os grandes fundos de Considerando a magnitude do impacto decisões de
valor emite Harvard e Prêmio Nobel de Economia (2016), querem saber de onde vem o produto e como investimento globais. “Não posso acreditar econômico provocado pela pandemia, a ex- investimentos
Oliver Hart, afirmou que as empresas não foi produzido. A exigência da transparência que o Brasil, o país mais competitivo para -ministra avalia o momento como uma opor-

16 PÁ G I N A 2 2 O U T U B R O 2 0 2 0 PÁ G I N A 2 2 O U T U B R O 2 0 2 0 17
CAPA

“Não se trata mais de passar a boiada, trata-se esse “pecado” não é exclusivo dos países si-
tuados abaixo da linha do Equador. Moutinho
Amazônia. Segundo ele, os envolvidos em
importação e exportação de commodities Movimento

agora de rastrear a boiada”, diz a ex-ministra


multissetorial
recorda o caso da Volkswagen alemã, que veio agrícolas gostam de citar a Moratória da Soja que nasceu em
à tona em 2015. A indústria teria escamotea- em seus instrumentos de disclosure como um 2015, às vésperas
do ao máximo o fato de que seus automóveis caso de sustentabilidade. Contudo, Moutinho da Conferência
do Clima que
movidos a diesel estavam equipados com um lamenta que a busca por uma moratória para o estabeleceu o
software que manipulava dados sobre emis- Cerrado, que é o berço da produção de soja no Acordo de Paris
sões de poluentes. “Primeiro disseram que o Brasil, não esteja prosperando por resistência para o combate à
mudança climática.
problema não existia, depois assumiram que desses mesmos players. “No Cerrado do Mato O grupo foi criado
tunidade de elevar o patamar das discussões nesse tema? Quase nenhuma.” O presidente de fato havia uma falha no software. Só mes- Grosso, 70% das propriedades produtoras de para promover
sobre sustentabilidade. As principais ten- do Ethos aponta também a falta de transpa- mo quando o calo apertou, a direção revelou soja estão ilegais do ponto de vista de com- o diálogo entre
ambientalistas e
dências já batem à porta das empresas: tra- rência no tema das desigualdades salariais se tratar de uma fraude e pediu desculpas.” pliance com o Código Florestal e uma eventual agropecuaristas.
balhar com capacidade de resiliência de seto- internas entre homens e mulheres, ou entre O dirigente do Ipam questiona a transpa- penalidade excluiria produtores do sistema, o É composto por
res produtivos, com coeficiente de eficiência os maiores e os menores salários. rência dos grandes financiadores do mercado que não é do interesse dos traders”
, diz. entidades do
agronegócio
energética, rastreabilidade e transparência. Em 2018 foi preciso a Comissão de Valores internacional que atualmente ameaçam boi- Qualquer previsão sobre um desfecho no Brasil,
“O setor privado é corresponsável, junto Mobiliários (CVM) entrar com uma ação na cotar produtos brasileiros em desalinho com desse cenário no Brasil é exercício de adivi- organizações civis
com os governos, por essa equação ambien- Justiça para derrubar uma liminar, impetra- os princípios ESG. A poluição das cadeias de nhação. No entanto, aproveitando a metáfo- da área de meio
ambiente e clima,
tal. Naturalmente, haverá reações de seg- da pelo Instituto Brasileiro de Executivos de valor contaminadas pelo desmatamento pa- ra da “onda” mundial que está se formando representantes do
mentos conservadores para retardar esse Finanças, que proibia a divulgação das equi- rece ser o ícone desse processo, em associação no horizonte e que precisa ser “surfada” pelo meio acadêmico,
processo, mas ele é inevitável e quem sair parações salariais dos executivos. Vitoriosa, a com as queimadas e os direitos humanos, mas Brasil, há uma convergência de opiniões de associações
setoriais e
na frente terá um custo [de transição] me- CVM abriu os dados e divulgou a informação Moutinho enxerga outros interesses por trás que o setor empresarial tem um papel essen- companhias
nor” , afirma. “Não se trata mais de passar a de que a remuneração anual de presidentes de de ameaças tão contundentes. Segundo ele, os cial no sucesso dessa performance. Enquan-
boiada, trata-se agora de rastrear a boiada” , grandes bancos brasileiros chegavam a cerca europeus historicamente sempre protegeram to Maneto detecta a ausência de lideranças
complementa ela, fazendo uma referência à de R$ 40 milhões em salários e benefícios. seus mercados e seus produtores de países no setor com uma força capaz de influenciar
fala do ministro do Meio Ambiente, Ricardo No fim de setembro, o ex-diretor da Pre- competitivos como o Brasil e esse, na opinião a base da pirâmide na direção da sustentabi-
Salles, durante reunião ministerial realiza- vi e especialista em governança corporativa, dele, é mais um caso típico de transparência lidade, o otimismo de Izabella Teixeira não
da em abril deste ano, em que aparece defen- Renato Chaves, fez um levantamento sobre os conveniente por parte desses players. esmorece: “Chegou a hora de o empresariado
dendo o afrouxamento das leis ambientais. salários dos CEO no Brasil, mostrando que os Outro caso controverso mencionado por brasileiro mostrar seu valor. Eles precisam
principais executivos das companhias aber- Moutinho é o da Moratória da Soja, pacto fir- deixar de apenas tangenciar o problema,
CONVENIÊNCIA tas chegam a ganhar 600 vezes mais que a re- mado em 2006 entre entidades representa- incorporar o conceito de corresponsabili-
Apesar de as tendências mundiais pedi- muneração média paga aos funcionários das tivas dos produtores de soja, sociedade civil dade que está emergindo no mundo entre os
rem mais transparência na esfera empresa- empresas em que trabalham. “Não estou afir- e com o governo, proibindo a compra de soja grupos privados e ambicionar, de fato, uma
rial, o presidente do Instituto Ethos, Caio Ma- mando que essas distorções salariais devam proveniente de áreas recém-desmatadas na agenda de sustentabilidade”.
gri, avalia que, no Brasil, o setor, que já estava ser corrigidas, mas é do interesse dos stake-
aquém do ideal, ainda deu um passo atrás em holders que estejam transparentes” , diz Magri.
relação ao período pré-pandemia. Ele atribui Na visão do ecologista e cofundador do
esse refluxo a uma percepção equivocada por Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazô-
parte dos empresários de que a transparência nia (Ipam), Paulo Moutinho, pode até estar DECISÕES OPACAS
aumentará ainda mais o risco financeiro du- em curso uma evolução na percepção e no fer-
rante esse período. Como se abrir as decisões ramental usado para exercer a transparência Durante a produção desta reportagem, surgiu o assunto das entidades do setor agropecuário que, em
da empresa fosse aumentar os riscos de com- das atividades empresariais, mas o cerne, que dezembro de 2019, se desfiliaram de uma só vez da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura sem
petitividade e de concorrência. Mas é o con- é transformar a transparência em um objeti- explicitar publicamente o que as levou a tomar essa decisão. Na falta de transparência sobre o motivo da
trário: “A transparência aumenta a confiança vo orgânico nas empresas, não evoluiu. “Por debandada, prevaleceu a ideia de que a saída das entidades teria ocorrido em razão de um pedido feito pelo
e diminui as vulnerabilidades”. não ser da área empresarial, posso estar su- ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, insatisfeito com o posicionamento mais contundente da Coalizão
Para Magri, os relatos socioambientais bestimando minha avaliação, mas creio que frente ao aumento das queimadas e do desmatamento na Amazônia.
disponibilizados para a sociedade também as empresas só são transparentes quando Para dirimir as dúvidas que permaneceram no ar, a reportagem procurou a Coalizão e três entidades
não estão cumprindo bem o papel da trans- lhes é conveniente” , diz. desfiliadas na ocasião: a Sociedade Rural Brasileira (da qual Salles já foi dirigente), a Associação Brasileira das
parência. “Que empresa fez um censo auto- Segundo ele, quando surge um problema Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) e a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). A Coalizão não quis
declarado, mostrando a diversidade em seus mais sério, a tendência é reagir defensiva- se pronunciar. A Abiove enviou um e-mail justificando o seu afastamento “pelo distanciamento da forma de
quadros quanto ao gênero, à raça, aos LGB- mente. “Não lembro de nenhuma dizer: olha, posicionamento da organização”. As demais entidades não responderam a solicitação de entrevista.
TQ+? E se algumas fizeram, quantas abriram aqui de fato existe um problema sério, pisa-
os dados para mostrar sua real fotografia mos na bola, falhamos e queremos mudar.” E

18 PÁ G I N A 2 2 O U T U B R O 2 0 2 0 PÁ G I N A 2 2 O U T U B R O 2 0 2 0 19
REPORTAGEM CULTURA

Um campo de batalha Instaurar uma cultura da transparência é um longo


processo, em estreita relação com o avanço da
da democracia democracia, o combate à corrupção e a superação
POR DIEGO VIANA F O T O KARSTEN WINEGEART/ U N S P L A S H da "tradição patrimonialista"

A
“cultura da transparência” tornou-
-se uma expressão tão ubíqua que é No auge das
queimadas em
fácil perder de vista a dificuldade 2019, o presidente
de cultivá-la. As recentes dificul- Jair Bolsonaro
dades enfrentadas por jornalistas e acusou o Instituto
Nacional de
pesquisadores para obter dados por meio da Pesquisas Espaciais
Lei de Acesso à Informação (LAI), o decreto (Inpe) de mentir
que, em 2019, tentou ampliar o sigilo de do- sobre os dados
obtidos por satélite,
cumentos do governo, e a disputa em torno do episódio que levou
monitoramento da Amazônia reacendem à exoneração do
a antiga preocupação: como garantir que a diretor Ricardo
Galvão
sociedade saiba como está sendo governada?
Instaurar uma cultura da transparência é
um longo processo, em estreita relação com o
avanço da democracia, o combate à corrupção
e a superação da chamada tradição patrimo-
nialista, segundo explicação de Marco Anto-
nio Teixeira, professor de Gestão Pública da
Fundação Getulio Vargas de São Paulo.
O vínculo entre democracia e transparên-
cia é visível: no regime em que a população
é considerada responsável pelo próprio des-
tino, ela deve poder controlar o que fazem
os governantes. Daí se segue o vínculo entre
transparência e corrupção: a vigilância dos
cidadãos dissuade os agentes de usar a coisa
pública em benefício próprio. Já a tradição pa-
trimonialista designa o hábito de não distin-
guir, ou distinguir mal, o que é público do que
é privado; e é considerada um grande obstá-
culo à cultura da transparência no Brasil.
Segundo Teixeira, a transparência é “uma
das reivindicações morais fundamentais nas
sociedades democráticas, em que o direito
do povo de ter acesso às informações é am-
plamente aceito”. Portanto, um traço funda-
mental do espírito republicano é que as de-

20 PÁ G I N A 2 2 O U T U B R O 2 0 2 0 PÁ G I N A 2 2 O U T U B R O 2 0 2 0 21
CULTURA

Grupos que consideram a transparência um estorvo não entenderam que a democracia dá trabalho

cisões tomadas são expostas, não apenas em primeira a obrigar os gestores a deixar dis- po de batalha decisivo no avanço da cultura ção rigorosa de órgãos de transparência ou da
Lançado em
seus resultados, mas também em seus pro- poníveis seus números “praticamente em democrática. Grupos políticos que lidam mal imprensa pode produzir um aumento da per-
2000, o Pacto
cessos. “É uma questão de explicar como se tempo real”. com a democracia sempre se esforçarão por cepção da corrupção, quando o problema, na Global é uma
chegou a esse resultado” , diz. Outras leis importantes se seguiram, esconder dados ou torná-los menos claros, verdade, está diminuindo. chamada das
Nações Unidas
Assim, o princípio da democracia já como a Lei de Transparência, de 2009, que seja ampliando o sigilo de documentos, seja No entanto, observa Aranha, a medida da
para as empresas
aponta para aquilo que hoje se denomina obrigou entidades públicas a esclarecer suas atrasando a atualização do portal da trans- percepção revela traços presentes na própria alinharem suas
accountability, isto é, a capacidade e a obri- despesas e receitas, e a Lei de Acesso à Infor- parência, ou ainda enfraquecendo espaços de sociedade, isto é, características culturais. estratégias e
operações a
gação de prestar contas do que é feito e como mação, de 2011, que forneceu mecanismos participação social, como os conselhos. “Quando a percepção da corrupção é alta,
10 princípios
se faz. A transparência, por sua vez, é indis- para que a população exigisse dados do go- No início de seu mandato como presiden- muitos maus comportamentos são desculpa- universais nas
pensável à accountability: só é possível pres- verno. Em 2015, foi aprovada a Lei nº 13.109, te, Jair Bolsonaro (sem partido) chegou a edi- dos. Alguém que tem a expectativa de que a áreas de Direitos
Humanos, Trabalho,
tar contas se as informações estão acessíveis que define as relações do poder público com tar um decreto-lei extinguindo alguns desses outra pessoa vai ser corrupta se permite ser
Meio Ambiente
e compreensíveis. “Accountability nada mais organizações da sociedade civil. conselhos, mas sua decisão foi revertida pelo corrupta também, dizendo que, se todos fa- e Anticorrupção.
é do que responsabilização. É prestar contas, Nem tudo são avanços, porém: a Consti- Supremo Tribunal Federal. “Essa é a marca zem errado, quem não faz é besta” , explica. “O Possui cerca de 14
mil membros em
justificar, dizer por que uma decisão foi to- tuição prevê a criação de um Conselho de Fi- de grupos que consideram a participação e a que a percepção mede é o grau de tolerância
70 redes locais,
mada ou não” , resume Teixeira. nanças Públicas, que unificaria as informa- transparência um estorvo, que não deixam das pessoas em relação ao fenômeno da cor- que abrangem 160
ções do orçamento público. Segundo Teixeira, governar ou tornam as decisões mais lentas. rupção. Isto tem implicações grandes nas países
AVANÇOS DEMOCRÁTICOS a ausência desse conselho facilita aos gover- São grupos que não entenderam que a demo- práticas das pessoas.”
Os escândalos de corrupção nos últimos nantes mudar métodos e regras, o que leva à cracia dá trabalho” , explica. A alta percepção de corrupção tem um
anos, somados às tentativas de reverter chamada “contabilidade criativa” , pela qual Segundo Daniela Lerda, coordenadora da efeito negativo particularmente insidioso:
avanços presentes na LAI, fortalecem a sen- se busca esconder a irresponsabilidade com o Aliança pelo Clima e Uso da Terra no Bra- ela pode gerar “uma certa apatia política”.
sação de que a opacidade reina no Brasil. Mas dinheiro público. sil, da Fundação Ford, o enfraquecimento “As pessoas se dizem cansadas, consideram
essa má fama deve ser posta em perspectiva, Há várias escalas para a transparência, dos espaços de participação, a partir do ano a corrupção uma fatalidade, contra a qual não
segundo Teixeira. Há países com séculos de para além da disponibilidade das informa- passado, teve um forte efeito sobre a capa- é possível fazer nada. Na sociedade civil, isto
lenta evolução na institucionalidade demo- ções, a dita transparência ativa. É preciso que cidade de pressão da sociedade civil sobre o enfraquece as mobilizações e a capacidade de
crática, que vêm desenvolvendo há gerações elas estejam acessíveis e compreensíveis, e governo. “Ao longo de 12 anos, nós nos acos- reivindicar” , lamenta. “Outro efeito é o mo-
as “práticas de compartilhamento da infor- não simplesmente escondidas no website de tumamos com uma série de mecanismos de ralismo: acreditar que a via de escape da cor-
mação”. Também há países mais opacos que prefeituras, autarquias e ministérios. Em se- intervenção da sociedade nas políticas pú- rupção é mudar o caráter das pessoas.”
o Brasil, em que a participação da sociedade guida, existe a transparência passiva, quando blicas, que têm sido restritos ao máximo, ou Por outro lado, os avanços da lei têm um
nas decisões do governo mal é considerada. uma solicitação de cidadãos é atendida: esta é até mesmo extintos: conselhos para discutir impacto visível sobre traços culturais arrai-
Mas a principal comparação é com a pró- uma das inovações da LAI. alimentação, agricultura familiar, popula- gados. Aranha se refere à Lei Anticorrupção,
pria tradição do País. Os avanços da parti- Mas o conceito não para por aí: uma vez que ções tradicionais” , relata. “O resultado é um de 2014, que mudou a prática dentro de grandes
cipação social e do acesso à informação não a transparência está na raiz da responsabili- constrangimento: sem esses espaços, onde empresas: “Ouço sempre de advogados que o
apenas são um movimento de consolidação zação e da prestação de contas, sobretudo no as organizações podem atuar?” trabalho deles foi completamente transfor-
da democracia. São também processos de poder público, ela também envolve a necessi- Uma cultura opaca ou transparente se re- mado. Eles dizem que jamais se preocuparam
combate e erosão da tradição patrimonialis- dade da participação social. Este é o papel das força por conta própria, como uma bola de com a possibilidade de ser apanhados quando
ta, afirma Teixeira. instituições colegiadas, como o Conselho Na- neve. “É assim que os avanços e retrocessos faziam coisas fora da lei” , relata.
A Constituição de 1988 é um marco de- cional do Meio Ambiente (Conama), o Conse- da transparência se refletem na corrupção” , A própria Lei de Acesso à Informação,
terminante da cultura de transparência no lho Nacional de Saúde (CNS) ou o Conselho Na- explica a cientista política Ana Luiza Aranha, apesar de enfrentar problemas e resistên-
Brasil. “Foi ela que determinou incorporar a cional de Segurança Pública (Conasp) e outros, assessora anticorrupção do Pacto Global, cias, mudou a cultura. “O setor público não
população nas decisões de políticas públicas, além de conselhos estaduais e municipais. dando o exemplo da medida da percepção da tem mais a postura do ‘por que você quer sa-
fornecendo informações” , aponta. O profes- corrupção. Esta é a medida mais comum da ber isso’. A ideia de que a informação tem que
sor assinala que o primeiro campo a avançar DISPUTAS presença de corrupção em um país ou socie- estar disponível é o ponto de partida” , afirma
na transparência, a partir da Constituição, Se a transparência é o ponto de partida dade. Claro que desvios percebidos não cor- Aranha. Teixeira acrescenta que a categoria
foi o dos gastos públicos. O grande marco foi para a presença da sociedade nas decisões respondem perfeitamente aos atos corruptos que mais acessa a LAI não é a dos jornalistas,
a Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000, a de política pública, diz Teixeira, é um cam- que acontecem de fato, a tal ponto que a atua- mas a dos advogados: em geral, são contra-

22 PÁ G I N A 2 2 O U T U B R O 2 0 2 0 PÁ G I N A 2 2 O U T U B R O 2 0 2 0 23
CULTURA

FOTO: TAKUMÃ KUIKURO/FOTOS PÚBLICAS

O campo ambiental chama atenção


por ter obtido avanços antes mesmo da
Constituição de 1988 – e isso tem muito a ver
com a mobilização da sociedade civil

Registro público tados de empresas que perderam licitações, tores do Estado, introduziu mecanismos de
eletrônico nacional, cujo trabalho é esquadrinhar editais e outros participação e transparência, tais como con-
obrigatório para documentos para entrar com recursos. selhos federais, estaduais e municipais de
todos os imóveis
rurais, que integra meio ambiente, comitês de bacia, conselhos
informações TRANSPARÊNCIA AMBIENTAL de Unidade de Conservação. A transparência
ambientais das Antes mesmo da Constituição de 1988, um foi se constituindo em sistemas, cadastros,
propriedades e
posses rurais setor já reivindicava – e obtinha – avanços de obrigações de transparência ativa e passiva”
,
referentes à transparência: o movimento ambientalista. completa o coordenador. Conservação, Terras Indígenas, áreas qui- que legalizaria propriedades irregulares com
situação de Ainda durante a ditadura militar, em 1981, Aos poucos, foram criados diversos me- lombolas, áreas produtivas). Isso favorece até seis módulos fiscais (na Amazônia, cada
áreas protegidas
como Áreas de entrou em vigor o Plano Nacional de Meio canismos de informação no setor ambiental, quem queira invadi-las para, mais tarde, módulo fiscal pode corresponder a até 110
Preservação Ambiente, que continha o projeto de um sis- como o Programa de Cálculo do Desflores- demandar sua regularização. hectares). Essa lei substituiria a Medida Pro-
Permanente e tema de informações ambientais em escala tamento da Amazônia (Prodes), o cadastro É fácil criar um número de CAR, a tal visória 910, que caducou em maio.
Reserva Legal,
compondo nacional, embrião do Sistema Nacional do do Snuc, o Sistema Nacional de Informações ponto que existem cadastros dentro de Ter- Além disso, a fiscalização é insuficiente.
base de dados Meio Ambiente (Sisnama). sobre Recursos Hídricos (Snirh), o Sistema ras Indígenas, onde não deveria ser possí- “Sem uma fiscalização efetiva do governo,
para controle, “Sem ter entrado no processo de redemo- de Registro Nacional de Emissões (Sirene). vel. Em estados como Pará e Mato Grosso, seja na emissão de licenças, seja no controle
monitoramento,
planejamento cratização, o Brasil já tinha um marco legal que, “O Brasil conta com uma legislação robusta levantamentos concluíram que as áreas feito por órgãos públicos, é difícil atribuir res-
ambiental e para a sua época, era muito avançado, reconhe- e com práticas de transparência ambiental reivindicadas somam uma superfície maior ponsabilidades quando algo errado é encon-
econômico e cendo que o Estado tem a obrigação de gerar in- bastante avançadas” , afirma Morgado. do que o próprio território. Os números são trado” , explica. “É preciso um setor público
combate ao
desmatamento formação ambiental e deixá-la disponível” , diz Esses sistemas, à medida em que se tor- fortes indicativos de grilagem. A conivência fortalecido, que possa verificar e punir quem
Renato Morgado, coordenador do Programa de nam públicos, permitem um controle maior de poderes locais, a proximidade com lide- está agindo ilegalmente. Mas justamente os
Integridade Socioambiental da Transparência sobre todo o processo que leva ao desmata- ranças políticas e a dificuldade em obter in- servidores que estão buscando cumprir a lei
Internacional Brasil. Antes da Lei de Acesso à mento e à degradação ambiental. Analisan- formações distribuídas por cartórios onde sofrem sanções de seus superiores” , alerta.
Licença
Informação, que entrou em vigor em 2011, já do o Cadastro Ambiental Rural (CAR), o a digitalização avançou lentamente foram Esse é um dos motivos pelos quais o pro-
obrigatória para
o controle do existia a Lei nº 10.650, de 2003, determinando Documento de Origem Florestal (DOF) grandes facilitadores da grilagem. blema do desmatamento na Amazônia, que
transporte e a acessibilidade das informações ambientais. e outros dados, é possível saber quem é res- O cenário de opacidade e indefinição é um chamou atenção de observadores interna-
armazenamento
Morgado atribui esse avanço do setor ponsável pelo desmate de uma área ou pela incentivo à ocupação ilegal de terras em bio- cionais e pôs o governo brasileiro em conflito
de produtos e
subprodutos ambiental à capacidade de organização e extração ilegal de madeira. A partir dessas mas como a Amazônia e o Cerrado, segundo com financiadores como a Alemanha e a No-
florestais de mobilização de entidades da sociedade civil informações, podem ser tomadas medidas Daniela Lerda, da Fundação Ford. Frequen- ruega, desenrola-se, também, como dispu-
origem nativa. O
dedicadas ao tema. “O setor ambiental com- tanto na esfera pública quanto na privada. temente, o avanço sobre os territórios foi ta em torno da coleta e divulgação de infor-
documento deve
conter informações preendeu desde o início que o avanço rumo à No entanto, ainda há muito caminho a apoiado pelos governos federal e estaduais, mações. O esforço de enfraquecer a atuação
sobre as espécies, sustentabilidade é indissociável da transpa- percorrer. A falta de dados disponíveis e de sobretudo a partir da década de 1950, e refor- do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
tipo do material,
rência e da participação” , afirma. “Consegui- definições legais está na fonte de uma das çado por lobbies em Brasília. (Inpe) na divulgação de dados de desmata-
volume, valor do
carregamento, ram instituir, pouco a pouco, as várias polí- maiores causas do desmatamento no Brasil: Ocupantes das terras têm conforto para mento na Amazônia tem como pano de fundo
placa do veículo, ticas do guarda-chuva ambiental: política de a grilagem, ou seja, a apropriação fraudada especular e desmatar porque repetidas leis de a produção de dúvidas em relação às infor-
origem, destino,
recursos hídricos, de mudança climática, o de terras. Ainda há muitas terras públicas regularização são apresentadas ao Congres- mações disponíveis, afirma Lerda. Ou seja, a
além da rota
detalhada do Snuc [Sistema Nacional de Unidades de Con- com propriedade indefinida (se perten- so e, muitas delas, aprovadas, gerando uma instauração de uma atmosfera mais opaca e,
transporte servação] e assim por diante. cem à União ou aos estados) e sem destina- expectativa de impunidade e anistia. Atual- consequentemente, mais hostil às pressões e
A sociedade civil, em parceria com se- ção definida (se deverão virar Unidades de mente, o governo tenta aprovar a Lei nº 2.633, à participação da sociedade civil.

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REPORTAGEM AMAZÔNIA

Neblina
na floresta
Caixas-pretas na região amazônica levam riscos aos negócios,
ao colocar o Brasil como vilão do desmatamento

POR SÉRGIO ADEODATO FOTO BRUNO KELLY/AMAZÔNIA REAL

U
ma cortina de fumaça tomava conta do amanhecer daquela terça-feira plúmbea de
Estudo do setembro em Manaus, a maior metrópole da Amazônia. O “nevoeiro” indicava mais
Instituto de
Pesquisa Ambiental do que a expansão das queimadas no interior da floresta e os impactos ao clima glo-
da Amazônia e bal, à biodiversidade e saúde respiratória de quem já convive no dia a dia com o drama
da Human Rights da Covid-19. Em 2019, a poluição do fogo causou pelo menos 2,2 mil internações
Watch revela o
custo de R$ 5,6 em toda a região, metade relativa a pessoas com 60 anos ou mais – números que, em meio à
milhões para o imensidão verde, expõem desafios ainda ocultos para a maior parte da sociedade.
sistema de saúde Entre 1º e 8 de setembro de 2020, os focos de calor no Amazonas aumentaram 170% em
devido à fumaça
das queimadas relação ao mesmo período do ano passado, e por trás da nuvem de fumaça há uma Amazô-
nia obscura a ser desvendada. Nela, a riqueza natural convive com a desigualdade social e o
submundo da violência e da ilegalidade: grilagem de terras, conflitos fundiários, tráfico de
drogas, animais e pessoas, desmatamento. Mas a crescente exposição global pela demanda
da mitigação climática joga holofotes na escuridão da floresta. E a necessidade de abrir portas
e janelas para entender e resolver os seus problemas – que na verdade são de todo o planeta –
pode tornar a região fiel sinalizadora do movimento de governos e empresas em torno de um
tema essencial à sustentabilidade: o da transparência.
Uma das principais caixas-pretas da maior floresta tropical do mundo está nos garim-
pos, ou seja, na cadeia do ouro, diamantes e outros minerais – ativo que chama atenção pela
valorização como lastro de reservas cambiais dos países e investimento na paralisia econô-
mica global, devido à Covid-19. Com um alerta: quem compra alianças de casamento ou aplica
em fundos baseados na rentabilidade do que sai dos garimpos da Amazônia tem alta chance

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AMAZÔNIA

A corrida do ouro move engrenagens de corrupção e violência, com fiscalização que chega a ser bizarra

de financiar impactos irreversíveis à floresta, crescimento de conflitos com povos indí- para a garantia do lastro ambiental ao ouro rência ocupa o centro do debate na pecuária –
Dados do Banco
A Associação com morte de rios e danos à saúde e à biodi- genas e tradicionais, em locais de potencial brasileiro. Um levantamento de dados públi- principal vetor de desmatamento e emissões Mundial indicam
Nacional do Ouro
versidade pela poluição do mercúrio, asso- para extração. Nos últimos dez anos, a ANM cos, desenvolvido pela organização, inspirou de gases de efeito estufa. A rastreabilidade que o mundo perde
estima que pelo
ciado a esquemas de contrabando. registrou 656 processos minerários nesses campanha nas redes sociais dirigida a com- da carne requer acesso a dados completos da US$ 15 bilhões por
menos dois terços
ano em impostos
da produção territórios, com tendência de alta. Além dos pradores: “Seus brincos dourados podem ser Guia de Transporte Animal (GTA), inclu- que deixam de ser
brasileira seja
OURO DE TOLO Munduruku, no Pará, os pedidos se concen- tão pesados quanto uma floresta. Consegue sive para controle dos fornecedores indiretos arrecadados devido
ilegal
A corrida do ouro move engrenagens da traram nas terras dos Kaxuyana e dos Kaya- lidar com isso?”, dizia uma das mensagens. dos frigoríficos, ainda desprovidos de con- à exploração ilegal
de madeira
corrupção e violência onde muitas vezes im- pó, ambos também no Pará, e dos Yanomami, A análise revelou os maiores arrecadado- trole seguro (mais na reportagem à pág. 33).
pera a lei da selva, escondida pela realidade em Roraima e no Amazonas, segundo divul- res da Compensação Financeira pela Explo- Há caminhos em testes no mercado. “Mas
difusa do isolamento amazônico. Da origem gado pela Agência Pública. ração de Recursos Minerais (CFEM), as con- a prioridade deve ser o fomento do diálogo e
A mineração
desmatou em 2019 na floresta ao mercado financeiro, indústrias Os garimpeiros de hoje estão longe da cessões de lavras garimpeiras e os impactos transparência, que trazem luz a essa com- Documento
e 2020 mais do que de joias e exportações, o caminho do metal imagem romântica do trabalho manual com econômicos e ambientais. Em 2020, até o fim plexidade” , afirma Isabel Drigo, coordena- obrigatório
a soma dos três está aberto a processos de “lavagem” por bateia e peneira. Eles usam maquinário pe- de julho, foram exportadas 54,9 toneladas de dora de cadeias agropecuárias e florestais do para o trânsito
anos anteriores, interestadual de
com liderança do meio de permissões falsas e outras operações sado, de maior capacidade destrutiva, para minério de ouro (US$ 2,5 bilhões), com cres- Instituto de Manejo e Certificação Florestal gado para abate,
Pará, segundo fraudulentas. “Não há sistema de controle explorar o ouro primário, mais abaixo da su- cimento de 30% em relação a janeiro. e Agrícola (Imaflora). “Sozinhos, os grandes recria, engorda e
dados dos alertas como em outros ativos, e a fiscalização che- perfície, pois acima dela as jazidas já se esgo- frigoríficos não resolverão o problema do reprodução, por
do Deter/Inpe exemplo
ga a ser bizarra, com notas fiscais de papel” , taram. Basta ver a movimentação do porto de NÓ DA MADEIRA desmatamento pela pecuária” , adverte.
afirma Ana Carolina Bragança, procuradora Itaituba (PA), no Rio Tapajós, segundo maior “Ter informação não é suficiente; é pre- No projeto Boi na Linha, a ONG harmo-
da República no Amazonas. “Já na primeira município brasileiro produtor de ouro, atrás ciso utilizá-la” , observa Renato Morgado, nizou protocolos e critérios para monitora-
aquisição nesta cadeia, o ouro ganha aparên- de Paracatu (MG). A cidade do oeste paraense, coordenador do Programa de Integridade mento e auditoria dos compromissos assu-
cia de legalidade” , revela. na Rodovia Transamazônica, é conhecida por Socioambiental da Transparência Interna- midos por frigoríficos de todos os portes que
Faltam dados confiáveis e o resultado, não abrigar a maior revendedora de uma multi- cional Brasil, em recente webinar sobre o se- operam na Amazônia, de modo a não com-
raro, é a exploração em áreas não permitidas, nacional de retroescavadeiras, tratores e ou- tor florestal. Para ele, o uso de dados serve prar de áreas desmatadas. A ideia é promo-
em reservas ambientais e Terras Indígenas, tros equipamentos, em parte financiados por não apenas ao controle e punição, mas como ver engajamento e melhores práticas, dimi-
por exemplo. “Precisamos avançar na ras- bancos públicos e privados. oportunidade de mercado, com a valorização nuindo impactos ambientais e sociais, como
treabilidade do ouro, até porque os problemas “Um movimento novo está ocorrendo na de quem adota padrões sustentáveis. o trabalho análogo à escravidão.
mancham a imagem do mercado minerário região: a confluência de interesses de garim- Com a Constituição Federal de 1988, a Lei O Termo de Ajuste de Conduta (TAC) da
como um todo” , recomenda a procuradora, in- peiros, mineradoras, grandes comerciantes de Acesso à Informação (2011), o Novo Código Carne, firmado em 2009 junto ao MPF, abran-
tegrante do Grupo de Trabalho (GT) Amazônia e agronegócio, que antes mantinham cer- Florestal (2012) e a Política Nacional de Dados ge hoje 89 frigoríficos que compram gado na
Legal do Ministério Público Federal (MPF). ta distância e hoje se sentem empoderados Abertos (2016), o Brasil, segundo Morgado, está Amazônia, entre os 115 existentes na região,
Ela lembra que o cenário atual de pressões pelo discurso do governo federal” , constata bem municiado de marcos legais relacionados sem contar os do Acre. Dos signatários, 55%
comerciais é propício a mudanças vindas do Alfredo de Almeida, pesquisador da Univer- à transparência. “Mas há bases de dados não foram auditados. “Não adianta só assinar um
mercado, em especial por parte de empre- sidade Federal do Amazonas. O projeto Nova integradas ou totalmente disponíveis” , ressal- papel e achar que a crise está resolvida”, com-
sas interessadas em separar o joio do trigo e, Cartografia Social da Amazônia, coordenado va. Um dos problemas mais visíveis consiste pleta a coordenadora, ao lembrar que a pressão
assim, tirar vantagens na competição com a por ele, mapeou a mineração e o garimpo em no controle da madeira nativa: 75% da pro- internacional impacta principalmente o pro-
ilegalidade. Terras Indígenas: a Amazônia é o epicentro, dução de toras do Pará e 44% do Mato Grosso duto exportado, em especial para a Europa, e
Por lei, a atividade requer a Permissão de na esteira da diminuição da fiscalização am- é ilegal, ou seja, é lastreada por autorizações grande parte do desmatamento causado pela
Lavra Garimpeira, conferida pela Agência biental sobre a atividade. “O País não toma irregulares que esquentam o produto obti- pecuária está associada a frigoríficos de me-
Nacional de Mineração (ANM); licenciamento pé do que está acontecendo e hoje a transpa- do de maneira predatória em terras públicas nor porte que fornecem ao mercado interno.
ambiental pelo município, estado ou União, rência é punida como crime por quem tem in- e outras áreas proibidas, segundo o Sistema
dependendo do porte do empreendimento; e teresses contrários”, lamenta o pesquisador. de Monitoramento da Exploração Madeireira NOVO CONSUMIDOR CHINÊS
notas fiscais emitidas pelas Distribuidoras de “O garimpo quer se legalizar, mas não as- (Simex), mantido pelo Instituto do Homem e O que acontece com os gigantes da car-
Títulos e Valores Minerários – representadas sumir a responsabilidade decorrente disso” , Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). ne, no entanto, resvala no mercado em ge-
pelos postos de compra situados nos garim- concorda Sérgio Leitão, diretor-executivo do ral. “Está surgindo um novo consumidor
pos, de onde o ouro segue para o mercado. Instituto Escolhas, que enviou uma propos- RASTREABILIDADE DA CARNE chinês, que vincula cada vez mais a saúde ao
A consequência da falta de controle é o ta à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) A preocupação em desatar nós da transpa- meio ambiente, após a Covid-19” , atesta Fa-

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AMAZÔNIA

O desmatamento afeta toda a economia. As medidas propostas pelos bancos precisam ser de curto prazo

biola Zerbini, diretora regional da Tropical ao Conselho Nacional da Amazônia Legal e dois meses. “Defendemos uma agenda de Es- fundamentado em informação de qualidade.
Forest Alliance (TFA). A organização iniciou criou um grupo consultivo de especialistas tado; uma chamada a ações pelo setor privado De acordo com ele, o futuro da região de-
rodadas de diálogo entre Brasil e China so- para implementá-las – um sinal claro de que com metas, indicadores e resultados concretos pende dessa abertura de caixas-pretas e a
As
A iniciativa bre pecuária sustentável, envolvendo autori- a preocupação saiu da bolha ambientalista e na redução do desmatamento” , destaca Mari- solução é basicamente política. Dessa forma, recomendações
abrange também dades de governo, empresas exportadoras, aterrissou no mundo financeiro. na Grossi, presidente do Conselho Empresarial “o caminho está no envolvimento da socie- vão da retomada
cacau com selo de da fiscalização
origem amazônica bancos financiadores e ONGs. “Estamos no epicentro das cadeias pro- Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável dade pelo poder de voto, já agora nas eleições
à destinação de
e soja beneficiada O objetivo é construir um mapa de rotas dutivas, da fazenda ao garimpo, e no que elas (CEBDS). A organização divulgou comunicado municipais, e pelo sentimento coletivo de 10 milhões de
por Pagamento baseado em acordos, para então se chegar a representam para o futuro dos nossos negó- ao Executivo, Legislativo e Judiciário em que desonra face à destruição da floresta” , com- hectares à proteção
por Serviços e uso sustentável
Ambientais um case (projeto demonstrativo) bilateral em cios”, disse Sérgio Rial, CEO do Santander, em ressalta a preocupação com o impacto da ima- pleta Waack, para quem a pressão comercial,
e concessão de
que rastreabilidade e intensificação produ- recente seminário virtual sobre a iniciativa. gem negativa do Brasil nos negócios, devido às na forma de boicote, pode ser uma armadilha. financiamentos
tiva são temas centrais. “O governo chinês Ele sublinhou: “São cadeias globais estraté- questões socioambientais da Amazônia. “Não sob critérios
socioambientais
tem demonstrado claramente o propósito de gicas e a Amazônia é a grande reguladora de dá para fazer mais do mesmo” , reforça Grossi. NÃO FALTA TECNOLOGIA, MAS AÇÃO
Desde setembro alimentar a população com segurança e crité- possibilidades para o Brasil continuar líder Marcello Brito, presidente da Associação Hoje em dia, não há como esconder pro-
de 2018, o sistema rios de sustentabilidade, e no mínimo separar no agronegócio”. Na visão do executivo, re- Brasileira do Agronegócio, integrante do mo- blemas diante dos avanços na inteligên-
subsidiou a análise o ilegal do legal”
, afirma Zerbini. novar a estrutura de coerção e fiscalização é vimento, vai além: “Somente o protagonismo cia artificial e dos inúmeros pesquisadores
de 70 mil propostas A plataforma
de crédito pelo “Tecnologias existem e com custo viável” , urgente, porque hoje “a possibilidade de ga- do setor privado, pela capacidade de investi- abastecidos por imagens de satélite mundo reúne perfis de
Banco da Amazônia, destaca Carlos Souza, diretor da empresa Ter- nho com ouro, por exemplo, é muito maior do mento, vai tirar a Amazônia do buraco, mas afora – sem falar do poder de replicação das 65 instituições
sendo que metade para emissão
ras, de Belém (PA), voltada a sistemas de ima- que o risco de ser preso”. isso só acontecerá dentro de um processo de redes sociais. “O desafio é muito mais de ação de relatórios de
foi reprovada
por problemas gens de satélite que apoiam bancos na análise Karine Bueno, superintendente executi- transparência que garanta a segurança jurí- do que de informação” , atesta Tasso Azevedo, desmatamento,
socioambientais de riscos para crédito rural sem desmata- va de sustentabilidade do banco, explica que dica”. Entre o legal e o ilegal, diz o empresá- coordenador do MapBiomas. com um total de
600 usuários
mento. A tecnologia está sendo refinada para a transparência se dará por meio de devolu- rio, existe o informal, “que é gigantesco na Barreiras do Cadastro Ambiental Ru- cadastrados,
que produtores rurais obtenham facilmente tivas à sociedade e uso de dados públicos na Amazônia e desfavorece investimentos”. Ele ral (CAR) para acesso a dados de identificação como órgãos de
comprovantes de conformidade ambiental gestão de riscos. No agronegócio, em expan- pergunta: “Quem faz a coisa correta está que- dos proprietários, por exemplo, não impedem controle, governos
e empresas
no telefone celular, e possam abrir portas em são nas operações da empresa, foi construído rendo esconder o quê?”. o poder público e a iniciativa privada de agir.
mercados preocupados com a origem do gado. um sistema de monitoramento 24 horas por Em igual caminho, a Coalizão Brasil Cli- “Não é preciso esperar uma área ser embarga-
Atualmente, segundo Souza, o aumento do satélite. “Com o compromisso público, a res- ma, Florestas e Agricultura, formada por da para reter crédito a quem desmata” , ilustra
desmate se deve mais a fatores especulativos ponsabilidade na execução aumenta” , enfa- mais de 300 representantes do agronegócio, Azevedo, ao lembrar que qualquer um pode fa- Registro público
do que produtivos, com ocupação de novas tiza Bueno, informando que o plano conjunto setor financeiro, sociedade civil e academia, cilmente receber relatórios de imagem de sa- eletrônico nacional,
fronteiras em terras públicas e áreas protegi- dos bancos será pragmático. entregou documento ao governo federal com télite sobre desmatamento, seja onde for. “Há obrigatório para
todos os imóveis
das. Tecnologias ágeis e precisas detectam o Tão logo o anúncio ganhou eco na mídia, seis propostas para a queda rápida do des- um processo político em curso de dificultar rurais, que integra
problema, mas há barreiras culturais, buro- reportagens apontaram que instituições fi- matamento, e uma delas pede “total transpa- esse monitoramento, mas, entre os seis sis- informações
cráticas e administrativas para maior escala nanceiras do Brasil e exterior destinaram R$ rência e eficiência às autorizações de supres- temas existentes no País, o único sem acesso ambientais das
propriedades e
do controle. “Instituições financeiras preci- 235 bilhões à criação e ao abate de gado na Ama- são da vegetação”. aberto é o do Ministério da Defesa” , explica. posses rurais
sam internalizar essas ferramentas, porque o zônia, entre 2016 e abril de 2020, segundo estu- Na Amazônia, há uma peculiaridade mar- Enquanto, há uma década, o Ibama recebia referentes à
controle passará de nicho a obrigação, e será do global do Forests and Finance (F&F). cante: “O paradoxo entre a clareza dos dados 1 mil relatórios por ano baseados em alertas situação de
áreas protegidas
necessário disponibilizar informação segura “O desmatamento da Amazônia afeta toda territoriais sobre ocupação e uso do solo, que dos sistemas de monitoramento, agora são como Áreas de
sobre os compromissos para a sociedade.” a economia e as medidas agora propostas pe- é um movimento inexorável devido às ima- 100 mil, o que representou 2 milhões de hec- Preservação
los bancos precisam ser de curto prazo para gens de satélite, e as obscuras transações que tares de desmatamento, no ano passado. No Permanente e
Reserva Legal
ENGAJAMENTO DOS BANCOS não prevalecer o discurso do Presidente da acontecem na região, impactadas por uma entanto, o dado de quantos efetivamente re- compondo
A transparência sobre a origem do gado República, que já reflete na contínua expan- grande nebulosidade de mentiras e falsas sultaram em medidas práticas de fiscalização base de dados
com desmatamento zero é prioridade na são da grilagem em novas fronteiras” , alerta verdades” , avalia Roberto Silva Waack, presi- só é disponibilizado pelo governo federal via para controle,
monitoramento,
agenda proposta para a Amazônia pelos três Paulo Barreto, pesquisador do Imazon. dente do conselho do Instituto Arapyaú, e in- Lei de Acesso à Informação. planejamento
maiores bancos privados brasileiros – Bra- tegrante de Uma Concertação pela Amazônia. Estudo realizado pelo Imaflora mostrou ambiental e
desco, Itaú e Santander –, diante dos riscos RISCOS À IMAGEM A iniciativa articula mais de 100 lideranças da melhora na abertura de dados em clima, flo- econômico e
combate ao
econômicos da imagem do País como vilão da A iniciativa dos bancos soma-se a outros academia, sociedade civil e iniciativa priva- resta e agricultura entre 2017 e 2020, no Bra- desmatamento
mudança climática. Em setembro, a aliança movimentos empresariais que fizeram périplo da, visando a construção de sinapses entre sil. “De que adianta isso, se na prática houve
entregou um manifesto com dez propostas nos gabinetes do poder em Brasília, nos últimos diferentes pontos de vista e o engajamento redução da fiscalização?” , questiona Leonar-

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AMAZÔNIA

Apesar de haver dados abertos,


públicos e gratuitos, é difícil
traduzi-los para a ampla sociedade
e ainda se vê um ambiente de guerra
entre informação e desinformação
do Sobral, gerente de certificação florestal da O aumento do desmatamento e das quei-
ONG. Faltam dados transparentes sobre ações madas, que neste ano assolaram não somente
de controle. O que existem, diz, são apenas a Amazônia como, principalmente, o Panta-
“indícios sobre o seu enfraquecimento, como nal, coloca em xeque o acordo União Europeia
o corte de verbas e a desconstrução do setor”. e Mercosul, que poderia trazer investimentos
A reportagem da Página22 não obteve retor- de US$ 580 bilhões, em dez anos, para o agro-
no do Conselho Nacional da Amazônia para a negócio brasileiro. Junto com o esforço de
questão até o fechamento desta edição. mostrar ao mundo que “o Brasil é o país que
mais protege florestas” vieram queixas a pes-
SÓ NÃO VÊ QUEM NÃO QUER quisadores do Instituto de Pesquisas Espaciais
Não há desculpa tecnológica para não agir, (Inpe) pelas informações da destruição am-
embora tanto a Vice-Presidência da Repúbli- biental. Dados que o vice-presidente da Re-
ca como o Ministério do Meio Ambiente in- pública, Hamilton Mourão, qualificou como
sistam no projeto de comprar nova tecnologia vazados, embora sejam públicos e abertos,
para monitorar o desmatamento. disponíveis a qualquer brasileiro na Internet.
Funcionários do Ibama de longa experiên- O acesso é fácil e rápido, a apenas um
cia na fiscalização da Amazônia, que preferi- clique, na plataforma do Programa Quei-
ram não se identificar, questionam: “Para que madas, do Inpe. Em 2020, até 21 de setem-
um outro sistema, se o problema é não querer bro, o Brasil havia registrado exatos 147.279
enxergar?”. Reduzir o desmatamento, segun- focos de calor, 48,7% na Amazônia, a maior
do explicam, exige vontade política, estrutura parte no Mato Grosso. “Bastam três dias sem
de coerção e inteligência, e duas estratégias chuva em Manaus para a fumaça da mata
que consideram fundamentais: “descapitali- queimada aparecer e a garganta arder” , con-
zar” e “dissuadir” futuros infratores com ex- ta o geógrafo Carlos Durigan, diretor do WCS
posição das operações de campo na mídia. Brasil, ONG voltada à conservação e manejo de
Apesar da existência de bases de dados recursos naturais, sediada na capital amazo-
abertos, públicos e gratuitos, é difícil tra- nense. Estudo da Nasa mostrou que 65% das
duzi-los para a sociedade como um todo – e, áreas com focos de queimada este ano foram
junto a essa complexidade, se vê um ambiente desmatadas em maio e junho de 2020.
de guerra entre informação e desinformação. A mudança climática agrava o fenômeno.
Fake news, fatos distorcidos e outras arti- Em pouco tempo, a poeira preta da fuligem
manhas de marketing povoam comunicados cobre móveis e objetos das casas, mas preva-
oficiais, como no episódio do transporte de lece a ideologia da negação. “Quem reclama
garimpeiros ilegais em avião da Força Aérea das queimadas é acusado de jogar contra o
Brasileira para reunião no Ministério do Meio País”, diz o geógrafo, há 26 anos na Amazônia.
Ambiente em Brasília, ou então na divulga- Um dia, quando a neblina passar e as mentes
ção de vídeos que mostravam o mico-leão- se abrirem, a espécie humana enfim verá a
-dourado para provar que o País protege a importância do momento que vivemos.
Amazônia, enquanto essa espécie de primata
só habita a Mata Atlântica.

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REPORTAGEM ENGAJAMENTO

Pistas de uma
transformação
POR ANDREA VIALLI FOTO EGOR VIKHREV/UNSPLASH

Investidores, consumidores e empresas dão


sinais de que as mudanças sistêmicas rumo à
sustentabilidade estão em curso. O desafio ainda é
dar escala e celeridade a este movimento

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ENGAJAMENTO

M
FOTO: EV/UNSPLASH

arcado pela pandemia da Co- se o alimento tem muito sódio” , diz Fábio Col-
vid-19, o ano de 2020 frustrou letti Barbosa, sócio da Gávea Investimentos
tentativas de planejamento por e membro do conselho de grandes empresas,
parte de empresas e organizações. como Natura, Itaú Unibanco e Hering.
Sigla em Entre demissões e home office, Como ex-presidente do Banco Real, de-
inglês para
ambiental, social a preocupação com a sobrevivência ocupou pois adquirido pelo grupo espanhol Santan-
e governança, corações e mentes, especialmente nos meses der, Barbosa teve papel relevante em trazer
critérios aplicáveis mais delicados da quarentena e do isolamento inovações em sustentabilidade para o setor
às decisões de
investimentos social. Ao mesmo tempo, pesquisas diversas bancário – como o Fundo Ethical, de 2001,
captaram o aumento do questionamento, en- primeiro fundo de investimentos com temá-
tre os cidadãos, sobre seu papel no mundo, as tica ESG lançado por um banco privado; e a
relações familiares, suas escolhas de consumo adoção de análise de risco socioambiental na
Índice de
e o impacto da presença humana no planeta. concessão de crédito.
Sustentabilidade
Empresarial, Ainda paira a dúvida se a pandemia trans- Em webinar sobre critérios ESG e risco fi-
carteira de ações formará de fato comportamentos humanos e nanceiro realizado pelo escritório Veirano
criada pela
se isso se refletirá em mudanças sistêmicas Advogados, de São Paulo, Barbosa relembrou
Bovespa, hoje B3,
para direcionar rumo à maior transparência nas informa- casos emblemáticos dos primórdios do ESG no
investimentos ções que chegam aos cidadãos e a padrões Brasil. Primeiramente, o banco começou a res-
para empresas
de produção mais sustentáveis por parte das tringir crédito para empresas que não tinham
comprometidas
com uma gestão companhias. Mas há pistas que apontam para boas práticas, como uma madeireira no Paraná
sustentável uma transformação em curso, seja no campo que estava desmatando a Mata Atlântica além cionar o crédito rural para práticas sustentá- A XP Investimentos, uma das gestoras de
dos investimentos, seja do consumo, seja nas do permitido. No segundo momento, conta o veis no campo. A ideia é tanto reforçar o veto maior visibilidade atualmente, navega nes-
estratégias empresariais. executivo, a ideia era agir de forma mais edu- a produtores em desconformidade ambiental sa direção. Este ano, estruturou sua área de
Disclosure Nos investimentos, este foi o ano em que cativa, ajudando as empresas a se adequarem a quanto premiar aqueles que possuem ou que- sustainable wealth – expressão utilizada pela
significa tornar mais se falou em ESG no País, mesmo o con- novos padrões. “Outro caso foi de uma empresa rem adotar práticas mais sustentáveis. A me- indústria de fundos internacional, e que sig-
algo conhecido. Nos ceito tendo sido lançado oficialmente há mais do Ceará que estava praticando pesca predató- dida deve abranger todo tipo de crédito rural nifica literalmente “riqueza sustentável” –,
negócios, refere-se
à divulgação, por de uma década, com a criação do Índice de Sus- ria do camarão. Em vez de cortar o crédito da (custeio e investimento), um mercado anual lançou seus primeiros três fundos de investi-
exemplo, de um tentabilidade Empresarial ( ISE), em 2005. empresa, o banco financiou a contratação de da ordem de mais de R$ 200 bilhões em mais mentos sustentáveis e pretende alocar R$ 100
risco que pode ser No consumo, uma sondagem da consul- um oceanógrafo que ensinou a empresa a tra- de 2 milhões de operações. milhões em capital-semente para desenvol-
relevante para o
público toria Accenture com 3 mil consumidores em balhar de forma sustentável” , diz Barbosa. O “tsunami” ESG que está varrendo o uni- ver essa indústria no País.
15 países, lançada em maio, mostrou que 64% Com essas práticas, foram surgindo clien- verso dos negócios hoje é resultado não ape- Segundo Marcela Ungaretti, analista ESG
dos entrevistados afirmaram estar mais fo- tes que perceberam que a então chamada res- nas da pandemia, mas de um processo que da XP, o interesse cada vez maior pelos te-
cados na redução do desperdício de alimentos ponsabilidade socioambiental poderia ser já vinha norteando os investidores mundo mas sociais, ambientais e de governança tem
Força-Tarefa e que manterão esse comportamento no pós- um diferencial competitivo na hora de pedir afora, com o assunto em pauta no Fórum Eco- transformado rapidamente a indústria de in-
sobre Divulgações
Financeiras -pandemia. Do total, 45% afirmaram fazer um empréstimo. “Quando uma empresa que nômico de Davos, a TCFD, as iniciativas em- vestimentos no mundo todo e é um indício do
Relacionadas escolhas sustentáveis em suas compras e que produzia madeira certificada no Pará procu- presariais para reduzir emissões e combater que está por vir no Brasil. “A pandemia do co-
ao Clima, na também manterão esse comportamento. rou o banco para fazer negócios, descobrimos a mudança do clima, e as cartas de Larry Fink, ronavírus agiu como um catalisador e vemos
sigla em inglês.
Padrão criado Nas estratégias empresariais, há exem- que havia um nicho a ser explorado” , acres- CEO da BlackRock, aos investidores, respon- razões estruturais pelas quais a participação
pelo Conselho plos vindo tanto de pequenas empresas, cada centa o ex-presidente do Banco Real. sáveis por ditar tendências de mercado, com dos investimentos ESG continuará ganhando
de Estabilidade vez mais atentas às demandas do consumidor Chamado de “banqueiro verde” e “abraça- ênfase na sustentabilidade. A BlackRock é a força no Brasil. Em nossa visão, as empresas
Financeira,
ligado ao G20, por sustentabilidade, quanto de conglome- dor de árvores” , Barbosa e suas equipes acaba- maior gestora de investimentos do mundo, que não se adaptarem a esse novo cenário fi-
para quantificar rados ligados à cadeia da carne bovina, que ram antecipando tendências que chegariam, com US$ 7 trilhões em ativos. carão para trás”, diz a analista.
os riscos e avançaram em compromissos para aumentar enfim, a ser postuladas pelo regulador. No No Brasil, embora várias gestoras de ativos O apetite do mercado por informações
oportunidades
associados à a rastreabilidade de fornecedores indiretos e início de setembro, o Banco Central do Brasil e bancos tenham lançado produtos com viés ESG também pressiona as empresas para
mudança climática dar disclosure dessas informações. anunciou que as instituições financeiras te- ESG em anos anteriores (muitos deles repli- que façam o disclosure dessas informações,
para os negócios. “Estamos vivenciando outro padrão de rão de reportar seus riscos e oportunidades cando a carteira do ISE), o tema estava restrito de modo mais transparente do que o que é
O entendimento da
força-tarefa é de consumo e de comportamento, com a régua associados à mudança climática nos moldes a um nicho. Mas a pressão global movimentou habitualmente relatado nos relatórios de
que as mudanças mais alta. Tenho participado de muitas con- da TCFD, e lançará uma consulta pública o mercado no último ano: muitos fundos per- sustentabilidade das companhias.
do clima ameaçam versas sobre ESG, e vejo entrar no mercado um sobre o tema no ano que vem, com adoção ceberam que já não conseguiam captar recur- O ato de consumir de forma mais sustentá-
a estabilidade do
sistema financeiro investidor que acha relevante tudo isso de que mandatória a partir de 2022. sos no exterior sem a adoção de critérios ESG vel também tende a ser um hábito mais incor-
global estamos falando. A geração atual quer saber O Bacen também propôs a criação de uma e passaram a incluir o tema na agenda (mais porado durante e após a pandemia, como cap-
de onde vem a carne, se causa desmatamento, espécie de cadastro positivo verde para dire- sobre ESG na entrevista à pág. 36). tam diferentes pesquisas de mercado. “Apesar

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ENGAJAMENTO

"A pandemia agiu como um catalisador.


FORÇA-TAREFA "A adoção da TCFD pelos bancos a partir de 2022
vai provocar um efeito cascata no sistema financeiro" Empresas que não se adaptarem a esse novo
Nesta entrevista, o gerente de relacionamento do Princípios para o Investimento Responsável (PRI, na cenário ficarão para trás"
sigla em inglês) no Brasil, Marcelo Seraphim, falou sobre a "explosão" do conceito ESG, a preocupação dos
investidores com a Amazônia e a necessidade de aumentar a transparência nas informações sobre o clima.
Os PRI constituem uma rede internacional de investidores apoiada pelas Nações Unidas para impulsionar a
sustentabilidade nos investimentos. Criada em 2006, conta com mais de 3.200 membros em todo o mundo,
que representam US$ 103 trilhões em ativos sob gestão.
de ainda não ser possível prever claramente o midores mais conscientes se mantiveram re-
aumento da consciência de consumo decor- lativamente estáveis ao longo dos anos. Mas,
Em 2020, o tema ESG está muito presente na mídia, com muitas matérias abordando o assunto e gestores
rente da pandemia, o que se observa é uma de 2012 para 2018, houve aumento de 32% para
de recursos lançando fundos com a temática. O mercado brasileiro acordou para o tema?
aceleração da tendência do consumo cons- 38% na parcela dos iniciantes: são aqueles
O mercado brasileiro reflete uma tendência global do aumento de conscientização sobre o tema. Mas, mais
ciente, que exclui excessos e prioriza o que é consumidores que aderem a comportamen-
recentemente, os investidores brasileiros têm percebido que administrar os fatores ESG é um instrumento
essencial”, diz Larissa Kuroki, coordenadora de tos que trazem economia clara e no curto pra-
poderoso de gestão de riscos. Diversos fatores impulsionaram isso: primeiro, o senso de urgência que existe
conteúdos e metodologias do Akatu. zo e encontram barreiras na mudança de há-
hoje no mundo com relação à mudança climática e à necessidade de fazermos uma transição rápida para a
O isolamento social fez ainda com que as bitos, além de desconfiarem das informações
economia de baixo carbono. Um segundo fator foi a responsabilidade das empresas perante tragédias como
pessoas passassem mais tempo em casa, ob- contidas nos produtos.
as que ocorreram em Mariana e Brumadinho, que obrigaram uma multinacional brasileira a esclarecer a
servando de modo mais intenso o impacto do Ainda segundo a pesquisa, 68% dos bra-
diferentes atores (governo, acionistas, sociedade) sobre as causas e medidas tomadas para remediar os
seu consumo por meio da geração de resíduos, sileiros dizem já ter ouvido falar em susten-
impactos sociais e ambientais, ao mesmo tempo em que tinha de gerenciar os impactos financeiros em
compra de alimentos, uso de energia e água. tabilidade, mas as principais barreiras para a
suas operações e nos valores dos ativos. Um terceiro fator que influenciou esse despertar do investidor
Isso foi positivo para o consumo conscien- adoção dessas práticas pelos consumidores
brasileiro para o tema foi o aumento do desmatamento, principalmente na Amazônia. Outro divisor de águas
te, pois os consumidores passaram a buscar são a necessidade de esforço para a mudança
foi a carta da BlackRock aos seus acionistas, que anunciou medidas de descarbonização do portfólio e, mais
maneiras de economizar em todos esses as- de hábitos e a percepção de que os produtos
recentemente, votou contra a reeleição de conselheiros em mais de 50 empresas, por não concordar com o
pectos para não sofrer no final do mês com mais sustentáveis são mais caros e difíceis de
desempenho delas no gerenciamento de questões ligadas à mudança climática.
contas de água e luz mais altas, por exemplo encontrar no comércio. “É preciso uma mu-
Como a preocupação com a devastação da Amazônia pressiona essa mudança? Em 2019, um comunicado do
– oportunidade para incentivar as pessoas a dança de mindset do consumidor para que este
PRI enviado ao governo gerou bastante repercussão.
manterem tais práticas para além da pande- passe a acreditar que suas ações têm relevân-
O desmatamento na Amazônia envolve diversas questões. Se considerarmos que o discurso mais
mia, observa Kuroki. cia. Assim, qualquer mudança de comporta-
ideológico é um forte componente de parte da equipe do governo atual, o assunto fica ainda mais complexo.
Outras mudanças que levariam décadas mento visando menor impacto, se praticada
No ano passado, o PRI coordenou uma manifestação de investidores conclamando o setor privado a
para ser implementadas naturalmente ti- por um grupo de pessoas, durante certo pe-
implementar mecanismos de monitoramento em suas cadeias, para diminuir os riscos. Este ano, um grupo
veram de ser adotadas no susto – é o caso do ríodo de tempo, tem o potencial de causar
de quase 40 investidores enviou ao governo brasileiro uma carta com uma lista de pontos críticos para que
home office, rechaçado por muitos emprega- enorme impacto positivo” , diz a coordenadora
seus investimentos não fiquem expostos a riscos reputacionais, operacionais e até legais. O setor privado tem
dores, que agora são aderentes à prática. Só na de conteúdos e metodologias do Akatu.
evoluído. No entanto, o governo brasileiro precisa fazer cumprir a lei e recuperar a capacidade operacional dos
capital paulista, o fechamento de estabeleci- O nicho dos engajados e conscientes, que
órgãos de fiscalização no combate ao desmatamento.
mentos na quarentena e a adoção do escritó- somam 24% dos consumidores brasileiros,
A tarefa de engajar investidores nas questões de sustentabilidade está avançando? Quais são os
rio em casa levou a uma redução de 50% das segundo o Akatu, é o público-alvo de em-
progressos?
emissões de gases de efeito estufa nos meses presas atentas a esse movimento. A peque-
Sim, sem dúvida. O número de eventos virtuais ligados às questões ESG desde o início da pandemia é um
de março e abril, de acordo com a Companhia na Insecta Shoes, marca de sapatos e aces-
indicativo. Destaco o aumento do número de signatários do PRI no Brasil, de 20% ao ano nos últimos dois anos
Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). sórios veganos fundada em 2015, mira esse
(devemos fechar o ano com mais de 70 signatários) e a maior oferta de produtos financeiros sustentáveis,
O Akatu, por meio de estudos, monitora o consumidor mais engajado, mas que tam-
desde green bonds ao investidor institucional até fundos ESG ao cliente do varejo. Entre os signatários do PRI,
panorama do consumo consciente no Brasil bém busca design e informação de moda, e
há um aumento da exigência da divulgação dos impactos financeiros relacionados ao clima, alinhada à TCFD
desde 2002. A última pesquisa, de 2018, en- adota ações de transparência (mais no qua-
[Força-Tarefa sobre Divulgações Financeiras Relacionadas ao Clima]. Isso força o signatário a incluir essa
trevistou 1.090 pessoas de 12 regiões do País e dro à página 38).
questão nos seus processos de análise. O mesmo se dá às questões de impacto e contribuição com os ODS.
avaliou o quanto algumas atitudes fazem par- Passar de uma ação orientada pela ges-
Destaco também o anúncio importantíssimo do Banco Central em 8 de setembro que, entre outras medidas,
te da rotina dos entrevistados e seus hábitos tão do risco comercial e de reputação, pos-
prevê a obrigatoriedade da adoção da TCFD pelos bancos a partir de 2022. Isso vai provocar um efeito cascata
de compra, dividindo o grau de consciência tura mais reativa, para uma gestão baseada
no sistema financeiro como um todo, aumentando ainda mais o engajamento do investidor.
dos brasileiros em quatro perfis: indiferente, na oportunidade gerada pelas demandas do
iniciante, engajado e consciente. consumo sustentável, tornou-se o grande
Segundo Kuroki, os percentuais de consu- desafio para as empresas. Na cadeia de pro-

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ENGAJAMENTO

dução da carne bovina, por exemplo, grandes


frigoríficos têm sido cada vez mais pressio-
vendido para as fazendas que fazem a recria e
engorda e fornecem diretamente para os fri- "Qualquer pequena mudança de comportamento,
se praticada por um grupo de pessoas,
nados por investidores, redes do varejo e con- goríficos.
sumidores a adotar medidas de rastreabilida- A Marfrig anunciou, em julho, um con-

durante certo período de tempo, tem o potencial


de para mapear suas cadeias de fornecimento junto de compromissos e metas, acompa-
e evitar que suas marcas estejam associadas nhado de um plano de execução, para os
O Sistema B é ao desmatamento da Amazônia e do Cerrado biomas Amazônia e Cerrado, em uma linha
um movimento
global, nascido
nos EUA, que
e ao trabalho análogo ao escravo.
Esse movimento, fruto de um Termo de
do tempo que vai até 2030. Os compromis-
sos estão centrados em quatro pilares (ras-
de causar enorme impacto positivo"
busca redefinir o Ajustamento de Conduta (TAC) assinado em treabilidade, inclusão, desmatamento zero
conceito de sucesso
nos negócios 2009 entre o Ministério Público Federal e fri- e transparência) e pressupõem um trabalho
e identificar goríficos que atuam na Amazônia Legal, per- em rede, em parcerias com setor privado,
empresas que mitiu avanços no mapeamento da cadeia de academia, ONGs, governo e Ministério Pú-
utilizem seu
poder de mercado fornecedores diretos pelos principais frigo- blico, além de plataformas transparentes
para solucionar ríficos que compram gado da região – caso da para que a sociedade possa acompanhar o Agora, uma das metas é avançar no monitora- tional Finance Corporation (IFC), braço para
questões sociais Marfrig, da Minerva Foods e da JBS. Mas ainda ritmo de cumprimento das metas. mento dos fornecedores indiretos, ponto crí- investimentos privados do Banco Mundial,
e ambientais.
No Brasil, são há lacunas na rastreabilidade dos fornecedo- Desde o TAC de 2009 a empresa estruturou tico da cadeia da carne. Uma das ferramentas a companhia sente o aumento da pressão
163 empresas B res indiretos, especialmente nas fazendas de um modelo de georreferenciamento e moni- para isso são os mapas de risco, que cruzam por padrões ESG oriunda dos mercados nos
certificadas, de cria, que produzem os bezerros, e que são o toramento via satélite que permite acompa- dados de vegetação com os fornecedores de últimos oito anos. “De 2012 para cá, a em-
todos os portes
primeiro elo da cadeia – depois esse gado será nhar 26 milhões de hectares na Amazônia. cria e recria, permitindo identificar as áreas presa investiu continuamente para ter o
mais suscetíveis ao desmatamento. melhor sistema de monitoramento de for-
Até o fim de setembro, a empresa pretende necedores diretos, condição exigida pelos
ter o mapa de cria funcionando para os biomas investidores. Agora o desafio é monitorar os
Cerrado e Amazônia, fruto de uma parceria indiretos com a mesma qualidade” , diz Ta-
com a empresa Agroicone. “Só na Amazônia, ciano Custodio, diretor de sustentabilidade
NA PEGADA DA TRANSPARÊNCIA temos 16 mil fornecedores, sendo que 3.500 da Minerva Foods.
estão bloqueados por inconformidades. Que- Segundo o executivo, os três primeiros
A história da Insecta começou com a paixão da empreendedora Barbara Mattivy por roupas antigas e lojas remos levar para esses bolsões de maior risco anos desde a assinatura do TAC foram mar-
de segunda mão. Ela tinha um brechó online, mas não sabia o que fazer com algumas peças que precisavam de o conhecimento e o engajamento dos produto- cados pela indisponibilidade de ferramentas
ajustes, até que uma amiga designer de calçados propôs utilizar aqueles tecidos para a produção de uma linha res para melhores práticas” , diz Paulo Pianez, para rastrear a cadeia da pecuária bovina na
de sapatos, colocando em prática o conceito do upcycling, que agrega valor ao produto reciclado. Hoje, o carro- diretor de sustentabilidade da Marfrig. Amazônia, situação que foi corrigida com o
chefe da empresa são produtos feitos com a reutilização de roupas vintage, garimpadas em diferentes locais, e A estratégia da Marfrig, explica o execu- monitoramento do sistema Prodes, do Ins-
tecido ecológico feito com PET reciclado. O solado é feito de borracha reaproveitada e o restante dos materiais tivo, é não se limitar a bloquear os fornece- tituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)
utilizados são sobras da indústria calçadista. dores que estão na ilegalidade, mas também e com a inscrição dos produtores no Cadastro
“A moda descarta uma quantidade enorme de materiais todo ano, então reaproveitar e ressignificar esses promover a inclusão desses produtores na ca- Ambiental Rural (CAR). A produtividade do
itens é uma obrigação para mim, no papel de empreendedora. Desde o início da empresa, tenho a missão deia, com assistência técnica e conhecimento gado também evoluiu no período: em 2019,
de causar um impacto socioambiental o mais positivo possível, e é para isso que trabalhamos”, diz Mattivy para que adequem sua situação. Com isso, a 80% da produção da Minerva foi originada de
Além do uso de materiais, a Insecta Shoes também inovou ao dar transparência para os custos envolvidos meta da empresa é eliminar o desmatamento sistemas de intensificação da produção, com
na fabricação de seus calçados, expostos no site da marca – lá, é possível saber quanto cada item (custo de ao longo de sua cadeia no bioma amazônico média de abate de 30 meses – em 2014, a mé-
produção, margem de lucro, impostos, entre outros) pesa no preço final do produto. até 2025 e estender o geomonitoramento via dia era de 36 meses, o que faz diferença na pe-
Esse nível de transparência, raro no mercado brasileiro, agrada o consumidor da marca, que sabe satélite para o Cerrado, de modo a alcançar o gada de carbono do gado. O Prodes realiza
exatamente o que está pagando. Também promove, em seu site e mídias sociais, conteúdos voltados a desmatamento zero nos dois biomas até 2030. Apesar desses avanços, Custodio afirma o monitoramento
espalhar um estilo de vida mais sustentável. A incorporação de novas tecnologias de que o setor ainda tem o desafio de avançar por satélites do
desmatamento
De acordo com Mattivy, ser transparente nunca foi um problema para a empresa, hoje certificada como rastreabilidade dos rebanhos também é a es- como um todo nas ferramentas de rastrea- por corte raso na
empresa do Sistema B, com duas lojas físicas, um e-commerce, uma equipe de 11 pessoas no Brasil e duas tratégia empregada pela Minerva Foods para bilidade, especialmente os frigoríficos de Amazônia Legal e
no Canadá, onde começou a primeira operação internacional. “Os problemas geralmente acontecem quando as mapear e monitorar mais de 9 mil fornecedo- pequeno e médio porte, cuja produção está produz, desde 1988,
as taxas anuais
empresas não são transparentes”, diz. “Nosso cliente tem consciência ambiental e valoriza comprar de uma res na Amazônia, espalhados por uma área de voltada para o mercado doméstico. “Hoje, de desmatamento
marca que compartilha dos seus valores e, além disso, tem orgulho de usar um produto que é esteticamente 9 milhões de hectares – em 2019, 2.400 deles a Minerva Foods representa 4% do abate do na região, que
do seu gosto e, ao mesmo tempo, não contribui para o impacto negativo da indústria da moda”, completa. foram bloqueados por não estar em confor- gado na Amazônia. Se juntarmos os três prin- são usadas pelo
governo para o
midade ambiental, trabalhista e fundiária. cipais frigoríficos que atuam na região, é 30%. estabelecimento de
Com 80% da produção voltada à expor- O restante da cadeia permanece sem monito- políticas públicas
tação e capital em private equity da Interna- ramento e rastreabilidade” , diz.

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ÚLTIMA Intervenções urbanas

Veja através
A pandemia tirou o véu de muita coisa – deu mais visibilidade às desigualdades,
jogou luz sobre o essencial, escancarou o caráter dos governantes. A solidariedade
também ganhou espaço. Um ação articulada chamada Fotos Pró Rio, finalizada em
outubro, arrecadou recursos para comunidades cariocas e também para artistas
e fotógrafos em dificuldade por conta da Covid-19.

O coletivo Poro – Intervenções Urbanas e Ações Efêmeras participou da campanha


doando os recursos obtidos com a venda da foto “Atravesse as aparências”. A fo-
tografia resulta da série “Faixas de Antissinalização”, trabalho realizado em Belo
Horizonte, Fortaleza, São Paulo, Brasília, Londrina e no Rio de Janeiro. Apontar
sutilezas, criar imagens poéticas e trazer à tona aspectos das cidades que se tor-
nam invisíveis pela vida acelerada nos grandes centros urbanos são algumas das
provocações do Poro desde 2002. – por Amália Safatle

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