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Publicado originalmente em
Symposium, 1984 (Encyclo-
Elogio da mestiçagem? em uma sociedade original e sincrética,
paedia Universalis). As aberrações racistas de um passado as uniões inter-raciais e a mistura das po-
recente e os novos desafios que a eman- pulações são chamadas a desempenhar
cipação política das minorias e a inserção a função de motor da transformação dos
dos trabalhadores imigrantes represen- indivíduos e das sociedades.
tam para certos países fizeram com que Diante dos enigmas nacionais criados
os fenômenos de mestiçagem despertas- pela formação dos Estados contemporâ-
sem um crescente interesse na América e neos, a mestiçagem desataria o nó górdio
na Europa. De fato, no pós-guerra, a mes- que liga o conceito moderno de nacio-
tiçagem passou a ser vista como um nalidade ao conceito de cidadania, per-
movimento contínuo de intercâmbios e mitindo assim apressar o surgimento do
alianças intercomunitárias, levando natu- homem universal. Investidos destas aspi-
ralmente à superação das clivagens ra- rações generosas e humanitárias, os inter-
ciais e à eliminação das disparidades so- câmbios inter-raciais representam, desde
ciais que nelas se enxertaram ao longo então, por uma curiosa repetição da his-
da história. Através da assimilação de tória, um papel semelhante àquele que,
diversos núcleos culturais num tronco antes da primeira guerra, desempenhava
social dominante, ou pela fusão das etnias o internacionalismo de Jaurès, que sonha-
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va com a "pátria universal das nações in- de raça permanece marcado pela impre-
dependentes e amigas". Ancorado ora no cisão científica e por condicionantes ideo-
passado ora no futuro, extrapolando fe- lógicas.
nômenos sociais desenvolvidos noutros Admitamos por um instante que os
horizontes, este elogio da mestiçagem de- 4,5 bilhões de homens que povoam o
serta o contemporâneo e o político, para planeta possam ser classificados segundo
se inscrever imediatamente na metáfora suas características aparentes: negros,
filosófica. brancos, amarelos. Constatemos em se-
Tal visão das realidades culturais tem guida que os biogeneticistas reconhecem
a seu favor o fato de se integrar às mais três constantes genéticas que permitem
nobres esperanças expressas no período esboçar distinções entre os indivíduos: a
posterior a uma guerra onde o exter- melanina, a lactase e as propriedades se-
mínio dos povos e das culturas foi ele- rológicas do sangue. Estas variáveis fo-
vado à categoria de política de Estado. ram combinadas por especialistas de mo-
Nem por isso, essas expectativas frater- do a chegar a três classificações distintas,
nais, baseadas no entendimento univer- sem que nenhuma delas coincida com a
sal entre os homens, sem distinção de repartição da humanidade em grupos ra-
raças e de culturas — expectativas ins- ciais baseados na cor, na textura dos ca-
critas nos enunciados da carta de fun- belos e na forma do crânio. É por esta
dação da Unesco —, deixam de ser con- razão que Albert Jacquard afirma: "A
trariadas pela evolução das relações inter- resposta do geneticista interrogado so-
nacionais, marcadas cada vez mais por bre o conteúdo da palavra raça é, por-
tensões em torno de particularismos e de tanto, clara — este conceito não corres-
movimentos de caráter etnocêntrico. Na ponde, na espécie humana, a nenhuma
realidade, os abalos provocados na Áfri- realidade definível de modo objetivo".
ca e na Ásia pela descolonização e pela Aprofundando a análise, François Jacob
emergência de novos Estados, a irrupção nota: "À medida que se aperfeiçoam
de reivindicações políticas entre as mi- nossos meios de investigação, constata-
norias étnicas da América, a recrudescên- mos uma variabilidade extraordinária, in-
cia islâmica no Oriente Médio e na Áfri- suspeitada há dez anos, dos caracteres
ca, as tensões suscitadas no Leste pelos que podemos especificar. A distância bio-
desequilíbrios demográficos entre as na- lógica entre duas pessoas do mesmo gru-
cionalidades reunidas no interior de al- po, de um mesmo lugarejo, é tão grande
guns países socialistas, a incorporação que torna insignificante a distância entre
problemática dos trabalhadores imigran- as médias de dois grupos".
tes na Europa Ocidental atingida pela Cientificamente inoperante, a idéia de
crise econômica ilustram de modo dramá- raça perpetua-se, no entanto, e de modo
tico a realidade nova que está atualmente muito eficaz, pela dinâmica relacional
em jogo nos antagonismos étnicos. Tanto descrita por Max Weber. É a percep-
mais que a internacionalização dos con- ção subjetiva de uma mesma origem co-
frontos locais contribui para exacerbar a mum, das mesmas disposições herdadas
maioria desses conflitos. e transmissíveis por herança, que leva os
Ao tentar analisar esses acontecimen- membros de um grupo a se concentra-
Mestiçagem, rem em ações de afirmação coletiva e,
tos, a maior parte dos estudos sobre as
o estatuto relações raciais esbarra em duas inde- sobretudo, em ações de oposição pa-
incerto de terminações. A primeira diz respeito ao tente a outros indivíduos. Percebe-se,
raça e cultura estatuto incerto dos conceitos de raça assim, a pertinência da análise de Lévi-
e de cultura. A segunda refere-se à ex- Strauss: "Longe de ser preciso se pergun-
trema variabilidade dos dados históricos, tar se a cultura é ou não função da raça,
demográficos e culturais que condicio- descobrimos que a raça — ou o que ge-
nam as relações raciais estabelecidas em ralmente se entende por este termo — é
épocas diferentes nos diversos conti- uma função, entre outras, da cultura",
nentes. uma vez que é o próprio grupo que de-
termina seus próprios elementos consti-
A recorrência das ideologias raciais tutivos, suas próprias alianças, suas
próprias exclusões (Lévi-Strauss, 1983).
Empregado para classificar as comu- Essas reversões sucessivas de causalidade
nidades humanas, mas igualmente para entre as noções de raça e de cultura en-
estabelecer entre elas hierarquia justifi- contram-se na origem da recorrência das
cadora da dominação política, o conceito ideologias raciais. De modo secundário,
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americanos encerra esta primeira era da tórios dos impérios turco, espanhol e
mestiçagem. Arrastada no turbilhão da português, as possessões britânicas, ale-
Revolução Industrial, a Europa fecha-se mãs, francesas e belgas aumentam con-
provisoriamente em si mesma, unificando sideravelmente.
Mestiçagem, os espaços nacionais, concluindo a con- Por um lado, assiste-se à colonização
Estado e centração das populações, abrindo cami- com base na fixação de famílias euro-
nho para a formação de Estados-nação péias na Austrália, na África do Norte
"racismo constituídos em torno de um território, e no Sul do continente. Nos enclaves
científico" uma língua, um povo. coloniais do Oeste da África e da Ásia,
a organização do trabalho permite a se-
A segunda era da mestiçagem: paração das comunidades brancas e in-
os Estados-nação e o "racismo dígenas associadas às atividades produti-
vas. Seja em razão da colonização fami-
científico"
liar ou da divisão do trabalho colonial,
A segunda era da mestiçagem abarca o fato de as comunidades permanecerem
os anos 1850-1950, marcados por uma delimitadas de modo estanque restringe
nova expansão européia. À medida que as uniões entre brancos e os povos de
se intensificam as migrações internacio- cor durante esse período. Em contrapar-
nais, o povoamento dos Estados ameri- tida, a transferência de populações asiá-
canos se afirma e algumas regiões da ticas em levas sucessivas para a África e
África conhecem uma colonização efetiva. a América faz eclodir um movimento de
Com a instauração de governos cons- mestiçagem entre negros, ameríndios e
titucionais e de regimes parlamentares asiáticos.
na Europa e na América, o conceito mo- Por outro lado, a introdução da má-
quina a vapor, seguida pela eletricidade,
derno de cidadania ganha sua verdadeira
o desenvolvimento dos meios de trans-
dimensão. Despojado dos atributos reli-
porte, em suma, a mecanização da explo-
giosos, atemporais e supraterritoriais,
ração colonial amplia as migrações inter-
próprios das monarquias imperiais do
nas, a urbanização, a difusão das línguas
Antigo Regime, o poder político investe- européias e as mudanças econômicas na
se de uma nova legitimidade. A partir África e na Ásia. Contrastando com o
de então, a autoridade pública apresenta- processo observado na América durante
se como emanação da soberania de uma a primeira era da mestiçagem, a coloni-
comunidade que tem contornos geográ- zação contemporânea provoca uma forte
ficos, demográficos e culturais bem defi- aculturação na África e na Ásia, mas não
nidos: a nação. Paralelamente, dota-se dá lugar a um movimento de miscige-
o conceito de raça de um estatuto cientí- nação de dimensões comparáveis.
fico que servirá de base ao estabeleci- Como mostra a Tabela I, às vésperas
mento de hierarquias entre as raças e os da descolonização a África possuía ape-
povos. Pouco a pouco a colonização nas uma pequena porcentagem limitada
transforma-se em praxis do racismo con- de mestiços.
temporâneo. De fato, quando o "racismo Embora perfeitamente capazes de es-
científico" se integra nos conceitos mo- tender a outros territórios sua dominação
dernos de cidadania e de nacionalidade, econômica, e neles consolidá-la, os Es-
consolida-se a nova ordem internacional tados-nação contemporâneos encontram
surgida com a Revolução Industrial: tan- alguns limites quando se trata de garantir
to para Cecil Rhodes quanto para Fried- a dominação política desses territórios.
rich Engels, o mundo se dividirá entre Como nota Hannah Arendt: "De todas
nações "civilizadas" e nações "bárbaras", as formas de governo, o Estado-nação é
devendo naturalmente as primeiras do- a menos adequada a um crescimento ili-
minar as segundas. Aliás, é o conceito mitado, pois o consenso específico no
laico de "civilização" e não mais o con- qual se baseia não pode estender-se inde-
ceito religioso de "evangelização", que finidamente e só é obtido raras vezes e
comanda a divisão dos novos impérios com dificuldade dos povos conquistados"
coloniais na África e na Ásia. (H. Arendt, 1968).
Parcialmente vencida, a barreira mi- Desta inadequação entre os instrumen-
crobiana não representa mais um obs- tos políticos e os objetivos econômicos
táculo intransponível à fixação de euro- do colonialismo contemporâneo surge
peus, e sobretudo de européias, nas zonas uma série de impasses que precipitarão
tropicais. Enquanto se retraem os terri- a descolonização e que, ainda hoje, pe-
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Além de sua dupla inserção econômica sinque — que obrigam os países signa-
— como produtores de bens e serviços tários a autorizar a livre circulação das
nos países que os acolhem e como for- pessoas? Se pensa em escolher a via
necedores de divisas em seus países de da generosidade, ampliando os direitos
origem —, os imigrantes têm um duplo dos imigrantes já fixados no país?
estatuto no domínio dos direitos civis. Nesse caso, caímos em outra questão:
Cidadãos estrangeiros são, além disso, deve-se favorecer a sedimentação de
parcialmente incorporados às instituições novas comunidades étnicas e religiosas
políticas e sociais dos países onde traba- nos países que as acolhem ou, ao contrá-
lham (direito de voto em eleições locais rio, instaurar uma política ativa de assi-
na Suécia, na Irlanda, na Dinamarca, nos milação? A resposta a essas questões
Países Baixos; direitos sindicais e sociais supõe uma redefinição da política, da
mais ou menos extensos segundo os paí- cultura e da visão que as nações que aco-
ses que os acolhem). É verdade que, até lhem populações imigrantes forjaram so-
o início dos anos 1970, a mão-de-obra bre si mesmas no curso de sua história
estrangeira podia ser assimilada global- recente. Diante dessas dificuldades, o elo-
mente a um "exército industrial de re- gio da mestiçagem serve de exorcismo às
serva", a serviço dos empresários dos reações irracionais que vemos despontar
países desenvolvidos. Fornecendo uma no horizonte.
superpopulação relativa, uma força de Paradoxalmente, a mestiçagem é apre-
trabalho desorganizada em situação de sentada como uma solução às tensões in-
infracidadania, os imigrantes reduzem os tercomunitárias existentes em alguns paí-
custos salariais e permitem a manutenção ses europeus, no exato momento em que
de tecnologias ultrapassadas e a continui- ela é questionada de modo incisivo pelas
dade de atividades cuja insalubridade minorias da América.
desagrada aos trabalhadores nacionais. Condenadas e reprimidas com freqüên-
Desde então, a extensão progressiva da cia no século XIX, a miscigenação e a
sindicalização e da legislação social au- transculturação aos poucos se afirmaram
mentou a combatividade dos imigrantes. como elementos essenciais da estratifica-
O resultado é que, a exemplo da mão- ção dos Estados-nação do Novo Mundo.
de-obra feminina, os trabalhadores es- Todavia, desde os anos 1960 constata-se
trangeiros não podem ser totalmente um ascenso de reivindicações comunitá-
excluídos do mercado de trabalho du- rias no continente.
rante as fases de recessão econômica. Nos Estados Unidos, a ideologia do
Tanto mais que o anúncio de restrições cadinho étnico e cultural (melting pot) se
à entrada de novos imigrantes leva mui- desgasta, ao mesmo tempo em que gru-
tos deles, já instalados nos países que pos minoritários reivindicam declarada-
mente, e às vezes de modo violento, a
os acolheram, a trazer para junto de si
afirmação de sua "etnicidade", de sua
suas famílias, consolidando assim a pre-
especificidade cultural e étnica. Forma-
A questão das sença das comunidades estrangeiras nos dos por um mosaico de populações, os
minorias e o países industrializados. Estados Unidos estão, além disso, em
Dois elementos convergentes dão um
desmoronamento caráter mais agudo ainda a esta evolução.
contato direto com o México, país em
dos melting pot vias de desenvolvimento que defronta
Enquanto decresce a natalidade na maio- com uma demografia galopante. Por uma
ria dos países ocidentais, os atuais imi- malícia da história, a "bela Califórnia",
grantes — ao contrário daqueles do tomada em meados do século XIX "aos
passado — contam com uma grande pro- mexicanos preguiçosos" pelos "enérgicos
porção de não-europeus. ianques" (Marx), assiste atualmente à
Deste ponto de vista, o futuro dos ascensão dos chicanos, enquanto o espa-
imigrantes coloca problemas novos ao nhol se converte na segunda língua fala-
consenso político predominante em al- da nos Estados Unidos. Em suma, o flu-
guns países ocidentais. Como diminuir xo contínuo de imigrantes legais e clan-
o peso dessa população alógena nos mer- destinos da América Latina esboça uma
cados de trabalho nacionais sem fazer nova cultura nacional nos Estados Uni-
apelo a leis de exceção, sem repor em dos. Conforme mostra a Tabela II, a po-
causa garantias sindicais, direitos indivi- pulação originária de países de língua
duais, princípios constitucionais e, en- espanhola aumenta a um ritmo mais rá-
fim, tratados internacionais — como o pido que a população negra e a popula-
Tratado de Roma e os Acordos de Hel- ção branca. Em algumas grandes cidades
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canas. Na mesma época, holandeses, tencer aos grupos que a compõem. Uma
ancestrais dos atuais doutrinários do parte dos mestiços consegue às vezes fi-
apartheid, casam-se com mulheres hoten- liar-se ao grupo do genitor de condição
totes da África Austral e, posteriormen- mais baixa, comumente o da mãe. Atra-
te, com as malasianas transportadas para vés de sucessivos casamentos, seus des-
a Cidade do Cabo. Depois da Segunda cendentes serão reintegrados na comuni-
Guerra Mundial, a presença militar fran- dade dominada, levando a cabo um pro-
cesa e americana na Indochina deu lugar cesso de reversão da miscigenação. Em
a uma camada de mestiços cujo futuro é contrapartida, nas sociedades onde as
atualmente duvidoso. regras comunitárias são mais rígidas,
...que é a Nesse estágio, a miscigenação constitui os mestiços permanecem condenados ao
gênese da apenas a resultante demográfica de uma celibato ou às relações ilícitas, intensifi-
relação de dominação e exploração. Po- cando assim a marginalização de que são
bastardia... dem produzir-se casamentos em que o vítimas. Tanto num caso quanto noutro,
pai transmite seu próprio estatuto ao a população mestiça conserva proporções
filho. Mas, nessas circunstâncias, a con- residuais.
cretização do connubium permanece tão A atrofia da miscigenação no contexto
rara quanto a inversão da norma que das uniões hipogâmicas deu provavel-
preside a esta forma de mestiçagem. Tão mente origem ao preconceito sobre a es-
rara, com efeito, quanto a união de uma terilidade dos mestiços e o caráter disge-
mulher da comunidade dominante. Na nético da mestiçagem. A própria palavra
verdade o casamento se destina a unir "mulato" deriva do espanhol mulo
grupos e não indivíduos. (mula), híbrido não reprodutor. No Sul
Nesse contexto, mestiçagem e bastar- do Brasil, a palavra "chibarro" designa
... que pode ao mesmo tempo "mestiço" e "castra-
dia tornam-se sinônimos. Nas sociedades
dar lugar à cujas unidades constitutivas são grupos do". Deste ponto de vista, os mestiços
marginalização baseados no parentesco, os mestiços nas- são apresentados como uma camada so-
cidos das relações clandestinas não terão cialmente instável e demograficamente
filiação nem serão perfilhados. São con- transitória, que atesta a transgressão das
siderados como "sem-família" ou, em regras de aliança e de consangüinidade
outras palavras, como "não-seres". Por observadas no interior de um espaço
isso, quando o grupo dominado tem coe- político. Daí o anátema que pesa sobre
são suficiente para prescrever e observar o conjunto dos mestiços: "Os mulatos e
regras endogâmicas, os mestiços podem as raças misturadas passam por ser, nas
ser rejeitados pelos dois grupos simul- colônias, a escória da espécie humana",
taneamente. Os eurasianos da índia en- sublinha o Larousse do século XIX, na
frentam esta forma de desclassificação: rubrica "Mulato".
Na Europa, a rejeição das "raças mis-
"Para os europeus, nós constituímos
turadas" foi ainda mais acentuada no
apenas metade de uma casta, de nossa
século XIX pelo papel atribuído aos
parte não nos consideramos como uma
mestiços nas novas nações latino-ameri-
casta, para os hindus somos excluídos das canas. Hegel retomava com preocupa-
castas" (Stonequist, 1937). Esses efeitos ção a idéia da "ambição" dos mestiços
negativos convergentes definem o cam- da América, para concluir: "É por esta
po da mestiçagem por hipogamia: de razão que os ingleses adotam na Índia
maneira desigual mas correlativa, a união a política que consiste em evitar a
intercomunitária desvaloriza cada um dos formação de crioulos, isto é, de um
participantes. O mestiço representa a povo de sangue misto, indígena e euro-
realização de uma dupla aliança negativa. peu, aclimatado ao país". Na realidade,
Tal é a situação do mulato em alguns os britânicos transferem populações de
países africanos que conquistaram há uma colônia para outra (asiáticos para
pouco tempo a independência: tem mui- a África, muçulmanos para as zonas hin-
tos traços negros para poder ser incorpo- duístas da Índia e do Ceilão), segmen-
rado entre os brancos, e poucos traços tando assim a camada dominada, sem
negros para conseguir se integrar aos favorecer de modo particular os mesti-
africanos. ços. A desconfiança com relação aos mes-
A personalização do mestiço depen- tiços trabalhará em sentido inverso no
derá, em última instância, dos critérios pós-guerra. Eles passarão a ser vítimas de
que cada uma das comunidades prescreve discriminações nas novas nações da Áfri-
para o reconhecimento do direito de per- ca e da Ásia, onde dirigentes ultrana-
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Dado que não deixa de ter relação com social de seus pais. Na mestiçagem por
alguns traços do catolicismo na América hipergamia, ao contrário, a dupla filiação
Latina (Bastide, 1960). produz uma reclassificação: inserido na
Assim, à forte diferença da África, parte inferior da pirâmide social domi-
observa-se uma difusão do culto maria- nante, o mestiço poderá começar uma
nista no subcontinente. A Virgem de ascensão rumo à personalização. No
Guadalupe, no México, Nossa Senhora primeiro caso, por catabolismo, a repro-
de Guálupo, no Equador, Nossa Se- dução dos mestiços permanece marginal
As senhoras nhora de Copacabana, no Peru e na e a sociedade continua a ser birracial. No
segundo, por metabolismo, surgem con-
"aparecidas", Bolívia, a Virgem de Luján, na Argen-
dições favoráveis à formação de um te-
mães dos mestiços tina, Nossa Senhora de Caacupe, no
cido mais denso de relações interétnicas,
Paraguai, Nossa Senhora Aparecida,
e mediadoras da no Brasil: todas elas santas de rosto mes-
ao crescimento demográfico e à edifica-
civilização tiço, "aparecidas" em diferentes para-
ção de uma sociedade multirracial.
opressora e Resta o fato de que a emergência de
gens da América Latina, para se torna- uma camada intermediária de mestiços e,
da dominada rem logo após objeto de um culto de portanto, a passagem da birracialidade à
características profanas (Lafaye, 1974). multirracialidade traduzem uma mutação
Para as massas, que a destruição dos fundamental no interior da população
modos de vida tradicionais deixou órfãs, reunida em um espaço político. Em ou-
esta devoção se dirige à mãe mítica, sím- tras palavras, a transição social que
bolo da continuidade entre as crenças do conduz à personalização dos mestiços se
passado e do presente, mas igualmente situa tanto no domínio político quanto
à mediadora entre duas civilizações. no domínio demográfico e cultural.
No caso, a introjeção, por parte das
minorias, dos valores culturais da comu- A invenção do mestiço
nidade dominante dá lugar à elaboração
de uma hierarquia social global baseada A despeito da desestruturação da co-
na cor da pele, forma do rosto, textura munidade dominada, o movimento em
dos cabelos. É o que Fanon denomina direção à mestiçagem pode encontrar fa-
"a epidermização da inferioridade". tores inibitórios no interior da comunida-
Nesse novo sistema ideológico, ser e de dominante. Por razões que derivam
parecer podem confundir-se. A persona- do controle social ou dos imperativos do
lização do mestiço dependerá de seu grau mercado de trabalho, a posição relacional
de proximidade com o fenótipo domi- do mestiço varia consideravelmente de
nante: se o mulato aspira a parecer uma época para outra, de um país para
(branco), é porque é o ser (branco) que outro. Independentemente de sua reli-
determina o não-ser (negro). A lógica gião, de sua cultura e de suas institui-
da mestiçagem afirma-se, já que embran- ções, às vezes provenientes de um tronco
quecer a pele se converte em uma estra- comum, certos grupos dirigentes blo-
tégia de promoção social. Daí decorrem queiam a estratificação de uma camada
socialmente distinta de mestiços, enquan-
duas conseqüências principais. Em pri-
to outros adotam a política inversa. Essas
meiro lugar, as mulheres de cor procura-
escolhas terão conseqüências importantes
rão unir-se a parceiros mais brancos, e
quando os territórios coloniais se trans-
em seguida cuidarão melhor da educação
formarem em Estados-nação.
e da promoção dos filhos cujo fenótipo
Na América portuguesa, a extensão da
é mais próximo daquele do pai. Em
escravidão africana agrava a insegurança
segundo lugar, a propensão das mulhe-
res de cor a casar-se com brancos subtrai dos proprietários e restringe a oferta de
esposas aos mestiços e aos negros, pro- trabalhadores qualificados. Essas pres-
vocando o declínio demográfico dessas sões levam os senhores a dar um trata-
camadas da população. mento de favor aos mestiços em geral e
Esse conjunto de fatores caracteriza a aos mulatos em particular. Arguto obser-
mestiçagem por hipergamia: em qualquer vador da sociedade brasileira, o jesuíta
circunstância, a união com um homem da Andreoni formulou no início do século
camada dominante valoriza a mulher da XVIII um aforismo que se tornou céle-
camada dominada. Na mestiçagem por bre: "O Brasil é o paraíso dos mulatos,
Da mestiçagem o purgatório dos brancos e o inferno dos
hipogamia evocada anteriormente, a du-
hipogâmica à pla filiação acarreta a desclassificação: o negros". Em contraste com a história
ascensão social mestiço ratifica e reproduz a decadência americana, milhares de escravos — ge-
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GEOPOLÍTICA DA MESTIÇAGEM
Estados Unidos
1970 1980
Número % Número %
Brancos
177.748.975 87,5 188.340.790 83,2
Negros 22.580.289 11,1 26.488.218 11,7
índios, esquimós e aleutianos
827.268 0,4 1.418.195 0,6
Asiáticos 1.538.721 0,8 3.500.636 1,5
Outros
516.673 0,3 6.756.986 3,0
Total
203.211.926 226.504.825
Indivíduos de origem hispânica 9.072.602 4,5 14.605.883 6,4
Outras origens 194.139.324 95,5 211.898.942 93,6
Fonte: J. Cazemajou & J. P. Martin. La crise, p. 183.
Brasil
1960 1980
Número % Número %
Brancos
42.838.639 61,0 65.212.759 54,7
Negros 6.116.848 8,7 7.009.104 5,9
Amarelos
(índios e asiáticos) 482.848 0,7 754.895 0,6
Mestiços 20.706.431 29,5 45.779.466 38,4
Total
70.191.370 119.070.865
Fonte: IBGE. 1981. Rio de Janeiro
Mestiçagem por hipogamia: produto Mestiçagem por hipergamia: o mes- Mestiçagem institucionalizada: os
de uma dupla aliança negativa, o tiço se insere na parte inferior da mestiços formam uma camada dis-
mestiço é rejeitado pelas duas co- comunidade dominante. tinta entre a comunidade dominante
munidades. e a comunidade dominada.
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