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Luiz Felipe de Alencastro

Tradução de Maria Lúcia Montes

Publicado originalmente em
Symposium, 1984 (Encyclo-
Elogio da mestiçagem? em uma sociedade original e sincrética,
paedia Universalis). As aberrações racistas de um passado as uniões inter-raciais e a mistura das po-
recente e os novos desafios que a eman- pulações são chamadas a desempenhar
cipação política das minorias e a inserção a função de motor da transformação dos
dos trabalhadores imigrantes represen- indivíduos e das sociedades.
tam para certos países fizeram com que Diante dos enigmas nacionais criados
os fenômenos de mestiçagem despertas- pela formação dos Estados contemporâ-
sem um crescente interesse na América e neos, a mestiçagem desataria o nó górdio
na Europa. De fato, no pós-guerra, a mes- que liga o conceito moderno de nacio-
tiçagem passou a ser vista como um nalidade ao conceito de cidadania, per-
movimento contínuo de intercâmbios e mitindo assim apressar o surgimento do
alianças intercomunitárias, levando natu- homem universal. Investidos destas aspi-
ralmente à superação das clivagens ra- rações generosas e humanitárias, os inter-
ciais e à eliminação das disparidades so- câmbios inter-raciais representam, desde
ciais que nelas se enxertaram ao longo então, por uma curiosa repetição da his-
da história. Através da assimilação de tória, um papel semelhante àquele que,
diversos núcleos culturais num tronco antes da primeira guerra, desempenhava
social dominante, ou pela fusão das etnias o internacionalismo de Jaurès, que sonha-

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va com a "pátria universal das nações in- de raça permanece marcado pela impre-
dependentes e amigas". Ancorado ora no cisão científica e por condicionantes ideo-
passado ora no futuro, extrapolando fe- lógicas.
nômenos sociais desenvolvidos noutros Admitamos por um instante que os
horizontes, este elogio da mestiçagem de- 4,5 bilhões de homens que povoam o
serta o contemporâneo e o político, para planeta possam ser classificados segundo
se inscrever imediatamente na metáfora suas características aparentes: negros,
filosófica. brancos, amarelos. Constatemos em se-
Tal visão das realidades culturais tem guida que os biogeneticistas reconhecem
a seu favor o fato de se integrar às mais três constantes genéticas que permitem
nobres esperanças expressas no período esboçar distinções entre os indivíduos: a
posterior a uma guerra onde o exter- melanina, a lactase e as propriedades se-
mínio dos povos e das culturas foi ele- rológicas do sangue. Estas variáveis fo-
vado à categoria de política de Estado. ram combinadas por especialistas de mo-
Nem por isso, essas expectativas frater- do a chegar a três classificações distintas,
nais, baseadas no entendimento univer- sem que nenhuma delas coincida com a
sal entre os homens, sem distinção de repartição da humanidade em grupos ra-
raças e de culturas — expectativas ins- ciais baseados na cor, na textura dos ca-
critas nos enunciados da carta de fun- belos e na forma do crânio. É por esta
dação da Unesco —, deixam de ser con- razão que Albert Jacquard afirma: "A
trariadas pela evolução das relações inter- resposta do geneticista interrogado so-
nacionais, marcadas cada vez mais por bre o conteúdo da palavra raça é, por-
tensões em torno de particularismos e de tanto, clara — este conceito não corres-
movimentos de caráter etnocêntrico. Na ponde, na espécie humana, a nenhuma
realidade, os abalos provocados na Áfri- realidade definível de modo objetivo".
ca e na Ásia pela descolonização e pela Aprofundando a análise, François Jacob
emergência de novos Estados, a irrupção nota: "À medida que se aperfeiçoam
de reivindicações políticas entre as mi- nossos meios de investigação, constata-
norias étnicas da América, a recrudescên- mos uma variabilidade extraordinária, in-
cia islâmica no Oriente Médio e na Áfri- suspeitada há dez anos, dos caracteres
ca, as tensões suscitadas no Leste pelos que podemos especificar. A distância bio-
desequilíbrios demográficos entre as na- lógica entre duas pessoas do mesmo gru-
cionalidades reunidas no interior de al- po, de um mesmo lugarejo, é tão grande
guns países socialistas, a incorporação que torna insignificante a distância entre
problemática dos trabalhadores imigran- as médias de dois grupos".
tes na Europa Ocidental atingida pela Cientificamente inoperante, a idéia de
crise econômica ilustram de modo dramá- raça perpetua-se, no entanto, e de modo
tico a realidade nova que está atualmente muito eficaz, pela dinâmica relacional
em jogo nos antagonismos étnicos. Tanto descrita por Max Weber. É a percep-
mais que a internacionalização dos con- ção subjetiva de uma mesma origem co-
frontos locais contribui para exacerbar a mum, das mesmas disposições herdadas
maioria desses conflitos. e transmissíveis por herança, que leva os
Ao tentar analisar esses acontecimen- membros de um grupo a se concentra-
Mestiçagem, rem em ações de afirmação coletiva e,
tos, a maior parte dos estudos sobre as
o estatuto relações raciais esbarra em duas inde- sobretudo, em ações de oposição pa-
incerto de terminações. A primeira diz respeito ao tente a outros indivíduos. Percebe-se,
raça e cultura estatuto incerto dos conceitos de raça assim, a pertinência da análise de Lévi-
e de cultura. A segunda refere-se à ex- Strauss: "Longe de ser preciso se pergun-
trema variabilidade dos dados históricos, tar se a cultura é ou não função da raça,
demográficos e culturais que condicio- descobrimos que a raça — ou o que ge-
nam as relações raciais estabelecidas em ralmente se entende por este termo — é
épocas diferentes nos diversos conti- uma função, entre outras, da cultura",
nentes. uma vez que é o próprio grupo que de-
termina seus próprios elementos consti-
A recorrência das ideologias raciais tutivos, suas próprias alianças, suas
próprias exclusões (Lévi-Strauss, 1983).
Empregado para classificar as comu- Essas reversões sucessivas de causalidade
nidades humanas, mas igualmente para entre as noções de raça e de cultura en-
estabelecer entre elas hierarquia justifi- contram-se na origem da recorrência das
cadora da dominação política, o conceito ideologias raciais. De modo secundário,

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essas oscilações explicam a multiplicidade ção social. Uma minoria se encontra obje-
de funções atribuídas à mestiçagem. Se- tivamente em desvantagem quando seus
gundo os autores, encontraremos expres- membros não gozam dos mesmos direitos
sões como "arquitetura mestiça", "lite- que os membros da maioria no sistema
ratura mestiça", "fascismo mestiço", político e jurídico.
"socialismo mestiço" e "economia mes- De modo geral, a aculturação associa
tiça" (Möerner, 1967). sociedades conquistadoras — originárias
dos países econômica ou militarmente
Miscigenação e aculturação avançados —, sociedades dependentes —-
as que são impregnadas pelo modelo eco-
Em conseqüência dessa polissemia, a nômico e cultural das sociedades conquis- Mestiçagem,
noção de mestiçagem alarga seu campo tadoras, mas que não incorporam a prá- patrimônio
conceitual, para recobrir simultaneamen- tica política e social destas sociedades — étnico e
te a hibridez do patrimônio étnico de e, enfim, sociedades tradicionais — as aculturação
certos indivíduos e os processos de acul- que permanecem ligadas a matrizes cultu-
turação, embora esses dois fenômenos rais, econômicas e sociais específicas. O
não sejam necessariamente ligados e entrecruzamento dos fatores dominantes
nem mesmo concomitantes. Sem utilizar e dos fatores recessivos que operam nes-
o conceito contestado de raça, é impor- sas sociedades poderá dar lugar à assi-
tante, pois, distinguir a mestiçagem bio- milação, à sincretização ou à contra-
lógica — a miscigenação — das inter- aculturação.
relações sociais que dão lugar a situações
mais ou menos desenvolvidas de acultu- Os Estados diante da diversidade
ração. Enquanto a miscigenação se refere cultural
geralmente a relações triádicas, no inte- Divindade
rior das quais a especificidade do mes- A exemplo da não-coincidência já assi- cultural e
tiço rompe com a dualidade dos fenó- nalada entre as três constantes genéticas Estados
tipos característicos de seus dois ascen- e os grandes grupos raciais humanos, os
dentes imediatos, a aculturação coloca em componentes próprios às estruturas fa-
interação recíproca dois ou mais grupos miliares, às religiões, às línguas, aos mo-
distintos. dos de vida — isto é, o conjunto dos
Entre muitos outros autores, Herko- elementos constitutivos de culturas hu-
vitz e Bastide enumeram vários esquemas manas — não encontram correspondên-
próprios à aculturação. Resulta que este cia concêntrica com os territórios que
fenômeno pode decorrer do contato entre delimitam a soberania dos Estados con-
sociedades globais ou das relações man- temporâneos. De modo evidente, os Es-
tidas entre alguns segmentos destas so- tados monogeográficos, monoculturais,
ciedades; do grau de consentimento ou monoglóticos constituem a exceção e não
de violência que preside esses contatos; a regra. A multiplicação das fronteiras
da dimensão e da composição demográ- internacionais, sejam elas naturais, geo-
fica dos grupos em presença; da homo- métricas ou antropogeográficas (calcadas
geneidade ou da heterogeneidade das res- em limites étnicos), cria uma situação
pectivas culturas; do espaço social e po- sem precedentes na história. À medida
lítico no qual se desenvolvem essas re- que a transnacionalização da produção
lações em meio urbano ou rural, no faz caducar a necessidade de um territó-
interior das metrópoles ou nos territórios rio economicamente viável, um número
coloniais; da intensidade e da duração crescente de micro-Estados conquista
dos contatos; do estatuto político dos também a independência. Logo após a
grupos majoritários e minoritários. Com Segunda Guerra Mundial, contavam-se
relação a este último ponto, convém pre- pouco mais de cinqüenta Estados nas
cisar que a noção de minoria traduz uma Nações Unidas, enquanto atualmente a
inferioridade que não é exclusivamente comunidade internacional reconhece um
numérica: na África do Sul, os negros número três vezes maior.
são demograficamente majoritários, mas Comumente fundados em bases plu-
minoritários do ponto de vista político. riétnicas, submetidos a constantes varia-
Assim, a minoria será definida como ções demográficas e migratórias, os Es-
uma coletividade agrupada há várias ge- tados — e nisso consiste uma das funções
rações no interior de um Estado, onde essenciais das entidades estatais — des-
o fato de pertencer à minoria precede e locam os sistemas de poder tradicionais
condiciona outras formas de caracteriza- para empreender um movimento contí-

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nuo de ressocialização dos indivíduos e tecimentos, as culturas mestiças caracte-


dos grupos humanos no interior de uni- rizam-se como culturas de transição, cujas
dades nacionais mais amplas. Nessas con- assimetrias e elementos de crise são ge-
dições, elaboram-se códigos sociais e po- ralmente subestimados pelas análises
líticos no interior dos quais a mestiçagem atemporais.
nem sempre funciona como a única re- Na maioria dos ensaios consagrados às
sultante possível, no jogo de limitações relações inter-raciais engendradas pela ex-
e de alternativas culturais e institucio- pansão das sociedades conquistadoras
nais definidas dentro de um território. modernas e contemporâneas, três variá-
Alguns Estados permanecem refratá- veis intervêm: o ecossistema, que é o
rios à mestiçagem porque a segregação palco dos contatos intercomunitários, o
sedimenta uma política não-igualitária estágio de desenvolvimento da sociedade
que é consubstancial à ordem estabeleci- dominada, a estratégia empregada pela
da. Outros, que os cientistas políticos sociedade dominante. Esta última variá-
anglo-saxões denominam consociational vel pode referir-se tanto aos métodos de
democracy e os alemães, Proporzdemo- controle quanto à religião, às regras de
kratie ("democracia consociacional"), co- aliança e de casamento ou à sociabilidade
nhecem uma mestiçagem restrita em vir- dos membros do grupo dominante. Che-
tude do equilíbrio político e cultural ga-se assim à determinação de "frontei-
instaurado entre várias comunidades li- ras culturais" que permitiriam esboçar
vremente associadas no interior de uma uma cartografia da mestiçagem. Nesta
democracia consensual e confederada. É ordem de idéias, a longa coabitação com
certo que atualmente qualquer política os árabes no interior da península Ibéri-
baseada em clivagens étnicas se presta a ca e a predominância das tarefas de evan-
discussão. Mas é igualmente verdade que gelização sobre as de colonização no ul-
as políticas que levam às últimas conse- tramar teriam forjado um ethos favorá-
qüências o assimilacionismo, políticas res- vel à miscibilidade inter-racial entre os
ponsáveis por um grande número de con- espanhóis e portugueses.
flitos no passado e no presente, não mais Em contrapartida, as culturas protes-
se beneficiam de um preconceito favorá- tantes da Europa do Norte, mais marca-
vel nas democracias modernas. Deste das pelo individualismo e pela racionali-
ponto de vista, a mestiçagem difundida dade capitalistas, estariam baseadas em
em alguns Estados, longe de exprimir as valores etnocêntricos renitentes às uniões
aspirações de uns e outros, aparece como inter-raciais. Propagada por vários auto-
resultado instável e variável da ausência res, esta interpretação supostamente ex-
de escolhas políticas e culturais imposta plicaria o aprofundamento da mestiça-
pela sociedade dominante. gem na América Latina e sua atrofia na
América do Norte e na maior parte do
Culturas mestiças, culturas de continente africano.
transição Contudo, é forçoso constatar que os
desdobramentos da descolonização, que
É que a aparente anomia na qual se recentemente voltaram a se manifestar
dá a miscigenação esconde profundos de- na África, invalidam essas análises. Fa-
sequilíbrios entre as comunidades em zendo desmoronar as hipóteses cultura-
questão. Mais ainda, tudo parece de- listas, bem como os estudos baseados na
monstrar que a manutenção dessas desar- distinção entre colônias de povoamento
monias desempenha um papel essencial e colônias de exploração, esses eventos
na própria dinâmica da mestiçagem. Po- fazem surgir invariantes nos processos
der-se-ia argumentar que a mistura étni- de mestiçagem iniciados no interior de
ca e cultural representa um mal menor, alguns períodos históricos. Em resumo,
Portugueses e em comparação com os enfrentamentos o contraste entre a extensão da mestiça-
Miscigenação no intercomunitários que poderiam eclodir gem na América Latina e na África está
Brasil versus no interior de algumas sociedades. Sem menos em relação com a atitude das dife-
Portugueses e desconhecer o alcance evidente do argu- rentes potências presentes nos dois con-
Não-miscigenação mento, não é possível aceitá-lo sem re- tinentes do que com o quadro histórico
servas, na medida em que ele está mais específico na primeira (séculos XV-XIX)
na África: próximo de uma desculpa do que de uma e na segunda (séculos XIX-XX) expan-
a diferença demonstração. Na verdade indefiníveis de sões européias. Um exemplo esclarecedor
de atitudes outro modo que não seja por uma pers- desta clivagem temporal é a alta miscibi-
do dominante pectiva animada pelo tempo e os acon- lidade dos portugueses no Brasil, durante

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o primeiro período, e o pequeno alcance no entanto, isto acarrete a colonização
da miscigenação induzida por esses mes- direta das zonas atingidas de modo
mos portugueses em Angola e Moçam- oblíquo pelo comércio europeu. Du-
bique no decorrer do segundo período. rante esse tempo, o Império Otomano
Voltaremos a esta questão. afirma-se na Europa Central e no Levan-
A determinação das condicionantes te. Reunindo uma multidão de popula-
históricas das relações interétnicas per- ções e de territórios díspares, a Subli-
mite compreender melhor o que está me Porta exige altos funcionários do
atualmente em jogo na mestiçagem. A império, originários de etnias diversas,
questão de fundo consiste, na realidade, uma adesão formal ao Islã. No entan-
em saber se a mestiçagem funciona so- to, os sultões otomanos não procuram
mente como uma forma de estruturação pôr em marcha a assimilação dos países
negativa no interior das sociedades con- conquistados, nem converter as popula-
temporâneas. Expostos às vezes às virtu- ções cristãs ao Islã. O que, aliás, explica
des corrosivas da democracia, devorados a força dos particularismos que se ma-
em outros lugares por entidades suprana- nifestarão no interior do império a partir
cionais, os Estados conseguirão conciliar do século XVIII (Mantran, 1980).
a necessária unidade de seus objetivos É ainda no século XVI que a Rússia
políticos com a incontornável diversidade se entrega a uma expansão colonial. De
étnica e cultural de sua população? Qual início, em direção ao Volga e aos Urais,
o alcance político atual da mestiçagem? depois, no século XVIII, dirigindo-se
Sem estabelecer como postulado a in- para o Cáucaso e o Báltico. Escrevendo
divisão do político e do não-político, é no começo do século XVIII, o cientista
fácil constatar que as relações culturais italiano Ludovico Muratori comparou a
e étnicas modernas evoluem segundo ei- colonização "branda" dos russos na Sibé-
xos espácio-temporais bem determinados. ria à colonização "violenta" dos espa-
nhóis e dos portugueses na América. No
caso, prejudicados pela ausência de redes
A primeira era da mestiçagem: de comunicação e não dispondo de cor-
comércio e evangelização rentes de trocas comparáveis àquelas que
os europeus estabelecem de modo incan-
A primeira era da mestiçagem moder-
sável através do Atlântico, os colonos
na estende-se de 1500 a 1825, durante
russos instalam-se entre as populações
a primeira expansão européia. Comércio
dos mercados do grão-ducado de Moscou,
e evangelização constituem a ponta de
sem desarticular as culturas autóctones.
lança das Descobertas e da valorização Esses movimentos de expansão con-
dos territórios conquistados. Três sé- servam algumas características comuns.
culos de intercâmbios e de transforma- A fidelidade ao imperador, a idéia de
ções integram a América, a Ásia e a participação num conjunto político ou re-
África na economia centrada mundial- ligioso prevalecem sobre a idéia de raça,
mente na Europa Ocidental. Primeiro cuja acepção moderna, aliás, só se forjou
continente atingido pelo avanço europeu, no início do século XIX. Por razões que
a África sofre mutações contrastadas no dizem respeito tanto à demografia quan-
tempo e no espaço. A engrenagem do to à economia, é no interior dos impé-
tráfico negreiro atlântico transtorna as rios ibéricos da América que se difun-
sociedades subsaarianas, mas a evangeli- dem as formas mais extensas da mesti-
zação e o estabelecimento de colonos são çagem moderna. A introdução forçada Mestiçagem,
em parte freados por um ambiente epi- de levas de africanos, a redução dos ame-
demológico hostil. De modo que a acul- comércio e
ríndios à servidão — vítimas também do
turação dos africanos e a mestiçagem en- choque microbiano e viral provocado pela
evangelização
tre brancos e negros permanecem cir- chegada dos africanos e dos europeus —,
cunscritas às zonas do litoral até meados o estabelecimento do clero, da admi-
do século XIX. nistração e dos colonos europeus —
Na Ásia e no Extremo Oriente, a che- homens em sua maioria — acionam
gada dos portugueses e, depois, dos ho- um duplo movimento de aculturação e
landeses e dos ingleses, nos séculos XVI miscigenação. Transformados em engre-
e XVII, ocasiona, como na África, o nagens do comércio mundial, os índios,
estabelecimento de uma rede de feito- os negros e os brancos da América La-
rias e de portos de comércio. As tran- tina tecem uma trama densa de relações
sações marítimas são ativadas, sem que, sociais. O surgimento dos novos Estados

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americanos encerra esta primeira era da tórios dos impérios turco, espanhol e
mestiçagem. Arrastada no turbilhão da português, as possessões britânicas, ale-
Revolução Industrial, a Europa fecha-se mãs, francesas e belgas aumentam con-
provisoriamente em si mesma, unificando sideravelmente.
Mestiçagem, os espaços nacionais, concluindo a con- Por um lado, assiste-se à colonização
Estado e centração das populações, abrindo cami- com base na fixação de famílias euro-
nho para a formação de Estados-nação péias na Austrália, na África do Norte
"racismo constituídos em torno de um território, e no Sul do continente. Nos enclaves
científico" uma língua, um povo. coloniais do Oeste da África e da Ásia,
a organização do trabalho permite a se-
A segunda era da mestiçagem: paração das comunidades brancas e in-
os Estados-nação e o "racismo dígenas associadas às atividades produti-
vas. Seja em razão da colonização fami-
científico"
liar ou da divisão do trabalho colonial,
A segunda era da mestiçagem abarca o fato de as comunidades permanecerem
os anos 1850-1950, marcados por uma delimitadas de modo estanque restringe
nova expansão européia. À medida que as uniões entre brancos e os povos de
se intensificam as migrações internacio- cor durante esse período. Em contrapar-
nais, o povoamento dos Estados ameri- tida, a transferência de populações asiá-
canos se afirma e algumas regiões da ticas em levas sucessivas para a África e
África conhecem uma colonização efetiva. a América faz eclodir um movimento de
Com a instauração de governos cons- mestiçagem entre negros, ameríndios e
titucionais e de regimes parlamentares asiáticos.
na Europa e na América, o conceito mo- Por outro lado, a introdução da má-
quina a vapor, seguida pela eletricidade,
derno de cidadania ganha sua verdadeira
o desenvolvimento dos meios de trans-
dimensão. Despojado dos atributos reli-
porte, em suma, a mecanização da explo-
giosos, atemporais e supraterritoriais,
ração colonial amplia as migrações inter-
próprios das monarquias imperiais do
nas, a urbanização, a difusão das línguas
Antigo Regime, o poder político investe- européias e as mudanças econômicas na
se de uma nova legitimidade. A partir África e na Ásia. Contrastando com o
de então, a autoridade pública apresenta- processo observado na América durante
se como emanação da soberania de uma a primeira era da mestiçagem, a coloni-
comunidade que tem contornos geográ- zação contemporânea provoca uma forte
ficos, demográficos e culturais bem defi- aculturação na África e na Ásia, mas não
nidos: a nação. Paralelamente, dota-se dá lugar a um movimento de miscige-
o conceito de raça de um estatuto cientí- nação de dimensões comparáveis.
fico que servirá de base ao estabeleci- Como mostra a Tabela I, às vésperas
mento de hierarquias entre as raças e os da descolonização a África possuía ape-
povos. Pouco a pouco a colonização nas uma pequena porcentagem limitada
transforma-se em praxis do racismo con- de mestiços.
temporâneo. De fato, quando o "racismo Embora perfeitamente capazes de es-
científico" se integra nos conceitos mo- tender a outros territórios sua dominação
dernos de cidadania e de nacionalidade, econômica, e neles consolidá-la, os Es-
consolida-se a nova ordem internacional tados-nação contemporâneos encontram
surgida com a Revolução Industrial: tan- alguns limites quando se trata de garantir
to para Cecil Rhodes quanto para Fried- a dominação política desses territórios.
rich Engels, o mundo se dividirá entre Como nota Hannah Arendt: "De todas
nações "civilizadas" e nações "bárbaras", as formas de governo, o Estado-nação é
devendo naturalmente as primeiras do- a menos adequada a um crescimento ili-
minar as segundas. Aliás, é o conceito mitado, pois o consenso específico no
laico de "civilização" e não mais o con- qual se baseia não pode estender-se inde-
ceito religioso de "evangelização", que finidamente e só é obtido raras vezes e
comanda a divisão dos novos impérios com dificuldade dos povos conquistados"
coloniais na África e na Ásia. (H. Arendt, 1968).
Parcialmente vencida, a barreira mi- Desta inadequação entre os instrumen-
crobiana não representa mais um obs- tos políticos e os objetivos econômicos
táculo intransponível à fixação de euro- do colonialismo contemporâneo surge
peus, e sobretudo de européias, nas zonas uma série de impasses que precipitarão
tropicais. Enquanto se retraem os terri- a descolonização e que, ainda hoje, pe-

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sam sobre o estatuto de algumas cate- mestiçagem que se define o perfil etno-
gorias de cidadãos franceses e britânicos. demográfico das nações do Novo Mun-
Assim, para controlar a entrada de imi- do. Enquadrados por fronteiras pro-
grantes de língua inglesa provenientes gressivamente consolidadas, os Estados
das antigas colônias britânicas, o Natio- americanos captam vagas sucessivas de
nality Act de 1982 reverte sete séculos imigrantes da Europa, do Oriente Médio
de tradição jurídica e abole o jus soli, o e da Ásia. Ao mesmo tempo, cessa a che-
"direito do solo", na Inglaterra. Desde gada de africanos, enquanto os amerín-
então, as crianças estrangeiras nascidas dios continuam a declinar. Políticas sele-
em solo inglês não dispõem mais de um tivas de imigração, que também se inspi-
direito automático à nacionalidade britâ- ram no "racismo científico", favorecem
nica. Além disso, esta nova lei priva cer- a entrada de europeus no continente
ca de 4,5 milhões de súditos britânicos americano. Através do reforço do povoa-
— em geral asiáticos — do direito de mento europeu e da miscigenação, espe-
livre residência na metrópole. ra-se reduzir a proporções adequadas os
* * * grupos não-europeus — ameríndios e ne-
gros — a fim de "branquear" e, portan-
Sem sombra de dúvida, o elemento to, "civilizar" a população de certas na- África, o
que mais chama a atenção no contexto ções americanas. Em virtude desses flu-
político africano é a extravagância das xos migratórios, modificam-se os dados continente
fronteiras internacionais do continente. demográficos e culturais herdados do pe- internacional
Apesar disto, e talvez por causa disto, a ríodo colonial. Os Estados Unidos afir-
intangibilidade das fronteiras herdadas mam sua supremacia demográfica: a po-
da colonização permanente como um dos pulação do país aumenta quatro vezes
principais pontos da carta da OUA entre 1845 e 1914 (de 20 milhões para
(Organização da Unidade Africana) e do 100 milhões de habitantes), enquanto a
consenso diplomático africano. Não con- população na América Central e na do Sul
seguindo encontrar em seus concidadãos aumenta apenas uma vez e meia durante
uma fidelidade à nação, os atuais diri- o mesmo período (de 30 milhões para 80
gentes africanos professam um "nacio- milhões de habitantes). A partir de en-
nalismo de Estado" que mantém o status tão, a população de origem européia ga-
quo entre os diferentes países e encobre nha um peso inédito na história do conti-
os antagonismos étnicos no interior das nente americano. A Argentina, o Uru-
fronteiras africanas. guai, o Sul do Chile e a maior parte da
Na América e, em menor medida, na América do Norte formarão uma Amé-
África, a ocupação européia desmembra rica demográfica e culturalmente euro-
a maioria dos Estados pré-coloniais. Não péia, em contraste com uma América
ocorre o mesmo no Oriente Médio e na negra (Antilhas e Nordeste do Brasil) e
Ásia. Nestas duas regiões, algumas anti- uma América índia (América Central e
gas potências (China, Japão, Vietnã, países andinos). Entre as duas guerras
Turquia, Irã, Síria) recuperam progressi- diminui a freqüência da chegada de levas
vamente seu lugar no conjunto das na- de imigrantes, ao mesmo tempo em que
ções, depois de um intervalo mais ou se acentua o movimento de urbanização
menos prolongado de declínio político. e as migrações no interior do continente.
Deste modo, esses Estados são levados Aliás, as populações negras e ameríndias
a contestar a soberania de novas potên- estabilizam-se e um novo surto de mes-
cias regionais (Camboja, Índia, Grécia, tiçagem se produz.
Israel, Líbano) sobre territórios ou po-
pulações que a história colocava sob sua A terceira era da mestiçagem:
dependência antes da fixação das atuais a democracia e os direitos
fronteiras internacionais. Nesse nível, as das minorias
tensões tornam-se ainda mais agudas, na
medida em que esses países, antigos ou A terceira era da mestiçagem toma
novos, congregam minorias prontas a corpo diante de nossos olhos, suscitando
entrar em dissidência com relação ao po- as questões que enchem as páginas dos
der central. Varridos pela rivalidade jornais dos países ocidentais: o que fazer
Leste-Oeste, o Oriente Médio e o Extre- com os trabalhadores imigrantes originá-
mo Oriente podem ainda sofrer novas rios dos países menos desenvolvidos,
partilhas territoriais. num momento em que se aprofunda a
É ainda durante a segunda era da crise nos países industrializados?

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Além de sua dupla inserção econômica sinque — que obrigam os países signa-
— como produtores de bens e serviços tários a autorizar a livre circulação das
nos países que os acolhem e como for- pessoas? Se pensa em escolher a via
necedores de divisas em seus países de da generosidade, ampliando os direitos
origem —, os imigrantes têm um duplo dos imigrantes já fixados no país?
estatuto no domínio dos direitos civis. Nesse caso, caímos em outra questão:
Cidadãos estrangeiros são, além disso, deve-se favorecer a sedimentação de
parcialmente incorporados às instituições novas comunidades étnicas e religiosas
políticas e sociais dos países onde traba- nos países que as acolhem ou, ao contrá-
lham (direito de voto em eleições locais rio, instaurar uma política ativa de assi-
na Suécia, na Irlanda, na Dinamarca, nos milação? A resposta a essas questões
Países Baixos; direitos sindicais e sociais supõe uma redefinição da política, da
mais ou menos extensos segundo os paí- cultura e da visão que as nações que aco-
ses que os acolhem). É verdade que, até lhem populações imigrantes forjaram so-
o início dos anos 1970, a mão-de-obra bre si mesmas no curso de sua história
estrangeira podia ser assimilada global- recente. Diante dessas dificuldades, o elo-
mente a um "exército industrial de re- gio da mestiçagem serve de exorcismo às
serva", a serviço dos empresários dos reações irracionais que vemos despontar
países desenvolvidos. Fornecendo uma no horizonte.
superpopulação relativa, uma força de Paradoxalmente, a mestiçagem é apre-
trabalho desorganizada em situação de sentada como uma solução às tensões in-
infracidadania, os imigrantes reduzem os tercomunitárias existentes em alguns paí-
custos salariais e permitem a manutenção ses europeus, no exato momento em que
de tecnologias ultrapassadas e a continui- ela é questionada de modo incisivo pelas
dade de atividades cuja insalubridade minorias da América.
desagrada aos trabalhadores nacionais. Condenadas e reprimidas com freqüên-
Desde então, a extensão progressiva da cia no século XIX, a miscigenação e a
sindicalização e da legislação social au- transculturação aos poucos se afirmaram
mentou a combatividade dos imigrantes. como elementos essenciais da estratifica-
O resultado é que, a exemplo da mão- ção dos Estados-nação do Novo Mundo.
de-obra feminina, os trabalhadores es- Todavia, desde os anos 1960 constata-se
trangeiros não podem ser totalmente um ascenso de reivindicações comunitá-
excluídos do mercado de trabalho du- rias no continente.
rante as fases de recessão econômica. Nos Estados Unidos, a ideologia do
Tanto mais que o anúncio de restrições cadinho étnico e cultural (melting pot) se
à entrada de novos imigrantes leva mui- desgasta, ao mesmo tempo em que gru-
tos deles, já instalados nos países que pos minoritários reivindicam declarada-
mente, e às vezes de modo violento, a
os acolheram, a trazer para junto de si
afirmação de sua "etnicidade", de sua
suas famílias, consolidando assim a pre-
especificidade cultural e étnica. Forma-
A questão das sença das comunidades estrangeiras nos dos por um mosaico de populações, os
minorias e o países industrializados. Estados Unidos estão, além disso, em
Dois elementos convergentes dão um
desmoronamento caráter mais agudo ainda a esta evolução.
contato direto com o México, país em
dos melting pot vias de desenvolvimento que defronta
Enquanto decresce a natalidade na maio- com uma demografia galopante. Por uma
ria dos países ocidentais, os atuais imi- malícia da história, a "bela Califórnia",
grantes — ao contrário daqueles do tomada em meados do século XIX "aos
passado — contam com uma grande pro- mexicanos preguiçosos" pelos "enérgicos
porção de não-europeus. ianques" (Marx), assiste atualmente à
Deste ponto de vista, o futuro dos ascensão dos chicanos, enquanto o espa-
imigrantes coloca problemas novos ao nhol se converte na segunda língua fala-
consenso político predominante em al- da nos Estados Unidos. Em suma, o flu-
guns países ocidentais. Como diminuir xo contínuo de imigrantes legais e clan-
o peso dessa população alógena nos mer- destinos da América Latina esboça uma
cados de trabalho nacionais sem fazer nova cultura nacional nos Estados Uni-
apelo a leis de exceção, sem repor em dos. Conforme mostra a Tabela II, a po-
causa garantias sindicais, direitos indivi- pulação originária de países de língua
duais, princípios constitucionais e, en- espanhola aumenta a um ritmo mais rá-
fim, tratados internacionais — como o pido que a população negra e a popula-
Tratado de Roma e os Acordos de Hel- ção branca. Em algumas grandes cidades

56 NOVOS ESTUDOS N.º 11


americanas, os efetivos combinados dos a organização do Estado, mas a organi-
dois primeiros grupos estão chegando a zação da nação.
ponto de ultrapassar o número de habi- Por um lado, a democratização das
tantes de origem européia. Desde já a sociedades autoritárias da América La-
coesão da população negra e a persistên- tina reduz o alcance político e ideológico
cia da língua espanhola no interior do das práticas de mestiçagem: reabilitando
grupo de origem hispânica constituem os indivíduos, as categorias sociais, as
dois fenômenos sociais irredutíveis. comunidades, a democracia leva a uma
Não resta dúvida que a amplitude dos reavaliação do papel das minorias políti-
movimentos políticos de caráter étnico cas e demográficas. Por outro lado, a
mantém evidentemente uma relação mui- difícil integração dos imigrantes nas so-
to estreita com a natureza das institui- ciedades liberais da Europa Ocidental e
ções americanas, em que a descentraliza- dos Estados Unidos suscita novos pro-
ção federalista se alia a um credo político blemas para a prática da democracia: a
baseado no culto das liberdades indivi- presença agora já permanente de co-
duais. No entanto, é forçoso constatar munidades estrangeiras provenientes de
que movimentos semelhantes eclodem no culturas não-européias exige que se re-
México, Peru, Bolívia, Brasil, Antilhas, considerem os elementos constitutivos
regiões onde ameríndios, negros, ame- da nacionalidade e da cidadania.
rasiáticos — às vezes majoritários do Estas observações permitem traçar um
ponto de vista cultural ou demográfico quadro das tensões que resultam da jus-
taposição de diferentes camadas étnicas
— são mantidos sob tutela por institui-
compreendidas no interior dos Estados
ções e práticas sociais que favorecem a contemporâneos. Entretanto, a significa-
população de origem européia. ção nodal da problemática da mestiça-
Em graus diversos, devido à agudeza gem só se torna evidente quando se con-
dos problemas étnicos desses países e, segue determinar a posição relacional do
sobretudo, à presença ou à ausência de mestiço no interior das relações interco-
liberdades públicas, as minorias da Amé- munitárias.
rica Latina parecem recusar cada vez
mais as políticas assimilacionistas e a
ideologia de mestiçagem espalhadas por A mestiçagem por hipogamia
todo o subcontinente. Para que a mestiçagem ocorra, é
No entanto, seja porque se compõem preciso que o isolamento dos grupos em
de grupos dispersos em um vasto ter- presença se rompa de maneira duradoura
ritório, seja pelo fato de terem sido em seguimento a um desequilíbrio polí-
política e culturalmente desmembradas tico ou militar.
(como as grandes nações indígenas e em Da multiplicação de contatos entre
particular os Aymara na América andi- dois grupos que possuem características
na), essas minorias não formulam reivin- fenotípicas distintas surge uma camada
dicações quanto à soberania dos atuais de mestiços, geralmente oriundos de re-
Estados americanos. Aliás, nenhum Es- lações não-institucionais entre os homens
tado do continente está atualmente em da camada dominante e as mulheres da
condição de lançar manobras irredentis- comunidade dominada. Uma vez que a
tas em direção dos territórios e das maioria das sociedades humanas são
populações vizinhas. Considerado deste Há quase
"viripotestativas" (marcadas pela supe- sempre uma
ângulo, o novo questionamento da mes- rioridade do homem sobre a mulher),
tiçagem e das práticas assimilacionistas relação de
essas uniões traduzem a hiperdominância dominação na
exige antes uma redefinição do jogo de uma das sociedades — a qual fornece
político interno de certos Estados que
mestiçagem
sempre o genitor e mais raramente o
uma remodelação das fronteiras nacio- marido — sobre outra, que fornece sem-
nais do continente. pre as mães e, mais raramente, as espo-
Em conclusão, se excluirmos os países sas. Esta forma unilateral de miscigena-
da África e da Ásia, cujas fronteiras ção não se restringiu evidentemente à
ainda não se estabilizaram, e países bal- América Latina. Ela intervém igualmen-
cânicos, onde essas fronteiras são con- te tanto na América do Norte quanto na
testadas, veremos esboçar-se uma certa África ou na Ásia. Esse processo tam-
complementaridade nos debates suscita- bém não é peculiar à expansão ibérica.
dos pela mestiçagem na América Latina, Desde o fim do século XVIII, em
nos Estados Unidos e na Europa Ociden- Maryland e na Virgínia, colonos ingleses
tal. Nesses continentes, não se questiona unem-se às ameríndias e depois às afri-

JANEIRO DE 1985 57
GEOPOLÍTICA DA MESTIÇAGEM

canas. Na mesma época, holandeses, tencer aos grupos que a compõem. Uma
ancestrais dos atuais doutrinários do parte dos mestiços consegue às vezes fi-
apartheid, casam-se com mulheres hoten- liar-se ao grupo do genitor de condição
totes da África Austral e, posteriormen- mais baixa, comumente o da mãe. Atra-
te, com as malasianas transportadas para vés de sucessivos casamentos, seus des-
a Cidade do Cabo. Depois da Segunda cendentes serão reintegrados na comuni-
Guerra Mundial, a presença militar fran- dade dominada, levando a cabo um pro-
cesa e americana na Indochina deu lugar cesso de reversão da miscigenação. Em
a uma camada de mestiços cujo futuro é contrapartida, nas sociedades onde as
atualmente duvidoso. regras comunitárias são mais rígidas,
...que é a Nesse estágio, a miscigenação constitui os mestiços permanecem condenados ao
gênese da apenas a resultante demográfica de uma celibato ou às relações ilícitas, intensifi-
relação de dominação e exploração. Po- cando assim a marginalização de que são
bastardia... dem produzir-se casamentos em que o vítimas. Tanto num caso quanto noutro,
pai transmite seu próprio estatuto ao a população mestiça conserva proporções
filho. Mas, nessas circunstâncias, a con- residuais.
cretização do connubium permanece tão A atrofia da miscigenação no contexto
rara quanto a inversão da norma que das uniões hipogâmicas deu provavel-
preside a esta forma de mestiçagem. Tão mente origem ao preconceito sobre a es-
rara, com efeito, quanto a união de uma terilidade dos mestiços e o caráter disge-
mulher da comunidade dominante. Na nético da mestiçagem. A própria palavra
verdade o casamento se destina a unir "mulato" deriva do espanhol mulo
grupos e não indivíduos. (mula), híbrido não reprodutor. No Sul
Nesse contexto, mestiçagem e bastar- do Brasil, a palavra "chibarro" designa
... que pode ao mesmo tempo "mestiço" e "castra-
dia tornam-se sinônimos. Nas sociedades
dar lugar à cujas unidades constitutivas são grupos do". Deste ponto de vista, os mestiços
marginalização baseados no parentesco, os mestiços nas- são apresentados como uma camada so-
cidos das relações clandestinas não terão cialmente instável e demograficamente
filiação nem serão perfilhados. São con- transitória, que atesta a transgressão das
siderados como "sem-família" ou, em regras de aliança e de consangüinidade
outras palavras, como "não-seres". Por observadas no interior de um espaço
isso, quando o grupo dominado tem coe- político. Daí o anátema que pesa sobre
são suficiente para prescrever e observar o conjunto dos mestiços: "Os mulatos e
regras endogâmicas, os mestiços podem as raças misturadas passam por ser, nas
ser rejeitados pelos dois grupos simul- colônias, a escória da espécie humana",
taneamente. Os eurasianos da índia en- sublinha o Larousse do século XIX, na
frentam esta forma de desclassificação: rubrica "Mulato".
Na Europa, a rejeição das "raças mis-
"Para os europeus, nós constituímos
turadas" foi ainda mais acentuada no
apenas metade de uma casta, de nossa
século XIX pelo papel atribuído aos
parte não nos consideramos como uma
mestiços nas novas nações latino-ameri-
casta, para os hindus somos excluídos das canas. Hegel retomava com preocupa-
castas" (Stonequist, 1937). Esses efeitos ção a idéia da "ambição" dos mestiços
negativos convergentes definem o cam- da América, para concluir: "É por esta
po da mestiçagem por hipogamia: de razão que os ingleses adotam na Índia
maneira desigual mas correlativa, a união a política que consiste em evitar a
intercomunitária desvaloriza cada um dos formação de crioulos, isto é, de um
participantes. O mestiço representa a povo de sangue misto, indígena e euro-
realização de uma dupla aliança negativa. peu, aclimatado ao país". Na realidade,
Tal é a situação do mulato em alguns os britânicos transferem populações de
países africanos que conquistaram há uma colônia para outra (asiáticos para
pouco tempo a independência: tem mui- a África, muçulmanos para as zonas hin-
tos traços negros para poder ser incorpo- duístas da Índia e do Ceilão), segmen-
rado entre os brancos, e poucos traços tando assim a camada dominada, sem
negros para conseguir se integrar aos favorecer de modo particular os mesti-
africanos. ços. A desconfiança com relação aos mes-
A personalização do mestiço depen- tiços trabalhará em sentido inverso no
derá, em última instância, dos critérios pós-guerra. Eles passarão a ser vítimas de
que cada uma das comunidades prescreve discriminações nas novas nações da Áfri-
para o reconhecimento do direito de per- ca e da Ásia, onde dirigentes ultrana-

58 NOVOS ESTUDOS N.º 11


cionalistas, quando não xenófobos, so- A queda de regimes "neocolonialis-
bem ao poder. tas" de origem bem mais recente, ocor-
Em suma, nas regiões em que a acul- rida desde então em Gana e em Alto
turação do grupo dominado não é levada Volta, indica que o desaparecimento dos
a cabo e nos países que foram palco de pais-fundadores dos atuais Estados afri-
uma luta de libertação nacional, o recuo canos poderá dar início a uma fase de
do grupo dominante desencadeia proces- contra-aculturação na África. Aliás, no
sos de contra-aculturação que acarretam momento em que o ex-presidente senega-
uma redução progressiva da mestiçagem. lês Léopold Senghor era admitido na
Dois exemplos atuais ilustram os me- Academia Francesa, parece que o concei-
canismos de reversão e de rejeição do to de "negritude", de que foi um dos
enxerto colonial no continente negro. criadores, tornava-se cada vez mais re-
Desde o século XVI, os portugueses cusado pela intelligentsia africana em
procuravam construir em Angola "um benefício de formas mais radicais de afir-
outro Brasil". No entanto, apesar de mação cultural. Sartre notava esta rup-
uniões interétnicas seguidas, os mulatos tura ao assinalar, em um de seus últimos
continuamente se "reafricanizaram" no escritos, o modo pelo qual a consciência
seio das comunidades indígenas dos vila- prática da opressão condena ao desapa-
rejos. A introdução, no século XX, da recimento as expressões passivas de con-
colonização familiar reduziu ainda mais tra-aculturação: "A negritude não cabe
o alcance da miscigenação: em 1960, An- mais no pensamento africano depois das
gola não conta com mais de 1% de lutas revolucionárias do Terceiro Mundo:
mulatos. Após a independência do país, o africano se pensa enquanto sujeito pre-
em 1975, e a retirada dos brancos, os cisamente na medida em que a luta ar-
mestiços tendem então a se fundir com mada faz dele um agente de sua própria
a população negra. Tanto mais que os história e do colono o seu objeto".
atuais dirigentes angolanos, como outros De onde se pode concluir que não bas-
governos do continente, pregam uma po- ta que o isolamento das comunidades se
lítica ativa de "reafricanização" das ins- rompa para que se generalize a mestiça-
tituições e da sociedade. Majoritariamen- gem. É necessário ainda que a socie-
te branco, o clero católico seguiu os dade dominada se desestabilize de ma-
colonos de volta a Portugal. Quatro sé- neira irreversível e que ela se tenha im-
culos de contatos inter-raciais e de es- pregnado de um novo sistema de valores
forços de evangelização evaporam-se que torne a miscibilidade preferível ao
atualmente na África Central. Fracasso casamento intraétnico. Para que se reú- O fracasso
tanto mais surpreendente quando, como nam essas condições, a miscigenação de- português em
constatamos, se atribui aos portugueses ve ser acompanhada de uma aculturação Angola ou a
um comportamento particularmente fa- profunda, que leve à desagregação da queda do
vorável à miscibilidade com os grupos sociedade dominada. Foi na América La-
dominados. tina que esta combinação de fatores en-
mito do
Mais característico dos limites da controu sua expressão mais completa. luso-tropicalismo
aculturação na África, o caso da Libéria
constituirá um marco na história do con- A mestiçagem por hipergamia
tinente. Fundada por sociedades filan-
trópicas americanas para abrigar os an- Na América Central, nas Antilhas, nos
tigos escravos do país, a Libéria era di- Andes e na América tropical, o estabe-
rigida, desde sua independência, em lecimento de uma economia de produção
1847, por uma camada de negros afro- provoca a fixação dos ocupantes, rompe o
americanos fortemente assimilados à isolamento dos autóctones, leva à intro-
cultura e à economia americanas. A maio- dução de escravos africanos. Estas cir-
ria da população de origem africana — cunstâncias acentuam a dessocialização
os "nativos" — permanecia afastada do dos negros e a desestruturação de algu-
poder. Por um efeito retardado do mo- mas sociedades ameríndias: a partir de
vimento de descolonização, as relações então a miscigenação poderá ter efeitos
de força interiores modificam-se de mo- cumulativos. Atualmente, tal como no
do brutal no país em 1980. Conduzidos passado, para escapar às pressões exer-
por militares — vetores privilegiados das cidas sobre seu grupo, as mulheres de
políticas de "reafricanização" do conti- cor são com freqüência levadas a se tor-
nente —, os "nativos" tomam o poder narem concubinas dos brancos. Desco-
em Monróvia para eliminar um "neocolo- nhecido ou ausente, o pai é substituído
nialismo" mais que secular. pela mãe à frente das famílias mestiças.

JANEIRO DE 1985 59
GEOPOLÍTICA DA MESTIÇAGEM

Dado que não deixa de ter relação com social de seus pais. Na mestiçagem por
alguns traços do catolicismo na América hipergamia, ao contrário, a dupla filiação
Latina (Bastide, 1960). produz uma reclassificação: inserido na
Assim, à forte diferença da África, parte inferior da pirâmide social domi-
observa-se uma difusão do culto maria- nante, o mestiço poderá começar uma
nista no subcontinente. A Virgem de ascensão rumo à personalização. No
Guadalupe, no México, Nossa Senhora primeiro caso, por catabolismo, a repro-
de Guálupo, no Equador, Nossa Se- dução dos mestiços permanece marginal
As senhoras nhora de Copacabana, no Peru e na e a sociedade continua a ser birracial. No
segundo, por metabolismo, surgem con-
"aparecidas", Bolívia, a Virgem de Luján, na Argen-
dições favoráveis à formação de um te-
mães dos mestiços tina, Nossa Senhora de Caacupe, no
cido mais denso de relações interétnicas,
Paraguai, Nossa Senhora Aparecida,
e mediadoras da no Brasil: todas elas santas de rosto mes-
ao crescimento demográfico e à edifica-
civilização tiço, "aparecidas" em diferentes para-
ção de uma sociedade multirracial.
opressora e Resta o fato de que a emergência de
gens da América Latina, para se torna- uma camada intermediária de mestiços e,
da dominada rem logo após objeto de um culto de portanto, a passagem da birracialidade à
características profanas (Lafaye, 1974). multirracialidade traduzem uma mutação
Para as massas, que a destruição dos fundamental no interior da população
modos de vida tradicionais deixou órfãs, reunida em um espaço político. Em ou-
esta devoção se dirige à mãe mítica, sím- tras palavras, a transição social que
bolo da continuidade entre as crenças do conduz à personalização dos mestiços se
passado e do presente, mas igualmente situa tanto no domínio político quanto
à mediadora entre duas civilizações. no domínio demográfico e cultural.
No caso, a introjeção, por parte das
minorias, dos valores culturais da comu- A invenção do mestiço
nidade dominante dá lugar à elaboração
de uma hierarquia social global baseada A despeito da desestruturação da co-
na cor da pele, forma do rosto, textura munidade dominada, o movimento em
dos cabelos. É o que Fanon denomina direção à mestiçagem pode encontrar fa-
"a epidermização da inferioridade". tores inibitórios no interior da comunida-
Nesse novo sistema ideológico, ser e de dominante. Por razões que derivam
parecer podem confundir-se. A persona- do controle social ou dos imperativos do
lização do mestiço dependerá de seu grau mercado de trabalho, a posição relacional
de proximidade com o fenótipo domi- do mestiço varia consideravelmente de
nante: se o mulato aspira a parecer uma época para outra, de um país para
(branco), é porque é o ser (branco) que outro. Independentemente de sua reli-
determina o não-ser (negro). A lógica gião, de sua cultura e de suas institui-
da mestiçagem afirma-se, já que embran- ções, às vezes provenientes de um tronco
quecer a pele se converte em uma estra- comum, certos grupos dirigentes blo-
tégia de promoção social. Daí decorrem queiam a estratificação de uma camada
socialmente distinta de mestiços, enquan-
duas conseqüências principais. Em pri-
to outros adotam a política inversa. Essas
meiro lugar, as mulheres de cor procura-
escolhas terão conseqüências importantes
rão unir-se a parceiros mais brancos, e
quando os territórios coloniais se trans-
em seguida cuidarão melhor da educação
formarem em Estados-nação.
e da promoção dos filhos cujo fenótipo
Na América portuguesa, a extensão da
é mais próximo daquele do pai. Em
escravidão africana agrava a insegurança
segundo lugar, a propensão das mulhe-
res de cor a casar-se com brancos subtrai dos proprietários e restringe a oferta de
esposas aos mestiços e aos negros, pro- trabalhadores qualificados. Essas pres-
vocando o declínio demográfico dessas sões levam os senhores a dar um trata-
camadas da população. mento de favor aos mestiços em geral e
Esse conjunto de fatores caracteriza a aos mulatos em particular. Arguto obser-
mestiçagem por hipergamia: em qualquer vador da sociedade brasileira, o jesuíta
circunstância, a união com um homem da Andreoni formulou no início do século
camada dominante valoriza a mulher da XVIII um aforismo que se tornou céle-
camada dominada. Na mestiçagem por bre: "O Brasil é o paraíso dos mulatos,
Da mestiçagem o purgatório dos brancos e o inferno dos
hipogamia evocada anteriormente, a du-
hipogâmica à pla filiação acarreta a desclassificação: o negros". Em contraste com a história
ascensão social mestiço ratifica e reproduz a decadência americana, milhares de escravos — ge-

60 NOVOS ESTUDOS N.º 11


ralmente mulatos e negros aculturados atentados e distúrbios, o regime do
— foram alforriados e dotados do direi- apartheid viu-se obrigado a consolidar
to de voto (mas não do direito de serem suas defesas internas e externas. Proble-
eleitos) no Brasil, bem antes da extinção mas cujo despontar era visto no domínio
da escravidão. Daí as distinções que ca- econômico aparecem então de maneira
racterizam as relações raciais, os enfren- esclarecedora no plano militar. Como
tamentos intercomunitários e o próprio reforçar o regime sem alargar suas bases,
crescimento da população negra nesses visto que a imigração branca é limitada
dois países (ver Tabela II). No Brasil, e que a natalidade dos brancos é baixa?
existe uma sociedade multirracial em que Ex-ministro da Defesa, o primeiro-mi-
as uniões interraciais são amplamente nistro Pieter W. Botha propôs a amplia-
toleradas e na qual os mulatos são inves- ção dos direitos políticos dos mestiços e
tidos de entidade própria. Nos Estados dos hindus, a fim de fornecer aliados
Unidos, onde as ligações e os casamentos aos africânderes e criar bases mais exten-
interraciais foram proibidos por muito sas para circunscrição militar. Em sua
tempo na maioria dos Estados, a socie- lógica transparente, os imperativos de
dade é birracial, sendo o mulato classifi- segurança decidirão o debate político.
cado com o conjunto da população negra. A partir de então, a África do Sul
O constante afluxo de imigrantes euro- conta com três assembléias. A primeira,
peus, o insulamento da escravidão no Sul composta de cinqüenta membros, repre-
do país, a relativa segurança dos brancos senta os 4,6 milhões de brancos do país.
explicam que os proprietários america- A segunda conta com 25 membros, ex-
nos não tenham sentido necessidade de pressão dos 2,8 milhões de mestiços. A
dividir os negros, favorecendo a sedi- terceira, de treze membros, é represen-
mentação de uma camada de mulatos li- tante de 850.000 hindus. Estas três câ-
vres no século XIX (Genovese, 1974). maras formarão o colégio eleitoral que
É surpreendente constatar ainda que
elegerá o chefe do Executivo. A antino-
— não obstante a clarividência de auto-
mia fundamental que se encontra na base
ridades coloniais que procuravam melho-
do apartheid nem por isso se modifica:
rar o estatuto dos mulatos — Lisboa não
os brancos conservarão uma maioria au-
seguiu em Angola uma política racial
semelhante àquela que os luso-brasileiros tomática no interior das instituições e os
elaboram no outro lado do Atlântico. É 21 milhões de negros permanecerão to-
certo que, no pós-guerra, os portugueses talmente excluídos do sistema político.
tentaram assimilar os elementos mais Trata-se unicamente de promover "a
aculturados da sociedade angolana, mas, cooptação de brancos honorários em
como vimos, já era demasiado tarde. um sistema opressivo que já não conta
Esse fracasso português na África Aus- mais com policiais e militares brancos
tral e os distúrbios de Soweto em 1976 em número suficiente para manter os
— eventos que não deixam de ser rela- negros no seu lugar", como afirma o
cionados — constituem a razão principal Prêmio Nobel da Paz Desmond Tutu?
da reviravolta política ocorrida há pouco De modo mais geral, a fria determina-
na África do Sul. De fato, Pretória ins- ção que guia os dirigentes sul-africanos Do apartheid
taurou em 1983 reformas constitucionais na hierarquização do "direito à diferen- radical ao
que outorgam alguns direitos de cidada- ça" contribui para revelar as ambigüida- apartheid
nia aos mestiços e aos hindus, ao mesmo des subjacentes aos fenômenos da mesti-
çagem. dissimulado:
tempo em que mantém a população negra
afastada dos negócios do país. De nature-
a estratégia
za preventiva, essas transformações polí- "multirracial" da
O futuro da mestiçagem África do Sul
ticas procuram deliberadamente dividir
a comunidade dominada, permitindo a Retomemos, para concluir, nossas in-
evolução em direção a uma sociedade dagações iniciais. À luz das observações
que seria em aparência multirracial. anteriores, deve-se escrever que a mesti-
Exemplo magistral de "engenharia so- çagem, como o internacionalismo, será
cial", essas medidas acentuam os traços guardada no baú das utopias contempo-
dos fenômenos que acabamos de descre- râneas?
ver. Estudando os movimentos migratórios
Qual é a nova política sul-africana? antigos e modernos, Gobineau pensava
Enfrentando um isolamento crescente na que a mistura indiscriminada de raças
África Austral, agitado no interior por — que distinguia da mestiçagem eletiva

JANEIRO DE 1985 61
GEOPOLÍTICA DA MESTIÇAGEM

entre certas raças, considerada como um brasileiro, Robson, que se tornou um


fator de civilização e de progresso — célebre jogador de futebol na equipe do
conduziria a humanidade ao naufrágio Fluminense: "Já fui negro, sei o que isto
genético e à mediocridade geral. O pes- significa" (Mário Filho, 1964).
simismo de Gobineau baseava-se na Movida pela constatação objetiva de
idéia de que uma mistura total faria uma escala social baseada no fenótipo,
desaparecer as diferenças entre as raças a mestiçagem só alcança sua verdadeira
humanas. Partindo dessa mesma consta- dimensão no interior de sociedades fun-
tação, outros autores, mais generosos, dadas numa prática restritiva dos di-
esperavam encontrar aí razões para acre- reitos políticos. O que explica, de pas-
ditar no aparecimento de uma sociedade sagem, o paradoxo de alguns países au-
mais fraternal. Era não contar com o toritários organizados em torno de uma
eterno retorno das hierarquias, com a pretensa "democracia racial". Ao abolir
recorrência das ideologias racistas, com essas hierarquias, ao fazer a política pe-
os novos escolhos colocados no caminho netrar em toda a extensão do campo
da democracia, que Gobineau detestava social, a democracia instaura o direito à
tanto quanto a mistura racial generali- alteridade e retira toda a preeminência
zada. aos processos de mestiçagem.
A razão disso é que a mestiçagem — Momento necessário, mas transitório,
própria das sociedades atomizadas, em da transformação dos indivíduos, a mes-
que os direitos individuais são dissocia- tiçagem encontra, assim, seus limites: ela
dos dos direitos políticos — representa, não constitui a forma última da emanci-
no mais das vezes, uma alternativa à pação das comunidades, mas a última for-
promoção social e ao reconhecimento de ma de emancipação das comunidades nos
direitos reservados aos membros da co- limites da organização atual das relações
munidade no seio da qual o mestiço as- intercomunitárias.
pira a inserir-se. Nessas circunstâncias, o
mestiço só é reconhecido como tal quan- Luiz Felipe de Alencastro é professor na Universidade
de Rouen.
do ocupa as funções e se traveste dos
emblemas que lhe foram impostos pelo Novos Estudos CEBRAP, São Paulo
grupo dominante. Situação ilustrada pela n.°1 1 , pp. 49-63, jan. 85
observação impressionante de um mulato

Tabela I — Composição da população de alguns países africanos por ocasião da descolonização

País Ano Árabes Asiáticos Negros Brancos Mestiços % População


total
Angola 1960 (...) (...) 4.604.362 172.529 53.392 1,1 4.830.448
África do Sul 1960
(...) 477.125 10.927.922 3.088.492 1.509.258 9,4 16.002.797
Quênia 1962 34.048 176.613 8.365.942 55.759 (...) (...) 8.636.263
Moçambique 1960
(...) 19.300 6.427.955 97.300 31.500 0,5 6.578.600
Namíbia 1960 (...) (...) 428.575 73.464 23.963 4,5 526.004
Uganda 1963
2.200 82.100 7.093.000 9.800 (...) (...) 7.189.600
Zaire 1957 (...) (...) 12.768.706 (...) (...) (...)
1958 (...) 1.233 (...) 109.457 (...) (...)
1965 (...) (...) (...) (...) (...) (...) 15.627.000*
Zâmbia 1961 (...) 7.790 (...) 74.540 2.050 (...)
1963 (...) (...) 3.409.110 (...) (...) (...)
1965 (...) (...) (...) (...) (...) (...) 3.780.000
* E s t i m at i v a
Fonte: M. B anton, Sociologie des Relations... , pp. 232-239; D. M. Abshire & M. A. Samuels, Portuguese Á f r i c a . . . , pp. 5 e 12.

62 NOVOS ESTUDOS N.º 11


Tabela II — Evolução da composição da população dos Estados Unidos e do Brasil

Estados Unidos
1970 1980
Número % Número %
Brancos
177.748.975 87,5 188.340.790 83,2
Negros 22.580.289 11,1 26.488.218 11,7
índios, esquimós e aleutianos
827.268 0,4 1.418.195 0,6
Asiáticos 1.538.721 0,8 3.500.636 1,5
Outros
516.673 0,3 6.756.986 3,0
Total
203.211.926 226.504.825
Indivíduos de origem hispânica 9.072.602 4,5 14.605.883 6,4
Outras origens 194.139.324 95,5 211.898.942 93,6
Fonte: J. Cazemajou & J. P. Martin. La crise, p. 183.

Brasil
1960 1980
Número % Número %
Brancos
42.838.639 61,0 65.212.759 54,7
Negros 6.116.848 8,7 7.009.104 5,9
Amarelos
(índios e asiáticos) 482.848 0,7 754.895 0,6
Mestiços 20.706.431 29,5 45.779.466 38,4
Total
70.191.370 119.070.865
Fonte: IBGE. 1981. Rio de Janeiro

Gráfico I — Diferentes formas de mestiçagem

Mestiçagem por hipogamia: produto Mestiçagem por hipergamia: o mes- Mestiçagem institucionalizada: os
de uma dupla aliança negativa, o tiço se insere na parte inferior da mestiços formam uma camada dis-
mestiço é rejeitado pelas duas co- comunidade dominante. tinta entre a comunidade dominante
munidades. e a comunidade dominada.

JANEIRO DE 1985 63

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