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TEORIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS I – 2019/02


AULA 4: 06/09

POLÍTICA DA VIDA

“Luta pela existência” (Struggle for existence): apesar de essa expressão ser comumente
tomada, na explicação do darwinismo, como sinônima de “luta pela vida”, Darwin, ao
empregar o termo “existência” de preferência a “vida”, parece apontar para a existência
como um valor intrínseco à vida em geral. Todo vivente tende, intenciona, aspira à
existência – o que supõe, mais profundamente, que todo vivente experiencia o fato de
existir. Talvez o título seja mesmo uma definição compacta de vida: vida é luta pela
existência. Donde a necessidade de atentar também para o termo “luta” (struggle): vida
como contenda, disputa, combate (éris). Se for cabível tomar aquele título como
definição de vida, podemos então concluir hipoteticamente que, para Darwin, a vida é
intrinsecamente política: trata-se do acontecimento pelo qual os seres vivos de uma
mesma espécie ou de espécies diferentes, ao mesmo tempo em que compartilham a
existência, disputam entre si essa condição, “compreendida” como valor. Lembremos, a
propósito, de uma observação de Pedro Paulo Pimenta em sua Apresentação de A
origem das espécies:
A dimensão econômica da teoria de Darwin está presente desde o modelo geral da
competição entre os seres vivos pelos recursos de sua sobrevivência até o vocabulário,
que, por vezes, se torna fortemente político – falar-se-á em “territórios”, “domínios” e
“províncias” dessa “polity”, ou república, que é a Natureza (p. 24).

E lembremos também da glosa deleuziana do neoevolucionismo (cf. Aulas 2 e 3): a luta


pela existência entre os seres e as espécies vivas como implicando a “comunicação
transversal entre populações heterogêneas”. Antes que categorias, ou classes
taxonômicas, as espécies vivas são povos, ou classes sociais.

Se a vida é intrinsecamente política, se a própria política é obra e atividade da vida


(como, aliás, testemunha o postulado antropocêntrico de Aristóteles: ánthropos como
zôon politikón), de que política se trata a propósito das diversas configurações da vida?
Não é de todo evidente que a existência em jogo para cada ser vivo seja exclusivamente a
sua própria: além desta, pode igualmente estar em disputa a existência do coletivo e da
espécie a que ele pertence, mas também de outros coletivos ou mesmo outras espécies
de que igualmente depende como ser vivo.

Há, com efeito, diferentes políticas da vida: guerra “selvagem” de todos contra todos
(“homem lobo do homem”, Hobbes), filiação comunitária entre semelhantes (“lobo
homem do lobo”, Viveiros de Castro), aliança “contra-natureza” entre heterogêneos
(homem com lobo, lobo com homem), entre outras possíveis.
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COMPETIÇÃO VERSUS COOPERAÇÃO

No Capítulo 3 de A origem das espécies, a possibilidade de variação política da vida


torna-se evidente com a constante tensão lógica entre competição e cooperação como
fator diferentes, potencialmente divergentes, da evolução da vida por meio da luta pela
existência.

Tomemos algumas passagens em que a ênfase recai diferentemente ora sobre o conceito
de competição, ora sobre o de cooperação, ora sobre ambos ao mesmo tempo:

1) Para introduzir a seleção natural como princípio explicativo, Darwin torna a formular
a questão sobre a origem das espécies, agora por referência à sua adaptabilidade
cooperativa, entendida como efeito da co-dependência orgânica entre as espécies e entre
elas e o ambiente natural:
A mera existência de variedade individual e de algumas variedades bem definidas,
embora necessária à nossa prática, não ajuda muito a compreender como as espécies
surgem na natureza. Como foram aperfeiçoadas todas as requintadas adaptações de
uma parte do organismo a outra e às condições de vida e as de um ser orgânico a
outro? Vemos adaptações como essas, por exemplo, no pica-pau e no visco, mas elas
também são conspícuas no mais humilde dos parasitas, que se agarra aos pelos de um
mamífero ou às penas de um pássaro, na estrutura do besouro aquático, nas sementes
plumadas levadas pela brisa. Em suma, vemos belas adaptações por toda parte e em
cada um dos membros do mundo orgânico (pp. 117-118).

2) Logo a seguir, Darwin alude à “competição severa” como condição inexorável de toda
forma de vida, esboçando uma “economia da natureza” baseada na escassez e na
destruição como situações primordiais de origem e evolução da vida:
Candolle pai e Lyell mostraram ampla e filosoficamente que todos os seres orgânicos
estão expostos à competição severa. Com relação a plantas, ninguém tratou do
assunto com tanto espírito e habilidade quanto W. Herbert, deão de Manchester, com
seus vastos conhecimentos de horticultura. Nada mais fácil do que admitir em
palavras a verdade da luta universal pela vida, e nada mais difícil – ao menos em
minha experiência – do que manter essa constatação sempre em vista. Mas, a menos
que ela seja integralmente absorvida pela mente, estou convencido de que a economia
inteira da natureza, com todos os fatos relativos à distribuição, escassez, abundância,
extinção e variação, permanecerá nebulosa ou será incompreendida. Contemplamos a
face de uma natureza radiante de felicidade, por toda parte vemos alimento em
abundância; mas o que não vemos, ou, se vemos, esquecemos, é que os pássaros que
piam felizes ao nosso redor vivem de insetos e vermes e a todo instante estão
destruindo a vida; esquecemo-nos da destruição sofrida por esses cantores, por seus
ovos, por seus ninhos, vítimas de aves de rapina e de outros predadores; e nem sempre
nos lembramos de que o alimento, hoje superabundante, torna-se escasso em outras
estações do ano (p. 119).
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3) Mas, também imediatamente a seguir, ele adverte para o “sentido lato e metafórico”
em que compreende a luta pela existência como essência da vida, referindo-se, para
além da simples sinonímia entre luta e competição, à dependência e cooperação entre as
espécies e entre elas e o ambiente como outra modalidade da luta pela existência:
Emprego o termo “luta pela existência” em sentido lato e metafórico, incluindo a
dependência de um ser em relação a outro e (ainda mais importante) não somente a
vida do indivíduo, mas o seu êxito na produção de uma progênie. Diz-se que dois
animais caninos lutam entre si, em tempos de escassez, para obter alimento e
sobreviver. Mas se diz que uma planta às margens de um deserto luta pela vida contra
a seca, quando mais apropriado seria dizer que ela depende da umidade. Pode-se dizer
que uma planta que produz anualmente mil sementes, das quais em média apenas
uma chega à maturidade, luta contra outras do mesmo gênero ou de outros cujas
sementes recobrem o solo. O visco depende da maçã e de umas poucas outras árvores;
mas só se pode dizer que ele luta contra essas árvores, em sentido lato, porque se
crescer excessivamente em uma delas o levará à morte. Mais apropriado seria dizer
que lutam pela vida numerosos viscos que crescem próximos uns aos outros em um
mesmo ramo de árvore. O visco é uma árvore cujas sementes são dispersadas por
pássaros, e sua existência depende deles; por isso, pode-se dizer, metaforicamente,
que ele luta com outras árvores frutíferas para atrair pássaros que devorem e
dispersem suas sementes, e não as de seus rivais. Por conveniência, utilizo o termo
“luta pela existência” nesses sentidos diversos, que se confundem entre si (pp. 119-120).

4) Não obstante, também na sequência imediata do texto, Darwin alude à “doutrina de


Malthus” como um dos fundamentos de sua concepção da dinâmica da vida:
A luta pela existência segue-se inevitavelmente da alta taxa em que os seres orgânicos
tendem a se multiplicar. Cada um dos seres que, no período natural de sua vida,
produz numerosos ovos ou sementes, sofrerá destruição em algum desses períodos,
em uma estação ou em um ano excepcional; não fosse assim, se tornariam tão
numerosos, pelo princípio de sua multiplicação geométrica que não haveria região
capaz de sustentá-los. Portanto, como são produzidos mais indivíduos do que o
número que poderia sobreviver, existe sempre uma luta pela existência, seja entre um
indivíduo e outro de uma mesma espécie, seja entre indivíduos de espécies distintas,
seja entre os indivíduos e as condições de vida. É a doutrina de Malthus, aplicada com
força muitas vezes redobrada à totalidade dos reinos animal e vegetal, nos quais não
há, nem poderia haver, aumento artificial do suprimento de comida, nem existem as
restrições de prudência impostas pelo casamento. Algumas espécies estão sempre, em
um dado momento, multiplicando-se com maior velocidade do que antes; se todas o
fizessem ao mesmo tempo, o mundo não teria como acomodá-las (pp. 120-121).

Assim exposto, o malthusianismo de Darwin exibe uma dupla pressuposição


problemática: (i) a de que todo vivente aspira, acima de tudo, à própria multiplicação; e
(ii) a de que entre organismo e ambiente a relação é fundamentalmente de
exterioridade. Coloca-se assim não só vivente contra vivente, mas também vivente
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contra ambiente. A competição entre as espécies pela existência vigoraria sem restrições
nem alternativas.

5) Mas não é o que se sugere em seguida, com a afirmação de que a razão das restrições à
multiplicação das espécies que excedem as acarretadas pela competição entre elas é, de
certo modo, desconhecida:
Não sabemos ao certo o que restringe a tendência natural de cada espécie à
multiplicação. Se examinarmos alguma das espécies mais vigorosas, veremos que,
quanto mais ela se multiplica, maior a sua tendência à multiplicação. Desconhecemos
as restrições, mesmo em casos particulares. O que não surpreende, se refletirmos
sobre a nossa ignorância inclusive a respeito do gênero humano, que conhecemos
melhor do que qualquer outro dos animais (p. 124).

Malthus não explica tudo… Darwin alude a epidemias e, sobretudo, ao clima como
fatores extra-específicos de restrição. Contudo, o que justifica que descarte de saída a
possibilidade de autolimitação por parte das próprias espécies? Nem tudo o que vive
quer sobreviver a qualquer custo. Lembremos a respeito o caso do último casal de
pombos-passageiros, Martha & George, sobreviventes em cativeiro, caso comentado
profundamente por Leopold e Despret: “Deixe o mundo continuar sem nós. […] Deixe
essa história toda acabar”.

6) De fato, Darwin parece reconhecer o limite do malthusianismo ao mencionar a


necessidade de cooperação, sob a forma de proteção mútua entre espécies, contra a
destruição:
A ideia de que um grande estoque é necessário à preservação de uma espécie explica,
creio eu, alguns fatos singulares na natureza, por exemplo, que plantas muito raras
sejam por vezes abundantes nos poucos locais onde ocorrem ou que algumas plantas
sociais, isto é, com abundância de indivíduos, continuem a sê-lo mesmo nos confins
de seu espectro de disseminação. Nesses casos, uma planta só consegue sobreviver se
as condições de vida lhe forem tão favoráveis que elas convivam e se protejam
mutuamente da destruição (p. 129).

7) Com isso, apesar da prevalência do vocabulário bélico (luta, rivalidade, batalha,


guerra, vitória; cf. pp. 132-137), Darwin parece indicar que o princípio da competição
possui um domínio limitado de aplicação. Quanto mais aparentadas, mais competitivas
entre si se tornam as formas de vida; pelo contrário, quanto mais diferentes e afastadas,
mais cooperativas elas tendem a ser:
A dependência entre um ser orgânico e outro, como entre um parasita e a presa, dá-se,
em geral, entre seres afastados na escala da natureza. É o caso de dois seres que lutam
entre si por sua própria existência, como os gafanhotos e os quadrúpedes que, a
exemplo deles, se alimentam de relva. Mas a luta é mais severa, quase que
invariavelmente, entre os indivíduos de uma mesma espécie, que frequentam os
mesmos distritos, precisam dos mesmos alimentos e estão expostos aos mesmos
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perigos. Em variedades de uma mesma espécie, a luta é, em geral, quase igualmente


severa, e muitas vezes a disputa não demora a ser decidida. [...] Como as espécies de
um mesmo gênero costumam ter, embora nem sempre, alguma similaridade de hábito
e constituição e mostrar uma similaridade estrutural, a luta é, em geral, mais severa
entre espécies de um mesmo gênero que entram em competição do que entre espécies
de gêneros distintos. [...] Podemos entrever, ainda que de maneira nebulosa, por que a
competição é mais severa entre formas aparentadas, que ocupam praticamente o
mesmo lugar na economia da natureza; mas, provavelmente, em nenhum caso
poderíamos determinar com precisão por que uma espécie vence outra na grande
batalha pela vida (pp. 135-137).

A conclusão dessa passagem é excepcionalmente relevante: “em nenhum caso


poderíamos determinar com precisão por que uma espécie vence outra na grande
batalha pela vida”. Mas, sendo a razão pela qual se vence a competição, no limite,
indeterminada, não seria o caso de questionar se as espécies estão de fato,
fundamentalmente, competindo entre si e com o seu ambiente natural? Afinal, há ou
não hierarquia entre competição e cooperação na luta da vida pela existência? A
cooperação se dá em função da competição – ou o contrário? Ou as duas relações são
possíveis, havendo profunda divergência entre as espécies quanto ao modo de
engajamento na luta pela existência?

Em suma, no Capítulo 3, a questão acerca da origem das espécies formula-se, portanto,


em pelo menos dois sentidos, não de todo conciliáveis, e talvez mesmo antagônicos: (i)
“Como foram aperfeiçoadas todas as requintadas adaptações de uma parte do organismo
a outra e às condições de vida e as de um ser orgânico a outro?” (p. 117)? (ii) “por que uma
espécie vence outra na grande batalha pela vida” (p. 137)? Ainda assim, apesar das linhas
de fuga que abre, Darwin inclina-se, por fim, à afirmação do segundo sentido em
detrimento do primeiro. É o que demonstra a conclusão do capítulo, com a
“sobrevivência dos mais aptos” (survival of the fittest) sendo explicada em termos de
vigor e sorte em meio à competição e à destruição quase irrestritas, sem menção à
adaptação por cooperação e dependência mútua:
Faremos muito se não perdermos de vista que cada ser orgânico está em incessante
luta para se multiplicar em razão geométrica e que, em algum período de sua vida,
durante alguma estação do ano, em cada geração ou em intervalos, ele terá de lutar
por sua vida e suportar uma destruição considerável. Quando refletirmos sobre essa
luta, poderemos nos consolar com a ideia de que a guerra da natureza não é
incessante, o medo não se faz sentir, a morte geralmente não tarda, e os vigorosos, os
mais saudáveis e mais aventurados, sobrevivem e se multiplicam (p. 139).

E é também o que sugere eloquentemente a imagem da natureza projetada a partir do


princípio da seleção natural – a natureza, no limite, como sistema da violência em que a
constante ameaça de destruição explica o “empenho de multiplicação” das espécies
vivas:
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Na observação da natureza, é de suma importância não esquecer que cada um dos


seres orgânicos ao nosso redor está em constante empenho de multiplicação; que
todos vivem em luta, em algum período de sua vida; que uma pesada destruição
necessariamente se abate, sobre os jovens ou sobre os velhos, em cada geração ou em
intervalos recorrentes: que uma restrição seja amenizada, que uma destruição seja
mitigada, e o número de espécies irá aumentar instantaneamente. A face da natureza
pode ser comparada a uma superfície de fluência, com dez mil cunhas afiadas, umas
ao lado das outras, e afundadas por golpes incessantes, que ora atingem uma cunha
com mais força, ora outra (p. 124).

FORÇA E ESPÍRITO

Para levar mais longe as indagações acima propostas, desdobrando a concepção


fundamental de Darwin em sentidos diferentes e até mesmo divergentes, convém ater-se
a um texto filosófico particularmente útil a isso. Trata-se do aforismo 14 da seção IX de
Crepúsculo dos ídolos (1888), de Nietzsche:
Anti-Darwin. – No que toca à célebre “luta pela vida”, até agora me parece apenas
afirmada e não provada. Ela acontece, mas como exceção; o aspecto geral da vida não é
a necessidade, a fome, mas antes a riqueza, a exuberância, até mesmo o absurdo
esbanjamento – quando se luta, luta-se pela potência... Não se deve confundir
Malthus [93] com a natureza. – Mas, supondo que haja essa luta – e, de fato, ela ocorre
–, infelizmente ela resulta no contrário do que deseja a escola de Darwin, do que talvez
seria lícito desejar juntamente com ela: ou seja, em detrimento dos fortes, dos
privilegiados, das felizes exceções. As espécies não crescem na perfeição: os fracos
sempre tornam a dominar os fortes – pois são em maior número, são também mais
espertos... Darwin esqueceu o espírito (– isto é inglês!), os fracos têm mais espírito... É
preciso ter necessidade de espírito para adquirir espírito – ele é perdido, quando não
mais se necessita dele. Quem tem força dispensa o espírito (– “deixem de lado!”,
pensa-se hoje na Alemanha, “o Reich continuará nosso”…) [94]. Entendo por espírito,
como se vê, a cautela, a paciência, a astúcia, a dissimulação, o grande autodomínio e
tudo o que seja mimicry [mimetismo] (esse último compreende boa parte do que se
chama virtude).

[Notas de Paulo César de Souza:


93. Thomas Malthus (1766-1844): clérigo e economista inglês; no Ensaio sobre o
princípio da população (1798) ele argumentava que os meios de subsistência crescem
em ritmo menor que a população, de forma que esta é diminuída por guerras, doenças
e fome.

94. “deixem de lado! [...] o Reich continuará nosso”: citação do mais famoso hino de
Lutero, Ein’ feste Burg ist unser Gott (“Uma sólida fortaleza é o nosso Deus”). No
contexto original, “deixar de lado” diz respeito às coisas deste mundo, e o Reich é,
naturalmente, o Reino de Deus. No contexto nietzscheano, a frase tem sentido
irônico: os alemães deixam de lado o espírito, pois têm o Reich de Bismarck…]
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Interpretemos o aforismo de Nietzsche pensando antes em Darwin que em Nietzsche


(esqueçamos por ora que se trata de um texto de Nietzsche, até porque é bem provável
que Nietzsche preferisse ser lido assim, como multidão e não como um autor). Que a
“luta pela vida” seja, para ele, “mais afirmada que provada” atesta de saída que a política
da natureza é tão potencialmente diversa quanto a humana (suposto, é claro, que seja
possível abstrair a política humana da vida, o que não é nada óbvio). Nietzsche
reconhece no “aspecto geral” da vida ambas as tendências, tão opostas quanto
mescladas: necessidade e exuberância, fome e fartura, força e espírito. Mais além, ao
tomar a luta pela vida como exceção, e não como regra, ele questiona o que seria,
segundo Darwin, a “lei geral de promoção de todos os seres orgânicos”: “Multipliquem-
se, variem, que os mais fortes sobrevivam e os mais fracos pereçam!” (A origem das
espécies, p. 340).

“Os fracos têm mais espírito”: Darwin teria “esquecido” o espírito, por ser inglês (quer
dizer, de um país cuja política, à época vitoriana, era patriarcal e puritana, capitalista e
imperialista; cf. Despret, Quand le loup habitera avec l’agneau, p. 54). Donde seu
malthusianismo: afinal, quem sustentaria teoricamente que “os meios de subsistência
crescem em ritmo menor que a população” senão quem vive em uma sociedade
estruturalmente desigual, animada pela luta de classes? Assim também, Nietzsche volta
seu “anti-darwinismo” contra a política alemã, tomando-a como mais um exemplo de
configuração da vida em que a força tem mais valor que o espírito. Trata-se
inegavelmente de uma crítica sarcástica, pois, “dispensando” o espírito, o Reich,
enquanto forma política de vida, tende (como sabemos, como Nietzsche sabia) à
destruição total (“necropolítica”, como se diria contemporaneamente).

Para Nietzsche, a vida espirituosa, baseada no espírito, é mais potente, enquanto vida,
que a vida truculenta, baseada na força. Mais ainda, visto que ele define “espírito” como
“a cautela, a paciência, a astúcia, a dissimulação, o grande autodomínio e tudo o que seja
mimetismo”, ou seja, elencando virtudes compartilhadas por muitíssimas espécies de
vida além da humana, será que, em uma inversão radical da ordem antropocêntrica, o
espirituosidade/espiritualidade é, para Nietzsche, mais “animal”, menos “humana”, que
a força? A espécie humana – ou melhor, uma parcela significativa de seus representantes
– seria, portanto, especialmente impotente enquanto forma de vida. De fato, como
também sabemos, o mundo pertence às pequenas coisas…

Contudo, se “não se deve confundir Malthus com a natureza”, seria pertinente, por outro
lado, reduzir Darwin a Malthus? Mais precisamente, será que Darwin privilegia a força
contra o espírito – e, no limite, a humanidade contra a não-humanidade – em sua
concepção da evolução da vida?
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ENTRE WALLACE E KROPOTKIN

A fim de que esse problema se torna mais evidente, consideremos duas virtualidades


antagônicas do darwinismo: o modelo “imperialista” de Wallace, baseado na competição
irrestrita, e o modelo traço “anarquista” de Kropotkin, baseado na prioridade da
cooperação.

O modelo de Wallace é fortemente antropocêntrico e etnocêntrico, como testemunha a


aplicação do darwinismo à espécie humana:
Para nós, o único objetivo, a raison d’être do mundo – com todas as suas
complexidades de estrutura física, seu enorme progresso geológico, a lenta
evolução dos reinos vegetal e animal coroada pelo surgimento do homem – é o
progresso do espírito humano paralelamente ao do corpo. Com base no fato de o
espírito do homem – o próprio homem – estar tão desenvolvido, podemos muito
bem inferir que esse é o único, ou pelo menos o melhor, caminho para sua
evolução – e que o chamado “mal” existente na terra constitui um dos meios mais
eficazes para seu progresso. Com efeito, sabemos que as faculdades humanas mais
nobres se fortalecem e se aperfeiçoam pela luta e pelo esforço. Graças à luta
incessante contra os obstáculos físicos, em meio às dificuldades e aos perigos, é
que a energia, a coragem, a autoconfiança e a laboriosidade se tornaram o traço
comum dos povos do Norte. Graças à batalha contra o mal moral em todas as suas
múltiplas formas é que as qualidades ainda mais nobres da justiça, da compaixão,
do humanitarismo e do autossacrifício se engrandeceram cada vez mais no mundo.
Criaturas assIm adestradas e fortalecidas pelo meio, possuidoras de faculdades
latentes aptas a tamanho aperfeiçoamento estão seguramente destinadas a uma
existência superior e duradoura. Vemos assim que a teoria darwiniana, mesmo
levada à conclusão lógica extrema, não só não contraria como respalda a crença na
natureza espiritual do homem. Mostra-nos como o corpo humano evoluiu a partir
de uma forma bruta inferior segundo a lei da seleção natural, mas nos ensina
também que possuímos faculdades morais e intelectuais desenvolvidas de outra
maneira, com uma origem diferente. E a única causa adequada dessa origem só a
podemos vislumbrar no universo invisível do Espírito (Darwinismo, pp. 419-420).

Aplicada à espécie humana tal como representada por povos europeus, a distinção entre
animais inferiores e animais superiores como que se sublima na hierarquia entre
humanos inferiores (selvagens, Sul) e humanos superiores (civilizados, Norte). Uma tal
transfiguração consiste na passagem da evolução (natureza) à história (cultura), por
meio da superação da seleção natural pelo espírito humano (“uma origem diferente”).
Trata-se, pois, de uma evolução eminentemente univetorial: animais > humanos
(animais superiores) > espíritos (humanos superiores). Logo, ao conceder validade
irrestrita à seleção natural por competição, o darwinismo de Wallace termina por
convergir completamente com o especismo – o espírito humano como télos da vida em
geral – o racismo – o “povo do Norte” como ápice evolutivo da humanidade.
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Por outro lado, no prefácio de Ajuda mútua: um fator da evolução, Piotr Kropotkin
denuncia o “abuso terminológico” daqueles que empregavam o conceito darwiniano de
luta pela vida para justificar, à época da primeira guerra mundial, “a destruição em
massa da vida de civis e de pilhagem dos meios de subsistência da população em
geral” (p. 8). Para Kropotkin, a ideia de guerra entre as espécies, seja como guerra
exterior contra espécies rivais ou como guerra interna pela subsistência, teria sido
exagerada, pelos meios culturais, em detrimento da “importância da sociabilidade e do
instinto social nos animais, tendo em vista o bem-estar da espécie” (p. 8).

É na própria obra de Darwin que Kropotkin vai buscar o seu conceito de ajuda mútua,
recuperando-o como uma espécie de sombra do conceito de luta pela sobrevivência:
Embora estivesse usando o termo em seu sentido estrito, principalmente tendo em
vista seus objetivos específicos, Darwin alertou seus seguidores para que não
cometessem o erro (que ele próprio parece ter cometido um dia) de superestimar
esse sentido. […] Observou que, em inúmeras sociedades animais, a luta entre
indivíduos pelos meios de subsistência desaparece, que essa luta é substituída pela
cooperação e que essa substituição resulta no desenvolvimento de faculdades
intelectuais e morais que assegura à espécie as melhores condições de
sobrevivência. Ele sugeriu que, nesses casos, os mais aptos não são os mais fortes
fisicamente, nem os mais astuciosos, e sim aqueles que aprendem a se associar de
modo a se apoiarem mutuamente, fossem fortes ou fracos, pelo bem-estar da
comunidade. […] O termo, que se originou da estreita concepção malthusiana – de
competição de cada indivíduo contra todos os outros –, perdeu assim sua estreiteza
na visão de alguém que conhecia a Natureza (pp. 19-20).

Em contraponto com a competição – pois Kropotkin “não duvida da competição, mas da


importância que lhe é atribuída” (Despret, Quand le loup habitera avec l’agneau, pp.
69-70) –, a cooperação constitui, portanto, um fator evolutivo de tal modo determinante
que se poderia concluir que: (i) o motor da vida não é tanto um instinto de sobrevivência
da espécie, mas antes um desejo de mutualidade entre espécies diferentes; e (ii) que a
competição ilimitada, ao implicar “uma implacável guerra interna pela vida no seio de
cada espécie” (Ajuda mútua, p. 12), se mostra um fator tendencialmente anti-evolutivo
de corrupção da vida. Em suma, por fidelidade ao que seria o espírito mais profundo de
Darwin, Kropotkin se opõe a Wallace – como a selva ao Reich.

A concordarmos que as interpretações discrepantes de Wallace e Kropotkin exprimem


ambas virtualidades da teoria darwiniana, testemunhamos com isso um conflito interno
a essa teoria, uma espécie de luta pelo sentido da vida. Além de atestar que o fato de que
esse sentido é uma questão em aberto, a ser resolvida por cada espécie e indivíduo
imersos na trama da vida, intrinsecamente mesclados a outras espécies e indivíduos, a
referida ambiguidade – o evolucionismo de Darwin cindido entre o supremacismo de
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Wallace e o anarquismo de Kropoktin – sugere uma lição sobre o contágio entre ciência e
política: o conhecimento da natureza é uma extensão, seja por continuidade ou ruptura,
da configuração política da vida em que se situa. Todo conhecimento é situado
politicamente na vida enquanto luta pela existência, adquirindo, portanto, um sentido
fundamentalmente “biopolítico”. É, enfim, o caso da própria teoria de Darwin em A
origem das espécies: arma de guerra ou signo de aliança da humanidade “civilizada”
contra/com as outras espécies vivas?

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