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POLÍTICA DA VIDA
“Luta pela existência” (Struggle for existence): apesar de essa expressão ser comumente
tomada, na explicação do darwinismo, como sinônima de “luta pela vida”, Darwin, ao
empregar o termo “existência” de preferência a “vida”, parece apontar para a existência
como um valor intrínseco à vida em geral. Todo vivente tende, intenciona, aspira à
existência – o que supõe, mais profundamente, que todo vivente experiencia o fato de
existir. Talvez o título seja mesmo uma definição compacta de vida: vida é luta pela
existência. Donde a necessidade de atentar também para o termo “luta” (struggle): vida
como contenda, disputa, combate (éris). Se for cabível tomar aquele título como
definição de vida, podemos então concluir hipoteticamente que, para Darwin, a vida é
intrinsecamente política: trata-se do acontecimento pelo qual os seres vivos de uma
mesma espécie ou de espécies diferentes, ao mesmo tempo em que compartilham a
existência, disputam entre si essa condição, “compreendida” como valor. Lembremos, a
propósito, de uma observação de Pedro Paulo Pimenta em sua Apresentação de A
origem das espécies:
A dimensão econômica da teoria de Darwin está presente desde o modelo geral da
competição entre os seres vivos pelos recursos de sua sobrevivência até o vocabulário,
que, por vezes, se torna fortemente político – falar-se-á em “territórios”, “domínios” e
“províncias” dessa “polity”, ou república, que é a Natureza (p. 24).
Há, com efeito, diferentes políticas da vida: guerra “selvagem” de todos contra todos
(“homem lobo do homem”, Hobbes), filiação comunitária entre semelhantes (“lobo
homem do lobo”, Viveiros de Castro), aliança “contra-natureza” entre heterogêneos
(homem com lobo, lobo com homem), entre outras possíveis.
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Tomemos algumas passagens em que a ênfase recai diferentemente ora sobre o conceito
de competição, ora sobre o de cooperação, ora sobre ambos ao mesmo tempo:
1) Para introduzir a seleção natural como princípio explicativo, Darwin torna a formular
a questão sobre a origem das espécies, agora por referência à sua adaptabilidade
cooperativa, entendida como efeito da co-dependência orgânica entre as espécies e entre
elas e o ambiente natural:
A mera existência de variedade individual e de algumas variedades bem definidas,
embora necessária à nossa prática, não ajuda muito a compreender como as espécies
surgem na natureza. Como foram aperfeiçoadas todas as requintadas adaptações de
uma parte do organismo a outra e às condições de vida e as de um ser orgânico a
outro? Vemos adaptações como essas, por exemplo, no pica-pau e no visco, mas elas
também são conspícuas no mais humilde dos parasitas, que se agarra aos pelos de um
mamífero ou às penas de um pássaro, na estrutura do besouro aquático, nas sementes
plumadas levadas pela brisa. Em suma, vemos belas adaptações por toda parte e em
cada um dos membros do mundo orgânico (pp. 117-118).
2) Logo a seguir, Darwin alude à “competição severa” como condição inexorável de toda
forma de vida, esboçando uma “economia da natureza” baseada na escassez e na
destruição como situações primordiais de origem e evolução da vida:
Candolle pai e Lyell mostraram ampla e filosoficamente que todos os seres orgânicos
estão expostos à competição severa. Com relação a plantas, ninguém tratou do
assunto com tanto espírito e habilidade quanto W. Herbert, deão de Manchester, com
seus vastos conhecimentos de horticultura. Nada mais fácil do que admitir em
palavras a verdade da luta universal pela vida, e nada mais difícil – ao menos em
minha experiência – do que manter essa constatação sempre em vista. Mas, a menos
que ela seja integralmente absorvida pela mente, estou convencido de que a economia
inteira da natureza, com todos os fatos relativos à distribuição, escassez, abundância,
extinção e variação, permanecerá nebulosa ou será incompreendida. Contemplamos a
face de uma natureza radiante de felicidade, por toda parte vemos alimento em
abundância; mas o que não vemos, ou, se vemos, esquecemos, é que os pássaros que
piam felizes ao nosso redor vivem de insetos e vermes e a todo instante estão
destruindo a vida; esquecemo-nos da destruição sofrida por esses cantores, por seus
ovos, por seus ninhos, vítimas de aves de rapina e de outros predadores; e nem sempre
nos lembramos de que o alimento, hoje superabundante, torna-se escasso em outras
estações do ano (p. 119).
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3) Mas, também imediatamente a seguir, ele adverte para o “sentido lato e metafórico”
em que compreende a luta pela existência como essência da vida, referindo-se, para
além da simples sinonímia entre luta e competição, à dependência e cooperação entre as
espécies e entre elas e o ambiente como outra modalidade da luta pela existência:
Emprego o termo “luta pela existência” em sentido lato e metafórico, incluindo a
dependência de um ser em relação a outro e (ainda mais importante) não somente a
vida do indivíduo, mas o seu êxito na produção de uma progênie. Diz-se que dois
animais caninos lutam entre si, em tempos de escassez, para obter alimento e
sobreviver. Mas se diz que uma planta às margens de um deserto luta pela vida contra
a seca, quando mais apropriado seria dizer que ela depende da umidade. Pode-se dizer
que uma planta que produz anualmente mil sementes, das quais em média apenas
uma chega à maturidade, luta contra outras do mesmo gênero ou de outros cujas
sementes recobrem o solo. O visco depende da maçã e de umas poucas outras árvores;
mas só se pode dizer que ele luta contra essas árvores, em sentido lato, porque se
crescer excessivamente em uma delas o levará à morte. Mais apropriado seria dizer
que lutam pela vida numerosos viscos que crescem próximos uns aos outros em um
mesmo ramo de árvore. O visco é uma árvore cujas sementes são dispersadas por
pássaros, e sua existência depende deles; por isso, pode-se dizer, metaforicamente,
que ele luta com outras árvores frutíferas para atrair pássaros que devorem e
dispersem suas sementes, e não as de seus rivais. Por conveniência, utilizo o termo
“luta pela existência” nesses sentidos diversos, que se confundem entre si (pp. 119-120).
contra ambiente. A competição entre as espécies pela existência vigoraria sem restrições
nem alternativas.
5) Mas não é o que se sugere em seguida, com a afirmação de que a razão das restrições à
multiplicação das espécies que excedem as acarretadas pela competição entre elas é, de
certo modo, desconhecida:
Não sabemos ao certo o que restringe a tendência natural de cada espécie à
multiplicação. Se examinarmos alguma das espécies mais vigorosas, veremos que,
quanto mais ela se multiplica, maior a sua tendência à multiplicação. Desconhecemos
as restrições, mesmo em casos particulares. O que não surpreende, se refletirmos
sobre a nossa ignorância inclusive a respeito do gênero humano, que conhecemos
melhor do que qualquer outro dos animais (p. 124).
Malthus não explica tudo… Darwin alude a epidemias e, sobretudo, ao clima como
fatores extra-específicos de restrição. Contudo, o que justifica que descarte de saída a
possibilidade de autolimitação por parte das próprias espécies? Nem tudo o que vive
quer sobreviver a qualquer custo. Lembremos a respeito o caso do último casal de
pombos-passageiros, Martha & George, sobreviventes em cativeiro, caso comentado
profundamente por Leopold e Despret: “Deixe o mundo continuar sem nós. […] Deixe
essa história toda acabar”.
FORÇA E ESPÍRITO
94. “deixem de lado! [...] o Reich continuará nosso”: citação do mais famoso hino de
Lutero, Ein’ feste Burg ist unser Gott (“Uma sólida fortaleza é o nosso Deus”). No
contexto original, “deixar de lado” diz respeito às coisas deste mundo, e o Reich é,
naturalmente, o Reino de Deus. No contexto nietzscheano, a frase tem sentido
irônico: os alemães deixam de lado o espírito, pois têm o Reich de Bismarck…]
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“Os fracos têm mais espírito”: Darwin teria “esquecido” o espírito, por ser inglês (quer
dizer, de um país cuja política, à época vitoriana, era patriarcal e puritana, capitalista e
imperialista; cf. Despret, Quand le loup habitera avec l’agneau, p. 54). Donde seu
malthusianismo: afinal, quem sustentaria teoricamente que “os meios de subsistência
crescem em ritmo menor que a população” senão quem vive em uma sociedade
estruturalmente desigual, animada pela luta de classes? Assim também, Nietzsche volta
seu “anti-darwinismo” contra a política alemã, tomando-a como mais um exemplo de
configuração da vida em que a força tem mais valor que o espírito. Trata-se
inegavelmente de uma crítica sarcástica, pois, “dispensando” o espírito, o Reich,
enquanto forma política de vida, tende (como sabemos, como Nietzsche sabia) à
destruição total (“necropolítica”, como se diria contemporaneamente).
Para Nietzsche, a vida espirituosa, baseada no espírito, é mais potente, enquanto vida,
que a vida truculenta, baseada na força. Mais ainda, visto que ele define “espírito” como
“a cautela, a paciência, a astúcia, a dissimulação, o grande autodomínio e tudo o que seja
mimetismo”, ou seja, elencando virtudes compartilhadas por muitíssimas espécies de
vida além da humana, será que, em uma inversão radical da ordem antropocêntrica, o
espirituosidade/espiritualidade é, para Nietzsche, mais “animal”, menos “humana”, que
a força? A espécie humana – ou melhor, uma parcela significativa de seus representantes
– seria, portanto, especialmente impotente enquanto forma de vida. De fato, como
também sabemos, o mundo pertence às pequenas coisas…
Contudo, se “não se deve confundir Malthus com a natureza”, seria pertinente, por outro
lado, reduzir Darwin a Malthus? Mais precisamente, será que Darwin privilegia a força
contra o espírito – e, no limite, a humanidade contra a não-humanidade – em sua
concepção da evolução da vida?
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Aplicada à espécie humana tal como representada por povos europeus, a distinção entre
animais inferiores e animais superiores como que se sublima na hierarquia entre
humanos inferiores (selvagens, Sul) e humanos superiores (civilizados, Norte). Uma tal
transfiguração consiste na passagem da evolução (natureza) à história (cultura), por
meio da superação da seleção natural pelo espírito humano (“uma origem diferente”).
Trata-se, pois, de uma evolução eminentemente univetorial: animais > humanos
(animais superiores) > espíritos (humanos superiores). Logo, ao conceder validade
irrestrita à seleção natural por competição, o darwinismo de Wallace termina por
convergir completamente com o especismo – o espírito humano como télos da vida em
geral – o racismo – o “povo do Norte” como ápice evolutivo da humanidade.
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Por outro lado, no prefácio de Ajuda mútua: um fator da evolução, Piotr Kropotkin
denuncia o “abuso terminológico” daqueles que empregavam o conceito darwiniano de
luta pela vida para justificar, à época da primeira guerra mundial, “a destruição em
massa da vida de civis e de pilhagem dos meios de subsistência da população em
geral” (p. 8). Para Kropotkin, a ideia de guerra entre as espécies, seja como guerra
exterior contra espécies rivais ou como guerra interna pela subsistência, teria sido
exagerada, pelos meios culturais, em detrimento da “importância da sociabilidade e do
instinto social nos animais, tendo em vista o bem-estar da espécie” (p. 8).
É na própria obra de Darwin que Kropotkin vai buscar o seu conceito de ajuda mútua,
recuperando-o como uma espécie de sombra do conceito de luta pela sobrevivência:
Embora estivesse usando o termo em seu sentido estrito, principalmente tendo em
vista seus objetivos específicos, Darwin alertou seus seguidores para que não
cometessem o erro (que ele próprio parece ter cometido um dia) de superestimar
esse sentido. […] Observou que, em inúmeras sociedades animais, a luta entre
indivíduos pelos meios de subsistência desaparece, que essa luta é substituída pela
cooperação e que essa substituição resulta no desenvolvimento de faculdades
intelectuais e morais que assegura à espécie as melhores condições de
sobrevivência. Ele sugeriu que, nesses casos, os mais aptos não são os mais fortes
fisicamente, nem os mais astuciosos, e sim aqueles que aprendem a se associar de
modo a se apoiarem mutuamente, fossem fortes ou fracos, pelo bem-estar da
comunidade. […] O termo, que se originou da estreita concepção malthusiana – de
competição de cada indivíduo contra todos os outros –, perdeu assim sua estreiteza
na visão de alguém que conhecia a Natureza (pp. 19-20).
Wallace e o anarquismo de Kropoktin – sugere uma lição sobre o contágio entre ciência e
política: o conhecimento da natureza é uma extensão, seja por continuidade ou ruptura,
da configuração política da vida em que se situa. Todo conhecimento é situado
politicamente na vida enquanto luta pela existência, adquirindo, portanto, um sentido
fundamentalmente “biopolítico”. É, enfim, o caso da própria teoria de Darwin em A
origem das espécies: arma de guerra ou signo de aliança da humanidade “civilizada”
contra/com as outras espécies vivas?