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PAUL GILROY, LAWRENCE GROSSBERG, Os textos são de proveniência diversa (África


ANGELA MCROBBIE (ORGS.) do Sul, Alemanha, Austrália, Canadá, Coreia,
WITHOUT GUARANTEES: IN HONOUR OF Estados Unidos, Japão, Jamaica, México, Noruega,
STUART HALL Reino Unido) e reúnem contribuições dos estudos
culturais propriamente ditos, bem como de autores
Londres e Nova Iorque, Verso, 2000.
que, partindo de áreas como a sociologia, a antro-
Stuart Hall é, sem dúvida, uma figura que não só pologia, a filosofia ou os estudos literários,
constitui uma referência obrigatória para quem se reflectem quer sobre alguns temas centrais do
ocupe de estudos culturais, mas também para quem pensamento de Hall, quer sobre as relações mais ou
se interrogue sobre as grandes questões nossas menos pacíficas entre este e as suas áreas.
contemporâneas e procure modos mais complexos Polifónico, multidisciplinar, o volume revela
de as abordar. Se essa complexidade parece ter reflexões díspares, experiências diversificadas e
oferecido motivos para uma recente onda de des- posições mais ou menos convergentes, não escon-
confiança por parte dos adeptos do culturalismo, dendo elementos de polémica entre os autores.
ciosos de recuperar as garantias de uma análise Contudo, aquilo que os une, de um modo “mais ou
menos “textual” – ou, dito de outra forma, que dê menos explícito”, é a tradução, seguindo a proposta
menos relevo à análise dos processos de repre- de Hall, da sua obra para a experiência local.
sentação e assegure o regresso a uma concepção de A questão da identidade e da representação e
cultura mais “realista”, abdicando, de uma vez por políticas a ela associadas constituem um tema
todas, das aspas desconstrutivistas e incluindo de recorrente. Se Néstor García Canclini (“The State
forma mais explícita e central a esfera da produção of War and the State of Hybridization”) volta a
e da economia –, este volume pretende exactamente celebrar a multiplicidade de tempos e culturas no
sublinhar as potencialidades do pensamento crítico, modelo de hibridização que lê na América Latina
“sem garantias”, com que Hall marcou profun- como única forma de evitar a confrontação (p. 50),
damente os estudos culturais desde a sua passagem Ien Ang (“Identity Blues”) aborda os impasses a
pelo Centro de Estudos Culturais Contemporâneos que uma política excessivamente virada para
até à actividade exercida até recentemente na Open concepções estáticas da identidade pode levar,
University. quando a minoria anglo-saxónica na Austrália
Os artigos revelam não só o modo como os opta por políticas diferencialistas de exclusão de
estudos culturais se internacionalizaram, mas imigrados. Escrevendo do lado da minoria asiá-
também como Hall constitui uma referência cen- tica, Ang propõe como alternativa não a
tral para os inúmeros colaboradores que, nesta celebração de um cosmopolitismo abstracto, nem
homenagem, se demarcam de um modo “mais ou a rejeição unilateral desses processos de iden-
menos explícito” dessas tendências mais muscula- tificação, mas antes uma “micropolítica” de
das que vêem na tematização da etnicidade, da envolvimento com a diferença, em que o
“raça” ou do género, meras manobras de diversão. quotidiano ofereça resistência aos antagonismos e
Sem dúvida que os riscos do “populismo” e da constitua uma alternativa discreta às grandes
celebração apressada da livre criação de identi- políticas nacionais do multiculturalismo.
dades levou a que, por vezes, se sucumbisse aos James Clifford (“Taking Identity Politics Seri-
mecanismos de reciclagem pós-modernista, tendo ously: ‘The Contradictory, Stony Ground...’”)
sido as subjectividades fragmentadas elevadas ao recorre à teoria da articulação de Hall e à tradição
estatuto de pequenos heróis do consumo, em cujas da antropologia, apelando para que esta última,
escolhas se liam forçosamente exemplos de resis- depois de um tempo de crise, “reinvente algumas
tência. Também é verdade que uma atenção das suas tradições”, nomeadamente a sua “dis-
excessiva às estratégias discursivas levaria a que a posição para percepcionar e valorizar a diferença
esfera da produção, transmissão e circulação dos (...) não como reificação da alteridade, mas antes
saberes e mercadorias pudesse ficar na penumbra. nela reconhecendo um ‘excesso’”, esse “‘exterior
Houve ainda os riscos inerentes a qualquer ten- constitutivo’ de qualquer formação social e ideo-
tativa de interpretação de fenómenos da contem- lógica por mais hegemónica que seja” (p. 103).
poraneidade, bem como as consequências de uma Existem processos de identificação distintos e
crescente popularidade e institucionalização. incomparáveis, havendo que saber ler de forma

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diferenciada as múltiplas histórias de contacto e de crítica que torne qualquer “agência” (agency) possí-
hibridização de comunidades que – da América ao vel. Butler sublinha a necessidade de se resistir à
Pacífico mais remoto – persistem em sobreviver, o tentação de tornar dizível “agora e no futuro tudo
que torna tanto mais questionáveis as genera- aquilo que permanece indizível” (p. 35), sob pena
lizações unilaterais acerca dos efeitos niveladores de se dissolver o sujeito e anular qualquer pos-
da globalização. Mas essa multiplicidade encontra sibilidade de acção. Assim, a proclamada morte do
modos de reconhecimento interpretativo – o mes- sujeito, para que a psicanálise estruturalista contri-
mo seria falar de uma forma de universalidade buiu, não invalida a necessidade de se buscar no-
contingente – que vê na articulação do “tradicio- vas “formas de inteligibilidade”, de se dizer
nal” com o “moderno” um modo de pensar para politicamente a necessidade de superar as exclu-
além da dicotomia entre falso e autêntico, entre sões que moldaram de forma “violentamente
origem e decadência que as “tradições de inven- restritiva” o humano (p. 35). Para tal há que buscar
ção” (p. 102) testemunham, para quem se aventure uma hermenêutica que não pressuponha um
a visitar os “lugares recônditos” fora e dentro do sujeito pré-existente, mas leia negativamente, na
Ocidente e renuncie a ver neles unidades discretas luta de vida e de morte da dialéctica hegeliana do
a preservar e descrever nostalgicamente ou a cele- senhor e do servo, a contingência do seu momento
brar acriticamente (p. 103). É no recurso à tensão de emergência cultural como condição de reconhe-
entre uma visão sistémica e uma perspectiva cimento desses mecanismos de exclusão.
histórico-etnográfica que se pode encontrar a Se Wendy Brown (“Resisting Left Melan-
disponibilidade para ouvir o modo como essas colia”) sublinha, por seu lado, os riscos de uma
comunidades articulam o passado com o presente denúncia unilateral de uma política das identi-
e o futuro, segundo outros modelos que não os dades caída em desgraça desde que se viu repre-
ocidentais, buscando assim formas diferentes de se sentada na academia, alertando, com Benjamin e
ser moderno e tradicional. São essas “things that Freud, para os limites de uma melancolia que,
don’t quite fit”, que, tais mónadas da história (Ben- num luto mal digerido, ergue, impotente, contra si
jamin), nos podem oferecer “visões e práticas mesma a agressividade que não consegue cana-
utópicas, transformadoras” (p. 103). Mas as conse- lizar de modo mais produtivo, Henry Giroux
quências da afirmação e persistência de identidades (“Public Pedagogy as Cultural Politics: Stuart Hall
são contraditórias e imprevisíveis, exibindo uma and the ‘Crisis’ of Culture”) denuncia os ataques
dialéctica negativa que proíbe quaisquer garantias ao divisionismo resultante da ênfase conferida à
para as diferentes políticas de identidade, auto- questão da identidade, ao que contrapõe o carácter
rizando tão-só políticas de alinhamento e não- complexo e eminentemente político das reflexões
-alinhamento conjunturais e efémeras (p. 106). de Stuart Hall e o modo como as mesmas se
É exactamente naquilo que a linguagem revelam decisivas para uma prática dos estudos
possui de excessivo, nesse limite do indizível, que culturais que se queira efectivamente pedagógica.
Judith Butler (“Agencies of Style for a Liminal Sub- Paul Gilroy (“The Sugar You Stir...”) propõe,
ject”) reencontra as possibilidades de, tal como radicalizando posições anteriormente defendidas,
defende Spivak (“Thinking Cultural Questions in a desconstrução do conceito de raça e das práticas
‘Pure’ Literary Terms”), se encontrarem modos de e políticas de identidade a ela associadas, esses
resistência a partir de um conceito de identidade “desejos arcanos de coleccionadores de borboletas
que, recusando os essencialismos, leva a sério a da alteridade que preferem que as suas culturas
necessidade de políticas de identidade que re- permaneçam integrais e gostam que as suas dife-
cusem o monolitismo da esquerda tradicional. renças permaneçam absolutas” (p. 133). A um
Butler prossegue um diálogo já anteriormente “culturalismo que cedeu o lugar a um determi-
estabelecido com Hall, sobre a questão de se nismo biocultural” (p. 129), Gilroy opõe uma acção
fundar a identidade num sujeito há muito tornado conjunta que ultrapasse as meras estratégias de
precário pela desconstrução pós-estruturalista, reconhecimento de “minorias étnicas” em prol de
tema tanto mais relevante quanto essa mesma um “universalismo anti-racista – isto é, pós-an-
desconstrução tem vindo a ser denunciada como tropológico” de inspiração (pós-)jacobina que lê
responsável pela acomodação política, na impossi- em Fanon (p. 131). Mas para que esse univer-
bilidade de se pensar ou fundamentar a distância salismo seja efectivo, requere-se que o Ocidente

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revisite a sua história e reconheça o papel, na luta riência diferente, a dos africanos no Reino Unido,
contra qualquer forma de descriminação étnica, da a ideia de que as “novas etnicidades” pressupõem
“dupla consciência” do “Atlântico negro”, essa o reconhecimento de que a “hibridização é um
diáspora da opressão e da utopia da libertação, processo mais universalista do que minoritário”
também ela resultado de uma modernidade que (p. 241). Deste modo Mercer encontra uma forma
entrelaça a história da Europa com a das suas de opor a hibridização como articulação da
colónias. “semelhança e da diferença” (p. 241) à norma-
Por sua vez, Iain Chambers (“At the End of this lização das tendências multiculturalistas.
Sentence a Sail Will Unfurl... Modernities, Musics Que os estudos culturais, mesmo quando
and the Journeys of Identity”), se bem que privilegiam uma abordagem mais “textualista”,
partilhando dos mesmos objectivos, propõe uma são políticos, revelam-no amplamente estes estu-
reavaliação da tradição do Ocidente, recusando dos, quando propõem reflexões sobre os impasses
embora – à semelhança de Judith Butler – o “abrigo da política da identidade e os riscos do essen-
ilusório da conclusão analítica” (p. 72), contra as cialismo, numa perspectiva que privilegia uma
recomendações de Hall face ao jogo de espelho da análise da “raça”, centrando-se seja nas conse-
polissemia do desconstrucionismo literário. Recor- quências políticas das representações racializadas
rendo aos dois paradigmas dos estudos culturais – do género (Lola Young, “How Do We Look?
o culturalismo e o estruturalismo –, Chambers lê a Unfixing the Singular (Female) Subject”), seja na
contrapelo Gramsci e Althusser e propõe modos exoticização patente na recepção e apropriação do
precários, mas tanto mais necessários, de se ultra- rap pelas maiorias brancas (Ove Sernhede, “Exoti-
passarem as tradicionais divisões ocidentais entre o cism and Death as a Modern Taboo: Gangsta Rap
económico e o cultural, o ético e o estético, para o and the Search for Intensity”), seja nas histórias
que evoca a contribuição decisiva de Simmel, orais locais de minorias africanas no País de Gales
Kracauer, Walter Benjamin, bem como a teoria e práticas de resistência e exclusão a elas asso-
crítica de Horkheimer e Adorno. ciadas (Glenn Jordan e Chris Weedon, “When the
A necessidade de pertença na era da errância, Subalterns Speak, What Do They Say? Radical
questão anteriormente enfatizada por Iain Cham- Cultural Politics in Cardiff Docklands”). O mesmo
bers, é evocada por Gail Guthrie Valastakis se passa com as políticas culturais e académicas
(“Blood Borders: Being Indian and Belonging”), associadas e praticadas pelos estudos culturais,
mediante o tema das reivindicações dos movi- seja no Reino Unido (David Morley, “Cultural
mentos de autonomia indígena no Canadá, para Studies and Common Sense: Unresolved Ques-
quem questões de tradição, costume, territoria- tions”; Sean Nixon, “Intervening in Popular Cul-
lidade, nem sempre podem ser eficazmente arti- ture: Cultural Policy and the Art of Translation”),
culadas através de um conceito, se bem que seja na África do Sul (Geyan G. Tomaselli, “Read-
alargado, de diáspora ou de hibridismo. ing Cultural Stuart Hall in Southern Africa”), ou
São estes “cosmopolitismos discrepantes” que quando se procede à sua defesa contra os apelos a
Kobena Mercer (“A Sociography of Diaspora”), um regresso às divisões e metodologias clássicas
recorrendo a um termo de Clifford, evoca, ao das disciplinas (Morley), ou ainda se propõe uma
chamar a atenção para os riscos e potencialidades reinvenção da disciplina face às novas neces-
inerentes a esse conceito, pese embora a erosão a sidades que a contemporaneidade levanta (Nixon),
que tem vindo a estar submetido. Invocando o nomeadamente no que respeita a uma era que se
debate entre os defensores da hibridização ou do quer “pós-feminista” e “pós-colonial”, algo que é
sincretismo, Mercer chama a atenção para as permanentemente desmentido pela persistência
virtualidades existentes no modelo de Hall, que, dos mecanismos de exclusão económica e social,
de acordo com as diferentes tradições culturais em que a “raça” e o género continuam a desem-
predominantes nas Caraíbas, oferece uma imagem penhar um papel determinante (Angela McRobbie,
de um conjunto cultural composto de uma grande “Stuart Hall: The Universities and the ‘Hurly
diversidade de especificidades (p. 240). Rejeitando Burly’”).
a celebração da diferença, dado o seu excesso de Enquanto que o pós-apartheid justifica uma
visibilidade, Mercer prefere invocar, numa linha reflexão renovada sobre a permanente tensão en-
oposta à de Clifford, e baseando-se numa expe- tre os dois paradigmas dos estudos culturais no

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contexto específico da sua recepção (Tomaselli), suposta objectividade das ciências sociais e de que
Lawrence Grossberg (“History, Imagination and elas agora significativamente se voltam a reclamar
the Politics of Belonging: Between the Death and – foi a tentativa de abolição da distinção clássica
the Fear of History”) prefere enveredar por uma entre sujeito e objecto, característica de todo o sa-
via mais teórico-experimental, sublinhando a ber moderno, princípio esse que a antropologia
necessidade de se recorrer a novos paradigmas que emergente viria a erigir em elemento fundador da
permitam pensar e imaginar outras representações disciplina e que a sua versão pós-moderna radi-
do tempo e da história na pós-modernidade, tema calizaria, instituindo-se o observador em parte
que Doreen Massey (“Travelling Thoughts”) integrante da subjectividade etnográfica. Ora é
também inclui ao propor modos de representar e exactamente na tensão, no excesso que a lingua-
experienciar o espaço na sua temporalidade, assim gem e a realidade etnográfica prometem – e que a
se evitando antinomias tradicionais que fundam utopia da autenticidade do culturalismo pretende
tantos outros modos de exclusão. Charles Taylor desmentir – que a mensagem de Hall persiste em
(“Modernity and Difference”), por sua vez, opta lançar as suas interrogações, evocando a abertura
por reflectir a partir dos paradigmas clássicos que todo o dizer convoca e a necessidade do
sobre os desafios da modernidade, propondo encerramento arbitrário, ciente da precariedade
modos mais múltiplos e diferenciados de os necessária que toda a subjectividade que se
pensar, para o que o pluralismo do conceito de autodefine como situada, localizada, tem de
cultura da antropologia clássica se lhe afigura cen- reconhecer.
tral. Uma visão mais problemática do pluralismo Sem garantias. Os riscos desse posiciona-
é proposta por David Scott (“The Permanence of mento surgem quando os contextos de mercan-
Pluralism”). Baseando-se nos conflitos étnicos na tilização e institucionalização do saber são igno-
Jamaica, opõe ao modelo liberal, fundado seja rados, ou quando se ignora o excesso que todo o
numa universalidade racionalmente tolerante seja acto linguístico promete. Mas para Hall “pensar
num consenso mínimo como elementos estabili- em termos puramente literários” equivale também
zadores, uma concepção mais agonística, contin- a apelar a uma especificidade, a um localizar-se, a
gente, que escape aos impasses do marxismo e do não esquecer o fundamento sólido que a diferença
liberalismo, na medida em que estes partilham, em situada ou a exclusão social, baseada numa
última instância, de premissas comuns, sendo por hierarquização ou marginalização com base na
isso mesmo incapazes de responder às situações desigualdade racial, económica ou de género, têm
concretas vividas localmente. de constantemente recordar. Se alguns dos estudos
Outras colaborações propõem pequenas ho- retomam temas já sobejamente tratados, não ob-
menagens sob a forma de estudos monográficos stante o mérito de o fazer baseando-se em con-
sobre as ambivalências da errância e militância textos locais, académicos, sociais, políticos
política de C. L. R. James (Bill Schwarz, “Becom- precisos, eles têm introduzido, numa academia
ing Postcolonial”), ou de poemas (Flemming movida por interesses de mera “visibilidade” ou
Røgilds, “Matters of Self-Esteem”) e montagens de eficácia quantitativa, uma reflexão que insiste em
textos (Gilane Tawadros, “Studies in a Post-colo- tentar decifrar alternativas possíveis ao poder
nial Body”), em que o teor militante da hegemónico.
intervenção política de Hall reaparece de forma Serão os praticantes dos estudos culturais
não menos contundente. “dedicated followers of fashion”, como pergunta
Se, por vezes, não se pode contornar a Lindner? Porventura, com os seus riscos, como
impressão de alguma nostalgia, como quando se também o sublinha, e vantagens, poder-se-ia
evocam os tempos gloriosos da resistência dos acrescentar, pois, como o mostrou Georg Simmel,
estudos culturais na sua descoberta da cultura sociólogo da modernidade e, assim, também pre-
pop(ular) (Rolf Lindner, “Absolute Beginners: In cursor dos impasses da pós-modernidade, a moda,
Search of Lost Time”), reconhece-se na maior parte volátil que é, tanto mais é para ser levada a sério.
dos autores o estímulo do pensamento de Hall Fugacidade das opiniões, revisionismo constante?
para se pensar para além de certezas e garantias. Ou fatalismo de um saber que se centra sobre o
Como Lindner refere, aquilo que os estudos novo, o quotidiano e o banal, neles tentando
culturais introduziram – em oposição a uma decifrar não só os sinais do tempo, mas também

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um sentido provisório, sabendo da sua arbitra- tudo, enquanto espaço de materialização do poder
riedade e do seu peso? colonial – é, pois, dotada de uma espacialidade
Terminaria com uma breve nota: face ao difícil que por vezes nos revela mais sobre a cultura de
acesso aos textos fundamentais de Hall, já que origem do viajante do que sobre os lugares e as
dispersos por inúmeros volumes, alguns deles de populações visitadas.
reduzida circulação, parece-nos que outra forma de No conjunto, os nove ensaios centram-se em
homenagear um dos mais importantes e inovadores relatos publicados entre os séculos XVIII e XX,
pensadores da (pós-)modernidade seria a reunião estando neles representados o continente africano,
desses mesmos ensaios, em tradução portuguesa, a o sul asiático e a Europa (Inglaterra, França e
fim de os tornar acessíveis a um público de língua Grécia). Segue-se uma exposição necessariamente
portuguesa e de contribuir para localmente se sumária de cada um deles, ficando no entanto
facilitar uma recepção tanto mais frutífera, quanto clara a ideia de que a literatura de viagens, colo-
mais ciente da especificidade dos problemas da so- nial e contemporânea, é neste volume um corpus
ciedade em que esses potenciais leitores se inserem. de análise que se abre a múltiplas perspectivas e
relações. Em vez da apresentação sequencial dos
Manuela Ribeiro Sanches
Departamento de Estudos Germanísticos da UL
artigos, proponho a sua apreciação em dois con-
juntos temáticos: aqueles que tratam da repre-
sentação espacial da sexualidade e do género, por
um lado, e aqueles que se ocupam dos aspectos
JAMES DUNCAN E DEREK GREGORY (ORGS.) literários e materiais da representação da paisa-
WRITES OF PASSAGE: READING TRAVEL gem, por outro. A distinção, não sendo taxativa,
permite estabelecer uma aproximação entre os
WRITING
ensaios, aparentemente muito diversos.
Londres e Nova Iorque, Routledge, 1999.
Richard Phillips (“Writing Travel and Map-
Writes of Passage compõe-se de nove ensaios, assi- ping Sexuality: Richard Burton’s Sotadic Zone”),
nados por outros tantos autores, na sua maioria Michael Brown (“Travelling through the Closet”) e
vinculados a departamentos de geografia de Alison Blunt (“The Flight from Lucknow: British
diferentes universidades norte-americanas e bri- Women Travelling and Writing Home, 1857-8”)
tânicas – aspecto que julgo merecer saliência na colocam-se no grupo dos ensaios que exploram
apresentação deste volume. Nos últimos anos, a temas relacionados com a sexualidade e a cons-
literatura de viagens tem vindo a ganhar a atenção trução do género. Phillips analisa a produção
de investigadores oriundos das mais diversas áreas literária do explorador inglês Richard Burton,
e campos disciplinares: antropologia, estudos nomeadamente a célebre tradução Plain and Literal
literários, estudos de mulheres e estudos pós- Translations of the Arabian Nights (1885-86), acres-
coloniais. Writes of Passage é a contribuição, penso cida de notas e de um ensaio. Nesse livro, o autor
que pioneira, da geografia para o estudo das surpreende o que designa como “geografias da
narrativas de viagens produzidas no contexto da sexualidade” – a representação cartográfica deta-
expansão e do colonialismo europeu. A reflexão lhada de práticas sexuais consideradas “desvian-
em torno dos lugares e paisagens de eleição do tes” e “patológicas” pela moral vitoriana e que
viajante, dos meios físicos e tecnológicos empre- Burton localiza no sul da Europa, na orla costeira
gues, da representação cartográfica, dos critérios africana (desde Marrocos ao Egipto), na China, no
selectivos subjacentes à elaboração de um itine- Japão e no Pacífico sul, entre outros países e
rário, ou da actividade tradutória que é a recons- regiões. A “zona sotádica” de Burton, espacial e
trução textual (em diários, cartas e relatos) da culturalmente distante de Inglaterra, surge, assim,
experiência e dos acontecimentos vividos em como palco de representação de sexualidades
viagem, denota uma “leitura geográfica” dos avessas à heterossexualidade normativa. O artigo
textos, que, no entanto, não é alheia às perspec- de Phillips desenvolve, no entanto, uma leitura
tivas interdisciplinares que actualmente marcam a mais complexa dos mapas da sexualidade deli-
investigação académica. A actividade do viajante- neados por Burton, sugerindo a contestação
-escritor – entendida neste volume enquanto implícita do explorador aos discursos homofóbicos
exercício de transmissão de conhecimento e, sobre- seus contemporâneos.

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Michael Brown analisa as publicações do es- ity in Early Eighteenth-Century Narratives”)
critor americano Neill Miller sobre o seu encontro mostra como o conhecimento limitado dos eu-
com comunidades de homossexuais masculinos e ropeus sobre o continente africano gerou repre-
femininas de diferentes países. Brown argumenta sentações mescladas de convicção e dúvida, facto
que os relatos de Miller (In Search of Gay America, e fantasia. A parca informação disponível sobre o
1989; Out in the World: Gay and Lesbian Life from continente restringia-se a algumas zonas costeiras,
Buenos Aires to Bangkok, 1992) podem ser explora- onde os interesses comerciais e o povoamento
dos enquanto narrativas geográficas da orientação europeu estavam estabelecidos. Uma das narra-
homossexual, estabelecendo um ponto de contacto tivas de viagem analisadas, A New Account of Some
entre as escritas de Miller e do explorador Richard Parts of Guinea and Slave-Trade (1734) de William
Burton: o comentário aos valores contemporâneos Snelgrave, apresenta um mapa em que os rios,
da sexualidade. lagos, montanhas, cidades e reinos africanos se
Alison Blunt explora a relação entre as cons- encontram desenhados ao longo da costa comer-
truções femininas do género e a vivência do colo- cial britânica – exemplo conclusivo acerca da
nialismo, relatando a experiência de viagem, percepção e do conhecimento limitados de que os
colectiva e forçada, dos colonos britânicos estabe- europeus dispunham sobre o vasto continente. Por
lecidos na cidade de Lucknow em direcção a Cal- sua vez, a dificuldade em se aceder ao interior
cutá no contexto do período de rebelião indiana promovia a especulação sobre a existência de seres
ocorrido entre Maio de 1857 e Junho de 1858. En- antropófagos e de criaturas ferozes, supostamente
tre a população evacuada contavam-se 240 mulhe- os únicos habitantes dessas regiões. Simultanea-
res, esposas de soldados e oficiais britânicos. As mente, essa especulação coexistia com o rumor
cartas enviadas a familiares e os seus diários, al- sobre a riqueza incomensurável do interior, espaço
guns posteriormente publicados, relatam a vivên- onde se concentrariam as reservas de ouro, de
cia do cerco e os acontecimentos da viagem que se marfim e de outros recursos naturais que tinham
lhe seguiu. O artigo de Blunt desenvolve-se em um papel significativo no consumo da sociedade
torno desses textos, marcadamente confessionais e europeia. Wheeler mostra ainda como as noções
introspectivos. Procurando determinar o estatuto de espaço e de representação se encontram sobre-
das mulheres no terreno colonial, hegemoni- maneira interligadas no modo europeu de olhar os
camente masculino, Blunt sugere o carácter ambi- nativos: quanto mais longe da costa habitavam
valente dos papéis por elas representados. Se- (assim como quanto mais a sul do continente,
gundo a autora, as mulheres britânicas residentes entenda-se, mais distantes da Europa) maior era o
nas colónias eram simultaneamente sujeitos do- seu grau de selvajaria.
mésticos e imperiais, ou melhor, representavam o Laurie Hovell McMillin (“Enlightenment
império dentro de casa, mediante os discursos Travels: The Making of Epiphany in Tibet”)
hierarquizadores da “raça” e da “classe” que esta- explora o mito segundo o qual a viagem ao Tibete
beleciam com a criadagem nativa. Cabe ainda a acarretaria a transformação espiritual do viajante.
análise do modo como aquelas mulheres, após Conduzindo a sua análise em torno do relato de
terem abandonado as suas residências em Lucknow Francis Younghusband, India and Tibet (1910), a
e iniciado uma viagem de três meses até Calcutá, autora considera que qualquer reflexão sobre os
restabeleceram as relações imperiais nos alojamen- discursos e as práticas imperialistas não deverá
tos temporários. menosprezar a especificidade geográfica e cultural
Os restantes ensaios do volume partilham o do território representado. Para McMillin, a forma-
tema da representação de paisagens e de lugares ção e o desenvolvimento da epifania tibetana
outros. No interior do imaginário geográfico do prende-se com a combinação das montanhas altas
pós-iluminismo, os cinco continentes eram discur- e ermas com a religiosidade budista: “paisagem”
sivamente constituídos em relações de contradição ideal para o exercício do romantismo literário
e de oposição, que confirmavam não apenas o britânico.
poder da Europa, mas marcavam também um Derek Gregory (“Scripting Egypt: Orientalism
diferenciado e agonístico espaço de alteridade. and the Cultures of Travel”) reflecte acerca das
O ensaio de Roxann Wheeler (“Limited Vi- ambiguidades e contradições presentes na vasta
sions of Africa: Geographies of Savagery and Civil- documentação sobre o Egipto – entre a qual surge

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um conjunto de relatos produzidos por viajantes O leitor (e turista), nosso contemporâneo, encontra-
europeus e americanos entre 1820 e 1920. No -se, pois, também representado neste volume. Re-
essencial, este artigo gira em torno da noção de presentação legítima e necessária quando pensada
“geografias imaginativas” de Edward W. Said à luz do interesse crescente que a literatura de via-
(Orientalism, 1978), explicando que as metáforas de gens produzida nas últimas décadas tem vindo a
“teatro” e de “texto”, frequentemente inscritas nos alcançar, não apenas nos círculos de investigação
relatos sobre o Egipto, constituem formas de académica, mas, também, entre o comum dos leitores.
narrativização do poder colonial que, em última
Leonor Pires Martins
instância, tornam real o imaginativo. Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE)
James Duncan (“Dis-orientation: On the Bolseira do Programa Praxis XXI
Shock of the Familiar in a Far-away Place”), por
sua vez, socorre-se da noção de “mímica” de Homi
Bhabha (The Location of Culture, 1989) para mostrar
o modo como os colonos e viajantes ingleses SUSAN ALLEN (ED.)
vitorianos transformaram, material e performa- MEDIA ANTHROPOLOGY: INFORMING GLOBAL
tivamente, o reino de Kandy, situado no centro de CITIZENS
Ceilão, numa região de plantações e de pontos
Westport, Bergin & Garvey, 1994.
turísticos em tudo semelhante à zona montanhosa
de Lake District no norte de Inglaterra. Duncan Esta obra, ao contrário do que o título pode suge-
conclui sobre os efeitos ambivalentes e ambíguos rir, não é sobre a antropologia da comunicação
da mimetização e emulação de um espaço que mas sim sobre a comunicação da antropologia.
incorporou em si mesmo reconstruções do eu e do Consta de vários ensaios sobre as formas como o
outro, do familiar e do estranho. antropólogo pode tentar ultrapassar a incapa-
Robert Shannan Peckham (“The Exoticism of cidade (e algumas vezes negação) da disciplina,
the Familiar and the Familiarity of the Exotic: Fin- para aplicar a sua metodologia e perspectiva
de-siècle Travellers to Greece”) reflecte sobre a analítica aos acontecimentos quotidianos e para
importância dos relatos e dos guias de viagem do comunicar com o público a partir dessa base.
século XVIII sobre a Grécia na construção de Embora redigida há sete anos, permanece, na
assunções e expectativas nos viajantes europeus do minha opinião, perfeitamente actual nas críticas
século XIX – entre as quais, a ideia da centralidade que tece ao elitismo que persiste na academia.
da Grécia na formação da cultura europeia. A tese da editora Susan Allen é a de que o an-
Confiantes do encontro com as suas raízes, esses tropólogo vive normalmente em mundos segmen-
viajantes, no entanto, confrontaram-se com um tados, cada um com as suas idiossincrasias: o
contexto geográfico e cultural ambíguo, onde as terreno, a universidade e a sua sociedade de ori-
representações taxonómicas e dualistas do Oci- gem, cada um requerendo um comportamento e
dente sobre o Oriente surgiam questionadas. linguagem próprias. Mas, num mundo que os
Joanne P. Sharp (“Writing Over the Map of meios de comunicação e as novas tecnologias
Provence: The Touristic Therapy of A Year in tornam cada vez mais intercomunicante, esta
Provence”) ocupa-se de um dos mais populares segmentaridade espacial e comportamental tende
relatos de viagens dos últimos anos: A Year in cada vez mais a tornar-se insustentável.
Provence (1989) do inglês Peter Mayle. O interesse A crescente apropriação de conceitos antes
de Sharp prende-se com o ofuscamento de outras quase exclusivos dos antropólogos pelos mass me-
imagens da região francesa, motivado pelo sucesso dia e profissionais de outras áreas tornaram inevi-
literário do relato e, em última instância, com a tável, segundo Allen, o fim da privacidade da
transformação real da “paisagem” pela afluência academia. Este imperativo “ético” – comunicar
de turistas britânicos que acorreram a visitar a com a sociedade – obrigou o antropólogo a desen-
Provença de Mayle (ironicamente, descrita como volver uma nova linguagem e aptidões numa
inacessível). Sharp refere ainda que nos últimos postura simultaneamente observadora e partici-
anos se registou um “conluio” contra o livro de pante, mas sobretudo de tradutor-comunicador
Mayle por parte dos turistas que estavam inte- que sabe reconhecer os códigos de comunicação
ressados em procurar a face “autêntica” da região. das suas audiências.

193
Uma das ideias-chave de Media Anthropology linguagem próprias de cada um dos media que
é a de que os mass media surgem como veículos tiveram que adoptar. Destacam igualmente
privilegiados nesse processo comunicativo entre algo que à partida repugna ao antropólogo
antropólogo e público. O grande contributo que a “académico” – a adequação aos gostos do mer-
antropologia dá aos mass media é a possibilidade cado.
de construção de uma grelha contextual onde en- Esta colectânea de testemunhos muito per-
caixam os pormenores da vida quotidiana, convi- sonalizados apresenta como zona de intersecção as
dando o público a desenvolver uma perspectiva de propostas metodológicas e de acção dos vários
entendimento holística. Allen designa este pro- colaboradores. Cada um avança com propostas
cesso como “educação pública”, na medida em que específicas decorrentes do tipo de media adoptado,
fornece ferramentas para um entendimento mais mas dessa heterogeneidade emerge um conceito
correcto da sociedade humana. Por seu lado, os comum: a inovação metodológica e comuni-
media “tiram” a antropologia da academia e cacional. Os vários ensaios, num estilo narrativo
revelam-na ao público. Esta forma de antropologia muito fluido, são assim uma materialização da
mediatizada desenvolve-se assim como tentativa reflexão teórica prévia de Susan Allen.
de síntese do jornalismo com a antropologia. Penso que Media Anthropology, pelos teste-
Após fazer uma cronologia, em que destaca o munhos que oferece e pelas propostas que avança
desempenho pioneiro de Margaret Mead como de “como comunicar a antropologia”, é parti-
colunista de revista, e em que se dá conta das cularmente interessante numa época em que as
iniciativas desencadeadas entre 1969 e 1993 no barreiras disciplinares se diluem, contexto em que
âmbito da promoção desta nova forma de fazer a antropologia tem que enfatizar a sua utilidade,
antropologia, Susan Allen propõe uma reflexão sob pena de ser mantida no “silêncio” da academia.
sobre as suas várias dimensões: No espírito actual de “pensar globalmente,
– A dimensão epistemológico-filosófica e me- agir localmente”, é necessário começar por algum
todológica inerente à nova abordagem e lado. Este poderá ser um bom contributo da
novos contextos que se propõe analisar; antropologia.
– A dimensão psicológica que decorre do im- Emília Lopes
pacto das representações cognitivas vei- Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE)
culadas pelos antropólogos;
– A dimensão política presente na intenção
subjacente de “informar para agir”.
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
Uma mensagem (assente na experiência pro- ARAWETÈ: O POVO DO IPIXUNA
fissional dos restantes colaboradores deste livro) Lisboa, Assírio e Alvim/Museu Nacional de
evidencia-se particularmente – a de que, sem Etnologia, Colecção Coisas de Índios, 2000.
alterar muito as formas de recolha de informação
inerentes à metodologia própria da antropologia, Arawetè: O Povo do Ipixuna é o primeiro livro de
é necessária uma inovação contínua nas formas de uma nova colecção, organizada por Joaquim Pais
divulgação dessa informação, que passa por “pe- de Brito, resultando da colaboração entre o Museu
gar” em acontecimentos diários e “tratá-los Nacional de Etnologia de Lisboa e antropólogos
antropologicamente”. americanistas brasileiros, na exposição “Os índios,
Nessa medida, esta obra pode considerar-se nós”, inaugurada em Dezembro de 2000 no Museu
um manual de antropologia aplicada. Com base de Etnologia. A série envolve textos inéditos e
em experiências pessoais, são-nos apresentados reedita publicações de difícil acesso ao público
sucessivamente o antropólogo-articulista , o redac- português. O valor dos textos escolhidos e o cui-
tor-editorial, o escritor por encomenda, o jorna- dado gráfico da colecção, que nos é oferecido pela
lista, o apresentador de televisão, o jornalista editora Assírio e Alvim, fazem com que tenha sin-
televisivo, o produtor de televisão e o produtor de gular interesse e utilidade, não só para a antro-
rádio. Todos testemunham as adaptações que pologia como para um público mais vasto.
tiveram que desenvolver em relação à sua for- Este primeiro livro, da autoria de Eduardo
mação académica, assim como as técnicas e Viveiros de Castro, antropólogo do Museu Nacio-

194
Recensões

nal da Universidade Federal do Rio de Janeiro afro-centrada. Contudo, não se tinha ainda cons-
(actualmente convidado do CNRS em Paris), é tituído uma alternativa clara a esse modelo, o qual
oportunidade para conhecer, de forma sofisticada, estava a ser igualmente rediscutido por relação a
e através de uma escrita etnográfica de exemplar diversos outros contextos etnográficos. Lembre-se,
clareza, o modo de vida de uma população de a título de exemplo, que é nesta década que sur-
índios tupi-guarani que habita, desde 1976, numa gem os primeiros textos de crítica feminista na
reserva indígena junto a um afluente do rio Xingu antropologia sobre a Melanésia. Na publicação do
da Amazónia brasileira. O livro Arawetè foi origi- Boletim, atrás referida, direcciona-se a abordagem
nalmente publicado em 1992 para acompanhar da realidade sul-ameríndia para o estudo do
uma exposição realizada em São Paulo. Como nos corpo, da noção de pessoa e de identidades infor-
diz Eduardo Viveiros de Castro, na introdução ao mais e pessoais. Estava-se a dar forma a uma
livro, a relação permanente entre os arawetè e o aproximação teórica ao contexto da Amazónia,
estado nacional brasileiro era ainda recente na sua que se queria liberta dessa visão afro-centrada,
primeira e mais prolongada pesquisa de campo: principalmente no que respeita ao modelo
“Conheci os arawetè em 1981, quando esse povo linhageiro e à sua inscrição na noção corpórea e
indígena tinha apenas cinco anos de contato oficial “jural” de pessoa.
com os brancos” (p. 37). A originalidade da escrita O texto de Viveiros de Castro, nesta publica-
etnográfica deste livro reside no facto de não se ção, despoja-se da discussão explícita da proble-
sujeitar à formalidade da linguagem académica. mática académica, sem que nunca se afaste do de-
O leitor mais interessado, ou estimulado pela bate antropológico, que nos é desvendado, quase
leitura do livro, pode aprofundar os temas enun- no final, em passagens como a que se segue:
ciados neste livro, através da leitura da mono- Amigos da proximidade corporal, de uma infor-
grafia que lhe serve de orientação, publicada no malidade por vezes avassaladora, absolutos no
Brasil na década de 80 e pela University of Chi- dar e no pedir, amantes desenfreados dos pra-
cago Press em 1992 (numa versão mais recente do zeres da vida, de língua solta e riso constante,
autor), sob o título From the Enemy´s Point of View: sempre me pareceu que noções como as de
Humanity and Divinity in an Amazonian Society. regra, norma e medida eram algo inapropriadas
para descrevê-los (p. 185).
Nessa monografia, Viveiros de Castro debate o
processo de constituição da identidade social, Aquilo a que Viveiros de Castro chama aqui “in-
através do que designa como “antropofagia ri- formalidade” é-nos dado a ver, de forma positiva,
tual”, dividida em duas vertentes: “a categoria de ao longo da belíssima descrição etnográfica deste
pessoa e a escatologia dos deuses” e o “funcio- livro. À medida que a leitura vai fluindo, vamos
namento minimalista das instituições sociais” (op. sendo introduzidos num socius cuja possibilidade
cit., 1992: XV). A tese trata da condição humana e de se constituir, enquanto colectivo, assenta em
de identidade num contexto social onde ela é actos de natureza persuasiva e não restritiva.
melhor entendida como um “ponto de vista”, en- É exemplar, a este respeito, a descrição do que
tre categorias relacionais, do que através de “pro- significa ser líder arawetè:
víncias ontológicas” (cf. Viveiros de Castro 1996,
o líder arawetè é o que começa, não o que
“Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo
comanda (…). As pessoas sempre me respon-
Ameríndio”, Mana, 2 (2): 115-144). diam, toda vez que eu perguntava se e quando
O trabalho de Eduardo Viveiros de Castro tem iam fazer as coisas (...) ‘esperemos Yirinato-ro
marcado a antropologia ameríndia desde a década decidir ’. Isso significava, não a espera de uma
de 70 quando publica, em conjunto com Anthony ordem, mas de um estímulo, de um movimento
Seeger e Roberto da Matta, um número especial do que pusesse a actividade em causa no hori-
então Boletim do Museu Nacional da Universidade zonte coletivo de escolha. Não se tratava de
esperar que ele começasse, mas de deixar tudo
Federal do Rio de Janeiro (cf. 1979, 32, “A Construção
como estava, até que ele começasse; aí todos
da Pessoa nas Sociedades Indígenas Brasileiras”). (isto é, cada um) decidiriam o que fazer... (pp.
Neste período, a etnografia do contexto sul-ame- 101, 104).
ríndio dava conta de um desajuste entre a rea-
lidade social e política das sociedades indígenas e Deste modo entendemos, com rara clareza, um dos
os modelos teóricos da antropologia estruturalista temas que a antropologia amazónica tem vindo a

195
descortinar com maior perseverança teórica: a segue: “sociedade radicalmente aberta, seu desejo
constituição do poder em sociedades ameríndias, do outro a levava, seja a querer a todo o custo ser
onde os líderes não são figuras de comando mas, como ele (isto é, como nós) seja a puxá-lo (isto é,
essencialmente, os fundadores de um grupo local a mim) para dentro de si” (p. 170). O autor mostra
(cf. op. cit., 1992: 51). que os arawetè, ao usarem e desejarem os objectos
É ainda a propósito desta mesma descrição da dos “brancos” não querem ser como eles, mas an-
liderança entre os arawetè que Viveiros de Castro tes consumir a diferença, através dos seus sím-
introduz a relação dos índios com o estado, após a bolos.
sua fixação em 1976. A Fundação Nacional do Índio Um último contexto de análise etnográfica
(FUNAI – órgão governamental que trata de que merece atenção neste livro é o do parentesco,
assuntos indígenas) é apresentada, nos primeiros onde a ineficácia do modelo “jural” para entender
capítulos, como a entidade abstracta que conduziu a realidade etnográfica em causa nos é demons-
a história dos arawetè, no sentido da sua fixação trada a partir de alguns dos temas mais clássicos
numa reserva territorial. Para os arawetè a alterna- da antropologia, tais como o casamento com
tiva era uma fuga, já sem saída, dos seus inimigos primos cruzados. O autor mostra que se, por um
principais: os kaiapó xicrin e parakanã. O significado lado, os adultos determinam os cônjugues futuros
desta escolha (ou destino histórico) é descrito neste das crianças “emparelhando-as a seus primos
livro com enorme densidade humana: cruzados” (p. 128), por outro lado, estes primeiros
Foi uma caminhada de mais ou menos 100 km, casamentos são aquilo a que o autor chama
que durou 17 dias: pelo menos 16 pessoas mor- “casamentos tentativos” (p. 152), que nunca têm
reram no percurso. Com os olhos fechados por grande durabilidade, pelo que não podem ser
uma conjuntivite infecciosa que haviam con- vistos como determinantes do destino moral ou
traído no ‘beiradão’, as pessoas não enxergavam político daqueles que os seguem. Ainda neste
o caminho, perdiam-se na mata e morriam de capítulo, vale a pena prestar atenção à constituição
fome (p. 54).
dos laços sociais que se fundam na “mutualidade
Em capítulos posteriores, a FUNAI surge huma- sexual”, i.e., numa troca regular de esposa, entre
namente materializada nos funcionários que lidam dois casais, para fins de relacionamento sexual.
diariamente com os índios e que procuram en- Esta “mutualidade sexual” cimenta uma relação de
tendê-los. As vozes desses sujeitos aparecem-nos proximidade social não entre homem/mulher mas
num momento em que o leitor já se familiarizou entre os dois indivíduos do mesmo sexo, Apihi-pihã
com muitos dos aspectos da vida social arawetè e, (pp. 137-138). As trocas de parceiro sexual são
por isso, quando o funcionário da FUNAI diz que assim fundadoras de uma das relações sociais mais
“todo índio (...) tem um certo líder. Mas o que é prezadas pelos arawetè – a “amizade”: “ser amigo
zero, zero, zero, zero é os arawetè” (p. 110), é sinal de maturidade, assertividade, generosi-
entendemos que ele está a tentar encontrar uma dade, força vital, prestígio” (p. 139). A abordagem
grelha de entendimento para aquilo que, efectiva- destes diferentes níveis das relações de género é
mente, caracteriza a natureza não coerciva do um importante contributo para o debate actual
poder arawetè, referida acima. sobre o parentesco, através do seu maior recurso
Eduardo Viveiros de Castro tem desenvolvido argumentativo: a escrita etnográfica.
uma tese sobre a identidade social das sociedades A qualidade antropológica da etnografia
tupi, que também ajuda a compreendê-las na sua que nos é oferecida neste livro, e a validade con-
relação com a sociedade dos “brancos”. O autor temporânea das questões teóricas que trata etno-
mostra que os arawetè desenvolvem um socius graficamente, são um convite a que o livro seja lido
que os conduz a uma vontade sôfrega de estabe- por jovens e seniores antropólogos, podendo ser
lecer relações sociais com estranhos, uma dimen- estimulante, ainda, para uma introdução à antro-
são da sua vida social que o autor explicita de pologia.
forma desenvolvida na monografia de 1992, a
Susana de Matos Viegas
partir da noção da antropofagia cosmológica – Departamento de Antropologia da UC
i.e., da necessidade de se consumir os outros (a
diferença) para se constituir a si próprio – e que
nos apresenta aqui em passagens como a que se

196
Recensões

JOSÉ MANUEL SOBRAL De salientar o fio condutor que atravessa toda


TRAJECTOS: O PRESENTE E O PASSADO a obra e que permite articular as diferentes ver-
NA VIDA DE UMA FREGUESIA DA BEIRA tentes do espaço de vida local – um profundo con-
Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1999. traste social que singulariza estas duas povoações
beirãs e que enforma a sua transformação, numa
Esta obra, recentemente publicada pelo Instituto história cujo rasto José Manuel Sobral apresenta ao
de Ciências Sociais, na sua colecção Análise Social, leitor de forma muito clara e eloquente, guiando-
corresponde à dissertação de doutoramento em -o através das marcas deixadas em documentos
antropologia apresentada pelo autor em 1993, cuja escritos ou na paisagem – das casas aos muros que
revisão não chega a ser suficiente para limar as separam as parcelas; articulando-as com diferentes
arestas de um texto intrinsecamente académico, de cenários de poder – pelas diferentes posições que
forma a poder cativar um leque potencialmente a elite local vai ocupando ou abandonando; e re-
diversificado de leitores. forçando-as com distintas formas de recordar –
Com uma organização muito clássica, no âm- visíveis em longas ou curtas histórias de família,
bito do que pode considerar-se como “monografia na valorização dos objectos que recheiam vastas
local”, os capítulos principais alinham-se em torno casas senhoriais ou primam pela ausência nas
de instâncias basilares das duas comunidades exíguas residências dos mais humildes.
estudadas – Aldeia e Vila – pseudónimos adopta- São distâncias sociais que não se perdem no
dos pelo autor para se referir às duas povoações da tempo nem com o tempo, mas que permanecem,
Beira situadas numa região vinícola (de facto uma assumindo novas reconfigurações numa conjun-
aldeia e uma vila) sobre as quais incide o seu tura socioeconómica que se torna cada vez mais
estudo. “meritocrática” (p. 386) com o advento da demo-
A escolha destas duas povoações surge como cracia. Factores como o desenvolvimento da segu-
prolongamento da investigação de José Manuel rança social, o crescimento económico, a escolari-
Sobral, antes iniciada através de estudos autóno- zação ou a emigração – “uma sangria silenciosa
mos no mesmo concelho – centrados na análise da que se transformou, desde os anos 60, numa
estrutura fundiária e da sua reprodução – e agora torrente que modificou o espaço local” (p. 386) –
aprofundada, “alargando-a a um espaço com gran- levaram ao enfraquecimento da elite local, mas
de propriedade, marcado por uma antiga domi- não dissolveram as fronteiras que, tanto a nível
nação senhorial” (p. 47). das práticas como a nível das representações, con-
Assim, na parte introdutória (capítulos I, II e tinuam a marcar perceptíveis diferenças sociais,
III), além de uma cuidada discussão de conceitos políticas, económicas entre os vários grupos do
(como comunidade e localidade) e da caracterização tecido social recomposto.
das duas povoações onde decorreu a pesquisa, José Nesta análise da reprodução do espaço local
Manuel Sobral, ao mesmo tempo que apresenta a a contribuição de Pierre Bourdieu é particular-
mútua aproximação da história e da antropologia mente evocada, tanto a nível conceptual, como a
social, apresenta-se também como historiador que nível metodológico, propondo-se o autor articular
“retém da antropologia social a primazia conferida os dados obtidos através da análise estatística da
ao trabalho de campo assente na ‘observação população actual com os que resultam da obser-
participante’” (p. 31). E, com este espírito vação directa, centrada em estilos de vida, opi-
interdisciplinar, o autor formula a sua proble- niões, posição política, bem como na sua dinâmica
mática enquadrada no processo de reprodução temporal (p. 123).
social. Reside aqui, em meu entender, a grande força
O tema é, aliás, suficientemente lato e elástico deste estudo, e nele se cruzam informações tão
para nele caberem configurações tão heterogéneas ricas e diversificadas como as oriundas de fontes
como as relativas à “Família e Parentesco” (cap. locais (Arquivo Paroquial, Arquivo da Junta de
IV); à “Religião” (cap. V); ao “Poder Político e Freguesia, Arquivo da Misericórdia ou da Cúria
Atitudes Sociais” (cap. VI); com uma espessura Diocesana, entre outras); ou os dados consultados
temporal de fôlego desigual, que acompanha as em documentos oficiais mais recentes (recen-
descrições densamente documentadas pelo autor seamentos agrícolas, recenseamentos gerais da
em cada uma destas abordagens. população, resultados eleitorais – STAPE), os quais

197
foram amplamente ilustrados com as narrativas de sua população durante o Verão, com a chegada
testemunhos directos dos habitantes de Aldeia e dos emigrantes –, vive “uma profunda mutação
Vila e com as próprias observações do autor. em curso” com os efeitos do fenómeno migratório:
efeitos sociológicos (alterações na ordem social) e
Ana Isabel Afonso
económicos (fluxo monetário, do qual o grande
Departamento de Antropologia da FSCH – UNL
número de bancos é forte indicador; vitivini-
cultura), e até mesmo alterações a nível da paisa-
gem, com o aparecimento de grandes casas
FABIENNE WATEAU ostentatórias. Não se pode dizer, entretanto, que
CONFLITOS E ÁGUA DE REGA: ENSAIO SOBRE Melgaço seja uma sociedade hidráulica, tal como
A O RGANIZAÇÃO SOCIAL NO VALE a define Wittfogel, com a monopolização e centra-
DE MELGAÇO lização da água por parte de uma classe. A hipó-
tese, em muito redutora, da raridade da água
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000.
disponível ser a razão da eclosão dos conflitos, não
A obra da etnóloga francesa Fabienne Wateau fala- só contradiz a realidade do verde Minho, abun-
-nos do sistema de irrigação tradicional do Alto dantemente irrigado, como também se mostra uma
Minho, em particular de Melgaço e do seu vale. hipótese isolada, pois não é capaz de dar conta de
Trata-se de uma obra original por várias razões. uma organização social onde se fundem natureza,
Em primeiro lugar, porque é a primeira síntese homens e símbolos. A geografia e a economia, por
etnológica sobre a questão da água em Portugal, mais importantes que sejam, não podem, por si
resultado de uma longa presença no terreno sós, explicar uma configuração como esta, nem o
(década de 90) e do uso, sistematizado, de mate- facto de os conflitos terem o elemento água como
riais e técnicas consideravelmente diferentes: palco das acções.
observações, arquivos, entrevistas, esquemas de A explicação estaria, à partida, numa lógica
parentesco, tabelas, fotografias e desenhos. Em social que compreenderia a dialéctica entre um
segundo lugar, porque são articulados os registos bem que é “posto em comum”, a água, e uma inte-
da conflitualidade e da irrigação, que dão lugar a racção que toma a forma de conflito, ou de desafio
uma forma de organização social específica e entre membros de uma mesma sociedade, relati-
dinâmica. Esta ligação permite, através de uma vamente “homogénea”, tendo em conta diferenças
leitura antropológica, a compreensão de uma sociais e até mesmo disparidades. A água constitui
comunidade rural, como a do Vale de Melgaço. então um marcador de estatutos: se por um lado
A multiplicidade de actividades que a irrigação existem os “herdeiros”, associados a pessoas abas-
implica, nomeadamente durante o Verão, o grande tadas, que não abdicam dos seus direitos, nem
número de procedimentos técnicos e de operações mesmo de um título que se quer respeitado (p. 55),
sociocognitivas, de palavras e de gestos, de valores por outro lado existem todos os outros, os que não
éticos e simbólicos, de trocas e laços sociais, bio- participam desse estatuto. As formas de partilha
lógicos ou jurídicos, fazem dela um genuíno “facto da água, onde se integram os direitos individuais
social total” (pp. 18-19). sobre esta – um bem colectivo –, ou, melhor di-
Aquilo que a obra revela, e que simultanea- zendo, os direitos dos herdeiros, revestem-se de
mente surpreende, de acordo com a apurada formas fixadas colectivamente ao longo dos tem-
análise da autora, é a maneira como um complexo pos, quer por via oral, quer escrita (róis). Esses
de usos, saberes, práticas, direitos consuetudi- direitos são transmitidos aos descendentes, pelo
nários e medidas de água pôde, com o tempo, que a aliança matrimonial se revela de grande
adaptar-se e dar forma aos contornos de uma importância. Os motivos conflituais reforçam-se
sociedade, às suas relações e à sua paisagem. E isto durante o Verão, um período marcado pela con-
sem ser necessário recorrer a uma lógica funcio- centração da sociabilidade e, sobretudo, a época
nalista ou racionalista. O esquema de conflitua- do ano em que a irrigação é objecto de rígidas
lidade, tal como o percurso da água, surgem, por regulamentações. Esses motivos multiplicam-se na
outro lado, como contra-argumentos dessas expli- abertura dos canais de irrigação, na partilha da
cações. Se Melgaço forma um todo coerente – um água, na transmissão dos direitos de uso. Esta
concelho de 10 mil habitantes que vê duplicar a exacerbação colectiva sobrevive à passagem da

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Recensões

oralidade para a codificação escrita e até mesmo reno, sem se reduzir a este: contra uma raciona-
jurídica dos usos, assim como à tentativa de lidade estreita, fica claramente demonstrado, num
simplificação das regras de distribuição. É que os dos casos, que a irrigação nem sempre segue uma
pontos da discórdia resistem à explicação pela inclinação “natural”; a água é incessantemente
complexidade do fenómeno, ou pelos limites da “conduzida, desviada e orientada”, a partir da
cultura oral. O conflito nasce positivamente do Igreja, onde o sagrado se une à antiguidade da
jogo de identidade que tem a água como pano de instalação da população naquele lugar, obede-
fundo. Ele assenta em condutas de desafio e numa cendo “a uma lógica humana de ocupação do
ética de equidade. É por isso que está presente no solo”.
conjunto da sociedade melgacense, conforme as É exclusivamente a irrigação estival – a água
ocasiões e os locais de encontro, como por exem- de “rega” ou de “partilha” –, situada entre o início
plo, num café. Assim, o conflito é mais do que um do Verão e o 8 de Setembro, que concentra os
elemento da sociedade: agonístico ou anómico, é conflitos. Quanto à água de Inverno, ela serve para
uma dimensão constituinte da dinâmica social que todos alimentem e protejam da geada os
local. prados. Essa “água de lima”, livre e abundante, é
O primeiro capítulo, intitulado “Terra e La- usada à vez, e à vontade por quem dela precisa.
vradores”, descreve o relevo acidentado e mon- Estes dois tipos de águas “correspondem a duas
tanhoso que envolve Melgaço, onde as chuvas são estações sociologicamente diferenciadas” (p. 44).
abundantes; os baldios acolhem vacas e ovelhas, A segunda parte deste capítulo trata da
enquanto os minifúndios estão reservados ao população local, das características sociodemo-
cultivo da batata; os cereais, sobretudo o milho, gráficas, do povoamento, da terra e dos direitos
representam por si sós 50% da superfície cultivada. relativos à água.
Na proximidade da casa, os produtos hor- O povoamento é, segundo a classificação
tícolas – tomates, feijão verde, couves, cebolas ou usual, semidisperso. Esta relativa disseminação
alfaces – são atentamente cuidados. As parcelas, populacional, à beira das estradas, dos rios ou nas
descontínuas, irrigadas graças ao desnivelamento encostas das colinas, requer várias interpretações.
do terreno, são regadas através da água retida em A par das explicações históricas e climáticas, as
reservatórios naturais ou artificiais: “poças” e razões demográficas apontam para uma região
“tanques”. De há 20 anos para cá, a superfície de tradicionalmente fortemente povoada, ainda que o
vinha triplicou, conduzindo a uma monopro- concelho de Melgaço esteja situado aquém da
dução: o vinho Alvarinho, destinado à comer- média. Esta densidade (que, como é sabido, é
cialização e financiado pela União Europeia. caracterizada por uma sobre-representação femi-
As infra-estruturas de irrigação são compos- nina devida à forte emigração) terá levado a
tas por quatro tipos de canais distintos, em função população a ocupar as terras incultas. A isto é
do uso que lhes é dado, da sua forma, do seu cau- preciso juntar um outro factor que conduziu, sem
dal e do seu desempenho: “levada”, “corga”, dúvida, a uma multiplicação de moradias num
“rego” e “regato”. Os dois primeiros tipos são espaço em extensão: a partilha igualitária dos bens
caminhos de terra, naturais, por vezes reforçados herdados.
com cimento, com a função de “recolha” de água, A terra obtém-se de três maneiras: por trans-
enquanto os outros dois, artificiais, servem para a missão, por compra, ou por direito de uso, que se
distribuição da mesma (p. 41). A água que aqui transforma, com o passar do tempo, em posse le-
circula vem dos rios e das chuvas. Esta é chamada gal da terra (usucapião). A transmissão da
a água “boa”, por oposição à água “fria” ou herança, ainda que formalmente igualitária, faz-se
“negra”, que brota das entranhas da terra, e que quase sempre de modo a beneficiar um dos filhos,
não é usada, a não ser em caso de seca. Estes seja por recurso ao “terço”, seja pela compra de
circuitos e estas retenções de água (poças) acabam terras aos irmãos. As terras vendidas são, antes de
por desenhar uma vasta rede de artérias, das mais, aquelas que estão arborizadas ou secas,
maiores às mais pequenas e individualizadas. Es- excluin- do-se, por razões económicas e
tamos perante obras onde a arte – isto é, a técnica simbólicas, as superfícies irrigadas. A apropriação
e um certo saber-fazer resultante de um engenhoso jurídica de uma terra pode ocorrer sempre que um
bricolage – se combina com a morfologia do ter- terreno é cedido por determinado período de

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tempo pelo seu proprietário – emigrado – a um a amplitude dos dados e o rigor da demonstração.
rendeiro ou a um proprietário mais importante Este capítulo, do nosso ponto de vista o mais origi-
favorecido pelo facto de saber ler e escrever. nal e interessante, faz transparecer um bom domí-
Assim, esta terra pode ser legalmente exigida pelo nio, tanto do terreno, como da escrita etnológica.
seu usufrutuário, ao fim de 20 anos de exploração. A autora reconstitui, esquematicamente, a
“Trata-se de uma verdadeira dinâmica de obtenção partilha da água, segundo duas regras funda-
de terras que origina infalivelmente conflitos de mentais. Primeiro, a água dos “regos”, tal como a
variada intensidade” (p. 47). das “poças”, é quase sempre dividida da mesma
No vale de Melgaço, terra e água são coisas maneira, a saber, através daquilo a que chamam
distintas em termos de propriedade. Um terreno “giro” ou “roda”. Segundo, um princípio de rota-
pode ser vendido sem que isso inclua a água que, ção preside à distribuição de água pelas parcelas,
eventualmente, o atravessa. Terra e água são tidas segundo os lugares e os anos pares ou ímpares.
como “solteiras”. Os direitos sobre a água são, A ideia, senão mesmo o ideal, da rotatividade,
normalmente, transmitidos por linha feminina, e reflecte-se nos níveis organizacional e posicional,
mais do que vendidos, podem mesmo, tal como a com um vai-vem entre uma totalidade social (os
terra, ser objecto de reclamação de usucapião. herdeiros, a irrigação completa) e os indivíduos.
A sua abundância não impede que seja um bem Tem ainda a ver, por outro lado, com a terri-
precioso, uma marca de prestígio e de distinção. torialidade e a ética. A rotatividade, simulta-
Um segundo capítulo aborda os usos da água, neamente prática e princípio, aplica-se à irrigação.
entendidos simultaneamente no sentido de cos- Aquilo a que podemos chamar uma “ética da
tume e prática segundo modalidades tradicionais. rotatividade” ou, mais precisamente, a sua reivin-
Esta parte do livro é especialmente interessante, dicação, cria laços entre melgacenses. É essa ética
porque nela se juntam ricos materiais etnográficos que possibilita uma explicação do conjunto da
e uma análise subtil e didáctica que nos revela um sociedade em causa.
sistema de irrigação complexo e admiravelmente Três casos representativos são, em seguida,
equilibrado, produto simultaneamente do social, abordados. O primeiro está ligado à partilha de
do técnico e do cognitivo. água de uma “corga” com base em horas solares,
Fabienne Wateau começa por afirmar que a o segundo refere-se a um “rego” partilhado em
existência, desde 1956, de associações de regantes, fracções de tempo, e o último à partilha de uma
não tem a finalidade nem o efeito de reduzir o “poça” com base na quantidade de água. Vejamo-
número de conflitos em torno da água, nem mes- -los um por um.
mo de funcionar, como em outros casos, segundo No primeiro caso, as datas de início da rega e
uma lógica comunitária. A razão está no facto de, da limpeza colectiva e obrigatória dos canais são,
em Melgaço, estes colectivos não exercerem geralmente, anunciadas pelo padre. A rega faz-se,
qualquer tipo de autoridade ou de controlo sobre de acordo com os regueiros, de dia e de noite. Em
os “herdeiros”, que adoptam uma conduta tipica- Felgueiras, um lugar de Melgaço, o ciclo completo
mente “individualista”. Do mesmo modo, não de um regueiro é de quinze dias, findos os quais se
vêm substituir métodos (e direitos) tradicionais, encerra a rega. Cada ciclo de quinze dias é
transmitidos essencialmente por via oral. Na ver- dividido em duas semanas, com início ao meio-dia
dade, estas associações contribuem antes para de Domingo. Cada semana é, por sua vez, dividida
“modernizar” certas estruturas com o apoio finan- em dias e horas solares. Essas horas são indicadas
ceiro do estado ou da União Europeia, como é o por meio de referências “naturais”, como o nascer
caso da consolidação dos principais “regos”, que ou o pôr-do-sol, ou então por recurso às horas
são acimentados. socializadas, como o momento da missa ou a hora
De seguida, e a partir de três estudos de caso da “pedra de partilha”, um verdadeiro relógio so-
representativos, a autora apresenta, de entre a lar (p. 86). Estas horas são uma espécie de
grande diversidade existente, três modelos possí- referência temporal – mais do que uma unidade de
veis de “partilha” social da água e respectivas medida, uma duração – e implicam uma certa
regras. Esses modelos, heterogéneos e complexos, representação do tempo, já que são diariamente
têm a sua razão de ser, a sua eficácia e a sua reajustadas em função do nascer e do pôr-do-
própria racionalidade. É impossível resumir aqui -sol.

200
Recensões

Quanto à rotatividade, no exemplo em ques- sequência aos “giros”, acompanhadas de acções e


tão são tratados vários “giros”, de duração muito visualizações, de onde se pode deduzir que esta-
variável: uma alternância de acordo com os anos mos perante um mecanismo mnemónico, mais do
pares ou ímpares; uma outra que permite que a que um “texto”. Fabienne Wateau fala, correcta-
rega dos campos incida anualmente sobre a parte mente, em espaços-tempo, dado que estes dois
alta ou a parte baixa da aldeia, iniciando-se numa elementos são indissociáveis da medida efectuada
parcela que também varia de vez para vez; outra e também porque o tempo surge localizado e
que faz variar os terrenos a regar na primeira ou atribuído: “Outro quarto foi para as Torres que é
na segunda semana; ou, finalmente, o caso de uma de Manuel Garcia e herdeiros...”; talvez seja
área que “roldeia” em ciclos de três anos, ou seja, possível ir ainda mais longe e estabelecer a com-
“uma alternância na sequência dos turnos de água, posição dinâmica e prática acção-espaço-tempo.
e entre beneficiários. [A água] num ano vem às A ordem dos giros é previamente atribuída através
Quartas de Canda e Valedo, no outro ano às de de um sorteio. Esta temporalidade é domesticada
Campo de Maio e Salgueirão e, no terceiro ano, às e como que recriada pela colectividade, “como se
de Outeiros de Baixo e de Cima” (pp. 66-67). A isto se tratasse de repensar a ordem cósmica do mundo
junta-se ainda, tanto ao nível das parcelas con- no período de rega” (p. 70).
tíguas que constituem um “campo”, como ao dos O exemplo da corga do moinho de Gaia é
indivíduos (“herdeiros”), uma sequência dos ainda mais expressivo. Acontece que o giro com-
“giros” de água que é estabelecida por “sorteio”, pleto do rego leva quatro anos até ser fechado.
visto que, mesmo que o nome de um campo se Uma série de ciclos são englobados, a partir
tenha mantido, o número dos beneficiários aumen- do “maior” deles – pelo menos ao nível do discur-
tou ao longo dos tempos, mas a quantidade de so –, à imagem de um sistema planetário: o giro
água permaneceu constante. Trata-se, afinal, de completo inclui rodas quinzenais, no seio das
uma série de percursos, rotações e alternâncias quais se inserem outros ciclos de 24 horas cada,
combinadas, que se conjugam num jogo sofis- eles próprios divididos em três ou cinco tempos
ticado de escalas temporais, espaciais e sociais. distintos. O tempo total é repartido em fracções de
O estudo fala, a este respeito, de “englobamento”. tempo, traduzidas em horas ou mesmo em
A lógica da rotatividade produz um vivo senti- quantidades. “Por exemplo, as 24 horas compreen-
mento de equidade, em permanente equilíbrio didas entre a segunda-feira ao fim da tarde e a
instável, entre duas forças: a da colectividade e a terça-feira também à tardinha, da primeira se-
do indivíduo. Esta ética, ou melhor, este ethos, é mana, são divididas em três partes ou lotes de
sintetizado numa expressão idiomática, constan- valor e tempos desiguais. Chamam-lhes os qui-
temente repetida: “quem está à frente, vai atrás”. nhões. O dia conta por duas partes e a noite por
Trata-se de uma ética que funciona como princípio uma ou um meio-dia (por ser nula a vapotrans-
unificador e como lógica explicativa da “roda” piração)”. Deixo ao leitor o prazer de ler a passa-
(p. 95). Refira-se que esta parte do livro inclui gem (pp. 72-75), onde, num estilo narrativo, se
documentos (róis), uma figura e um quadro- misturam afectos e conceitos, e onde a autora
-síntese, muito úteis para visualizar aquele fenó- invoca um questionamento inflexível dos factos e
meno e sistematizar a demonstração. o seu relato do terreno. Fabienne Wateau estabe-
O segundo caso é o de um “rego” medido em lece, de forma interessante, em torno de uma
fracções de tempo, de que são tratados dois exem- situação concreta, uma ligação entre o “terço” e a
plos, com base num rol de 1912 e numa observação referência meio histórica, meio mítica aos Três
recente. Essas divisões têm o nome de “terços” e Irmãos, entre uma medida estruturante e uma
“quartos” e a sua duração varia em função do dia “origem” significante.
e da noite. De acordo com a hipótese avançada O último caso aborda a repartição de uma
pela autora, o registo escrito é fruto quer da determinada quantidade de água de um tanque
complexidade que o sistema adquiriu, quer, em entre herdeiros. As unidades de tempo – tempo
consequência, do aumento do número de benefi- horário ou segmentado de outra forma – dão lugar
ciários, devido à lei de partilha igualitária de 1867. a uma medida que repousa sobre uma fracção ou
Este documento contém as regras de divisão do uma “parte” do volume da água – variável –
dia, ou melhor, as sucessões temporais que dão existente dentro de uma poça e repartida em meios

201
dias de trabalho. A proporção é aferida através de teoricamente, à transmissão preciputária. Mas há
uma cana entalhada ad hoc, materializando assim um tipo de morgadio que se mantém de facto,
de forma visual as quantidades abstractas (a cana visto que uma boa parte da herança, casas e terras,
é, por outro lado, um dos numerosos procedi- se destina a um “herdeiro favorecido”, através de
mentos materiais, mnemónicos ou simbólicos, assi- uma prática recorrente no Minho, o “terço”. A
nalados na obra: a tecnologia usada remete-nos decisão tomada pelos pais na escolha do filho
para as condutas relacionadas com a água). A me- privilegiado tem como consequência a exclusão
dida, tal como é praticada, é mais do que uma dos restantes, que renunciam aos seus direitos ou
quantificação: ela é relação (proporção) e, even- decidem emigrar.
tualmente, comparação. Também aí o princípio de A partir do exemplo de uma família nobre,
alternância entre beneficiários é respeitado: o cuja genealogia foi estudada desde o século XVII
primeiro a fazer a rega será, no início do próximo até ao século XX, e das suas práticas de trans-
ciclo, o último. A subtileza demonstrada aqui, face missão de direitos sobre a água, Fabienne Wateau
à quantidade de água medida e exprimida faz ressaltar que o casamento consanguíneo ou
oralmente, deve-se à escala da medida ou, mais do homogâmico permite aumentar o património. Ela
que isso, à variação da unidade de referência estabelece ainda mais alguns pontos: “1. a água é
usada para fazer as medições. Isto acontece sem dada preferencialmente às mulheres que vivem e
dúvida por razões práticas e mnemónicas, mas casam na sua freguesia natal; 2. elas transmitem a
também de representação concreta de um valor. sua água às filhas, de preferência; 3. a transmissão
Assim, “se a Emília recebe um quarto de água da é conflitual e delicada, objecto de inúmeras tran-
poça, ela dirá ‘tenho um quarto’; em compensação, sacções e discussões” (p. 125). A herança a favor
se o Abílio só possui um oitavo dessa mesma poça, das filhas tem por consequência a perda do nome
ele não dirá ‘tenho um oitavo’, mas sim ‘tenho de família. Em compensação, as mulheres, por
meio-quarto’” (p. 79). Um quarto de fracção da intermédio da residência matrilocal, “ganham em
unidade transforma-se na unidade das fracções. poder e representação” (p. 131). A partir da recons-
Daqui resulta que, nas situações em que as escalas tituição de genealogias do conjunto dos “her-
de tempo se confundem com o escoamento deiros” ou, consoante os locais, de parcelas de
quantificado da água, o tempo e a água sociali- terra, são postas em evidência linhas gerais de
zados parecem ser, à partida, rigorosamente transmissão de bens que denotam a preferência
exprimidos graças à força da experiência e à sua pelas filhas, e a prática do herdeiro “escolhido”.
repetição (cf. a importante nota 2, p. 82). Por indução, a autora propõe-nos uma “regra
No terceiro capítulo, “Os Laços da Água”, ideal-típica”, articulada em oito pontos, e que se
encontramos uma reconstituição do “parentesco refere às modalidades de transmissão de bens.
de água”, bem como as regras e modalidades de Assim, 75% dos indivíduos da amostra são
transmissão de direitos sobre a água, a partir de parentes entre si: trata-se da “grande família da
um fundo legal de partilha igualitária dos bens. água”, que se reproduz por endogamia e alianças
A transmissão destes direitos cria laços, mas (o “bom casamento”), com a finalidade de fazer
também distinções e tensões. “Transmissão dos crescer riqueza e prestígio. A água liga e religa os
direitos de água e leis de sucessão de bens parecem “herdeiros” entre si, mesmo que sob uma forma
como que alimentar a conflitualidade” (p. conflitual, através da filiação ou da aliança.
101). A autora apresenta uma relação estreita en- Um longo capítulo final é consagrado ao
tre parentesco e conflitualidade. O primeiro conflito, observado a uma escala mais global (a da
permite esclarecer e melhor compreender a sociedade melgacense), e apreendido tanto no
segunda. A passagem pelo parentesco deriva tanto plano empírico como no conceptual.
dos factos como de um ponto de vista meto- A literatura consagrada ao conflito social é pas-
dológico e analítico. sada em revista e discutida, à luz do terreno
Com a extinção do morgadio (conjunto de português. São estabelecidas distinções entre noções
bens transmitidos ao primogénito de uma família conexas: conflito, violência, desafio. A comparação
nobre), surge a lei de repartição igualitária dos com outras culturas, em particular mediterrânicas,
bens (1867). Essa lei aplica-se tanto à aristocracia onde a rivalidade e a honra se conjugam, permite
como aos camponeses e põe fim, pelo menos associar um terreno à operacionalidade de um

202
Recensões

conceito. Para além do conflito centrado em his- tatar a autora depois de um último e recente
tórias de água, o desafio constitui uma marca da regresso ao terreno, talvez a vila não tenha, ela
sociedade estudada. A originalidade do presente própria, posto fim aos seus valores agonísticos.
trabalho consiste, no caso de Melgaço, em mostrar É a tensão conflitual que atravessa esta sociedade
que, se existe a nível local uma conduta agonística, que lhe confere, afinal, a sua complexidade, mas
ela é pensada como exterior ao esquema honra/ também a sua dinâmica.
/vergonha, propriamente mediterrânico. Estabe- Finalmente, encontramos na obra de Fabienne
lecido o quadro teórico, a autora analisa a situação Wateau uma análise notável de tempos e ritmos
melgacense. Vários aspectos favorecem os mo- sociais centrados na água, inscritos nos seus usos,
mentos de conflito. A diminuição relativa da água práticas, técnicas, objectos e gestos.
durante a estação quente não é, por si só, um
Anibal Frias
elemento de irritabilidade colectiva, porque há Bolseiro de Doutoramento (Programa Praxis XXI)
muitas das vezes um excedente de água e, sobre- Group d’Anthropologie Sur le Portugal
tudo, porque aquilo que conta é menos a quan-
tidade de água, e mais o seu valor sociosimbólico
(pp. 163-164). Da mesma maneira, o número
restrito de detentores de direitos sobre a água não MÁRIO MOUTINHO
constitui um caso determinante de conflitos. O INDÍGENA NO PENSAMENTO COLONIAL
O reforço dos constrangimentos que pesam sobre PORTUGUÊS – 1895-1961
a irrigação é, pelo contrário, um factor de tensões. Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000.
As discórdias dizem respeito, usualmente, às
famílias onde existem “herdeiros”. A participação
em actividades idênticas, como é o caso da lim- Mário Moutinho tem publicados vários estudos
peza dos canais, bem como as sociabilidades esti- que dão conta de interesses de investigação muito
vais, com as quais se desenvolve uma represen- diversos, ainda que todos eles relativos ao con-
tação de si e das condutas identitárias, comportam texto nacional. Arquitectura popular, discurso
igualmente fricções inevitáveis. Três estudos de museológico, história da antropologia são algumas
caso detalhados ressituam o fenómeno do conflito matérias que mereceram a sua atenção ao longo
em torno da água à escala do local e do empírico das últimas três décadas.
(pp. 166-186). Em seguida, são abordadas as No livro a que aqui nos referimos – que, de
modalidades do conflito “entre si” e com os passagem, apresenta vários problemas de revisão,
“outros”. A autora refere-se ao jogo de provocação que as Edições Universitárias Lusófonas talvez não
e de insultos visando o trabalho, a propriedade devessem descuidar por força da sua vocação para
transgredida (através da acusação de roubo da a divulgação científica –, Mário Moutinho retoma
água), a família; às “amizades oscilantes”, que a análise do discurso colonial português iniciada
determinam o grupo de aliados, bem como os em textos anteriores. Consulte-se, por exemplo, o
potenciais rivais; ao espaço dos cafés, onde, subcapítulo “Etnologia e Estado Novo: Etnologia
ritualmente, os autóctones e os emigrantes riva- Colonial” do manual Introdução à Etnologia (1980),
lizam entre si, em torno do consumo de álcool. ou o artigo “A Etnologia Colonial Portuguesa e o
Esta lógica agonística estende-se finalmente ao Estado Novo”, publicado em 1982 na colectânea
carro, à casa ou ao telemóvel, exibidos ostensi- O Fascismo em Portugal. Em ambos os textos Mou-
vamente em gestos de desafio, comandados por tinho circunscreve a sua análise ao triângulo Es-
uma procura instável de equilíbrio. Numa última tado Novo, colónias e produção antropológica, por
parte sobre a “arte do desafio”, Fabienne Wateau forma a definir a prestação da disciplina no
conclui dizendo que “O jogo do desafio faz parte conhecimento dos territórios colonizados.
integrante da sociedade melgacense e contribui O Indígena no Pensamento Colonial Português –
para reproduzi-la e, simultaneamente, moderni- 1895-1961, noto, não constitui a reedição do debate
zá-la” (p. 218). Esta modernização parece resultar sobre o reforço das relações entre o saber antro-
tanto desta tensão social e ética, como da abertura pológico e o regime colonial de António de Oli-
em relação a Espanha e até mesmo à Europa. Se veira Salazar que, sobretudo a partir da década de
Melgaço parece transformar-se, como pôde cons- 50, face a pressões anticolonialistas internacionais,

203
necessitou de legitimar “cientificamente” a pre- Com efeito, entre as propostas formuladas por um
tensa acção civilizadora dos portugueses nas coló- grupo de teóricos do colonialismo surgido na
nias, patrocinando para o efeito a realização de metrópole em finais do século XIX (António Enes
missões de estudo, relatórios e monografias etno- e Rui Ulrich são as figuras destacadas pelo autor)
gráficas que, de alguma forma, atestassem a e o começo da luta armada em Angola, desen-
“primitividade” dos africanos. Ainda que essa volvem-se diferentes projectos políticos para as
linha de pesquisa seja pontualmente recuperada ao colónias. De lugares de destino de degredados (só
longo do livro, parece-me que o autor envereda em finais de oitocentos foi decretada a abolição
por um projecto cujo âmbito temático, cronológico parcial do degredo na província de Moçambique),
e bibliográfico se apresenta mais ambicioso. Passo as colónias portuguesas tornaram-se paulatina-
a explicitá-lo, entregando ao leitor especializado a mente objecto de inúmeros congressos e exposi-
responsabilidade de ajuizar acerca da exequibili- ções, de um concurso literário, justificaram a
dade da obra no espaço de um só volume com criação de instituições responsáveis pela formação
pouco mais de duas centenas e meia de páginas. e divulgação da vida colonial (a Sociedade de
Com respeito às fontes bibliográficas, Mou- Geografia de Lisboa, fundada em 1875, e a Escola
tinho apresenta-nos um conjunto vasto e hetero- Superior Colonial de 1906 são dois exemplos), de
géneo de documentos elaborados por diversas periódicos especializados, como de outras acções
personalidades que, nos planos académico, político cuja enumeração poderia estender-se. No entanto,
e literário, estabeleceram uma convivência profis- e reserva feita a esta leitura necessariamente
sional ou afectiva com as colónias portuguesas. sumária da história do colonialismo português,
Ensaios históricos, relatórios, textos legislativos, pretendo apenas sublinhar o percurso ideológico
obras de ficção colonial e material iconográfico for- que medeia entre o sentimento de desinteresse que
mam os grupos de uma possível tipologia das caracterizou a relação entre a metrópole e as
inúmeras fontes de pesquisa convocadas ao longo províncias ultramarinas até aos anos finais do
do estudo. século XIX e as acções de propaganda colonial
No entanto, o autor, privilegiando a análise promovidas pelo regime do Estado Novo, nomea-
de diversos textos contemporâneos do damente a célebre Exposição do Mundo Português
colonialismo português, referindo-os ou citando-os (1940), que procurou projectar interna e externa-
recorrentemente, descura o diálogo, a polémica, ou mente as colónias como motivo de orgulho
simplesmente a exposição das reflexões teóricas nacional.
que marcam a agenda das academias. São vários Ao longo dos anos que enquadram a inves-
aqueles antropólogos que têm desenvolvido traba- tigação de Moutinho, o colonialismo português
lhos sobre a história e a cultura dos espaços não foi efectivamente homogéneo no que concerne
coloniais (George W. Stocking, Jr., Talal Asad, aos discursos hegemónicos circulantes e às práticas
Johannes Fabian, Nicholas Thomas), como vários coloniais empreendidas pelos diferentes estados
são também aqueles estudiosos que no domínio da governativos. Mesmo durante o período de vigên-
crítica literária mostram interesse pela análise da cia do regime do Estado Novo é possível iden-
retórica do colonialismo (Edward W. Said, Homi tificar claramente fases diferenciadas de actuação
K. Bhabha, Henry Louis Gates, Jr., Mary Louise colonial, como em publicação recente nos demons-
Pratt). Perante a riqueza da pesquisa de Moutinho, trou a historiadora Cláudia Castelo (1999, “O Modo
causa alguma perplexidade que nenhum destes Português de Estar no Mundo”: O Luso-Tropicalismo
eixos da crítica colonial contemporânea seja e a Ideologia Colonial Portuguesa [1933-1961]). Talvez
considerado, num estudo que, afinal de contas, ciente da complexidade que a reconstrução nar-
partilha com eles o objecto comum da ideologia e rativa do colonialismo português envolve, Mário
da representação coloniais. Moutinho evita a sua abordagem cronológica e
Com relação ao âmbito cronológico, Mou- opta por uma leitura crítica das fontes biblio-
tinho contempla o período da história colonial gráficas, direccionada para um conjunto alargado
portuguesa compreendido entre 1895 e 1961. de temas que dão conta das representações etno-
Surgem pois em cena três regimes governativos cêntricas e hierarquizadoras do poder colonial
(monarquia, I e II repúblicas) ou, se quisermos, sobre os negros africanos. Na exploração de cada
modos diferenciados de pensar e gerir o império. tema, que adiante nomearei, o autor avança e

204
Recensões

recua no tempo, assim como reúne num mesmo gueses e africanos ou o fracasso das políticas de
passo argumentativo textos de naturezas literárias povoamento branco são alguns casos apresentados
distintas, dados à estampa em contextos coloniais pelo autor.
também eles distintos. Na perspectiva do leitor, o A reflexão em torno da retórica do colonia-
estudo de Moutinho exibe uma dinâmica exposi- lismo dá lugar, na segunda parte, à exposição
tiva considerável, que beneficia de engenhosa utili- crítica dos direitos e deveres do nativo africano.
zação das fontes. Mas ao mesmo tempo confina A definição do estatuto jurídico dos indígenas
numa narrativa que, embora sumarenta, ou mes- (objecto de diploma em 1926, seguindo-se as refor-
mo excessivamente generosa na disposição das mulações de 1929 e 1954), o patrocínio de missões
fontes bibliográficas, se revela parca no comentário católicas ao terreno, as normas de higiene incuti-
aos contextos particulares da actualidade colonial das, o ensino da língua portuguesa, a criação de
a que esses documentos se reportam. escolas rurais e do imposto indígena, o trabalho e
São duas as partes que estruturam o estudo de o serviço militar compelidos constituem os temas
Moutinho: “Justificar” e “Explorar”. Na primeira, a partir dos quais Moutinho pensa as estratégias
o autor começa por examinar os princípios de controlo e de repressão das populações pelo
legitimadores da presença portuguesa nas coló- poder colonial.
nias: necessidade de civilização e de evangelização À semelhança do que acontece com os cam-
dos negros primitivos e gentios, por um lado, pos bibliográfico e cronológico trabalhados, tam-
cumprimento do destino histórico e missionário bém a profusão e a diversidade de temas contem-
do povo português, por outro. Prosseguindo na plados inviabilizam a sua reflexão aprofundada.
análise aos discursos colonialistas, o autor enve- De qualquer modo, Mário Moutinho presta um
reda pela abordagem de um vasto rol de imagens contributo valioso à compreensão da história colo-
e estereótipos relativos à condição física e moral nial portuguesa. Em primeiro lugar, porque,
dos indígenas africanos. O indígena primitivo, apesar de não serem pacíficas as discussões em
insubmisso, terrorista, lascivo, indolente, antropó- torno das possibilidades de compatibilização entre
fago, o bom indígena, constituem alguns dos o trabalho científico e a acção política, merece
temas eleitos por Moutinho e que, no conjunto, saliência o facto de o ponto de vista de Mário
reflectem as relações de poder assimétricas esta- Moutinho ser subscrito pelo irmão do nacionalista
belecidas pelo poder colonial com os territórios guineense Amílcar Cabral, Luís Cabral, no curto
ultramarinos. A primeira parte do estudo culmina prefácio juntado à obra. Aparentemente o outro
com a exposição das percepções sobre o colono lado dos regimes coloniais revê-se nos seus argu-
branco, também elas presentes nos discursos de mentos, reconhecendo-lhes a justeza de confron-
propaganda colonial. Mário Moutinho não cinge, tarem evidências históricas. Em segundo lugar,
pois, a sua investigação às representações da porque compreendeu que o colonialismo não é um
alteridade. Procura, em igual modo crítico, des- fenómeno meramente histórico, pelo que devemos
montar os atributos pretensamente constitutivos procurar em que medida se encontra presente nos
da identidade do povo português, sublinhando-se discursos dominantes na actualidade sobre os
aqui a produção endógena das imagens de huma- espaços ex-colonizados (outros na antropologia,
nismo e miscigenação que supostamente caracte- como Nicholas Thomas, o compreenderam). Tal-
rizaram a colonização portuguesa. De modo a vez por isso, para Moutinho, o balanço político
sustentar o desfasamento existente entre o discurso sério sobre os efeitos da colonização na vida
e a realidade coloniais, Moutinho recorre a quotidiana dos africanos, nas eras colonial e pós-
exemplos históricos que deitam por terra o -colonial, não seja compatível com os actuais
propagandeado carácter fraterno e benévolo da discursos da lusofonia.
colonização portuguesa. A criação em 1907 de
Leonor Pires Martins
reservas de indígenas, o debate político e acadé-
Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE)
mico sobre os malefícios da mestiçagem, o número Bolseira do Programa Praxis XXI
exíguo de casamentos celebrados entre portu-

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