acompanhou, ou mesmo par- pansão horizontal, como a colonização
Q uem ticipou do debate sobre a questão européia da América, ou vertical, como ecológica na década de 1970, recorda a difusão da produção mecanizada e do da sua radicalidade e, em muitas situa- consumo de combustíveis fósseis, fun- ções, da sua agressividade. Os ecologis- damentaram a idéia de um rompimento tas adotavam um discurso salvacionista, das barreiras físicas ao desenvolvimento falando em “fim do futuro”, “utopia ou e alimentaram a hegemonia de corren- morte”, “círculo que se fecha”, “antes tes de pensamento político e econômi- que a natureza morra” e “projeto para co, à esquerda ou à direita, calcadas na a sobrevivência”. Uma postura desa- idéia do crescimento ilimitado e da su- fiadora que não se limitava aos grupos peração do reino da necessidade. Não é contraculturais ou de nova esquerda, de estranhar, portanto, a agressividade já que também se expressava na obra da resposta às críticas ecologistas. Em- de autores perfeitamente inseridos e presas de grande ou pequeno porte des- respeitados no ambiente acadêmico de denharam dos argumentos ecológicos seus países, como Barry Commoner, e reagiram aos inimigos do progresso Paul Ehrlich, Jean Dorst e René Du- e da geração de empregos. Intelectuais mont. O tema da escassez e da sobre- comprometidos com o paradigma do vivência, tão presente no pensamento crescimento ilimitado escarneceram político pré-moderno, de Aristóteles dos “profetas da ruína” e defenderam, a Hobbes, parecia haver retornado ao como no título de um livro de Julian mundo ocidental de maneira dramá- Simon, a continuada existência de uma tica. Novos dados empíricos e novos “Resourcefull Earth”. paradigmas conceituais desafiavam as Não é difícil perceber a mudança de bases mesmas do funcionamento das contexto observada a partir da década sociedades urbano-industriais e reque- de 1980. O fato notável é que, sem uma riam, mais do que políticas específicas, transformação decisiva na tendência dos uma verdadeira transformação civiliza- indicadores globais de crise ambiental, tória. muito pelo contrário, o debate perdeu É importante observar que esse tipo radicalidade e situou-se cada vez mais de crítica radical emergia no momento na proximidade do centro político. As em que o mundo ocidental auferia os causas dessa mudança, mais do que na resultados de uma seqüência de décadas superação dos problemas apontados na gloriosas de crescimento econômico e década de 1970, devem ser buscadas de desenvolvimento social no pós-guer- no plano institucional e intelectual. Em ra, construindo o que foi classificado primeiro lugar, criaram-se canais insti- como “sociedades afluentes”. Emer- tucionais, do nível global ao local, para gia também, em sentido histórico mais assumir e enfrentar, mesmo que de for- profundo, na rebarba do chamado “500 ma parcial, os problemas ambientais year-boom”, quando processos de ex- cuja realidade foi crescentemente reco-
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nhecida. O próprio setor empresarial, tentável passou a significar o que cada de maneira algo tardia, assumiu uma setor ou grupo social gostaria que ele posição conciliatória e reformista, em significasse (de acordo com os diferen- maior ou menor escala. Seja no âmbi- tes recursos políticos e as diferentes ca- to da imagem pública, em muitos mo- pacidades estratégicas de cada um deles mentos calcada na simples “maquia- na batalha pela opinião pública). Talvez gem verde”, seja no das mudanças reais a definição mais irônica e divertida foi nos padrões de produção, promovidas dada pelo representante de uma peque- pela chamada “modernização ecológi- na ONG durante os debates da Eco-92: ca”, ocorreu um claro esforço político se o “desenvolvimento” podia ser en- de negação da clivagem capital versus tendido como “qualquer investimento planeta. A criação e difusão social do capitalista”, o desenvolvimento susten- conceito de “desenvolvimento susten- tável significava “qualquer investimen- tável”, no entanto, a partir de 1979, to capitalista de uma empresa dotada foi um fator decisivo, tornando-se ao de um bom departamento de relações mesmo tempo criador e criatura dessa públicas”. mudança de contexto. Ocorre que, como a história mo- Como é comum entre os concei- derna nos ensina, os conceitos-chave tos-chave que servem como ímãs para do centro político não possuem dura- o centro político, possuindo grande ção eterna, especialmente quando não poder de agregação e de reorganiza- conseguem organizar um enfrenta- ção positiva do embate social e ideo- mento efetivo, mesmo que não defini- lógico, a idéia de “desenvolvimento tivo, dos problemas concretos que lhes sustentável” caracteriza-se por uma deram origem. Na falta de uma subs- forte abertura semântica. Na perspicaz tância real, em relação à capacidade de formulação de Eric Hobsbawm, citada formulação e de ação política, os rea- no livro de José Eli da Veiga que será linhamentos de centro costumam ser comentado adiante, o conceito é “con- frágeis e provisórios. O resultado, por venientemente sem sentido”. Mais do vezes, pode ser a emergência de um ra- que buscar rigor conceitual, porém, é dicalismo ainda mais agressivo. Mas no preciso entender o contexto político. que se refere ao debate sobre o desen- Nas palavras do próprio José Eli, volvimento sustentável, ao menos no tudo o que é ambíguo e vago no uso curto prazo, esse não parece ser o ce- da expressão “desenvolvimento sus- nário mais provável. A tese logrou ob- tentável” pode ser entendido como ter aceitação ampla, quase hegemônica, opção deliberada por uma estratégia de institucionalização da problemáti- neste início de século XXI. Ou seja, o ca ambiental no domínio das organi- pressuposto de que é possível encon- zações internacionais e dos governos trar um caminho positivo de superação nacionais. do colapso ambiental, de continuidade Mas o fato é que o alto nível de im- duradoura do processo de globaliza- precisão, aliado a uma poderosa expan- ção, sem abrir mão das conquistas reais são no uso social do conceito, acabou (mesmo que profundamente desiguais) por transformá-lo em um “assim é se da civilização moderna. Não resta dú- lhe parece”. O desenvolvimento sus- vida, contudo, de que a demonstra-
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ção prática dessa tese sofrerá cada vez no que acabou de ser dito, seria con- maiores desafios, mesmo em relação traproducente. Por mais que seja pro- à precisão conceitual e programática, blemático e frágil, foi ele que triunfou nos próximos tempos. Pode ser, aliás, historicamente (ao menos no curto que ela se revele ilusória, como indica prazo). O desafio que realmente im- o ceticismo radical das recentes pre- porta é o de enfrentar os prospectos de visões de James Lovelock sobre o ce- um desenvolvimento humano eqüitati- nário de uma humanidade reduzida a vo no seio de um planeta cuja comple- quinhentos milhões de pessoas vivendo xa ecologia conhecemos cada vez mais. na região ártica, que continuará mais Para isso, é preciso aproximar criativi- ou menos habitável no rastro do aque- dade e realismo na busca de novos pro- cimento global... jetos políticos que superem o utopismo De todo modo, a aposta positiva inconseqüente e a complacência com o vem inspirando esforços intelectuais status quo da globalização realmente e políticos legítimos e relevantes. Um existente. Ao discutir a substância do dos eixos desse esforço encontra-se na desenvolvimento sustentável, reaparece percepção de que os elementos políti- o cenário de conflitos e disputas sociais cos positivos da aceitação generalizada e ideológicas que o consenso superficial do conceito de desenvolvimento sus- havia “superado”. Mas é exatamente tentável – o consenso teórico de que nesse mundo real que os caminhos de o desenvolvimento humano precisa de sustentabilidade, se é que eles existem, uma base geográfica e biofísica sólida precisam ser construídos. e segura, superando o viés flutuante e No contexto intelectual brasileiro, a excessiva abstração de muitas teorias um dos autores que vêm enfrentando sociais e econômicas contemporâneas com mais consistência esse desafio é – podem se perder no blá-blá-blá e na José Eli da Veiga. Em seu livro Desen- incapacidade política dos seus defen- volvimento sustentável: o desafio do século sores. Em outras palavras, a impreci- XXI, de 2005, e agora nesse Meio am- são que foi provisoriamente eficaz no biente e desenvolvimento, voltado para sentido de acumular adesões políticas um público mais amplo, manifesta-se amplas está se esgotando. A superficia- um esforço intelectual notável, tan- lidade, seja teórica seja política, não é to no sentido do rigor teórico quanto sustentável em uma situação histórica no da responsabilidade humana dian- na qual persistem, na verdade se agra- te dos dilemas que o momento atual vam, problemas dramáticos como a coloca para a nossa estranha espécie. deterioração das condições ecológicas Esse Homo sapiens que, como gostam planetárias e a incapacidade do de- de lembrar Edgar Morin e Leonardo senvolvimento global para superar as Boff, muitas vezes se parece mais com enormes privações da maior parte da um Homo demens. humanidade, engessado que está em Na contribuição de Veiga ao deba- uma situação estrutural de obscena de- te, aparecem duas qualidades que já se sigualdade nos padrões de consumo. manifestavam na carreira intelectual do Mesmo assim, negar o conceito de autor como economista rural e analista desenvolvimento sustentável, com base das mazelas da realidade agrária bra-
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sileira e mundial: o enfoque histórico do mundo. Autores que acabaram so- na análise econômica e a perspectiva terrados pela hegemonia neoclássica e de longa duração (como exemplifica- monetarista. Ou seja, a economia cres- do, por exemplo, no livro O desenvol- centemente abstrata, mais do que uma vimento agrícola: uma visão histórica, verdade cientifica evidente, é fruto de de 1991). Infelizmente, diz o autor, uma vitória político-intelectual histori- “a maioria dos economistas foi levada camente datada. a acreditar que a ciência que deveriam Na qualidade de historiador am- praticar não é histórica” e que “em vez biental, entretanto, uma área que, entre de atentarem para as relações entre his- outros fundamentos, busca justamente tória das sociedades humanas e histó- subverter o horizonte estreito de seis ria natural, preferem que a economia mil anos estabelecido pela historiogra- mimetize ciências fundadas na experi- fia para a superação da chamada “pré- mentação, como a física, a química e a história” – costumamos ironizar que a biologia molecular”. Seria interessante história, assim como as ciências sociais, lembrar, nesse ponto, como escreveu em geral, são as únicas que continuam William McNeill, decano dos historia- presas ao tempo bíblico –, me agrada dores globais norte-americanos, a iro- muito o diálogo do autor com a longa nia de que até nessas últimas ciências duração. Concordo plenamente com a vem-se adotando cada vez mais um en- tese de que a discussão sobre a susten- foque histórico, reconhecendo a “seta tabilidade humana no planeta – pois é do tempo” como fundamental para en- disso que se trata, já que a Terra seguirá tender a realidade física e química do seu curso de qualquer forma, com ou universo e do planeta. sem nossa presença, por mais alguns Grande parte do pensamento econô- bilhões de anos – requer uma aborda- mico, contudo, permanece encastelada gem ampla sobre a trajetória de nossa em uma pretensa universalidade abs- espécie, para além dos poucos séculos trata e desencarnada que de nada serve de experimento urbano-industrial. É o para pensar o imperativo da sustenta- que Veiga faz, por exemplo, no capítulo bilidade (tão diversificado quanto a re- “Uma longa história”, que busca sinte- alidade do planeta e da humanidade). tizar cerca de dez mil anos de trajetó- Cabe lembrar, além disso, já que senti ria das sociedades humanas na ecosfera falta no trabalho de uma referência ao terrestre. Uma macrovisão que revela o livro de Joan Martinez Alier que trata fato de que processos rápidos de cresci- exatamente do assunto – La economia y mento econômico, muitas vezes acom- la ecologia, publicado em espanhol em panhados de problemas ambientais lo- 1991 –, que uma corrente importante cais, são bem mais antigos do que se de pensadores econômicos do século imagina. Mais ainda, quando falamos XIX e início do XX, como Podolinsky, hoje de desastres ecológicos e colapsos Clausius, Geddes e Pfaundler, estava civilizatórios, não estamos mais falando buscando dialogar com a biologia e a de suposições teóricas. A historiografia termodinâmica, construindo uma te- vem reconstituindo uma série de exem- oria da produção e da circulação de plos concretos do passado, que preci- bens mais colada na realidade biofísica sam ser examinados. A trajetória efetiva
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a sutileza de assim perceber, o caráter tateante da reflexão atual sobre desen- volvimento e meio ambiente. Mais do que apresentar a “verdade” sobre o de- senvolvimento sustentável, o livro re- vela a existência de uma busca coletiva, um esforço de muitas vozes e práticas no sentido de encontrar caminhos eco- nômico-ambientais dotados de maior sanidade humana e racionalidade eco- lógica (não apenas instrumental, mas principalmente substantiva). Concordo com o autor que, por mais que possamos admitir os elemen- tos culturais e ideológicos, incluindo VEIGA, J. E. da. Meio ambiente e etnocêntricos, presentes na idéia de desenvolvimento. São Paulo: Senac, “desenvolvimento”, ela não perde seu 2006. 184p. (Col. Meio Ambiente, 5). valor político no ambiente de um mun- do profundamente desigual e cheio de privações em relação a saúde, educa- da humanidade, mesmo considerando ção, condições de vida etc. O que está os seus pontos de descontinuidade e vivo na idéia do desenvolvimento é jus- inflexão radical, deveria ser considera- tamente o direito da humanidade, em da a base mais sólida para pensarmos o suas diferentes expressões, melhorar desenvolvimento sustentável. suas condições de vida e realizar suas Cabe mencionar que o livro se cons- potencialidades. O que está morto, ao trói a partir de um conjunto de discus- contrário, entre tantos outros aspectos sões pontuais, organizadas em seções. superados da fé desenvolvimentista, é a Ao contrário de adotar uma estratégia ilusão teórica de que flutuamos acima argumentativa seqüencial, com come- da natureza, de que o imperativo ético ço, meio e fim, ainda mais em se tra- já mencionado seja realizável por meio tando de um livro para o grande pu- de um instrumental de pensamento blico, Veiga apresenta um mosaico de antropoexclusivista (já que, a meu ver, dados, indicadores e formulações de o pensamento humano é inescapavel- autores cruciais, sempre temperado por mente antropocêntrico). comentários e reflexões pessoais. Com É fundamental reconhecer que to- base nesse método, discute uma ampla das as nossas ações ocorrem sempre gama de temas, começando com uma através de lugares e recursos específicos avaliação crítica dos novos indicadores da ecosfera de um planeta determina- de desenvolvimento humano e termi- do, dotado de características e limites nando com uma reavaliação do pró- próprios, fundado em redes biofísicas prio conceito de desenvolvimento. O complexas, ao mesmo tempo podero- resultado logra passar para os leitores, sas e frágeis. Repensar de forma crítica pelo menos para aqueles que tenham e aberta, com base nesses pressupostos,
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as linhas gerais da ética e da política do desenvolvimento humano, abrindo mão de dogmas e “verdades” fáceis, é a tarefa essencial delineada por esse novo livro de José Eli da Veiga. Trata-se de uma contribuição importante para que a temática seja tratada entre nós com necessária seriedade e preparo intelec- tual. Cada leitor bem informado, por certo, pode discordar de pontos especí- ficos, ou da maneira como determina- das situações históricas e correntes teó- ricas foram abordadas no trabalho. No cômputo geral, porém, as produções recentes do autor devem ser saudadas como um verdadeiro salto de qualida- de na reflexão brasileira sobre o tema.
José Augusto Pádua é professor do Depar-
tamento de História da Universidade Fe- deral do Rio de Janeiro e autor do livro Um sopro de destruição: pensamento políti- co e crítica ambiental no Brasil escravista – 1786-1888 (Jorge Zahar Editor, 2002). @ – jpadua@terra.com.br