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A Logística Enxuta – CEL Out/06

Kleber Figueiredo

Introdução

O termo enxuto, como tradução de “lean”, surgiu na literatura de negócios para


adjetivar o Sistema Toyota de fabricação. Tal sistema era lean por uma série
de razões: requeria menos esforço humano para projetar e produzir os veículos
necessitava menos investimento por unidade de capacidade de produção,
trabalhava com menos fornecedores, operava com menos peças em estoque
em cada etapa do processo produtivo, registrava um menor número de
defeitos, o número de acidentes de trabalho era menor e demonstrava
significativas reduções de tempo entre o conceito de produto e seu lançamento
em escala comercial, entre o pedido feito pelo cliente e a entrega e entre a
identificação de problemas e a resolução dos mesmos.

A fabricação enxuta passou a ser conhecida como fabricação “just-in-time” e


sua adoção, por inúmeras empresas em todo o mundo, obedecia a uma série
de requisitos, dentre os quais podem ser mencionados a mudança de produção
empurrada para a produção puxada, o desenvolvimento de fornecedores, a
eliminação de atividades que não agregam valor, a delegação de poder aos
empregados para que propusessem idéias que conduzissem a melhorias nos
produtos e nos processos e o envolvimento dos clientes no desenvolvimento de
produtos.

Como a repercussão econômica mais visível da adoção do conceito lean


sempre foi a redução de estoques, através de entregas mais freqüentes e
diminuição dos lotes de compra e/ou de fabricação, surgiu no âmbito da
logística a premissa do “ressuprimento enxuto”, expressão que erradamente
muitos passaram a substituir por “logística enxuta”. Enquanto o ressuprimento
enxuto é um conceito limitado, por considerar apenas as operações de
abastecimento, que pode ser inadequado por não avaliar corretamente todos
os trade-offs envolvidos em sua adoção (aumento dos custos de transportes ou
ineficiências provocadas nos sistemas de fornecedores e clientes), o conceito
de logística enxuta é mais amplo e envolve iniciativas que visam a criação de
valor para os clientes mediante um serviço logístico realizado com o menor
custo total para os integrantes da cadeia de suprimentos.

Em diversas publicações sobre as dificuldades da adoção do conceito de


Supply Chain é possível encontrar referências a conflitos entre potenciais
parceiros devido a fatores como atrasos nas entregas, erros na documentação,
embalagens inadequadas, etc. Todos estes fatores ocasionam perdas de
tempo, aborrecimentos, retrabalhos e desconfianças, entre outros problemas,
comprometendo seriamente a constituição de uma cadeia.
O pensamento enxuto, quando aplicado, procura fazer com que as partes
envolvidas trabalhem juntas para eliminar essas fontes de desperdícios.

Este artigo procura abordar o conceito de logística enxuta e, mais


especificamente, o serviço logístico enxuto. Ilustraremos, através de uma série
de exemplos, como empresas de diversos segmentos têm aproveitado as
lições extraídas dos sistemas lean para desenvolver vantagens competitivas
através de seus sistemas logísticos orientados à criação de valor para seus
clientes e demais integrantes da cadeia de suprimentos da qual fazem parte.

Soluções enxutas para o serviço logístico

Embora muitos autores tenham escrito sobre “Lean Manufacturing” e seus


efeitos, Womack e Jones, desde o best seller “A máquina que mudou o
mundo”, lançado em 1990, são os pesquisadores que mais têm acompanhado
a evolução do conceito lean e as diferentes conotações e aplicações que o
conceito passou a ter no mundo empresarial. Em 1994, no artigo “From Lean
Production to the Lean Enterprise”, procuram estender o conceito a toda
organização, chamando atenção para os processos que não geram valor para
o cliente e como qualquer empresa, em qualquer setor, em qualquer país, pode
trabalhar na redução de desperdícios.
Em 2003, talvez percebendo o surgimento de diversas “receitas” para colocar
em prática o conceito lean, aqueles autores lançaram o livro “Lean Thinking”,
com sua proposta de cinco princípios para ajudar as empresas na adoção do
conceito como uma maneira de pensar o trabalho e não como uma caixa de
ferramentas.

Na obra mais recente (Lean Solutions, publicada em 2005), Womack e Jones


introduzem o conceito de “Consumo Enxuto”. A idéia não é a de que os clientes
comprem menos e sim que tenham menos dificuldades, menos aborrecimentos
no momento de usar, de consumir os produtos e serviços que adquirem. Então,
assim como as empresas adotaram práticas com o objetivo de eliminar
ineficiências em seus processos de produção, seria o momento, agora, de
pensar em iniciativas que proporcionem aos clientes uma experiência de
compra e/ou consumo mais eficiente e com menos sacrifício. Os princípios do
consumo enxuto estão na figura 1:

PRINCÍPIOS DO CONSUMO ENXUTO


Solucionar totalmente o problema do cliente, assegurando que todos
os produtos e serviços funcionem e que funcionem juntos.
Não desperdiçar o tempo do cliente.
Oferecer exatamente aquilo que o cliente quer.
Oferecer o que o cliente quer exatamente onde ele quer.
Oferecer o que o cliente quer, onde ele quer e exatamente quando ele
quer.
Agregar continuamente soluções para reduzir tempo e aborrecimentos
do cliente.

Figura 1 – Os princípios do consumo enxuto

Fonte: Womack and Jones, Lean Solutions, Free Press, 2005


Embora os princípios acima tenham sido enunciados pensando no consumidor
final, eles são perfeitamente adaptáveis para todo tipo de cliente; mais ainda,
se pensarmos que toda empresa pertence a uma cadeia de suprimentos,
podemos, em alguns princípios, incluir os fornecedores como alvo das
iniciativas enxutas. Assim, por exemplo, se determinada empresa examinasse
seu processo de recepção de mercadorias, poderia encontrar maneiras de não
desperdiçar o tempo de motoristas e veículos dos fornecedores ou dos
prestadores de serviços que realizam o transporte inbound.

O fabricante de móveis, que abastece as lojas onde seus produtos são


vendidos, saberia que de nada adianta entregar ao cliente as mesas que este
encomendou se as cadeiras, que também fazem parte do pedido, não tiveram
sua fabricação concluída no prazo acordado.

Vejamos, através de exemplos, como alguns dos princípios do consumo enxuto


podem ser encontrados em soluções logísticas pensadas para tornar eficiente
a experiência de clientes.

Solucionar totalmente o problema do cliente

A Martin-Brower McDonald’s é a divisão da MB Brasil responsável


exclusivamente pela ligação e operação logística entre fornecedores da rede
McDonald’s e os mais de 500 estabelecimentos espalhados em todo o Brasil. A
empresa procurou entender desde o início os critérios competitivos de seu
cliente: consistência (os produtos vendidos nas lojas são sempre iguais),
rapidez (a empresa atua no setor de fast food) e preço (os produtos
McDonald’s não são os mais baratos do mercado, mas há uma preocupação
em reduzir custos para que os preços não se distanciem dos praticados pelos
concorrentes).

Para que seu cliente tenha sucesso junto a seus clientes, a MB desenvolveu
um projeto de serviços logísticos que cotidianamente persegue aqueles
critérios competitivos:

 Junto com os principais fornecedores (carnes e pães), criou em São


Paulo o condomínio Food Town, que reúne as instalações fabris
daqueles fornecedores e o principal centro de distribuição da MB, onde
são processados os pedidos vindos das lojas e dos outros centros de
distribuição da empresa. Todos os produtos necessários para abastecer
as lojas (à exceção dos refrigerantes) convergem para o Food Town. O
objetivo do projeto foi garantir a sincronia necessária para atender
rapidamente aos pedidos recebidos.
Cada loja fixa suas “janelas de serviço” e a periodicidade dessas
entregas (duas a três por semana, dependendo da loja) é um dos
importantes indicadores utilizados pelo McDonald’s para medir o
desempenho da MB.

 Também com o objetivo de sincronização (atendendo ao princípio de


Womack e Jones de que “os produtos precisam funcionar e funcionar
juntos”), a grande maioria dos caminhões da MB possui três
compartimentos em temperaturas distintas para acomodar diferentes
tipos de necessidades das lojas, com o objetivo de minimizar o número
de entregas e diminuir, também, a probabilidade de que alguns produtos
cheguem e outros não.

 Com o objetivo de evitar erros tanto na emissão como no recebimento


de pedidos, a MB desenvolveu o formulário eletrônico para envio e
recepção dos pedidos via internet.

 Esta medida reduziu drasticamente os retrabalhos, entregas urgentes e


falta de mercadoria nas lojas.

 A MB instalou um sistema ERP com módulos de previsão de vendas,


recebimento de pedidos, controle de estoques próprios e dos
fornecedores, relatório de vendas por loja e acompanhamento diário dos
indicadores de desempenho.

 Para otimizar o número de caixas de produtos a serem transportadas


por caminhão e por rota, a empresa adquiriu um programa roteirizador
que determina, em função dos pedidos a serem entregues, a melhor rota
para o veículo.

 A MB mantém um Customer Service 24 horas, sete dias na semana,


para atender a emergências das lojas e dos motoristas no caso de haver
algum problema em rota.

O McDonald’s paga os custos operacionais declarados pela MB e controla a


parceria mediante um conjunto de indicadores que persegue a eficiência
operacional do parceiro. Através de medidas como o giro do estoque, o número
de funcionários MB por restaurante atendido, o percentual de pedidos sem erro
sobre o total de pedidos, o número de caixas entregues por rota, dentre outros,
o McDonald’s garante que, através de uma logística enxuta, a MB possa
solucionar totalmente o seu problema.

Por atuar num mercado maduro, com intensa concorrência, o McDonald’s está
sempre pensando em promoções, novos produtos, etc. A MB não é apenas um
operador que abastece as lojas; é um operador logístico integrado que
administra a inteligência logística da cadeia, desenvolvendo soluções que
dêem respostas aos desafios enfrentados pelo cliente, perseguindo o custo
total mínimo para todos os integrantes da cadeia.

Embora o exemplo acima tenha procurado ilustrar o primeiro princípio do


consumo enxuto, podemos observar que o serviço logístico proporcionado pela
MB McDonald’s está alinhado com vários outros princípios.

Não desperdiçar o tempo do cliente (e de fornecedores, prestadores de


serviços...)

A noção antiga de desperdício estava muito relacionada com materiais que se


perdem, que não podem ser reaproveitados, algo muito tangível e que a
contabilidade precisava registrar como perdas dos processos industriais. Mas e
o tempo mal utilizado? Tempo pago aos empregados, mas não consumido de
forma útil porque faltou material, ou porque a etapa anterior não terminou sua
parte, ou porque o supervisor está resolvendo um problema no outro prédio e
os empregados esperam ordens, ou, ainda, porque a máquina quebrou e é
preciso esperar o pessoal da manutenção, etc.? A fabricação enxuta procurou
reduzir todos esses desperdícios, projetando processos que procuram otimizar
o uso da mão-de-obra, estabelecendo sincronismos, empregando o conceito de
mão-de-obra multifuncional, fazendo com que um empregado possa trabalhar
em outras tarefas quando a demanda pela sua atividade diminui ou
temporariamente não existe.

Estas mesmas ações podem ser levadas aos serviços, mas sua adoção tem
sido muito lenta. Quanto tempo o cliente perde na conexão entre dois vôos
porque não existe sincronia entre os processos? Quanto tempo o motorista e
seu veículo ficam parados porque a operação de recepção é mal projetada ou
porque quem precisa assinar o recibo não está presente? Quanto tempo se
perde para desembarcar a mercadoria no porto? Os sistemas logísticos estão
cheios de exemplos relacionados com a não obediência desse princípio.

Como eliminar o desperdício de tempo? A palavra-chave é processo. É


preciso mapear todas as atividades que precisam ser realizadas para que
aquela operação ocorra no menor tempo possível. O que pode ser feito em
paralelo? Quais são as atividades críticas, aquelas que podem causar o
atraso? Vejamos um exemplo bem conhecido nos dias de hoje. No projeto do
serviço de qualquer uma dessas companhias aéreas low cost/ low fare, que
atualmente existem em quase todos os países, há uma orientação
importantíssima: reduzir o tempo de permanência do avião em solo. Quem já
voou pela GOL pode ter observado alguns procedimentos que procuram
eliminar o desperdício de tempo:

 A preocupação em limpar o avião antes do pouso, pedindo, inclusive, a


ajuda dos passageiros. Essa limpeza fica facilitada pela natureza dos
produtos servidos a bordo e pela não distribuição de jornais. A tarefa de
limpeza é uma das que podem comprometer o tempo de permanência
do avião no solo;

 A preocupação em avisar o passageiro que o avião que vai efetuar seu


vôo já está no solo. Isto evita que os passageiros se distanciem e, no
momento do embarque, todos estão por perto, agilizando a operação;

 O pedido para que embarquem antes os passageiros cujos assentos


estão na parte de trás da cabine. A acomodação dos passageiros e de
sua bagagem de mão é uma atividade crítica. Em alguns aeroportos, o
controle da bagagem de mão é rigoroso; bagagens de determinado peso
e/ou volume não são permitidas porque podem levar tempo para serem
acomodadas;
 Os empregados são multifuncionais; quem trabalha no check in pode ser
deslocado para agilizar as operações de embarque, tornando-as mais
rápidas;

 Os aviões são abastecidos apenas em determinados aeroportos,


aproveitando o preço mais baixo do combustível. Esta medida também
contribui para diminuir o tempo no solo.

Vejamos um outro exemplo no qual o desperdício de tempo pode significar,


inclusive, a morte do cliente. Trata-se de um caso de logística hospitalar:

O AVC (Acidente Vascular Cerebral) é uma síndrome que causa a interrupção


do fluxo sangüíneo no cérebro. O AVC é isquêmico quando um coágulo
provoca o bloqueio do vaso sangüíneo. É a maior causa de incapacidades
físicas e cognitivas em nosso meio. A terapia trombolítica (injeção da enzima rt-
PA para dissolver o coágulo) eleva significativamente a chance de uma
recuperação completa de um AVCI. A terapia, entretanto, apresenta um pré-
requisito crítico: para que os efeitos do AVCI possam ser minimizados, o
tratamento precisa ocorrer em no máximo três horas após a ocorrência da
interrupção do fluxo sangüíneo. Assim, o grande desafio é a agilidade e
sincronização dos procedimentos, incluindo o reconhecimento pelo paciente
e/ou seus familiares de que há sintomas de AVC, a remoção do paciente para
o hospital, sua internação, etc.

Nos hospitais Mãe de Deus e São Lucas, ambos em Porto Alegre, foram
implantadas diversas iniciativas para a redução de tempos nos casos de
suspeita de ocorrência de AVCI:

 Estabelecimento de Protocolos de AVC;


 Formação de equipes de AVC;
 Capacitação da Emergência para identificar qualquer sinal de alerta para
AVC;
 Capacidade de realizar rapidamente a tomografia do crânio;
 Capacidade de realizar rapidamente um eletrocardiograma e coleta de
sangue;
 Estabelecimento de indicadores de qualidade;
 Unidade de AVC (um médico e uma equipe responsável do começo ao
fim do tratamento, eliminando ambigüidades e linha de
responsabilidade).

Os resultados obtidos nos dois primeiros anos da adoção dos procedimentos


revelaram que o tempo entre a chegada ao hospital e o início do tratamento
caiu de 1h 40min para 49 min. Dados publicados sobre o mesmo tipo de
cuidados em hospitais do Canadá e Suécia, dois centros de referência mundial,
mostram tempos entre 48 e 106 minutos.

Oferecer o que o cliente quer, exatamente onde ele quer


A Tesco é na atualidade a maior rede de supermercados da Inglaterra, com
mais de 31% de participação de mercado. Em termos mundiais é a quinta
maior rede, com um crescimento anual de 10% em suas vendas no último ano.

Através de um sistema logístico que continuamente ressupre suas lojas,


garantindo um nível de serviço de 96% em termos de disponibilidade, a Tesco,
com seus cinco formatos de lojas, vai além de oferecer o que o cliente quer; ela
está onde o cliente quer.

 Tesco Extra: é o formato hipermercado, localizado fora das cidades;


 Tesco Superstore: supermercados de tamanho padrão, localizados em
bairros de classe média;
 Tesco Metro: lojas de médio porte no centro das cidades e nas
proximidades das principais estações de Metrô ou movimentados pontos
de transporte público;
 Tesco Express: pequenas lojas espalhadas por toda a cidade;
 Tesco.com: vendas por internet.

Os centros de distribuição integram os pedidos recebidos de todos os tipos de


loja, mas, para cada formato, há um esquema próprio de distribuição,
considerando, por exemplo, que as lojas Express trabalham com pequenos
volumes, não possuem área de armazenagem e, por essa razão, precisam ser
continuamente abastecidas.

O programa de fidelidade da empresa é um importante aliado no objetivo de


manter uma logística enxuta. As informações sobre as compras de mais de 12
milhões de clientes cadastrados permitem a Tesco oferecer os produtos
adequados para cada estabelecimento e realizar promoções adequadas para
os clientes adequados.

Agregar continuamente soluções para reduzir tempo e


aborrecimento do cliente

Este último princípio evoca a premissa de melhoria contínua. No contexto deste


artigo a melhoria contínua seria a implacável perseguição aos desperdícios na
cadeia de suprimentos. A logística enxuta tem muitos desafios, mas conta
também com uma série de aliados e ações a serem praticadas para lograr seu
objetivo: agilidade, sincronização, análise de processos com o objetivo de
identificar onde se perde tempo e onde se acumulam estoques, colaboração
com fornecedores e clientes para o planejamento da demanda, investimentos
em tecnologia de informação para monitorar veículos, controlar estoques e
dispor de indicadores on line para medir desempenhos e poder antecipar ações
corretivas no rumo.

Tanto a Martin-Brower Brasil como a Tesco, certamente os exemplos citados


mais complexos em termos de atividades logísticas, são empresas em
constante desafio na busca contínua de soluções que tornem mais eficiente as
cadeias de suprimentos das quais fazem parte.

Bibliografia
Womack, James P.; Jones, Daniel T. Lean Consumption. Harvard Business
Review, Mar 2005.

Womack, James P.; Jones, Daniel T. Lean Solutions. Free Press, 2005.

Friedrich, Mauricio; Mannetti, Euler; Martins, Sheila. Implementação da Terapia


Trombolítica no Hospital São Lucas da PUCRS e no Hospital Mãe de Deus em
Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Revista Neurociências, Vol.12, nº 2, 2004.

Kleber Figueiredo é professor e pesquisador do Centro de Estudos em


Logística do Instituto Coppead de Administração.

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