Você está na página 1de 5

Migração e interculturalidade

nos tempos atuais


27 de novembro de 2019

  

Por Sylvia Dantas*

Adentrar um outro universo cultural não é tarefa fácil.  Os contatos


interculturais apresentam desafios subjetivos profundos tanto para quem
migra como para as sociedades que recebem os novos grupos.
Interculturalidade é um termo que assinala uma dimensão de interação,
contato entre pessoas de culturas distintas e de universos simbólicos
compartilhados. Os estudos interculturais apontam que as diferenças
culturais são em geral antes um fator de conflito do que de sinergia.

Cabe lembrar que a mudança para outra sociedade e cultura coloca em


xeque o modo de ser, o modo de ver o mundo, o modo de se ver e o
modo de se relacionar, trazendo à tona a questão de quem se é.  Esse
desconcerto ocorre, pois as pessoas são socializadas em uma
determinada cultura e isto significa uma incorporação marcante de
formas de sentir, de pensar e de agir que envolvem processos de
identificação intensos. E quando as pessoas vão morar em outra cultura
isso representa uma ruptura expressiva desse quadro de referência, de
sentido e pertencimento.

A mudança de país impõe ao migrante múltiplas perdas já que deixa


para trás familiares, amigos, trabalho, ambiente físico, língua, normas
sociais, locais conhecidos e a memória social. Além disso, tem de
ajustar-se a um novo local, aprender novos códigos sociais, pois sua
forma de agir não mais corresponde ao entorno, o que antes era parte
da rotina, torna-se um desafio diário.  Estar entre dois mundos culturais
significa adentrar diferentes jogos de espelho realizados pelos outros.
Esses reflexos podem afetar tanto positivamente quanto negativamente
o sentimento de competência e valorização do self que aliados ao
processo de reflexão e observação simultâneas de si mesmo são a base
da formação identitária.

Assim, vemos que os desafios são imensos e tornam-se maiores quando


o país receptor não está preparado para essa realidade cada vez mais
constante no mundo atual. A maior parte dos imigrantes fará uso das
instituições públicas do país receptor como instituições educacionais,
postos de saúde, hospitais, órgãos responsáveis pela documentação
requerida, órgãos de assistência social, e assim por diante.

No Brasil, observamos iniciativas importantes por parte principalmente


de associações civis, organizações não governamentais, e instituições
públicas quando geridas por funcionário sensível a imigração, mas que
constituem trabalhos como que pontuais diante a demanda atual. O país
carece de uma arquitetura institucional de acolhimento. São Paulo, onde
há o maior número de imigrantes é a única cidade brasileira a adotar
uma política municipal de imigração, fruto da mobilização dos
movimentos sociais de imigrantes e organizações sociais e a gestão
municipal de 2013 a 2016.

A motivação da partida, o momento de chegada e ajuste ao novo


ambiente envolvem processos psicológicos específicos a essa situação.
Importante destacar que quando dizemos isso apontamos que qualquer
pessoa que passe por essa experiência vivenciará processos de
aculturação psicológica e estresse de aculturação. Assim, o imigrante ou
o refugiado não são os problemáticos ou o problema a ser tratado.
Problema é a sociedade não estar em sintonia com os novos tempos.

A compreensão desses processos é urgente para que se realize um


trabalho preventivo nas instituições que recebem essa população.
Contudo, a fim de que isso seja possível vemos como necessário uma
mudança de mentalidade e nesse sentido nosso trabalho de formação de
profissionais que lidam com essa temática se pauta em uma abordagem
intercultural crítica. Vejamos o que se entende por interculturalidade.
Dependendo da área de conhecimento, país, continente ou época o
termo contém diferente nuances, sendo portanto, polissêmico. Na
educação, a educação intercultural foi inicialmente formulada pela
Unesco em 1978, propondo uma “educação para a paz” e “prevenção ao
racismo”. A definição vai mais além quando importantes pensadores da
área colocam que a interculturalidade só se produz quando um grupo
começa a entender e assumir o significado que as coisas e os objetos
têm para os outros. A maioria dos pesquisadores ocidentais ou
ocidentalizados projetam um pensamento causal e “lógico” sobre as
manifestações de outras culturas que não corresponde à
autocompreensão da população local e quando ultrapassa seu próprio
campo, pode destruir o universo simbólico de outras culturas.

A interculturalidade enfoca a necessidade de privilegiar o diálogo, a


vontade da inter-relação e não da dominação. Nesse sentido, a partir da
filosofia propõe-se uma visão intercultural crítica que implica na
descolonização dos saberes, a favor de um equilíbrio epistemológico no
mundo. Na área do direito, interculturalidade também não se limita ao
necessário reconhecimento do outro, mas a resistência aos processos de
construção de hegemonia e criação de mediações políticas, institucionais
e jurídicas que garantam reconhecimento e transferência de poder.

Diferente do multiculturalismo, a interculturalidade crítica assinala uma


política cultural baseada não simplesmente no reconhecimento ou na
inclusão, mas também dirigida a uma transformação estrutural e sócio-
histórica. A interculturalidade crítica está vinculada a decolonialismo que
desde e com os povos indígenas e afrodescendentes propõe uma nova
razão e humanidade que reverta o eurocentrismo e colonialismo do
conhecimento, o uso da etnia branca e ocidental como padrão e a razão
sobre o sentir-existir como signo de humanidade assim como a colocar o
homem sobre a natureza.

Na psicologia, a Psicologia Intercultural surge nos anos 60 a partir da


consciência de que grande parte dos estudos na Psicologia são
formulações etnocêntricas, já que baseadas em grupos ou amostras de
pessoas da América do Norte ou da Europa, países hegemônicos ou
centrais quanto à economia e política globais. Teorias psicológicas que
não representam a grande diversidade da população mundial, e que são
generalizadas para todos os seres humanos.  Produções e associações
de pesquisadores de língua inglesa se desenvolvem ao lado de
produções e associações francófonas de psicologia intercultural. O
campo é amplo e sofreu muitas mudanças. O que o unifica é a
proposição de incorporar a cultura como fator fundamental na conduta
humana em contraste com a longa rejeição por parte da psicologia da
dimensão cultural. O denominador comum corresponde à perspectiva
universalizante da suposição de que processos psicológicos são
compartilhados por todos os humanos, mas sua forma de desenvolver-
se e expressá-los variam conforme a cultura.

A chegada de novos grupos para o país e seu impacto precisa ser


abordado e compreendido a fim de que o Estado possa implementar
políticas voltadas para medidas preventivas que propiciem um contato
pautado em conhecimento e compreensão do processo migratório.

Infelizmente, temos visto em países de governos de extrema-direita a


criminalização do imigrante. O imigrante e refugiado tornam-se bodes
expiatórios em épocas de crise econômica e política, ou seja, são vistos
como objeto de culpa do sistema social, sendo a eles atribuída a causa
do desemprego e de outros problemas sociais. Dessa forma, aspectos
dos sistemas sociais, como a exploração capitalista e a competição
gerada por esta, são ocultados do público a fim de não gerar seu
possível questionamento.
Em alguns países, como no Canadá, notamos que a política migratória
envolve todo o processo de inserção do migrante e refugiado, como
aprendizado da língua local, verba para manutenção, moradia, inserção
no mercado de trabalho, educação e assistência à saúde.
É importante entender que todos temos o direito de ir e vir, um direito
fundamental que está em nossa constituição e na declaração de Direitos
Humanos das Nações Unidas. O contato entre culturas, com outras
formas de entender a vida ao invés de ser uma ameaça é a possibilidade
entendermos o quanto o ser humano é criativo, nada está dado e temos
uma oportunidade de ampliar nossos horizontes para um bem viver de
todos.

*Professora e coordenadora do curso de Especialização Saúde mental,


imigração e interculturalidade da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp).

Você também pode gostar