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Ponto 4 – As culturas pré-incaicas e o Tawantinsuyu

Há muito se vem chamando a atenção para a existência de


analogias múltiplas e estreitas, perceptíveis entre as culturas da América
pré-colombiana de todas as regiões. A arqueóloga Laurette Séjourné,
depois de apontar diferenças e especificidades, conclui pela existência,
em todo o continente, de uma base cultural comum tão ampla que faz
pensar numa origem única. Não é difícil apontar numerosos traços
similares entre a Mesoamérica e a Zona Andina Central em matéria de
política e religião, mesmo sendo verdade que, até onde se sabe, estas
duas grandes zonas culturais se ignoravam na época da conquista
espanhola.
Se as recentes pesquisas sobre a Mesoamérica se desenvolveram
em função da Arqueologia e da decifração das inscrições, no caso da
Zona Andina Central estas se desenvolveram sobretudo em função dos
estudos etno-históricos e antropológicos. A reconstrução em curso da
história andina esteve durante muito tempo repleta de lacunas e
silêncios, inaugurando assim polêmicas que não propiciaram uma visão
de conjunto coerente e harmoniosa e interrogações que não foram
satisfatoriamente respondidas. Nesse sentido, a historiadora Maria
Rostworowski, no clássico Historia del Tahuantinsuyo, publicado em
fins da década de 80, recordou que a os enigmas do mundo andino
estavam longe de ser decifrados e que por isso “deveríamos estar
dispostos a reexaminar constantemente nossas apreciações à luz de
novas pesquisas”.
Atualmente, muitos enigmas da história andina são menos
inacessíveis do que podem parecer, diante da correlação estabelecida
entre a informação histórica e a escavação arqueológica. Isso porque
ainda hoje existem continuidades nos modos de vida e nas línguas,
mesmo após séculos de dominação europeia. Tanto as tradições orais
dinásticas como as demóticas são pelo menos parcialmente disponíveis
nos registros de testemunhas oculares e de administradores europeus e,
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comprovadas e ampliadas com a arqueologia, permitem-nos dispor de
uma versão muito mais sólida da sociedade andina.
Na tentativa de definir o termo “andino”, o historiador Enrique
Ayala Mora esclarece que este não se restringe a uma determinação
geográfica. O “andino” recupera, por um lado, a historicidade de um
processo milenar que confere unidade à evolução de um conjunto de
povos frente a uma realidade regional, continental e planetária e, por
outro, expressa uma unidade que dá sentido a uma pluralidade e a uma
diversidade que abarcam termos naturais, geográficos, culturais e
simbólicos. Segundo o historiador Alberto Flores Galindo, a noção de
“andino” rompe com a conotação racista subjacente à palavra “índio”, na
medida em que evoca “civilização” não no sentido restritivo designado
pela história universal etnocêntrica, mas sim em um sentido inclusivo e
plural, que abarca uma diversidade ecológica e uma constelação de
culturas que transcendem os atuais limites nacionais.
No que diz respeito à geografia andina, suas características
singulares tiveram influência direta sobre as condições materiais da
existência humana. O território andino caracteriza-se pelas bruscas
mudanças de condições geográficas e de temperaturas, sendo composto
por diferentes pisos ecológicos: os desertos costeiros, as úmidas
planícies amazônicas e as altas montanhas da Cordilheira dos Andes.
Tais características foram determinantes para que os povos da região
substituíssem as tendências autárquicas por mecanismos que lhes
permitissem articular sua existência com extensos territórios e formas de
complementaridade de distinta natureza e envergadura.
O antropólogo John Murra nomeou a estratégia de ocupação do
território desenvolvida pelos povos andinos como “padrão arquipélago de
colonização”. Este consistiu em territórios não contíguos e dispersos em
diferentes “pisos ecológicos”, controlados por uma mesma unidade
política, o que permitiu o acesso simultâneo e complementar de uma
mesma comunidade aos diferentes “pisos ecológicos” e aos bens

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produzidos por eles. Assim sendo, cada comunidade política tinha sua
aldeia principal em uma dessas regiões e enviava colonos para se
instalarem em locais que faziam parte de outros “pisos ecológicos”,
situados a vários dias de caminhada de seu domicílio original.
Segundo Murra, dois princípios básicos facilitaram o acesso dos
povos andinos à diversidade de “pisos ecológicos”: a organização das
comunidades em ayllus e a colaboração entre eles, visando à autonomia
econômica. O ayllu consistia em um núcleo endogâmico assentado sobre
laços de parentesco, aliança, solidariedade e obrigações e sobre a posse
comunitária da terra. Não era um clã ou uma linhagem, pois a filiação se
traçava em um sistema de descendência paralela. Tinha um curaca,
geralmente o fundador do grupo, que legitimava sua autoridade através
da huaca, divindade tutelar associada a um de seus ancestrais. Os ayllus
mantinham entre si redes de relação assimétricas, que os uniam sob a
hegemonia de um deles; dessa forma, os chefes de ayllus dependentes
eram subordinados ao chefe do ayllu dominante, que agia como curaca
de todos os ayllus. As áreas de pastagens correspondentes ao ayllu
eram indivisíveis e as famílias poderiam dispor livremente delas; já as
terras de cultivo eram distribuídas entre as famílias por lotes, compostos
por parcelas situadas em diferentes “pisos ecológicos”.
Diferentemente do pensamento cristalizado pelo senso comum, o
Tawantinsuyu não foi a primeira comunidade política multiétnica surgida
nos Andes. Nas últimas décadas, os arqueólogos têm distinguido os
vários “horizontes” presentes “eras intermediárias”, isto é, períodos em
que as autoridades centrais conseguiram controlar tanto as comunidades
das montanhas quanto as costeiras. Contudo, não há um consenso entre
os arqueólogos sobre o modo como surgiram esses “horizontes” nos
Andes e como acabaram se desintegrando. Por trás da expansão
poderiam estar o comércio, o controle militar e até mesmo a influência
religiosa.

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O “Horizonte Primitivo” nos Andes era centrado em Chavín, um
centro cerimonial localizado a 3135m de altitude nas montanhas do leste.
Mais conhecido por sua arte religiosa, Chavín foi considerada pelo
arqueólogo Julio C. Tello “a matriz da civilização andina”: alcançou seu
apogeu entre 1000-300 a.C, quando exerceu forte influência artística
sobre outras colônias das regiões montanhosas e costeiras.
O “Horizonte Médio” estendeu-se entre 500 a.C-1000 d.C e estava
centrado ao menos em duas localidades – Tiahuanaco, próxima do Lago
Titicaca na atual Bolívia, e Huari, próxima à atual cidade de Ayacucho –
que constituíram verdadeiras colônias urbanas e núcleos estatais de
vasta extensão. Na visão do arqueólogo Luis Guillermo Lumbreras, o
urbanismo e o militarismo tiveram início com Huari e aos poucos
influenciaram todas as cidades dos Andes centrais.
A tradição oral andina, exemplificada pelos relatos de Felipe
Guaman Poma de Ayala, e a arqueologia parecem concordar que os
séculos imediatamente anteriores à expansão inca, que integraram o
“Horizonte Intermediário Tardio”, constituíram “tempo de soldados”. Este
período caracterizou-se pelo abandono das cidades, pela busca de
proteção em altitudes elevadas e pela construção de fortalezas, assim
como pela ausência de manifestações artísticas pan-andinas.
Embora o arqueólogo John Howland Rowe tenha dado início ao
estudo científico dos predecessores dos incas, pouco trabalho
arqueológico foi feito com seriedade na zona andina central. Atualmente,
pode-se afirmar com alguma segurança que, depois de um longo período
de conflito, Cuzco deixou de ser, no século XV, o núcleo de uma
comunidade local para tornar-se um importante centro urbano, capital do
Tawantinsuyu. Não era apenas o coração administrativo do Estado inca,
mas também um centro cerimonial, situado na encruzilhada de estradas
reais, que interligavam todo o território.
A partir do estudo dos ceques, 41 vetores que irradiavam desde
Cuzco, o antropólogo Reiner Zuidema sugere a presença de uma

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concepção religiosa e calendárica do espaço na zona andina central.
Tais vetores, em função do calendário religioso de 328 dias, permitiam
localizar outros lugares sagrados (huacas) e, em círculos concêntricos,
categorizavam hierarquicamente todo o espaço e a organização social do
Império Incaico, da capital até as quatro províncias ou suyos.
Segundo o historiador Franklin Pease, os Incas dispuseram de
mecanismos de poder para alcançar a dispersão controlada de seus
súditos. No Tawantinsuyu, não somente a política relativa ao
povoamento controlado era centrífuga – através de migrações forçadas e
organizadas pelo governo –, mas também o próprio sistema tributário. Se
tanto na Mesoamérica como nos Andes os governantes participavam de
múltiplas redes de reciprocidade e de redistribuição, na primeira
predominava a concentração/redistribuição sobre a reciprocidade e as
redes de redistribuição tendiam a concentrar-se majoritariamente no
centro do poder de cada Estado ou Confederação. Já nos Andes, além
de um peso maior atribuído à noção de reciprocidade, mesmo se Cuzco
concentrava muitos bens e diversas redes de distribuição, as relações
redistributivas entre incas e os grupos étnicos submetidos eram
dispersas no espaço: daí a construção de enormes depósitos nos centros
administrativos locais e ao longo das estradas públicas.
Para o historiador Ciro Flamarion Cardoso, a explicação para
esse contraste parece atrelar-se ao fato de que as limitações técnicas
enfrentadas pelas culturas pré-colombianas tornavam os grupos
humanos extremamente dependentes dos influxos diferenciais do meio
ambiente. A zona andina central aparece ecologicamente
compartimentada em segmentos muito mais estanques e contrastados
do que a Mesoamérica, de modo que a heterogeneidade resultante
dessa realidade exigia trocas ritualizadas – redistributivas ou ligadas à
reciprocidade – bem mais centrífugas do que na Mesoamérica. O poder
incaico tentou minorar essa heterogeneidade através da redistribuição
dos próprios homens no espaço, levando assim tecnologias e atividades

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a novas áreas, bem como buscando, segundo os interesses
governamentais, um equilíbrio regional da mão de obra tributária
disponível.
É importante ressaltar que a expansão inca foi um fenômeno bem
recente se comparado à chegada dos espanhóis, visto que as conquistas
fora da região de Cuzco começaram por volta de 1438 d.C. Na visão de
Cardoso, os Incas inovaram pouco na organização do mundo andino.
Em primeiro lugar, porque o regime admitia com frequência níveis
bastante altos de autonomia política regional e local, acomodando-se
quase sempre às estruturas que encontrou, sobretudo nas regiões
estatais mais desenvolvidas. A estratégia global adotada caminhou no
sentido de sobrepor a religião estatal centrada no Sol e no Inca aos
cultos locais, que não foram abolidos; de criar redes de comunicações,
militares e administrativas, mediante a construção de estradas,
depósitos, fortificações e cidades administrativas regionais; de
generalizar a todo o espaço andino as redes de reciprocidade
assimétrica e de redistribuição que antes funcionavam em espaços
menores, organizando em função delas a tributação em trabalho, os
deslocamentos permanentes de populações e a circulação dos bens de
prestígio; de realizar em escala maior do que no passado a estratégia de
complementaridade de recursos entre os diversos “andares” ecológicos
dos Andes.
Em segundo lugar, porque o protocolo de corte que cercava os
atos e o tratamento do supremo governante parece ter sido copiado do
que existia previamente no Reino Chimú, conquistado por volta de 1463
d.C. A apropriação da concepção monárquica do Reino Chimú poderia
explicar o porquê de, contrariamente ao hábito inca integrar as regiões
conquistadas mantendo suas estruturas internas e até suas dinastias,
este tenha sido varrido da face da terra: não poderia haver no interior
mesmo Império dois governantes com direito a um mesmo protocolo de
corte.

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Já para Murra, a rápida expansão do Tawantinsuyu por 4.000 km,
realizada em menos de um século, implicou mudanças nas dimensões
básicas da tradicional organização administrativa e religiosa andina. Em
primeiro lugar, porque o governo indireto através dos senhores étnicos e
dos santuários locais tornou-se mais difícil, já que não havia garantia de
entendimentos comuns. Em segundo lugar, porque as novas e grandes
distâncias de Cuzco também tornaram difícil, senão impossível, aos
mitmacs (prestadores da mita, sistema de trabalho por turnos que
deveria ser realizado por todas as comunidades que integravam o
Tawantinsuyu em benefício do Estado inca) exercer seus direitos
residuais de arquipélago em sua comunidade original. É possível que as
pessoas ainda fossem contadas no quipu (sistema baseado em cordas
com nós que tinha sobretudo funções estatísticas) de seu grupo original,
mas, se ele agora estava distante demais e suas novas tarefas eram
muito especializadas, elas tendiam a permanecer onde quer que fossem
reassentadas. Por fim, outra mudança que trouxe consequências de
grande alcance foi o surgimento de populações cuja filiação e contagem
no grupo original foram interrompidas pelo Estado. Essas pessoas
dedicavam tempo integral aos negócios do rei, estando isentas das
obrigações étnicas e do parentesco, uma vez que na contagem não eram
mais incluídas junto ao seu quipu original.
No que diz respeito às razões da derrocada da altamente
organizada estrutura incaica, o antropólogo Carlos Fausto destaca duas
delas: as epidemias e a herança dividida, um sistema de transmissão de
bens e direitos implantado pelo imperador Pachakuti. Segundo essa
regra, quem herdava o poder não tinha legado material. Quando da
morte do Inca, um de seus filhos assumia a chefia do estado. Recebia o
direito de governar, declarar guerras, fazer a paz, cobrar impostos, mas
não recebia qualquer propriedade material. Assim, tudo o que pertencera
ao Inca morto passava para seus outros descendentes em linha
masculina, que formavam um grupo social denominado panaca. Eles

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eram responsáveis pela preservação da múmia do Inca e pela
manutenção de seu culto, já que o Inca morto continuava a possuir os
bens e ser servido por seus descendentes. Assim sendo, a regra da
herança dividida significava que tudo o que resultara da administração
anterior saía da esfera do estado, de modo que a cada sucessão era
preciso que o rei recém-chegado ampliasse os limites do império,
conquistando novos povos e novas terras. Os panacas dos reis mortos
formavam verdadeiros estados dentro do estado, enfraquecendo o poder
do inca e alimentando a rivalidade no interior da elite.
A título de conclusão, é importante destacar que a sombra do
Império Inca obscureceu durante muito tempo a espacialidade da floresta
tropical. Julgada ao revés, por aquilo que não tinha, esta tendeu a ser
vista como um lugar estéril e inóspito. Os Andes e a costa do Pacífico, ao
contrário, surgiam como o principal, senão o único, centro de invenção
cultural no continente: lugar de origem da domesticação de plantas e
animais, da manufatura da cerâmica, do uso do metal, de um sistema
religioso baseado no trio sacerdote-templo-ídolo, da centralização política
e da estratificação social.
Os incas, e depois os espanhóis, construíram uma dicotomia entre,
de um lado, formações plenamente “políticas” do altiplano e, de outro,
aquelas quase “naturais” das terras baixas. A floresta tropical seria o
habitat natural por excelência de sociedades simples, igualitárias e de
pequeno porte, enquanto a cultura e o estado civil ficariam reservados às
terras altas. O incremento e o adensamento populacional nas terras
baixas teriam esbarrado na pobreza de recursos naturais, o que inibia o
desenvolvimento de formas sociopolíticas complexas. O antropólogo
Julian Steward trouxe essa visão para dentro das ciências sociais,
tornando-a dominante até 1970, quando foi desconstruída pelos
trabalhos dos arqueólogos Clifford Evans e Betty Meggers, que
escavaram em duas áreas que apresentavam registros arqueológicos
indicativos de complexificação social: a bacia do Napo e a ilha de Marajó.

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