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INTRODUÇÃO
3. ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA
3.3. O Júri
O Júri é uma instituição de origem inglesa, tendo seu conceito se alastrado pelo
restante do continente europeu após 1789, bem como pelas colônias britânicas,
notadamente os EUA, e pelo resto do ocidente.
Busca-se sua origem em Roma ou na Grécia antiga, mas não há dúvida que o berço
do Júri foi a Inglaterra medieval. Seu aparecimento pode ter sido reforçado pelo
Concílio de Latrão, como alegam alguns doutrinadores, entretanto, liga-se mais à
concentração do Direito na Inglaterra e à inclinação racional que os institutos
jurídicos passam a ter após a conquista normanda, em oposição natural às
concepções jurídicas arcaicas do Direito anglo-saxônico. Não resta dúvida no
entanto, que o Júri, principalmente na forma preservada que é praticada até hoje
tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, guarda uma forte conotação religiosa
nas suas origens, sendo tal conotação perceptível pelo próprio juramento. Todavia,
este detalhe não dá margem a especulação de que o número original de jurados
remonta ao número de apóstolos e muito menos a de que o Júri passa a ser uma
forma modificada de Juízo de Deus, como afirma E. Magalhães Noronha ao citar V.
de P. V. Azevedo, mesmo porque a dinâmica desenvolvida neste tribunal reforça a
retórica, a discussão dialética da verdade e o racionalismo, além de que, nos EUA,
tal conotação se explica pelo fato de que a religião foi fator de unidade entre os
primeiros habitantes da região no século XVI.
O Júri é por si só uma negação do Trial by Ordeal, praticado até então. Através dele
retira-se do ideário jurídico a confrontação entre as partes e o julgamento, feito pelo
Juízo de Deus. Passam-se tais tarefas para dois grupos que atuam em planos
distintos, um Júri de Acusação, composto por 23 pessoas escolhidas entre membros
da comunidade, chamado de Grande Júri (Grand Jury), e outro que funciona como
Júri de julgamento, composto por 12 membros da comunidade, cuja tarefa é julgar o
caso que lhes é apresentado, conhecido pelo nome de Pequeno Júri (Petty Jury).
O Grande Júri não se ocupava com as provas, sua função era de encaminhar
acusação, se houvesse, para deliberação posterior, que ficava à cargo do Pequeno
Júri, este sim encarregado de analisar o caso com base nas provas apresentadas,
para então determinar o veredicto, ou seja, pronunciar a verdade, tendo, portanto,
soberania total ao aplicar as sentenças.
Houve mudanças inevitáveis desde seu aparecimento até os nossos dias,
notadamente desde o século passado, dentre as quais pode-se destacar a
supressão do Grande Júri, e a especialização do Pequeno Júri unicamente em
matéria criminal.
Como já foi mencionado anteriormente, nos nossos dias, o acusado de um
determinado crime cuja gravidade não determine de pronto seu julgamento pelo
Tribunal da Coroa pode escolher ser julgado pelo Tribunal de Magistrados, sendo
este julgamento feito por um colegiado composto por três magistrados,
prescindindo da presença do Júri, o que lhe poderia favorecer; em contrapartida, a
pena, no caso de veredicto que o considere culpado, seria bem mais severa no
julgamento pelo Júri.
Não haveria razão para elaborar este trabalho se não trouxéssemos o assunto
estudado para um plano comparativo com a nossa realidade, já que é ponto pacífico
a capacidade que tem o Direito Comparado de favorecer a compreensão mais
profunda do nosso próprio sistema através de uma análise mais correta - porque
feita de uma perspectiva externa - a proteção e preservação de institutos
constantes de nossa escola jurídica e a adoção de institutos externos para o
aperfeiçoamento de nosso sistema jurídico.
O estudo da organização judiciária inglesa revela-nos uma sociedade que
harmonizou de forma proficiente a relação entre o Poder Judiciário e a comunidade,
de um modo paradoxal. A princípio operando uma descentralização das funções
jurisdicionais para níveis inferiores, aplicando dessa forma o princípio da justiça
local, e resolvendo, com isso, a maior parte das questões antes que estas alcancem
os tribunais superiores; em segundo lugar, e paralelo ao primeiro processo, não se
pode negar a concentração das funções judiciárias, a priori com a compactação de
todas as antigas jurisdições num único corpo que é o Supremo Tribunal de
Judicatura, compactação e centralização que tem sido a orientação histórica do
Common Law, centralização que se opera com o soerguimento de um legítimo e
respeitável Poder Judiciário, livre de qualquer influência de outro Poder, partindo do
fundamento essencial do sistema inglês, que é a jurisprudência e não a lei.
O Direito portanto, como bem destaca René David, tem sido elaborado, desde mais
de cinco séculos atrás, pelos juízes, e o Poder Judiciário tem se mostrado capaz de
atuar paralelamente aos outros Poderes, e não como um simples aplicador de
normas, não dizendo o Direito, mas gaguejando a vontade da lei, na maioria das
vezes, elaborada de forma espúria e casuística pelo legislador.
Que lições podemos considerar diante de tal quadro, paralelo ao nosso sistema
jurídico?
O Poder Judiciário brasileiro passa por uma das maiores crises de sua história. O
acesso à justiça é precário, a prestação jurisdicional é vagarosa e improfícua,
imersa numa maré interminável de recursos, os tribunais superiores surpreendem-
nos por uma atuação putridamente política e formalista, o impasse entre os Poderes
se dá com a mínima menção de atuação do Judiciário.
Certamente, se buscarmos as verdadeiras explicações para a situação atual,
perceberemos que a solução não virá com simples modificações estruturais. A razão
para a inviabilidade do Judiciário brasileiro liga-se à histórica dinâmica do poder
senhorial e semi-feudal na nossa sociedade. O Poder Judiciário, na verdade, sempre
esteve inserido na organização política oligárquica brasileira, sendo antes um
instrumento dessas oligarquias, distanciando-se, portanto, de suas reais funções, o
que explica o flagrante desconforto dos demais poderes ante sua atuação
independente.
Diante do quadro que se nos apresenta, contudo, torna-se forçosa a busca por
soluções imediatas. O estudo comparativo pode, de certa forma, fornecer-nos tais
soluções.
Acreditamos todavia, que muitos dos elementos componentes da organização
judiciária inglesa não teriam capacidade funcional no nosso país, outros no entanto,
de uma forma ou de outra, já são aplicados.
Não resta dúvida que, no intento de desobstruir a Justiça, uma série de
organizações jurisdicionais inferiores e porque não dizer alternativas têm sido
criadas. Poderíamos mesmo afirmar que tais mecanismos jurisdicionais constituem
o equivalente brasileiro à Baixa Justiça inglesa. Exemplo disso são as Curadorias,
que são mecanismos de ação imediata, os Juizados de Pequenas Causas, que se
destinam a dirimir pequenos litígios sem importância relevante para serem levados
à juízo superior, a arbitragem, que acena como meio eficaz para solução de lides, e
a súmula vinculante, em tramitação no Congresso Nacional, que nos remete ao
precedente inglês impondo-se à todas as instâncias inferiores.
Por outro lado, há elementos do Direito inglês que certamente não funcionariam no
nosso país. Um deles é a concentração do Judiciário, tarefa impossível num país de
dimensões continentais. Basta dizer que a Inglaterra é menor que o Estado da
Bahia, sendo naquele país, viável, a concentração das atividades judiciárias num
único corpo que é o Supremo Tribunal da Judicatura. No Brasil, a descentralização é
quase uma necessidade.
Outro aspecto que, nos parece, não surtiria efeito almejado no Brasil seria a justiça
distribuída por leigos. Quando nos referimos ao termo "leigos" estamos obviamente,
falando de pessoas alfabetizadas, conscientes de suas obrigações e direitos como
representantes da sociedade civil, cientes da importância do processo
representativo, e da necessidade de distribuição equitativa da justiça. Os leigos,
que, na Inglaterra, são denominados magistrates, trabalham sem qualquer
remuneração, conhecem bem a comunidade em que vivem e inspiram confiança
nos habitantes de tal comunidade, razão pela qual a maioria das lides é solucionada
nesta instância. A população brasileira, de modo algum reúne as características
essenciais para a adoção de tal modelo. No nosso país há elementos
suficientemente impeditivos que se revelam em pequenas unidades representativas
e que, fatalmente inviabilizariam a instalação do equivalente brasileiro ao
Magistrate´s Court, sendo-nos possível citar o nepotismo, a burocratização
excessiva dos serviços, a falta de consciência política, a falta de informação, e a
parcialidade , principalmente em função do poder estabelecido.
A limitação de recursos, porém, seria uma benvinda modificação à nossa
organização judiciária. Na Inglaterra, pouquíssimos recursos são admitidos para
julgamento na instância superior que é a Câmara dos Lordes. A maior parte dos
litígios não passa da Baixa Justiça, e caso o faça, raramente sobe além do Tribunal
de Apelações. Além disso, há questões cujo mérito, após apreciação preliminar por
parte do Supremo Tribunal da Judicatura, é imediatamente remetido à Baixa Justiça.
O Poder Judiciário inglês atua baseado sobretudo numa autoridade vinculada às
decisões de cada corte em relação à instância imediatamente inferior, e por
intermédio de uma rígida limitação dos recursos. Tais características conferem
capacidade funcional aos seus tribunais.
No Brasil a maré de processos é considerada irracional, a cada ano acumulam-se o
número de casos a serem julgados nos tribunais superiores brasileiros;
o efeito assemelha-se ao de uma bola de neve. Parece não haver como brecar a
maior parte dos casos em primeira ou segunda instância ou mesmo num organismo
não-judiciário.
Uma solução que se cogita, como já foi mencionado antes, é a da súmula
vinculante. Não há como fugir ao paralelo que se estabelece com o precedente
inglês. Na verdade, é princípio básico que aquilo que já tenha sido decidido antes
seja aplicado a um caso idêntico. Não se deve atribuir à súmula vinculante um
caráter de imutabilidade, isso seria subestimar a capacidade cambiante da
sociedade e do próprio Poder Judiciário como reflexo dela.
Aqui há outro aspecto da crise do Judiciário, esquecido porque implícito, que é a
enorme distância que o separa da sociedade brasileira, desde a primeira instância,
onde muitos juízes impõem uma distância visível das partes e dos advogados e
promotores.
As características senhoriais antes mencionadas tornam-se perceptíveis mesmo na
forma de uma simples petição inicial, onde a parte enfatiza a distância e a
superioridade do juiz numa linguagem claramente bajulatória, referindo-se
pleonasticamente a um homem, ainda que investido de poderes conferidos pelo
Estado, como excelentíssimo senhor doutor juiz de direito.
Não se deve porém, partir para o extremo de igualar o juiz às partes e esquecer o
respeito e a reverência necessária em qualquer ato judicial, pelo contrário. É sabido
que em qualquer acontecimento judicial, seja uma audiência ou um julgamento, há
um rito que é presidido pelo juiz; mas reconsiderar a atitude deste perante a
população é tarefa primordial que cabe ao Judiciário e às faculdades de Direito do
país.
Na Inglaterra tal aproximação é quase que inevitável, já que todo juiz inicia a
carreira como advogado, sendo alçado à magistratura em razão de sua
competência e eficiência na advocacia.
Automaticamente, o juiz inglês não padece de inexperiência, mesmo em razão da
própria dinâmica do Direito Inglês, outro fato assolador na magistratura brasileira.
Além disso, figuras como o Juiz de Circuito, o Stipendiary Magistrate e os próprios
magistrados leigos, aproximam a experiência judicante da população.
Num plano imediatamente superior, porém não distante desta linha de
pensamento, há o posicionamento histórico-social dos tribunais superiores
brasileiros.
Para esclarecer esta análise, é de bom alvitre um breve relato do papel da Suprema
Corte na sociedade norte-americana.
A construção do Direito nos EUA tem sido ao longo de mais de dois séculos,
baseada rigidamente nos preceitos constitucionais que abrangem a organização
política do Estado e a relação entre este e o cidadão.
A Suprema Corte americana aparece em todos os momentos cruciais da história dos
EUA como Estado independente, desde a peleja entre John Marshall e Thomas
Jefferson, passando pela abolição da escravatura, a laicização gradativa da
sociedade, a emblemática defesa dos direitos civis na conturbada década de
sessenta, e, recentemente a defesa da liberdade de expressão na Internet. Em
outras palavras, chamada a atuar em momentos históricos decisivos, a Suprema
Corte sempre surpreendeu pelo posicionamento racional, vanguardista e
independente, além da defesa incondicional dos preceitos constitucionais, cuidando
para não transpor os limites da atividade jurisdicional para a legiferante ou
administrativa.
No Brasil, o papel da cúpula judiciária, fragmentada em siglas inexpressivas, ainda
é uma incógnita. Não opina nem inova, não se mostra indignada ou contrária diante
da chafúrdia que se faz na Constituição. Não atua em favor da sociedade brasileira,
mesmo considerando que o Brasil é campo fértil para tal atuação, sendo-nos
suficiente citar fato recente, quando da votação de projeto da Reforma da
Previdência, que previa limitações à aposentadoria de magistrados e promotores, a
magistratura brasileira virou as costas para a população, deixando-a ao sabor dos
ventos e partindo para a vergonhosa barganha política, tendo merecidamente
frustrados seus intentos.
A cúpula do Judiciário brasileiro parece pairar acima dos problemas sociais, quando
lhe cabe a defesa da democracia, que adotando definição do filósofo Platão, pode
ser conceituada como igualdade de condições. Ora, a idéia de democracia
contemporânea baseia-se na concepção de um Estado que expressa uma
coletividade, limitado, porém, pelo respeito ao indivíduo, conceituado como Estado
de Direito. Dessa forma, não pode haver atividade mais importante e significativa
em tal Estado, do que a de dizer o Direito, que é justamente a função do Poder
Judiciário.
A recuperação deste posicionamento histórico-social, a exemplo do que ocorreu na
Inglaterra, é perfeitamente viável através da utilização da jurisprudência, que daria
ao Judiciário brasileiro a independência que lhe é necessária, já que o uso desta
fonte do Direito não deixa de ser uma atividade legiferante, num sentido particular.
Sabemos que a jurisprudência é utilizada no nosso sistema como fonte secundária,
mas não há lei que obrigue tal situação a permanecer imutável. Na Inglaterra a lei
desempenha papel importante, mas a construção do Direito cabe aos juízes, por
intermédio da jurisprudência.
Finalmente, uma reforma do Judiciário parece-nos "conditio sine qua non" para a
eficácia deste, e sua realização ou não é simples questão de vontade política,
sendo-nos estranho o adiamento contínuo de tal reforma que daria ao Judiciário
plena capacidade funcional, sem nos esquecer que a reformulação da organização
judiciária inglesa foi feita através da atividade do Parlamento, quando já era visível
que o antigo sistema não comportava as necessidades da sociedade industrial, com
os Judicature Acts, utilizando - ao contrário do que expusemos como solução para a
redefinição do caráter de nosso sistema - a lei como instrumento de
aperfeiçoamento do Poder Judiciário, que é o sustentáculo da democracia no Estado
contemporâneo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Livros:
. ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro, Editora Jurídica
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. DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, Martins Fontes, 3a
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. GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, 2a
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. MELLO, Maria Chaves de. Dicionário Jurídico, Editora Pergaminho, 6a edição, 1994,
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. NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal, Editora Saraiva, 17a
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Artigos:
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(http://www.Muffit.demon.co.uk), April, 1997.
. FARMER, Mike. The Long Arm of the Law, April, 1994, Regia Anglorum Publications.
. LEVICK, Bem, NICHOLSON, Andrew, A Brief History of the Anglo Saxon England,
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