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1 UMA CHAMA NA AMAZONIA

Jean-Pierre Renê Joseph Leroy

1
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UMA CHAMA NA AMAZONIA

Campesinato, consciência de classe e educação.


O Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais
de Santarém (PA) (1974-85)

Jean-Pierre René Joseph Leroy

Dissertação submetida como re-


quisito parcial para a obten-
çao do grau de mestre em Educa
çao

Rio de Janeiro
Fundação Getúlio Vargas
Instituto de Estudos Avançados em Educação
1989

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I A meu pa..i,
A Noêm.ia.,
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1 na. f~a.nca. e em Mina./)
lheh devolvo a.qui um poueo
do que me delta.m.
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11
APRESENTACÃO

Outubro de 1972. são Caetano de Odivelas, Salgado,


Pará. Em direção ao mar para a pesca do tubarão, a montaria
1 desliza magicamente no rio. A bombordo, desfila a massa escu
ra do manguezal; a estibordo, o rio se abre ã baia e ao ceu.
Cintilação de estrelas que a lua nova emergente não ofusca.
O murmúrio do vento na vela e da agua nos costados e, em con
traponto, um breve rumor nas matas ou o estalar do mastro
tornam o silêncio mais profundo. Emoção. Seu Benedito, o pa-
trão pescador, qUebra o encantamento: "Faz dias que está com
a gente. Você vê a nossa vida aperreada, sacrificada. Eu nao
tenho tempo de ler, mas aqui (num amplo gesto do braço) está
meu livro." Na leitura do céu, dos ventos, das correntes,
dos odores (em noite escura, reconhecia a proximidade do tu-
barão ao cheiro do seu vômito) estava uma parte da sua ciên-
cia da pesca. Mais do que isso, da harmonia com a natureza e
dos mistérios que se escondiam nela, tirava o seu sentido da
vida. Uma coisa só ameaçava essa ordem, segundo Seu Benedi-
to: o "dragão", a "besta-fera" que poderia pôr fim ã sua
tranqUilidade e ã da região, algo horroroso que nao sabia
bem o que era, "um tal de comunismo".

O que atingiu os barcos de pesca, as ilhas e as


praias e tirou a paz dos pescadores do Salgado foram a pesca
industrial e a especulação fundiária. Nestes últimos 20 anos,
u Amazônia atraiu definitivamente a cobiça do capital. Espe-
culação fundiária, mineração, empreendimentos duvidosos, pr~

J~Jores e/ou artificialmente sustentados pelos recursos -


pu-
hlicos trazem ã região um desenvolvimento pervertido e en-
lI!
1

saiam nela "o anteato da destruição", como disse o jornalis-


ta paraense Lúcio Flávio Pinto.

Frente a tal situação, forma-se progressivamente


uma consciência amazônica: trabalhadores urbanos, intelectu-
ais, lavradores, seringueiros, 'pescadores, índios escrevem
um livro de resistência e de esperança. Os camponeses e pes-
cadores de Santarém estão entre eles e é um pouco da sua his
tória que quero resgatar nestas páginas.

I O título se impôs a mim naturalmente. Lembra o in- I


1
j
cêndio criminoso que destruiu a sede do Sindicato dos Traba-
I
lhadores Rurais em 1985, a bala que matou 'Avelino Ribeiro,
i
I delegado sindical do interior de Santarém, em 1982, e, em pa
no de fundo, tantas mortes e incêndios sem fim. Mas, antes,
essa chama é a da Lamparina, símbolo da Corrente Sindical
"Lavradores Unidos", personagem central da história e do meu
trabalho.

Meus agradecimentos vao primeiro a eles, lavradores


e pescadores, engajados no movimento sindical dos trabalhado-
. ...
res rurais de Santarém, e a todos os que militam no munlCl-
pio ao seu lado, por manter viva a sua - e a minha - espera~

çaj

aos meus colegas, companheiras e companheiros da Fa


se, com quem aprendi muito do que está aqui e que me deram
condições para levar este trabalho adiante;

aos meus colegas do IESAE, à turma dos professores


que dignificam a sua profissão exercendo-a como uma função
social;
especialmente ao meu amigo e mestre Cândido Grzy-

IV
bowski que, com a sua competência e coerência, foi de funda-
mental importância nesta caminhada.

v
SUMÁRIO

INTRODUCÃO - O FOGO DO INCENDIO 1

CApITULO 1 PERCORRER OS CAMINHOS DA RESISTENCIA HUMANI-


ZAR O ESPACO. FAZER A HISTORIA 20

1.1 - Introdução 21

1.2 A formação do campesinato dos rios 28

1.2.1 - A geografia física dos rios e da várzea 29

1.2.2 - A escravização ao serviço do comércio colonial 32

1.2.3 - Crise do sistema colonial. A revolta amadurece 37

1. 2.4 A Cabanagem,um grito de liberdade 42


1.2.5 - A volta do caboclo à marginalização 46

1.3 - A formação do campesinato nordestino do Planalto 52

1.3.1 - O Nordeste em decadência 54

1.3.2 - O nordestino vai para a Amazônia: da colonização ao


seringal 57
1.3.3 - Uma aventura tropical: a Companhia Ford em Santarém 63
1.3.4 - A geografia física da terra firme 66
1.3.5 - Os nordestinos voltam à colonização 68

1.4 - A formação do campesinato das estradas 71


1.4.1 - A incorporação da Amazônia ao modelo capitalista mo-
nopolista 71
1.4.2 - O discurso militar da colonização na Transamazônica 74
1.4.3 - Os projetos de colonização. A megalomania tecnocrá-
tica à prova dos fatos 78

1.4.4 - Tirando a máscara: a Amazônia aberta à pilhagem 83

1.5 - Conclusão 88

VI
CAP!TULO 2 - A EMERGENCIA DE UMA CLASSE - (1974-78) 91

2.1 - Introdução 91

2.2 As condições em que surge o movimento. O meio ambiente


e seus atores 93

2.2.1 - O contexto político-econômico geral 93

2.2.2 - A cidade de Santarém 96

2.2.3 A Igreja no vácuo político 99

2.2.3.1 - A opção pelos pobres na Igreja de Santarém 101


2.2.3.2 - Entre o desenvolvimentismo e a Teologia da Liberta
çao 105
I

2.3 - A situação econômico-social dos ruralistas santarenos 110


2.3.1 - A estrutura agrária regional e local 110
2.3.2 - As diferenças entre os grupos sociais constitutivos
do campesinato santareno 116
2.3.3 - A unidade objetiva do campesinato santareno 121

2.4 - Novas lutas 128


2.4.1 - As atividades comunitárias: os grupos de revenda 128
2.4.2 - A luta pela terra no Ituqui: a saída de um silêncio
secular 133

2.4.3 - Os primeiros anos do PIC-Itaituba: o amadurecimento


da revolta 138
2.4.3.1 - Chegar e sobreviver 138
2.4.3.2 - A visita do General Médici a Rurópolis, vista pelo
outro lado 145
2.4.3.3 - Conflitos com o Banco do Brasil, o Incra e a Cibra
...
zem 149
2.5 - Um início de organização: o Grupo dos 30, os Caminhei-
ros 153
2.b -Conc:lusão 162
VII
CAPfrULO 3 - A AFIRMACÃO COLETIVA: "O SINDICATO SOMOS NOS"
(1978-82) 164

3.1 - Introdução 164


3.1.1 - A configuração do período 165
3.1.2 - A conjuntura da "abertura" 166

3.2 - O processo interno de construção da classe 175


3.2.1 - A criação da "Corrente Sindical Lavradores Unidos"
(1978-79) 1 76

3.2.2 - A corrente conquista o Sindicato. A pororoca


(1979-80) 187

3.2.2.1 - Cronologia 187

3.2.2.2 Como a cronologia vira história 193

3.2.3 - Fazer o barco andar no rumo certo. Aprendizado da


gestão e da representação. (1980-82) 203
3.2.3.1 - A organização material do sindicato 205
3.2.3.2 A divisão das responsabilidades 208
3.2.3.3 - As equipes de educação sindical 213
3.2.3.4 - A participação do STR nas articulações siridicais
nacionais 219

3.3 - Nossa força é nossa união. As lutas dos trabalhadores


rurais 221
3.3.1 - As lutas 222
3.3.1.1 - O conflito das Placas, Transamazônica 223

3.3.1.2 - Conflito com o IBDF na área da Flona-Tapajós 233

3.3.1.3 - As comunidades da margem esquerda do Tapajós em


conflito com empresas madeireiras 239
3.3.1.4 - A morte anunciada de Avelino Ribeiro da Silva, na
Santarém-Cuiabá 244

VIII
3.3.1.5 - A luta pelo preço da produção, contra os interme-
diários e o banco. Os grupos de revenda 254
3.3.1.6 - A luta pelas vicinais 265
3.3.1.7 - A luta dos pescadores contra os predatores. A con-
quista da Colônia Z 20 271

3.3.1.8 - O processo contra o presidente do STR 280

3.3.2 - A consciência de classe possível expressada nas lu-


tas 283

3.4 - Conclusão: novas práticas e nova ética 297

CAPrTULO 4 - OS CAMPONESES ENTRE O CAMPO E A CIDADE


(1983-85) 304

4.1 - Introdução 304


4.1.1 - A caracterização do período 304

4.1.2 - A conjuntura 1983-85 307

4.2 - As lutas sindicais 314


4.2.1 - As lutas pelà terra, pelo sub~olo e pelas águas 315
4.2.1.1 - Vargeiros contra fazendeiros em Surubim-Açu 316
4.2.1.2 - Conflito no Tapajós. O petróleo é nosso 322
4.2.1.3 - A luta contra a pesca predatória 324

4.2.2 - A defesa do preço da produção 331


4.2.2.1 - Os pescadores contra o entreposto pesqueiro 331

4.2.2.2 - O "revendão" e a feira livre 334

4.2.3 Ainda a luta pelas vicinais 339

4~2.4 - A luta pela saúde 343

4.2.5 - Lutas contra a repressão ao STR 353

4.2.5.1 - Ensaio de demonstração de força 353

IX
4.2.5.2 - Intervenção gorada 354
4.2.5.3 - O incêndio da sede do STR 360

4.3 - A presença do movimento campones santareno na " cidade


política" 364

4.3.1 - Os trabalhadores rurais e os movimentos e organiza-

cões da cidade de Santarém 364

4.3.2 - O STR e a CUT 372

4.3.3 - O campesinato santareno e o PT 377

4.4 - Conclusão. O desafio para o campesinato: se perder ou

se e.ncontrar 385

CAPITULO 5 - CONCLUSÃO 403

ANEXOS 417
..
GLOSS~RIO 421

BIBLIOGRAFIA 424

x
R E S UMO

o campesinato santareno (lavradores, pescadores,po~

seiros, colonos etc. é extremamente diversificado, distin-


guindo-se três trajetórias: a) a do campesinato de beira-
rio, oriundo do tempo do Brasil-colônia; b) a do campesina-
to do planalto, formado por nordestinos fugidos das secas e
do latifúndio e por sobreviventes do auge da borracha; c) a
do campesinato das estradas, que se origina na penetração da
Amazônia em conseqUência do modelo capitalista dominante. Po
rém todos se identificam pela mesma ameaça de exclusão fren-
/

te a este modelo que lhes atinge direta ou indiretamente.

As condições econômico-sociais criadas pela histó-


ria, a conjuntura e a ação de determinados agentes sociais -
da Pastoral, educadores e lavradores - propiciaram, em mea-
dos dos anos 70, a eclosão de um movimento de trabalhadores
rurais. Este movimento é visto num primeiro período (1974-78)
como comunitário, de ação e perspectivas limitadas; num se-
gundo período (1978-82) se define, predominantemente, como
movimento voltado para a organização sindical dos trabalhad~

res rurais; no terceiro período analisado (1983-85),a organi


zação sindical dos camponeses impõe a sua força relativa -a
"cidade política", presente na cidade de Santarém, na cur e
com uma ativa participação deles no pr.

Em cada período, combinam-se de modo diferente três


"graus" ou "momentos", constitutivos, segundo Gramsci, da
consciência de classe: o "momento econômico-corporativo", o
momento sindical e o momento político. Neste processo de in-

XI
teracão, concretizado nas suas lutas (por terra, saúde, es-
trada, melhores preços para a sua produção, contra a pesca
'predatória, etc.) e na sua organização, o campesinato santa-
reno forja a sua identidade coletiva, sua consciência de
classe.

Esta história é vista, ao mesmo tempo, como "políti


co-militar", em que um grupo social luta para manter e am-
pliar o seu espaço físico-social, e como pedagógica, em que
o grupo se socializa e constrói uma nova visão do mundo, ad-
quirindo/forjando os instrumentes conceituais e operacionais
necessários para sobreviver como classe em que seus componen
tes se impõem como cidadãos.

XII
RESUME

La paysannerie de Santarêm (petits fermiers e pécheurs,


colons propriétaires et simples occupants de terres publiques,
etc) est tres diversifiée. On peut distinguer trois trajectoi-
res: celle de la paysannerie riveraine des eaux, dont l'origi-
ne remonte au temps de la COlonie, celle de la paysannerie du
plateau, formée par les familles du Nord-Est que ont fui le la-
tifundium et la sécheresse, celle enfin de la paysannerie des
routes, que s'est formée ã partir de la pénétration en Amazonie
du modele capitaliste dominante Cependant la même menace d'ex-
clusion que fait peser sur eux ce modele, plus ou moins direc-
tement, les unit.

Les conditions économiques et sociales crees par l'his-


toire, la conjoncture de l'époque et l'action de différents ac-
teur sociaux - éducateurs, agents de I 'Eglise locale, paysans -
ont permis la naissance, au milieu des années 1970, d'un mouve-
ment de "travailleurs ruraux". Ce mouvement est vu, dans un
premier temps (1974-1978), comme communautaire, d'action et de
perspective limitées. Dans une seconde période (1978-1982), il
se définit de maniere prédominante comme mouvement syndical des
"travailleurs ruraux". Dans la troisieme période analysée (1983-
1985), l'organisation syndicale paysanne impose sa force relati-
ve a la civitas, la "ville pensée comme lieu du politique", se
faisant prêsente dans la ville de Santarém, dans la Centrale
Unique des Travailleurs et, par ses membres, dans le Parti des
Travailleurs.

Achaque période se combinent de maniere différente

XIII
trois "degrés" ou "moments" constitutifs, selon Gramsci, de la
conscience de classe: le "moment économique-corporatif", le mo-
ment syndical et le moment politique. Dans ce processus d'inter-
action concrétisé dans ses luttes Cpour terre, santé, routes et
transports, meilleurs prix pour la production, préservation de
la pêche, etc.) et dans son organisation, la paysannerie de San
tarém forge son identité collective, sa conscience de classe.

Cette histoire est donc vue autant comme "politique-


mili taire", dans laquelle un groupe social lutte pour maintenir
et augmenter son espace physique et social, que pédagogique,
dans laquelle le groupe se ·sociaJise et construit une nouvelle
vision du monde, assimilant et forjant les outils conceptuels
et opérationnels nécessaires ã sa survie comme classe et ã son
affirmation comme citoyens.

XIV
INTRODUÇÃO

O FOGO DO INCENDIO

Na madrugada do dia 12 de abril de 1985, queimou a


sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais(STR) de Santarém,
Pará. O cadeado quebrado e atirado ao chão, as quatro sa
las queimadas por igual a indicar fogo ateado simultaneamen
te. o desaparecimento de uma bicicleta .•. tudo indicava ter
sido o incêndio criminoso. Não haveria resposta para a pe!
gunta que todos se faziam: quem foi e por quê? Mas se os
trabalhadores rurais não podiam dar rostos e nomes aos in-
cendiários nem aos mandantes, sabiam que os culpados eram
velhos conhecidos. dentre os seus inimigos enfrentados de
cara limpa ao longo de 10 anos de luta, mas que so atacavam
apoiados na força bruta ou escondidos na calada da noite. Sa

biam também os trabalhadores que o incêndio era um sinal de


fraqueza, senão de medo por parte dos agressores e que. por
tanto, eles estavam certos quanto ao rumo que tinham traça-
do e de que sua força era suficiente para incomodar.

Foi um duro golpe no patrimônio e na memória do Sin


dicato, mas, passados os primeiros instantes de derrota e
tristeza, os trabalhadores colocaram na fachada arruinada
do prédio uma faixa com um misto de recado e afirmação: "O
Sindicato somos nós." Podiam destruir a sede, mas não des
truiriam a mente, a consciência do trabalhador. Disse um la
vrador: liA sede da nossa consciência está no coração das
crianças que crescem e jamais poderão quebrar ... " Quatro
meses mais tarde, na nova sede em festa, outra faixa desa-
fiava: "Oi nós aqui outra vez." Nós, lavradores de Tapa-
jós, nós varzeiros, nós colonos do Planalto e da Transamaro-
nica; nós: 12 mil associados. O que tinha transformado p~

raenses, cearenses, maranhenses, gaúchos e outros; caboclos,


brancos e mulatos; pescadores, produtores de arroz ou de man
dioca, seringueiros e caçadores em nós, sujeitos coletivos?
o que havia transformado lavradores economicamente insign!
ficantes em ameaçadores atores polí~icos?

Por feliz coincidência, na véspera do incêndio fo


ram retiradas dos arquivos do Sindicato as pastas contendo
documentos sobre os principais conflitos que os lavradores
enfrentaram em Santarém; das cinzas também escaparam ilesos
os livros de atas das assembléias do STR. Simbolicamente,pD!
tanto, estava resgatado o registro da história do movimento
sindical dos trabalhadores rurais de Santarém, de suas lu-
tas e da sua organização. Mas convinha dar "carne" e vida
a essa história, fazê-la viver, história dos homens em cons
trução, de uma classe camponesa em formação. Convinha ela
borá-Ia, construí-la para que fizesse sentido, ou melhor,
para que o sentido escondido aparecesse e que tivéssemos um
começo de resposta às questões colocadas acima. ~ a isso
que se propõe esta monografia.

Em poucas linhas, para qualificar os atores desta


história utilizei diversos nomes que indicam uma relação
diferente com a terra (produtor de arroz ou seringueiro)e/ou
n ocupação de um espaço físico diferente (colono ou varzei
rol, e apontam para um grau maior ou menor de generalidade
3

(colono, trabalhador rural, camponês). Ao ouvir ou ler ca


da um desses nomes, vem a nossa mente o contorno mais ou me
nos nítido de um grupo social, de urna realidade rural. Ten
tarei fazer com que esses nomes fiquem carregados de senti
do, prenhes de história, cada qual com a sua especificidade,
a sua riqueza. Por isso os usarei aqui, na medida do possi
vel e do desejável, respeitando o significado que lhes atri
buo. Para me referir a realidades bem definidas e localiza
das, falarei de colonos, lavradores, varzeiros etc. Já qua~

do estiver falando deles como coletivo, pensando no seu mo-


vimento, na sua organização sindical, usarei de preferência
o termo "trabalhadores rurais". Enfim, ao querer enfatizar
a sua participação num coletivo maior, os apresentarei como
"campesinato".

"Camponês e latifundiário são palavras p~


líticas que procuram expressar a unidade
das respectivas situações de classe e,
sobretudo, que procuram dar unidade as
lutas dos camponeses. Não são, portanto,
meras palavras. Estão enraizadas numa
concepção da história, das lutas políti-
cas e dos confrontos entre classes soci
ais. Nesse plano, a palavra camponês não
designa apenas o seu novo nome, mas tam-
bim o seu lugar social, não apenas no es
paço geográfico (campo/cidade), mas na
estrutura da sociedade; por isso, não e
apenas um novo nome,mas pretende ser ta~

bém a designação de um destino histórico"


( Ma r t in s, 1 9 8 3, p. 2 2) .

Embora a palavra "camponês" não faça parte do voc~

bulário corrente na região Norte, uso-a para significar que


4

o lavrador santareno e' seu movimento inscrevem-se dentro de


uma tradição de lutas formadoras de uma classe, de Norte a
Sul, cuja unidade esse nome simboliza.

Se o termo "camponês" impôs-se com as lutas desen-


volvidas no campo, no Nordeste, antes de 1964, o de "traba
lhador rural" acabou se sobrepondo ao primeiro, tão carreg~

do de "subversão", durante o regime mili tar. A expressão


"trabalhador rural" foi formalizada em 1963, com o Estatuto
do Trabalhador Rural (Lei n 9 4.214, de 2 de março de 1963).
Se este é definido de modo restritivo como "toda pessoa fÍ-
sica que presta serviços a um empregador rural", com a Por
taria n 9 71, de 2 de fevereiro de 1965, que normaliza o pr~

cesso de organização e reconhecimento de entidades sindicais


rurais, afirmou-se mais claramente que é trabalhador rural
tanto o empregado quanto o autônomo "em regime de economia
individual, familiar ou coletiva e sem empregado" (art. 39 ).
Foi nessa legislação - além do decreto que a criou, em 31 de
janeiro de 1964 - que a Confederação dos Trabalhadores na
Agricultura (Contag) apoiou-se para advogar para si a repre
sentatividade de todos os trabalhadores rurais (Contag, s.
d.). A lei complementar n 9 lI, de 25 de maio de 1971, ins-
tituindo o Prorural e o Funrural - Programa e Fundo de As-
sistência ao Trabalhador Rural, respectivamente - consagr.ou
o amplo uso do termo que pelo Decreto n 9 71.617, de 12 de fe
vereiro de 1974, se estendeu ao pescador. Embora a Contag
assuma a herança das lutas camponesas pré-64, os Anais do
IV Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais (1985) nao
falam de campesinato, senão numa breve introdução que apre-
5

senta o congresso como "um marco na história do movimento


camponês no Bras i1 ", dando, as s im, maior extensão a este ter
mo. A Central Onica dos Trabalhadores (CUT) , em seus docu-
mentos, fala tanto do campesinato quanto do trabalhador ru
ralo

A expressa0 "trabalhador rural", portanto, apesar


de carregar um forte componente institucional e autoritário,
acabou se legitimando. A Contag, justamente apoiada sobre
a sua tradição e o seu peso institucionais, ao usar a expre~

são, reafirma-se como representante dos interesses de um am


pIo leque de grupos sociais. Quanto à CUT, ao incorporar o
termo, lembra que muitos sindicatos do campo nela ingressa-
ram quando travavam disputas como "oposições sindicais", p~

ra que o sindicato voltasse ao trabalhador. "Trabalhador ru


ral" aqui coloca-se em ruptura com a continuidade institucio
nal, mas se quer portador de novas lutas. Eo caso de San
tarém, cujos lavradores, colonos, varzeiros etc., nascidos
como movimento nessa conjuntura, reconhecem-se como "traba-
lhadores rurais".

Ao iniciar este trabalho, eu pretendia atingir dois


objetivos de certo modo contraditórios: o de ajudar o movi-
mento dos trabalhadores rurais de Santarém a resgatar a sua
história e o de fazer uma reflexão sobre o papel da educa-
çao nesta história. Todo o meu esforço metodológico voltou
se, portanto, para dar conta dessa contradição: fazer com
que a educação apareça como ela ê efetivamente, tão insep~

rável do movimento que ao falar dele, é ela que se manifes-


ta; fazer com que a história contada não seja só devolução
6

aos atores do que eles ji sabem de sobra por viv~ncia -


pro-
pria, mas uma história reconstruída, nova, que se constitui
em ação pedagógica voltada não só nem principalmente para os
trabalhadores de Santarém, mas para todos os que estão a
fim de aprender com a experi~ncia de outros para enriquecer
a sua. Por isso, devo resgatar o que hi de essencial e de
universal numa experi~ncia que é única e particular.

Quando cheguei a Santarém como pesquisador mais


em abril de 1985, nao era estranho à região nem ao
grupo social que queria estudar. Tinha vivido nesta cidade
de janeiro de 1975 a março de 1977, como técnico em educa-
ção não-formal da Federação de Orgãos para Assist~ncia So-
cial e Educacional (Fase). Posteriormente, minhas novas f~

çoes dentro da mesma entidade me possibilitaram voltar -


va-
rias vezes ao Tapajós, o que me permitiu o acompanhamento de
longe do processo educativ%rganizativo que se desenrolava
ali. Não era mais o companheiro da luta diária, mas estava
suficientemente próximo para que os trabalhadores de Santa-
rêm me abrissem seus arquivos e liberassem sua fala com o
calor da amizade e da confiança, sem a censura imposta pela
experi~ncia de anos de luta. A sua disponibilidade devia-
se também à consciência de que estavam escrevendo comigo a
sua história, e que esta era uma tarefa militante a~rir.

Para o pensamento dialético, os outros são "aqueles


com os quais ajo em comum. Não são mais do lado objetivo,

mas do lado sujeito do conhecimento e da ação" (Goldmann,


1979, p. 21). Assim, o envolvimento pesquisador/pesquisados
num projeto comum torna-se condição epistemológica. Só con
7

seguiria conhecer por dentro a história dos trabalhadores


porque seria possível reconstruí-la juntos. Ao mesmo tempo
e contraditoriamente, esta proximidade poderia dificultar a
produção de um real conhecimento sobre a sua história. Eu
não devia esquecer que sou estranho - e até estrangeiro
a essa realidade; que a abordava com urna visão pré-formada,
fruto de urna reflexão teórica ja desenvolvida sobre campesl
nato, classes, educação, mas também de idéias, preconceitos
adquiridos ao longo da vida. Havia, portanto, um esforço a
ser feito de minha parte, não para negar ou eliminar essas
influências, mas, pelo contrário, a fim de torna-las "cdns

cientes e integra-las na investigação científica para evi-


tar ou para reduzir a sua ação deformante" (Goldmann, 1979,
p. 36). Quanto às. categorias teóricas, haveria que pô-las
..a prova no contato com a particularidade que representa o
meu campo de trabalho.

A minha identificação com o movimento dos trabalha


dores rurais provocou outra dificuldade - quanto ao aces
so a determinadas informações. Algumas repartições públicas
e pessoas protelaram o fornecimento de dados - talvez rele
vantes para a minha pesquisa - de tal modo que equivalia a
uma recusa; mas, em compensação, fizeram-me experimentar al
go provavelmente mais significativo: a exclusão dos traba-
lhadores da informação e do saber. Sobrava, porém, um acer
vo de dados provenientes de dentro do movimento. Procedi a
um levantamento minucioso de toda a documentação existente
nas sedes do STR (até a noi te do incêndio) e da Colônia Z 20,
em outros locais usados pelos trabalhadores, na casa de aI
8

gumas lideranças e no setor de documentação da Fase nacio-


nal.

Organizei todo o material em dossiês temáticos: or


ganização do sindicato, educação, lutas pela terra (10 do~

siês), saúde, estradas, produção, mulheres, jovens, igreja


etc. Vale ressaltar o enorme e precioso esforço de regis-
tro e organização da sua documentação que tinha sido feito
pelo próprio movimento. Dispunha também da coleção compl~

ta do seu boletim Lamparina (32 números, de maio de 1979 a


setembro de 1985) e do programa radiofônico semanal do STR,
"Momento Sindical" (de 1983 a 1985). Em complemento, fiz
60 entrevistas, 47 gravadas, às quais se acrescentam 9 dePOl
mentos já existentes (numerei no meu trabalho de 1 a 56 en-
trevistas e depoimentos dos quais tenho o registro escrito
lit~ral).

Como eu queria refletir sobre a história do movi-


mento e o processo de formação da consciência de classe, me
interessavam mais as práticas do movimento do que o discur
so das pessoas, e mais a reflexão das pessoas engajadas ati
vamente nesse processo do que da massa. Neste sentido, as
minhas entrevistas - "histórias de vida" (25) ou focalizan
do determinados aspectos - eram sempre referidas às lutas
travadas e a organização.

Com tanta documentação, arriscava enveredar por


uma descrição minuciosa de acontecimentos, uma vasta trans
posição da realidade em que se perderia possivelmente o es
sencial. Como ultrapassar as aparências, o episódio, o "fe
nômeno", para atingir a "essência", o fundamental? O que
9

faz com que os casos, as histórias particulares que se con


tam se transformem em história comum? Para responder a es-
sa questão, tentei no momento da pesquisa apoiar-me sobre a
reflexão esboçada por Marx na Introdução à crítica da econ~

mia política (Marx, 1978). Ele nos previne em relação ao


significado da realidade tal como nos aparece espontaneame~

te.

Lã onde pensamos ver algo de concreto, apresenta-se


uma abstração, algo vago e pobre de sentido. Fazendo um pa~

ticho de Marx, eu diria: o incêndio do sindicato e o próprio


I

sindicato são uma abstração se desprezarmos, por exemplo,as


classes que estão por trás. "Por seu lado, estas classes
sao uma palavra vazia de sentido se ignorarmos os elemen-
tos em que repousam, por exemplo: o capital" (Marx, 1978,
p. 116), ou seu trabalho submetido a certas formas de subor
dinação ao capital (o campesinato). o incêndio, ao final
do processo de investigação, embora nao se descubra o culpa
do material, faz sentido, toma concretitude, depois de ter
percorrido a história de enfrentamento de classes. Para
Marx, é só então que o incêndio se torna concreto, pois o

"real" começa a ser real, a tomar concretitude, quando -


e

pensado como inserido numa totalidade de relações e de deter


minações. "O método que consiste em elevar-se do abstrato
ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento
para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como con-
creto pensado" (Marx, 1978, p. 117).

Assim, o levantamento de material bastante exausti


vo justificava-se para que o concreto pensado ao qual que-
10

ria chegar fosse rico de múltiplas determinações e relações,


nao fosse um tronco seco, mas árvore bem encopada. Este con
ereto pensado é de fato uma "totalidade". Totalidade nao
significa reunir todos os dados sobre uma determinada reali
dade, todos os fatos, mas ver a "realidade como um todo es-
truturado, dialético, no qual ou do qual um ato quaLquer

(classe de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racio-


nalmente compreendido" (Kosik, 1976, p. 34). A totalidade
ê a outra face do concreto pensado.

Procurei ter como princípio metodológico de inves-


tigação "o ponto de vista da totalidade co.ncreta que, antes
de tudo, significa que cada fenômeno pode ser compreendido
como um momento do todo" (Kosik, 1976, p. 40). Tanto nas
entrevistas como na escolha e ordenação do meu material,bu~

cava assim estabelecer relações (entre os homens, no tempo


e no espaço), dar corpo, estrutura aos fatos (dar-lhes "co-
pa", para retomar a imagem usada anteriormente), entendê-los
na sua dinâmica, no seu desenvolvimento e na sua atividade
de criação.

A totalidade nao ê a generalização. O todo está


contido no fenômeno. Totalidade não ê. falar do campesina to
brasileiro em geral. ~ entender que ele está nesse campesi
nato santareno. E este trabalho responde ao que se propos
se eu der a esse campesinato uma dimensão universal, se eu
conseguir transpor para o papel, no plano da reflexão, o
que os trabalhadores rurais conseguiram no plano da sua pra -
xis: fazer história. Para melhor explicar, parto da conti
nuação da citação de Karel Kosik:
11

"Um fenômeno social ê um fato histórico


na medida em que ê examinado como momen-
to de um determinado todo; des empenha,po!,
tanto, uma função dupla, a única capaz
de fazer dele efetivamente um fato histó
rico: de um lado, definir a si mesmo, e
d e ou t r o, d e f i n i r o to do; ser a o mesmo tem
po produtor e produto; ser revelador e
ao mesmo tempo determinado; ser revelador
e ao mesmo tempo decifrar a si mesmo; co~

quistar O próprio significado autêntico e


ao mesmo tempo conferir um sentido a al-
go mais" (Kosik, 1976, p. 40).

o movimento dos trabalhadores rJais é um fato histórico por


que ao mesmo tempo que ê feito pela história nacional, faz
essa história. Nele está em jogo parte do nosso destino. Na
da de regionalismo nem estudo de caso de uma comunidade ru
ral periférica, que pertenceria quase ao passado. O drama
desses lavradores ou pescadores, as suas lutas são deles.
Mas o embate de classes que revelam é universal.

Concretitude e totalidade formavam o quadro teóri-


co no qual eu iria me mover, mas não são categorias opera-
cionais que podiam me ajudar a decompor e recompor meu uni-
verso de pesquisa: uma classe em movimento. Iria encontrá-
las em Gramsci.

A história humana é a história das relações que os


homens mantêm entre si, de forças que se enfrentam, de ven
cedores e vencidos. Essas relações podem e devem ser decom
postas, segundo Gramsci (1976, p. 49 e seguintes), em três
mom~ntos fundamentais.
12

o primeiro momento é "uma relação de forças sociais


estreitamente ligada à estrutura, objetiva, independente da
vontade dos homens". Através do tempo (história), forças s~

ciais lutaram para que determinadas relações prevalecessem


dentro de um espaço construído para tal (geografia). Da lu
ta econômico-política travada no passado entre forças so-
ciais, resultou um espaço social rural no município de San
tarém, ocupado por 80 mil pessoas, a grande maioria possei-
ros, dominados economicamente pelo capital usurário. ~ a es
trutura econômico-social encontrada e que é ponto de parti-
da objetivo da ação.

O segundo momento na totalidade histórica apontado


por Gramsci é "a relação das forças políticas: a avaliação
do grau de homogeneidade. de autoconsciência e de organiz!
ção alcançado pelos vários grupos sociais". ~ o momento que
privilegia a análise da vontade em ação, o momento de cons
trução da consciência de classe, de construção do movimento
camponês em Santarém. Este momento "pode ser analisado e
diferenciado em vários graus, que correspondem aos diversos
momentos da consciência política coletiva":
1 -"0 primeiro é o econômico-corporativo", em que se sente
que se deve ser solidário com alguém do seu grupo, mas
nao com o conjunto da classe ainda. Problemas de ordem
econômica fazem com que pessoas se juntem, por exemplo,
para. tentar resolver este ou aquele problema. A sua motiva
ção é o interesse imediato que os une.
2 -"Um segundo é aquele em que se adquire a consciência da
solidariedade de interesses entre todos os membros do
grupo social, mas ainda no campo meramente econômico." ~
13

o momento sindical, no qual se focaliza a articulação


entre a questão econômica e a organização que vai lhe
dar tratamento. Também, o "sindical" não é só a organi
zação específica, local que ajudaria a responder a tais
e quais questões, mais próximo da "comunidade". Eo si~

dicato, na sua concepção ampla, que inclui do específi


co ao geral: o conjunto do movimento sindical brasilei-
ro, as centrais. Sem essa dimensão, a classe ainda não
se pensa como classe.
3 -"Um terceiro é aquele em que se adquire a consciência de
que os próprios interesses corporativos, no seu desen-
volvimento atual e futuro( ... ), podem e devem tornar-se
os interesses de outros grupos subordinados( •.• ). Essa
é a fase mais abertamente política." E o momento do par
tido. O partido tem como objetivo o exercício do poder
sobre um país conforme um proj eto de soc.iedade para o
qual quer ganhar a maioria da população, numa sociedade
democrática. Para tal, a classe ou as classes, os seto
res sociais que integram o partido, além das suas lutas
e organizações classistas próprias de cada um, procuram
juntar-se, aliar-se no seu projeto comum.

Além de considerar esses dois momentos, Gramsci su


gere que se analisem os movimentos sociais, falando de guer
ra. Propõe que, na "relação de forças" entre classes e se-
tores sociais, se considera um terceiro momento, "o da rela
ção das forças militares". Gramsci empresta aqui o seu vo-
cabulário ã arte militar, pois trata do poder, e sua análi-
se dos Estados da Europa lhe mostra o quanto política e ar
mas estiveram intimamente ligadas na conquista e manutenção
14

do poder do Estado.

De fato, o que ele destaca neste momento ê a impo!


tância das relações políticas, pois ê neste campo que se de
cide o poder. Para expressar essas relações, usa as magens
de "guerra de movimento", que não interessa comentar aqui,
e de "guerra de posição". Na "guerra de posição" as forças
atacadas se incrustam e resistem nas suas posições. Os seus
adversários não conseguem impor sua superioridade e, pelo
contrário, ao não conseguir ocupar o terreno, vão-se desga~

tando e cedendo posições. Carlos Nelson Coutinho observa


"a correlação que Gramsci estabeleceu( ... ) entre 'guerra de
posição' e conquista da 'hegemonia' civil" (Co~tinho, 1981,
p. lOS), correlação que aparece, por exemplo, nesta citação:
"As superestruturas da sociedade civil são como o sistema de
trincheiras na guerra moderna" (Gramsci, 1976, p. 73).

Uma classe social conquista a hegemonia, a direção


de uma sociedade mediante a persuasão. Na sociedade brasi-
leira, as classes dominantes não conseguem exercer a sua di
reçao sem o recurso à força ou a ameaça. Não conseguem per
suadir o conjunto da sociedade de que elas são a melhor o~

çao para o futuro. Abre-se, portanto, espaço para que ou-


tras classes_possam tentar exercer uma contra-hegemonia,sen
do reconhecidas por apontar efetivamente um rumo ã socieda-
de e conseguir atraí-la para o seu projeto. Esse espaço aber
to nao se assemelha ao salão de baile onde reina a harmonia,
mas ao campo de batalha, onde uns lutam para conquistar ter
reno, outros para não perdê-lo. Luta em que, pela afirmação
das idéias e dos atos, consolidam-se ou perdem-se posições.
15

Se Gramsci elabora a sua reflexão pensando em gra~

des conjuntos sociais - Estados, países, sociedades, esti-


mo que possa usar essa categoria ao falar do campesinato de
Santarém organizado, componente da "sociedade civil". Ele
luta para ser reconhecido, para se impor, tenta ganhar alia
dos, perde batalhas e ganha outras ... Faz pa~te dessas pa!
celas das classes dominadas que recomeçaram nestes últimos
anos uma luta longa e indecisa para mudar a correlação de
forças existentes hoje.

Assim, eu pensaria o campesinato santareno como to


tal idade ao conseguir açambarcar na minha pesquisa os três
momentos apontados por Gramsci: 1) o econômico/estrutural;
2) o de constituição da classe; 3) o político-militar. O
meu campo de investigação específico era o segundo momento,
mas para compreendê-lo teria, pelo menos como pano de fun-
do, de apreender os dois outros momentos. Pois como falar
das lutas dos trabalhadores rurais de Santarém se nao busco
compreender as condições objetivas em que se dão? Como po-
deria afirmar que são parte do campesinato se nao os situo
mesmo de leve dentro da história política, da luta de clas-
se que se desenrola no País? Tive de abrir, portanto, a ml
nha investigação à histó.ria antiga e recente e a uma -breve
recuperaçao do lugar estrutural ocupado por esses colonos,
lavradores, pescadores ••.

Quanto ao segundo momento, os três graus em que


Gramsci se propõe decompô-lo me orientaram em dois sentidos.
Primeiro, levaram-me a separar as lutas da organização e a
distinguir lutas e organização específicas do trabalhador
lo

rural das suas relações com outros setores. Foi o tempo


propriamente da decomposição. Mas a finalidade dessa sepa-
ração analítica entre lutas, organização, ações comuns com
outros setores etc. era reconstruir uma totalidade. Portan
to, teria de ficar atento aos elementos que me permitissem
relacionar esses graus. E como essa relação entre o econo
mico-corporativo, o sindical e o político não está parada no
tempo, não é estática, mas dinâmica, movimento permanente,
procuraria ver se a relação não se daria de modo diferente,
segundo a época. Neste sentido, procurei, para cada perí~

do analisado, descobrir uma característica dominante ~ue

influísse na combinação desses graus e que fizesse com que


nenhum período repetisse o outro; pois a totalidade nao e
juntar tudo sobre um determinado período, mas em cada momen
to histórico compor os seus elementos para formar uma tota
lidade original, diferente do que seria numa outra época.

Se os cortes gramscianos me forneciam a chave que


precisava para a recuperaçao da história do movimento sindi
cal dos trabalhadores rurais de Santarém, também me permiti
riam, acredito, desvendar o processo político-educativo in-
corporado ao movimento. Concebo a educação como um aprendi
zado que faculta ã pessoa criar as condições de realizar as
suas potencialidades, no confronto de elementos de aprendi
zado adquiridos com a sua experiência própria. Analogica-
mente, penso educação para o campesinato como um aprendiza
do coletivo. No confronto do que a vida lhe ensina com a
reflexão já elaborada pelos homens, ele vai eleborando o
seu próprio conhecimento que o ajuda a realizar as suas po-
1 :-

tencialidades, a defender seus interesses, a desenvolver as


suas solidariedades. A educação, portanto, ê um processo
que visa um fim. O fim aqui seria o homem novo, e o proce~

50, a construção deste homem. Parece evidente que, para fa


-
lar de educação, se deveria perguntar primeiro que homem
se quer formar. "Ao colocarmos a pergunta: 'o que e o - ho-
mem escreve Gramsci - queremos dizer: o que e que o ho
-
mem pode se tornar, isto e, se o homem pode controlar seu
próprio destino, se ele pode 'se fazer', se ele pode criar
a sua própria vida. Digamos, portanto, que um homem ê um
processo, precisamente o prdcesso dos seus atos" (Gramsci,
1978 2, p. 38).

-
Processo e , portanto, o surgimento constante mas
sempre renovado do homem coletivo. Como o animal que vai
trocando de pele com a nova estação, ele se renova, se puri
fica. Gramsci chama a isso de "catarsis":

"Catarsis( ••• ), passagem. do momento purame~

te econômico( ... ) ao momento ético-poli


tico, isto é, a elaboração superior da
estrutura em superestrutura, consciência
dos homens. Isto significa, tambem, a
passagem do'objetivo ao subjetivo' e da
'necessidade ã liberdade'. A estrutura
da força exterior que sub.juga o homem,
assimilando-o e o tornando passivo,tran~

formando-se em meio de liberdade, em in~

trumento para criar uma nova forma ético


política, em fonte de novas iniciativas"
(Gramsci, 1975 Q, p. 53).

Processo nao ê, desse modo, o "como fazer"; nao -


e
13

método nem técnica para alcançar o resultado, o homem novo,


a classe ideal. ~ o fazer em movimento; o homem novo se fa
zendo. E é isso justamente que os momentos gramscianos me
permitiriam apreender: lavradores nas suas lutas contra a
expropriação e a exploração promovidas pelo capitalismo na
Amazônia, saindo da sua passividade e fazendo daquilo que
os subjugava o meio da sua liberdade e da sua dignidade.

Na pesquisa, abordo 11 anos do movimento dos traba


lhadores rurais de Santarém: 1974 a 1985. ~ um tempo curto
frente ã escala da história, mas no quadro de um estudo es-
pecífico, faz-se necessário recortar o processo de lutas em
períodos que ajudem a melhor entender a dinâmica do movimen
to, os passos e os saltos que deu. A tentação dos atores é
fazer o recorte a partir deles, do que eles consideram im-
portante na trajetória do movimento: "Em 1974, nós chegamos";
"em 1978, nós organizamos um grupo que viria a ser a Corren
te Sindical"; "quando ganhamos o STR em 1980 ••• ". A impre~

são inicial é de que os recortes sao feitos em função da or


ganização interna da categoria, sem que haja referência ex
plícita ao movimento da classe para a qual a organização -
e

só o instrumento privilegiado, não o fim, nem ã evolução da


correlação de forças. do local ao nacional, que influi no
movimento.

Como "princípio de periodização" (cf. Cardoso ,1976,


p. 23) ,partiria de uma perspectiva de totalidade. A totali-
dade maior que eu podia abraçar era a conjuntura nacional,
que poderia me indicar os cortes históricos nos quais a hi~ I

tória do movimento de Santarém se inseriria. O confronto


l

I
19

da periodização que me indicava a conjuntura nacional


os cortes propostos pelos dirigentes do movimento mostrou a
com
I
afinação de ambas as propostas.

o capítulo introdutório recupera um pouco da forma


çao histórica do campesina to santareno. O capítulo 2 aborda
os anos 1974-78. Neste tempo da distensão, surgem em Santa
rém os primeiros ensaios de luta coletiva e organização, em
cima de uma situação econômico-estrutural que é objeto da
primeira parte deste capítulo. Embora as forças estruturais
condicionem permanentemente a história, nao voltarei a elas
nos capítulos seguintes por considerar que nao evoluíram
substancialmente nos períodos que estudo. O capítulo 3 abo!
da o tempo da abertura (1978-82), quando os trabalhadores ~

rais santarenos se organizaram, conquistando o seu sindica


to e alcançando vitórias significativas nas suas lutas pela
terra. O capítulo 4 trata de um período que assinala o fim
da ditadura (1983-85), com a ascensão política de novas for
ças sociais e recuperaçao. pelas classes dominantes, da con
dução política do País; mostra os trabalhadores rurais indo
ã "cidade", tornando-se atores nacionais. Finalmente, a
conclusão proporá algumas reflexões sobre a educação.

f
f
20

CAPfTULO 1

PERCORRER OS CAMINHOS DA
RESISTENCIA, HUMANIZAR O ESPAÇO, FAZER A HISTÓRIA

I "Ninguem ouviu um soluçar de dor/ no


canto do Brasil. Um lamento triste
sempre ecoou/ desde que o indio
guerreiro foi pro cativeiro e de lã can-
tou.
Negro entoou um canto de, revolta pelos
ares. No quilombo dos palmares, onde
se refugiou/ ora a luta dos inconfidentes
pelas quebras das correntes de nada adian
tou/ e
de guerra em paz a paz em guerra

I todo povo desta terra/ quando pode

canta de dor
can-
tar,

-
......
o, --
o, o, o, o
Ecoa noite e dia/ es o vencedor/
ai mas que agonia/ ê o canto do
trabalhador/ este canto que devia/
ser um canto de alegria/ soa apenas
......
como um soluçar de dor, o, o, o, ......
o. "
(Canto das três raças)

"Os homens fazem sua própria história, mas


não a fazem como querem; não a fazem sob
circunstâncias de sua escolha e sim sob
aquela com que se defrontam diretamente,
ligadas e transmitida pelo passado"
(Marx, K., s.d.)

1
1
.21

1.1 - INTRODUÇÃO

Apesar de colocar como da ta inicial do movimento dos


trabalhadores rurais de Santarém os anos de 1974-75, por m~

tivos que serão apresentados mais adiante, as suas raízes


devem ser procuradas num passado mais remoto. ~ com a in-
tenção de ajudar a compreender as lutas atuais que pretendo
fazer aqui alguns apontamentos históricos e geográficos so-
bre o campesinato santareno.

Ao se ficar absorto na contemplação do rio Amazonas a


,
impressão inicial que se tem de movimento provocado pela co~
renteza desaparece para ceder lugar a uma sensaçao mesclada
de imobilidade e imutabilidade. -
Hoje e como ontem e amanhã
será como hoje ..• ~ difícil cultivar a noçao do tempo pela
escala humana (um dia, uma idade da vida, uma geração) num
mundo em que a natureza ainda se impõe como referência pri~

cipal, marcando a paisagem ao longo de lentos séculos e mi-


lenários. A natureza tem seu tempo, um tempo anistórico,no
qual os homens não intervêm. Aqui falo do tempo histórico,
ritmado pela presença e pela ação do homem e que vai debmr,
por sua vez, a sua marca na paisagem ao longo dos anos, das
décadas e dos séculos. O homem faz a história, dá sentido
ao grande rio humano que corre entre as margens que ele pr~ -
prio delimita, dentro de uma tradição filosófica comum ao
cristianismo e ao marxismo, embora essa visão otimista seja
temperada pelo "salto" que representa o Reino de Deus, para
a teologia, e a resolução das contradições, para a dialéti
ca marxista.


De fato, nao seria a afirmação de Marx demasiadame~

te idílica para caracterizar a atuação histórica do campesi


nato santareno? Será que este fez a história, ou "sofreu"
a história feita por outros? Ou, então, se deverá pensar a
sua ação como de resistência durante décadas e séculos a pr~

parar o seu surgimento como ator, e não mais como figurante


ou marionete? Karel Kosik afirma que "o único sentido da
história" é que "o homem se explicita a si mesmo", "se rea-
liza, isto é, se humaniza" (Kosik, 1976, p. 21). Há uma ten
dência para nao se ver sentido nesse passar de gerações de
I

lavradores, pescadores e caçadores, a não ser que se mante


nha forte o senso da continuidade para se perceber que as
lutas e as conquistas de hoje, a afirmação de uma classe e
da supremacia do "nós" sobre o "eu" têm a ver com o "traba-
lho e (os) resultados obtidos pelas gerações precedentes"
(id. ibid., p. 218). Portanto, só ao abranger um longo pe-
ríodo histórico pode-se "pôr em evidência os fatores de
transformação e de renovação" (Goldmann, 1979,p. 38) da so
ciedade rural do Baixo Amazonas, ver os seus componentes co
mo ator histórico.

Para tal, Lucien Goldmann acrescenta uma segunda


condição: enquadrar o relato "numa análise de conjunto" (id.
ibid.). Contar o que aconteceu cornos lavradores do municí
pio durante décadas ou séculos sem situar os fatos e as suas
interpretações num contexto mais amplo regional, nacional

I
â
e internacional - não seria história, mas no máximo
crônica de datas, dados e acontecimentos. Se fazer
mera
histó-
ria é agir sobre o nosso mundo, transformá-lo e humanizá-lo,

I
é impossível separar o campesinato de Santarém das grandes
forças sociais em açao no mundo e que o "puxaram" e "puxam"
para participar.

Longo tempo histórico e análise de conjunto sao ne


cessários para situar, retomando as palavras de Marx, os at~

res da história nas "circunstâncias( ... ) com que se defron


tam", independentemente da sua escolha. Se o "caboclo" san
tareno teve durante mais de dois séculos uma presença apag~

da, a não ser na época da cabanagem, como será visto adian


te,isso nao quer dizer que tenha sido devido a sua índole,
que lhe tenha faltado vontade para influir nos acontecimen-
tos. Obviamente, ele se defrontava com uma realidade obj~

tiva mais forte do que as suas veleidades de rebelião, com


um sistema econômico e pOlítico que atravessa séculos. ~

necessário refletir sobre um longo tempo para nao se con-


cluir dessa realidade objetiva que os homens estão submeti
dos a um determinismo implacável, obrigados - como o rio
que corre dentro do seu leito e limitado por suas margens -
a avançar rumo ao futuro contidos rigidamente por leis, re-
gras e classes sociais dominantes. A observação de um lon
go tempo permite perceber as mudanças históricas a vonta
de dos homens em açao - como frutos de' lento amadurecimen
to.

Pelos mesmos motivos, a análise de conjunto é im-


prescindível. As forças sociais, econômicas e políticas com
que se defrontam os lavradores santarenos nao se encerram
no território do município. São e sempre estiveram total-
mente integradas e articuladas à região, ao País e à econo
mia internacional, o que coloca limites formidáveis à cap~

cidade e à vontade do trabalhador santareno de fazer histó


ria, embora ao mesmo tempo esteja, assim, se aproximando e
se juntando a outras massas humanas, o que possibilitaria a
emergência de uma vontade com força real. O grande histo-

I riador Caio Prado Junior, em introdução a uma de suas prin-


cipais obras, salienta essa perspectiva internacional:

"No seu conjunto, e vista no plano mundial


e internacional, a colonização dos trop!
cos toma o aspecto de uma vasta empresa
comercial, mais complexa que a antiga fei
toria, mas sempre com o mesmo caráter que
ela, destinada a explorar os recursos na
turais de um territorio v~rgem em prove~
to do comercio europeu" (Prado Junior,
1974, p. 22).

Um grupo social deixa a sua marca na história na


medida em que ocupa um espaço físico, imprime nele um sinal
duradouro e o controla. ~ esse domínio sobre o espaço que
também constitui qualquer grupo social como ator histórico.
Compartilho dessa definição de geografia sugerida por -
geo-
grafos franceses: f
"As relações sociais inscrevem-se nas pai
sagens como sobre uma superfície de gra-
-
vaçao: memória
I
Os aparelhos de poder atuam no espaço:
terreno e nele se materializam: posiçõEs.

As classes, as frações do capital, os


exercitos, os Estados aí se opõem: fren-
tes, nele disputam territorios:interesse.

j I
!

I
,-
-;)

Os seus aparelhos fixam residências, de~


locam, exilam, canalizam, fecham: cidades
operárias, guetos, cidades novas, fave-
las, campos, quarteis.

As relações sociais são relações de for


ça" (Lacoste, s.d., p. 133).

Essa definição parece-me bem adequada ao propósi-


to anunciado na introdução: falar de movimento, de forças,
de luta, de conflito. Palavras e inagens de guerra, pois a
geografia, antes de ser instrumento do planejador, foi a
ciência dos oficiais. Mas não ser~a algo como uma guerra o
que se trava no silêncio das águas e das matas? Guerra em
que o campesinato santareno procura exercer a possibilidade
de ocupar e transformar o espaço local conforme os seus in-
teresses e em consonância com a realidade física na qual se
insere? A geografia, portanto, estará presente ao longo de~

sa história, tanto a física, "a superfície da gravação", qua!!


to a própria "gravação", a marca da ocupação humana, fruto
das relações sociais conflitantes historicamente travadas.

Os mapas I e 2 (anexos) procuram introduzir ã geo-


grafia do município. ~ preciso, porém, fazer duas importa~

tes ressalvas:
I - O mapa I apresenta a geografia física. ~ preciso nao
imaginar esse espaço como se fosse uma superfície de gr~

vaçao virgem. Durante centenas e mesmo milhares de


anos, tribos senão nações indígenas ocuparam a região.
Os índios Tapajós, exterminados pelos conquistadores,
deixaram suas marcas nas admiráveis cerâmicas encontra-
das no lugar onde ficavam suas aldeias. A forma de ocu-
paçao da região até hoje deve muito aos indígenas. Po-
rem, por limitações pessoais e deste trabalho, deixarei
de falar sobre essa ponte histórica, econômica e cultu-
ralmente tão fundamental entre o mundo indígena e a Ama
zônia rural moderna.

2 - O mapa 2 reflete a formação econômica e social do esp~

ço. Vale notar aqui que não se deve deixar enganar p~

lo mapa. Ao encerrar esse imenso município numa página,


fica-se impedido de colocar os detalhes como povoados e
estradas abertas por moradores do interior. O lei tor que
não conhece a região Norte pode esquecer que os rios e
igarapés são vias de comunicação. O mapa aqui apresen-
tado, portanto, é pobre, falta-lhe vida. Nele, o cená-
rio de muitas lutas travadas pelos lavradores de Santa-
-
rem nao aparece.

o município de Santarém está plantado no coraçao


da Região Amazônica, na microrregião do Médio Amazonas Pa-
raense, segundo o IBGE - ou, mais usualmente, no Baixo Ama
zonas. Está situado na foz do rio Tapajós. Para tomar cons
ciência das dimensões do município, basta ver que seus
26.058km 2 cobrem uma área maior que a de Sergipe (21. 994krn 2)
e metade do Estado do Rio de Janeiro (44.268km 2).

Apesar do desmembramento do município de Aveiros,


no rio Tapajós, prevalece a configuração clássica das anti-
gas divisões administrativas, correspondente à primeira ocu
pação do terri tório: partindo das vias de comunicação (o rio,
onde se localiza a sede) e se estendendo em direção às cabe
ceiras (parte do Tapajós, o rio Arapiuns e o rio Curuá-Una).
O recorte administrativo do espaço (os limites do município)
revela um certo grau de arbitrariedade, mas restrinjo-me -a !
i
apresentação do município por ser o movimento dos trabalha-
I
dores rurais de Santarém a minha referência, embora vejamos
como o próprio movimento não se encolhe nele como numa cami
sa de força. Contento-me, aqui, em lembrar que Santarémpe~
II
,t
tence ã Região Amazônica, física, econômica e politicamente,
adotando a definição que Francisco de Oliveira dá de região:

"Uma 'região' seria o espaço onde se imbri


cam dia1e ticamen te uma for'ma especial de
reprodução do capital, e por conseqUên-
cia, uma forma especial de lutas de c1as
ses, onde o econômico e o político se fu
sionam e assumem uma forma especial de
aparecer no produto social e nos pressu-
postos da reposição" (Oliveira, 1981, p.
29).

Minha perspectiva é totalizadora, o que nao sign!


fica o nivelamento das diferenças. Dentro e a partir deste
espaço, estou interessado em mostrar como o campesinato san
tareno forma uma classe, embora a história da ocupação do
município e a grande diferenciação do espaço físico tenham
condicionado sua diversidade e heterogeneidade. Nesse sen-
tido, abordarei sucessivamente a formação do campesinato da
várzea e de beira-rio, a do campesinato do planalto, a do
campesinato de estrada. A localização geográfica expressa
a diferença, e a palavra "campesina to" a unidade do seu des
tino. Como as águas azuis do Tapajós correm paralelas -as
28
I
-
a guas amarelas do Amazonas, antes de se fundirem numa cor-
rente única, ao longo do tempo formaram-se esses diferentes
grupos sociais, cada um com a sua originalidade. t um pou-
co dessa história que esboço neste capítulo, antes de ver co
mo se juntaram para formar uma única corrente.

1.2 - A FORMAÇÃO DO CAMPESINATO DOS RIOS


I
Embora o eco da queda de Constantinopla ao ser to-
mada pelos turcos atomanos não ressoasse nas aldeias indíg!
nas tapajós, em 1453, a sua sorte estava selada. Era por
Constantinopla, último bastião oriental da Europa cristã,
porta da Ásia, que passavam as rotas das especiarias, da s!
da e dos metais importados por mercadores de Veneza, Gênova
e outras cidades italianas para abastecer a Europa. Com a
sua conquista, os turcos otomanos passaram a controlar pa~

te do mar Mediterrâneo e a impor suas condições ao comercio


europeu com o Oriente. Fazia-se necessário, então, procu-
rar um caminho alternativo para as Indias. Querendo, ade-
mais, quebrar o monopólio comercial das cidades italianas,
holandeses, ingleses, franceses, espanhois e portugueses lan

] çaram-se ao mar desconhecido.

!, Só após decorridos quase cem anos, em 1542, teve-


se o primeiro registro da passagem de europeus pela região,
1 com a descida do rio Amazonas pelo espanhol Francisco de
Orellana. Mas só em 1626 o português Pedro Teixeira atinge
as praias de Tapaj6s na chefia de uma tropa de resgates. E
pelos rios que se processa a conquista. E voltada para eles
e moldada por eles que se consolidará, durante séculos, a
ocupação da região. Por isso acho importante conhecê-los
melhor.

1.2.1 - A geografia dos rios e da várzea

A geografia física e humana do município é marcada


por quatro rios: Amazonas, Tapaj6s, Arapiuns e Curuá-Una. O
Amazonas é um rio de "água branca" que acumula "uma carga
de minerais suspensos, altamente solúveis, e partículas do
s6lo", arrancadas às montanhas andinas e parcialmente depo-
sitadas anualmente na várzea, "injetando uma camada de solo
novo no velho terreno" (Meggers, 1977, p. 31). O Tapaj6s é
um rio de "águas claras" que, por atravessar terrenos areno
sos e ter margens altas e firmes, carrega poucos sedimentos.
"A ausência, nas águas, de matéria orgânica consumidora de
oxigênio, aliada a uma maior transparência, fornece um meio
ambiente mais propício à vida aquática" (id. ibid.). Não é
o caso do Arapiuns, seu afluente, rio de "águas pretas", c~

mo o rio Negro, cuja cor decorre da dissolução dos ácidos


"que provêm da decomposição da materia orgânica vegetal que
recobre o chão das florestas" inundadas das suas margens.
(Soares, 1963, p. 82). Do ponto de vista do aproveitamento
humano, os rios de água preta e as terras por eles irriga-
das têm um tão baixo potencial na produção dos meios de sub
sistência que são conhecidos na Amazônia como "rios da fo-
I me". Quanto ao rio Curuá-Una, forma com seus afluentes, no
f
1 f
í
tadamente o rio Moju, uma rede que se estende por quase to
do o planalto santareno. Estreito e barrado por cachoeiras,
só recentemente, na sua parte média, serviu corno via de pe-
netração. Se cada um desses rios tem a sua especificidade,
eles são elementos ligados a duas realidades totalmente dis
tintas: o Amazonas atravessando/formando a "várzea" e os ou
tros rasgando a "terra firme".

A várzea é a área submetida às enchentes do Amazo-


nas, numa largura que varia entre 44km a este de Santarém e
22km a oeste. Através dos milênios, as variações sazonais
do rio carregado de limo criaram ou apagaram ilhas, campos,
matas de igapó~ lagos, paranás e furos. o mapa 3 nos dá uma
idéia da configuração emaranhada da várzea. A figura 1, que
representa um corte idealizado - a realidade é mais compl~

cada - -
da varzea no sentido transversal, mostra os tipos
de nichos criados pela alternância de enchentes e vazantes
do rio. A cada um corresponde um ambiente original em que
o solo (fertilidade), a água, a vegetação combinam-se de mo
do diferente, propiciando formas de vida e de atividade hu
mana diferenciadas.

Se "a vegetação natural da várzea alta é a flores


ta", composta de "espécies resistentes às inundações periódi_
cas" (Meggers, 1977, p. 49), notadamente palmeiras como os
açaizeiros e a gigante sumaúma, esta tende a desaparecer por

força da atividade humana, enquanto a várzea baixa, de cam-


pos e matas baixas inundadas anualmente, mantém as suas ca
racterísticas.

o meio - ambiente aquático é extremamente rico e


t
-'1 I
complexo, "principalmente porque as águas que carregam os
sedimentos se alastram irregularmente pela várzea" (Meggers,
1977, p. 47). A cota mínima da vazante do Amazonas é atin
gida em outrubro ou novembro. Em novembro ou dezembro come
çam as chuvas no Baixo Amazonas e no médio e alto Tapajós.
Em abril e maio, este rio, o Arapiuns e outros afluentes me
nores do Amazonas (Trombetas, Cuminá, Curuá e Maicuru) ati~
I
gem o seu pique e abastecem a várzea de águas puras. Quan-
do o ponto máximo da enchente do Amazonas alcança, por sua
vez, em junho a região de Santarém, as suas águas encontram
j

canais e lagos em boa parte cheios. "A associação desses


dois tipos diferentes de água cria um misto-de lagos e ca-
nais de águas transparentes, preta e branca, que propiciam
uma extraordinária variedade de condições para o desenvolvi
mento de plantas aquáticas e vida animal" (id. ibid. p. 47).
Essas águas alimentam uma variedade de peixes, quelônios e
mamíferos aquáticos muito superior a qualquer rio ou oceano:
entre 1.300 e 2.000 espécies na bacia amazônica. Destacam-
se o peixe-boi, o pirarucu, o tambaqui, o tucunaré, a tart~

ruga e o jacaré. Hoje o peixe-boi é extinto na região. A


tartaruga e o jacaré são raríssimos. Quanto ao pirarucu,
outrora chamado "bacalhau do pobre", hoje dificilmente é en
contrado no seu tamanho adulto.

I
l
Nesse ambiente viviam tribos dispersas preocupadas
em controlar um território suficiente para assegurar sua so
!
i
brevivência, combinando de modo diferenciado, conforme a
t
] sua referência principal - a mata ou o rio -
e a epoca do
ano, a pesca, a caça, a colheita dos frutos silvestres e a
cultura do roçado: mandioca, milho, algodão, frutas.

1.2.2 - A escravização a serviço do comércio colonial

A chegada de Pedro Teixeira nas praias de Tapajós,


em 1626, marcava a entrada na região da dinãmica da econo-
mia mercantil colonial, característica do credo econômico de
Portugal dos séculos XVI a XVIII. I
Através do comércio com o ultra-mar é que Portugal
obteria a riqueza necessária ao seu desenvolvimento. Para t
tal, a metrópole teria de manter a colônia como fonte
abastecimento de matérias-primas (drogas do sertão, cacau,
de
I
I
café), pedras e metais preciosos e como mercado consumidor
de manufaturados produzidos pela metrópole. A Amazônia es-
taria inscrita dentro deste sistema pela via do extrativis-
mo. Nesse comércio, se deveria garantir um saldo positivo
a favor da metrópole, saldo gerador de riquezas. Enfim, pa
ra maior garantia, o comércio colonial seria monopólio da
metrópole. Esse sistema se manteria na base da conquista e
do controle militar da colônia e graças à escravidão.

De fato, na primeira metade do século XVI, Portu-


gal teve de lutar para assegurar o controle militar da co1ô
nia. De 1580 a 1640, a coroa portuguesa passou para a famí
lia real espanhola e o Brasil tornou-se presa fácil para os I
inimigos da Espanha. Os holandeses, que comercializavam
f
grande parte do açúcar produzido em Pernambuco, passaram a
ocupar essa região, da qual só sairiam em 1654. No Norte,
holandeses, ingleses e franceses ocuparam pontos na foz do
I,
í
I
Amazonas e no Maranhão. Em 1616, os franceses foram expu!
sos de São Luís, e em 1619, os ingleses, de Belém. Mas foi
só em 1640 que Portugal conseguiu o controle total do Norte.
A ocupação do Tapajós pelos portugueses não era, na -
e poca,
permanente. Eram feitas incursões econômico-militares como
a da tropa de resgate chefiada por Pedro Teixeira, formada
dizia-se - para resgatar índios escravizados nas maos
de outros grupos mas que visava, na realidade, obter mao-
de-obra para os brancos.

Quando se diz que a economia colonial era assentada


sobre a escravidão, trata-se sobretudo da escravidão negra,
embora a indígena não fosse desprezível e tenha contribuído
para dizimar os nativos.

A principal atividade econômica colonial era a pr~

dução e comercialização do açúcar, não só por sua importân-


cia de per si, devido ao valor dessa mercadoria e ao grande
contingente humano envolvido nesse setor, mas pelo fato de
ser baseada sobre a escravidão negra. De fato, a escravi-
dão africana permitia grandes lucros ã burguesia traficante
da metrópole, "ao nível da circulação da mercadoria humana"
(Alencar, 1981, p. 25), ã nobreza nordestina, a nível da pr~

dução, e aos comerciantes, os holandeses, os portugueses i~

ta1ados no Brasil, a nível da comercialização. Segundo Câ~

dido Grzybowski, a ocupação holandesa, apesar de reduzida a


uma parte da região de produção de açúcar

"( ••• )influencia o conjunto da estrutura


colonial implantada no Brasil pelos po~

tugueses. 1 ipocada ocupaçio, os holan


deses já dominam a costa da Ãfrica( .•• )e
o tráfico negreiro. ~ o motivo pelo

f
-,
.' ,

qual, com a queda da fonte africana de


mão-de-obra para os portugueses do Bra-
sil, o mercado de mão-de-obra indígena se

I
amplia. O resultado, no plano interno no
Brasil, é uma divisão do trabalho entre
a região de produção do açúcar e a re-
gião de captura do índio"(Grzybowski, c.
1979, p. 39-40).

Era sobretudo a Capitania de são Vicente que forn~

cia a mão-de-obra indígena, porém também no Maranhão imp1a~

-
tava-se a agromanufatura do açucar, e os colonos apelavam
1
I
para a escravização do índio amazonense (Aquind, 1982, p.
48).

I
Além desse imperativo decorrente da economia do
açúcar, a ocupação da Amazônia e a economia extrativista
impunham a escravização indígena. Como escreve o historia
dor da Amazônia, Arthur Cezar Ferreira Reis:
I
f

"A identificação das espécies florestais


I
de valor econômico, as tarefas de pesca,
que constituíam elemento fundamental na I
dieta alimentar, os afazeres domesticos,
as atividades de movimentação das embar-
-
caçoes, sem o que nao - se caminhava na
Amazônia, toda ela cortada de estradas
líquidas cujos segredos o indígena conhe f
cia como ninguém, tudo devia estar a car
go desse braço nativo, imprescindível,
pois, para que se efetuasse, dinamizasse
e frutificasse incessantemente a empresa
If
r~
de domínio" (Reis, 1979, p. 14).

I
As conseqtlências para a população indígena em ge-
I
ral e a do Tapajós em particular foram dramáticas. Se hoje
If
f
-
so se encontram os índios Munduruku, ocupantes do médio
e alto Tapajós, voltados para a mata, caçadores e agricult~

res, na época da colonização, a várzea de Santarém e a ter- f


i
ra firme próxima aos rios eram ocupadas pela nação Tapajós.

Carvajal, que relatou a primeira descida conhecida


do Amazonas pelos brancos, em 1542, assinalou que as margens
do rio eram densamente povoadas. Outros viajantes falam
das numerosas aldeias dos índios Tapajós, que compreendiam
I geralmente entre 300 e 700 habitantes, mas podiam ir até a!
guns milhares, como a capital situada na foz do Rio Tapajós
(Meggers, 1977, p. 166). As pesquisas arqueológicas de
Nimuendaju, realizadas em 1923-26, confirmam esses relatos.
Ele "localizou 65 sítios que ( ... ) calculava representarem
menos da metade daqueles existentes, de fato, na região"
(id. ibid.).

Dizimados e escravizados, os índios encontraram nos


padres da Companhia de Jesus uma certa proteção. Em 1661,0
Pe.Jesuíta João Felipe Bettendorf instalava na aldeia dos
Tapajós hoje Santarém - uma missão católica. Essa mis-
saonao era so voltada para a catequese dos indígenas. Exer
J cia o controle político-administrativo e detinha o monopÓlio

I das atividades econômicas, ao incentivar o cultivo das cul-

I turas de subsistência e comercializar as drogas do


(a salsaparrilha, o cacau, a castanha, o cravo etc.), colhi
sertão

das pelos nativos. Os jesuítas opunham-se energicamente -a


escravidão indígena e, em contrapartida, aprovavam a africa
na. A coroa portuguesa concordava com essa posição em
1755, proclamou o fim oficial da escravatura indígena

II
f
r
pois a escravidão indígena era um negócio interno à colônia
e não trazia lucros no seu comércio para a metrópole. Porém,
ao "domesticar" e destribalizar os índios, a política jesuJ.
ta levava, no fim, ao mesmo resultado: o desaparecimento das
nações e tribos indígenas. Ademais, envolvida nas ativida-
des comerciais, mesmo que destinadas a sustentar a Ordem,
a Companhia de Jesus estava sintonizada com o espírito que
presidiu à colonização do Brasil.

Pelas condições naturais desfavoráveis oferecidas


-a agricultura e por seu isolamento, durante muito tempo a
região tapajônia permaneceu voltada para o extrativismo. No
decorrer do século XVIII, porém, foram implantadas as cult~

ras da cana-de-açúcar nos arredores da vila e do cacau na


várzea do Lago Grande de Franca, voltadas para o abasteci-
mento dos portugueses, funcionários e militares, a fim de
reforçar a participação da reg ião no esquema exportador. C~

mo atividades subordinadas, apareceram na várzea fazendas


de gado e o pesqueiro real do Lago de Franca. Com as fazen
das, chegaram à região os escravos negros. A produção da
região Norte, escassa, não justificava o seu emprego em mas
sa, nem a pobreza da sua classe dominante o permitia. Mas
em 1756 foi criada a Companhia de Comércio do Grão-Pará e
Maranhão para incentivar o comércio, a fim de melhor garan-
tir os direitos da metrópole e o domínio comercial dos rei-
nóis. Em 20 anos de existência, até 1778, a companhia des
pejou no Pará 12.587 escravos africanos (Santos, 1974, p.
79). Boa parte deles foi trazida para o Baixo Amazonas. De
lá, um certo número seria encaminhado para Mato Grosso, ao
qual se chegava, então, pelo Tapajós.

A saída dos jesuítas do Tapajós, em 1757, contri-


I
j

buiu para maior integração econômica e política da região no


sistema colonial. Em 1758, com a criação da Vila de Santa
rêm, instalava-se a administração civil.
1
1 Não há dados sobre a população da região no sêculo
XVIII. Os jesuítas, em 1730, tinham registrado na aldeia
723 índios, no Arapiuns, 1062 e em Alter do Chão, 235. Qua~
~ .
to à população branca, "talvez não passasse de pOUqU1SS1-

mas centenas" (Santos, 1974, p. 115). Já não existia a na-


1
j çao Tapajós. "Os sobreviventes, por instinto de conserva-
ção, se integraram na cultura lusa e participaram ativamen
te do processo de colonização" (Santos, 1982, p. 15). Em
1819, o comandante militar local contaria na Vila de Santa
rêm "L004 fogos, 6.861 habi tantes 1 i vres . e 2.825 escravos"
(Reis, 1979, p. 137).

1.2.3 - Crise do sistema colonial. A revolta amadurece

Os indios e mestiços eram recenseados como habitan


tes livres, mas o que significava essa liberdade? Embora a
terra não fosse monopolizada pelos senhores de engenho, co-
mo no Nordeste, pois o extrativismo predominante não o exi
gia, vale para a região a observação de Caio Prado Junior:
I "A população livre, mas pobre, não encontrava lugar algum
naquele sistema que se reduzia ao binômio 'senhor e escra-
1 vo'. Quem não fosse escravo e não pudesse ser senhor era um
i
I
~
elemento desajustado, que não se podia entrosar normalmente

1
1 j

no organismo econômico e social do país" (Prado Junior,1974,


p. 198). Brancos pobres e sem perspectiva de ascensão so-
cial, Índios e caboclos voltados para a atividade produti-
va e extrativa, mas subordinados ao domínio econômico dos
reinóis, começaram, no início do século XIX, a expressar a
sua insatisfação. Ao lado dos negros fugidos de Santarém

I; e Obidos para os mocambos do Trombetas e do Curuá (em Alen-


quer), implantados desde o fim do século XVIII, fomentavam

I a inquietação, diriam os setores dominantes -


começavam a erguer a cabeça. o
quer dizer,
resumo do relato enviado em

I 1825 por um comerciante portugu~s da vila ao presidente


província é significativo do clima da época.
da

"Falando ao governante numa linguagem cl~

ra e bem orientada, disse que confiava


nas leis em vigor - conhecendo que as
leis são feitas para assegurar a todo o
bom cidadão a sua Propriedade, e o seu
Direito, assim, logo que a Patria o pro-
tege da mesma forma toma maior interesse
em se dedicar a ela com algum serviço. E
como tal vinha pleitear para os habitan-
tes do distrito onde exercia sua ativida
!
de criadora a proteção do Estado. Os sa~
tarenos constituíam, na família paraens~
um n~cleo magnífico de trabalho e de se-
I
t
renidade. A posição do n~cleo era privi
legiada, dando margem a operações merca~
tis com Mato Grosso. Esse intercâmbio,
todavia, estava sendo dificultado pela
fuga dos escravos, que se juntavam pelo
Tapajós, aos grupos indígenas. Essa si-
tuaçao se vinha agravando com os sobres

I
j
saltos decorrentes dos sucessos políti-

I
I I
1
I
39
I
coso índios e escravos africanos, traba
lhados por espíritos agitadiços, opunham
embaraço ao tráfego e i exploração das 'drogas'
I que se colhiam secularmente na floresta.
Recordando (uma operação militar ante-
j rior) apelava para a consciência do go-
vernante, a fim de que viesse em socorro
dos que desejavam criar riqueza na expl~

ração da terra. A presença de escravos


fugidos, índios, desertores das forças
armadas era tremenda dificuldade, e odes
tacamento, uma necessidade inadiável. No
ano anterior às influências daninhas dos
que promoviam a desordem, 11 pessoas,que
se entregavam ao comércio, haviam sido
assassinadas. o quadro constante da ex-
posição, significando um estado de esp!
rito da coletividade, que desejava pro~

seguir na produção de bens para o giro


mercantil, portanto para a fortificação
econômica da província, valia também co-
mo uma evidenciação de que a ordem con-
tinuava em perigo. Não seria possível
realizar qualquer política de vitalização
com o espectro da anarquia a surg~r a to
do instante" (Reis, 1979, p. 100).

o que explicava essa inquietação? Se com a criação


da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão o Norte co
nheceu uma fase de euforia, com o aumento da exportação do
cacau, seguido do café. do cravo e outros produtos da agri-
cultura da extração, essa euforia cessou já na primeira
cada do século XIX. o preço do cacau caiu assustadoramente

!
!

e ficou mais nítida a transferência dos lucros da atividade


cacaueira para a metrópole e o domínio dos reinôis. Com a

I
,
r
I
40

proibição quase total, desde 1785, de ter o Brasil fábricas


e manufaturas de tecidos e da metalurgia para não prejudicar
as manufaturas e o comércio inglês, quase todos os bens de
I
f
consumo eram importados. O Pará empobrecia. I
Se a independência ã qual a província aderiu em 1823 Ii
poderia ter aparecido corno assinalando o fim da dominação
I
portuguesa, essa esperança não se concretizou no Norte. Con II
É
tinuaram no poder os antigos dominadores. Na verdade, des
f
de a metade do século XVIII, Portugal tinha entrado em deca r
!

dência, com o declínio do antigo sistema colonial. Essa


f
queda era derivada "principalmente de uma crase profunda: a
transferência da supremacia do capital comercial para o ca-
pital industrial, determinada pelo desenvolvimento da manu-
II
t

I
fatura" (Aquino, 1982, p. 171).

A Inglaterra, com o sucesso da sua revolução indus


I
trial, passou a dominar política e economicamente Portugal.
Isso lhe garantiu, por sucessivos tratados feitos com este
país, o acesso em condições privilegiadas ao mercado do Bra
sil - colônia que tendia a tornar-se uma espécie de colDnia
f
britânica 'oculta'" (Velho, 1976, p. 111). Para o trabalha t

I
dor, o português aparecia como dominador e essa situação ser
via bem aos interesses ingleses que lucravam com a colônia,
sem ter o ônus da administração da colônia e o desgaste de
serem os colonizadores. Neste contexto, como se situavam !
I
as diferentes forças sociais no Pará, às vésperas da
dência?
Indepe~
I
I

j A classe economicamente dominant€dividia-se em mms I


!

t
categorias: os latifundiários, "que mantinham braços escra-
I
I
J
I!
!r
i
vos na lavoura, na pecuária e no extrativismo, explorando,
ainda, os sem-terra, transformados em foreiros( ... ) e os
!
f
grandes comerciantes, os exportadores de Belém" (Rocque, ,
1984, p. 52). Boa parte dos fazendeiros era composta de ~

"liberais", a favor da independência e de maior autonomia


para a província, pois sentiam-se atingidos pela diminuição
das exportações e queda do preço dos produtos coloniais. T~

bém nao suportavam a sua dependência dos grandes comercian


tes, os "reinóis". Estes, conservadores, profundamente com
prometidos com Portugal, estavam no poder.

A seu serviço, havia uma categoria de funcionários,


oficiais militares, clero, nativos, divididos entre o seu
apoio à "legalidade" representada pelos portugueses, por
considerar garantida a sua sobrevivência, a sombra do poder
e a frustração na expectativa de renovação política e de as
censão ao poder. O Cônego Batista Campos era um dos que ti
nham rompido com os portugueses e passara a liderar a luta
contra estes.

O branco sem posse, o índio, o caboclo, o mulato,


o negro liberto, na sua maioria moradores do interior, eram
explorados direta ou indiretamente pela classe dominante.

I
l
Havia "roças comuns (ou'fábricas nacionais') que nada mais
eram do que núcleos agrícolas onde os selvagens eram conse~

vados em servidão" (Rocque, 1984, p. 55). Todos esses "sem !I


terra" não suportavam mais a sua miséria e aspiravam a ter
sua terra, produzir por conta própria e comercializar livre I
I
mente, aspiração compartilhada pelo escravo negro. J

Em 1823, em Belém, o povo revoltado invadiu o pal~


I
cio do governador, proclamou a Independência e entregou o
I
[

poder a Batista Campos. O capitão inglês Greenfell, às or-


dens do governo imperial,"mandou fuzilar alguns insurretos,
culminando tudo com a chacina do brigue Palhaço, onde mais
de 250 paraenses morreram da maneira mais atroz" (Rocque,
1 1984, p. 42). Amadurecia a Cabanagem, que espocou em 1835.
j
,
1
j 1.2.4 - A Cabanagem, um grito de li1erdade
I
A Cabanagem foi a tentativa de implantação de um re
I

gime revolucionário na Província do Pará e a guerra civil !


travada para esse fim, entre 1835 e 1845. Segundo o histo-
riador Carlos Rocque, a Cabanagem "em muito difere das de-
I(
I!
mais revoluções havidas no Brasil, principalmente durante o
período da Regência( .•. ). Viera, realmente, de baixo para
cima( ... ). Fora um grito de liberdade política, econômka e
social; um grito contra a escravização" (id. ibid, p. 9).

Provavelmente essa revolução não teria ocorrido se


as contradições existentes dentro da classe dominante nao It
tivessem aberto ao povo a possibilidade de se rebelar con-
tra a ordem existente. Com a abdicação de Dom Pedro I a fa
I
vor do seu filho, e sua volta a Portugal, abria-se uma cri-
I se nolÍtica. Dom Pedro 11 ainda era criança e forças com
interesses diferentes tentavam controlar o governo do País:

I digladiavam-se liberais moderados, liberais exaltados e res I


1 tauradores ou caramurus. Os restauradores representavam a f
t
1

t
velha monarquia portuguesa. Os latifundiários eram libe-
I
I rais, moderados ou exaltados, conforme a região, sendo que J

IJ I
!
as camadas médias urbanas eram formadas por liberais exal-
tados, setor político que propunha mais amplas reformas.
A Reg~ncia foi dominada pelos liberais moderados, mas n0 Pa
rá, na realidade, continuava o domínio dos conservadores,os
caramurus, apoiados politicamente pela Reg~ncia, "que teim~

va em mandar para o Pará pessoas estranhas completamente


alheias aos problemas locais e, em geral, comprometidas com
o conservadorismo" (Rocque, 1984, p. 10). Frente a eles ha
via os "filantrópicos", liberais e nativistas, grupo po1í- If
tico composto de alguns fazendeiros, de brasileiros das ca I
I
madas médias, tendo à frente o Cônego Batista Campos, lid~

rando a massa dos deserdados, contra os conservadores e con


tra a Reg~ncia. Não era tanto "de baixo para cima" quanto
o historiador da Cabanagem o afirma.

Em Santarém, brancos pobres, caboclos, índios, ne-


gros libertos e escravos fugitivos, vaqueiros, sitiantes,
pescadores, carpinteiros, ca1afates, barbeiros, alfaiates,
sapateiros aderiram em massa ã Cabanagem. Na sua maioria
sertanejos, concentraram as suas forças em Ecuipiranga, na
margem direita do Amazonas, com acesso por terra para o Ta-
pajós. A partir desse reduto comandaram, em março de 1836,
a adesão da Vila de Santarém ao governo cabano estabelecido
em Belém. Mas, em maio, as tropas legalistas forçaram a re
tirada dos cabanos de Belém e lhes retomaram o poder provin
cial. Em outubro, caiu a vila de Santarém, pois "os caba-
nos não dispunham de armamento para resitir ao ataque" da
! esquadra da Marinha enviada a Santarém (Santos, 1985~, p.
.1

I
!
!
14). Em julho de 1837, depois de meses de resist~ncia he-

j I
I
~ I
I r6ica, caiu Ecuipiranga, onde se tinham refugiado os
4-1

caba-
nos. E o que de longe atemorizava as tropas legais, auxilia
das pelos índios Munduruku, que se lançaram ao ataque do
forte, veio revelar a criatividade dos guerrilheiros
nos: "O que aparecia nas trincheiras eram troncos de palmei
caba-
I t
ras pintadas de preto que, vistas de longe, davam a impres-
sao de serem canhões" (id. ibid.). Por muitos meses conti
nuaram lutas esparsas até o aniquilamento da resistência.

Conforme Rocque (1984, p. 15), o fracasso da Caba


nagem deveu-se a vários motivos, sendo importante ressa1-
tar que juntando setores sociais heterogêneos (do Cônego B~

tista Campos, do fazendeiro Ma1cher ao índio e ao negro fu-


gitivo), não conseguiu encontrar um capaz de assumir a 1i-
derança e agregar todas as correntes. Os principais chefes
do movimento em Belém, os nativistas urbanos (burgueses, mi

1itares, burocratas, padres), e mesmo os líderes populares
(Vinagre, Angelim), atemorizados pela amplidão e radical ida
I
I
de da Revolução desencadeada, acabaram todos recuando e en-
tregando o poder -ã legalidade.

Segundo Raiol, "a população livre do Pará em 1833


era de 119.877 habitantes, inclusive 32.751 índios; e a es-
crava era 29.977 (Rocque, 1984, p. 53)". O mesmo autor "es
1 timou em trinta mil o número de mortos na Cabanagem" (id.
I
I ibid., p. 528). A repressão comandada pelo Brigadeiro Fran
r
I
cisco José Soares de Andréia, nomeado pelo Regente presiden
te do Pará para comandar a pacificação da Província, foi b~ I
I
j

tal, como testemunha o mesmo historiador, cujo pai tinha si

Ii
j
do morto pelos Cabanos:

I
!
t I
I I
I
"Ninguém imagina os martírios de que fo-
ram vítimas os infelizes que caíram em
poder das chamadas expedições! Falam so
mente na selvageria dos cabanas e esque-
cem da brutalidade dos apregoados legais!
Destes referem atos cruéis que não depõem
menos contra a natureza humana! Os rebel
des, verdadeiros ou supostos, eram proc~

rados por toda parte e perseguidos como


animais ferozes! Metidos em troncos e

I
amarrados, sofriam suplícios bárbaros que
muitas vezes lhes ocasionavam a morte!"
(id. ibid. p. 524).
t
Só recentemente está sendo reabilitada a Cabanagem.
Durante quase 150 anos, os "historicidas", assassinos da Hi~
I
tória, segundo Rocque, fi zeram reinar o "terror cul tural".
Exemplo disso ê dado pelo "historiador" santareno Paulo Ro-
driguez dos Santos, na sua crônica de Santarêm, "Tupaiulâ!!
dia". Embora bem recheada de fatos e casos, manifesta a CO!!
tinuidade no poder e na sua visão do mundo da classe domi-
I
nante moaorongo. Os cabanos
tinados, atiçados por más
sao para ele um "magote de amo
cabeças e pelo álcool", "canalha
I
alucinada pelo álcool", "horda vandálica" composta de uma
"malta de refinados malandros e índios viciosos vadios" "ma
tando, devastando, saqueando e pilhando". Retoma por conta
as palavras de Domingos Raiol: "Os rebeldes constituíam, em
sua máxima parte, a população embrutecida e sem escrúpulos,
dirigida por anarquistas afamados que mais se recomendavam
pela audácia e perversidade". o autor nos informa por aca-

I so - para gozar a seguir da ignorância dos cabanos -


havia 95\ de analfabetos entre os cabanos de Ecuipiranga
que I
f
I (Santos, 1974). f
!
f I
I
~
'j
1
l,

J
1.2.5 - A volta do caboclo à marginalização

No fim da Cabanagem, a economia da Província esta-

va exangue. Com as fugas em massa, a repressão e a difi

culdade em conseguir novos escravos~ último navio negreiro

tinha aportado no Pará em 1834), faltava mão-de-obra. O Bri

gadeiro Andréia criou os "Corpos dos Trabalhadores", que v3-_

savam desarticular os cabanos, atraindo aqueles que vagavam

sem profissão definida, destinando-os ao serviço da lavou-

ra, do comércio e das obras públicas" (Rocque, 1984, p.529).

Chegou a contar em Santarém 1.520 integrantes. Era uma no-

va forrr.a de escravidão para a qual chegaram a "recrutar,

entre as classes dos mestiços, índios ou tapuios, crianças

e menores de 7 a 14 anos, de ambos os sexos"(id. ibid.).

A escassez de escravo fazia os fazendeiros

rem, notadamente os produtores de açúcar e de café, as


preve-

gr~
!
f
ves conseqUências que poderiam advir da abolição da escra

vidão se nao fosse assegurada a substituição da mão-de~bra

escrava. A Lei de Terras, promulgada em 1850, procurou g~

rantir a disponibilidade de braços. "A Lei de Terras trans

formava as terras devolutas em monopólio do Estado,

controlado por uma forte classe de grandes fazendeiros ...


Estado
I
Ela proibia a abertura de novas posses, estabelecendo que

ficavam proibidas as aquisições de terras devolutas por ou-

tro tí tulo que não fosse o de compra" (Martins, 1983. p. 42).

Essa lei provavelmente não trouxe conseqUências p~

ra a ocupaçao da nova comarca (em 1848, Santarém ascendia

à condição de cidade, e em 1850, à de comarca), pois a ter-


ra era abundante e a economia continuava voltada predomina~
I
I
I
temente para o extrativismo que nao exigia, nessa epoca, a-
propriedade da terra. Porém, reforçava a precariedade do

I
enraizamento do sertanejo, embora crescesse a população ru-
ral na várzea amazônica e no Vale do Tapajós. Na terra fir
me,o sertanejo ocupava-se, ainda de modo predominante, com
I
a produção florestal, assegurando a sua subsistência com a
I
pesca, a caça e a plantação de mandioca. Na varzea, traba-
r
lhava para o fazendeiro, no trato do gado ou nos cuidados da
roça de cacau, e pescava por conta própria, abastecendo a
cidade. Só a borracha tiraria o Norte dessa letargia.
I

Em 1842, o norte-americano Goodye: r e alguns ingl~

ses descobriam simultaneamente o processo de vulcanização


I que permite a borracha adquirir flexibilidade e manter-se
inalterável a variação de temperatura. Essa invenção abria
uma variada gama de utilização industrial, sendo a mais mar
cante o revestimento de rodas e, mais tarde, o pneumático,
consumidos pela nascente indústria automobilística. Era na
Amazônia que se encontravam, no estado natural, os cauchos
e as seringueiras produtoras do látex, matéria-prima da bor
racha.

Já nos anos de 1850, foram descobertos seringais no


Tapajós~ sobretudo no Alto Tapajós, além das cachoeiras, r~

i
1
mo ao Mato Grosso. As populações rurais da região abandona
ram suas atividades tradicionais para se lançar a - explora-
I
I t
i
i•
t
çao desordenada dos seringais, acompanhada dos índios Mun-
durucus, habitantes do Alto Tapajós, e dos nordestinos, que
I
Ii começavam a chegar ã Amazônia.
destina, voltarei
Ao abordar a colonização no!
a falar da borracha. Quero aqui só as-

I ;
!
-lS I
sina1ar o esvaziamento da várzea santarena que a corrida p!
ra a borracha deve ter provocado nessa época.

Politicamente, depois da desesperada luta da Caba-


nagem em busca de mudança das estruturas econômico-polí -
ticas, o caboclo tinha-se recolhido à sua margina1id!
de social, no silêncio das águas e das matas. As eleições
eram um jogo de cartas marcadas, destinado a garantir a pe~

manência no poder das tradicionais oligarquias fundiárias,


ainda mais porque a legislação exigia do eleitor uma certa
renda. Eis como Inglês de Souza, no seu romance O CoroneZ

sangrado, escrito entre 1875 e 1876, descreve a. preparaçao

das eleições em 6bidos, em 1870. Não haveria de ser diferen


te na vizinha Santarém:

"o capitãõ Batista [juiz municipal e cap~


talista] falou:
- Meus Senhores, creio que e tempo de a~
I
sentarmos nas ~ltimas providincias a to-
mar. Os que estamos· aqui presentes somos
as primeiras influincias do partido con-
servador do município e colegio de Õbi-
dos, seja dito sem modestia. Podemos,
pois, determinar como se farão as elei-
-
çoes, uma vez que estamos certos de que
as nossas vontades serão feitas •.•
- Eu proponho( ..• ) que nós repartamos a

I
1i
responsabilidade da direção dos votantes
( ... ) O sr. tenente Filisberto (fazendei
ro] toma conta dos votantes do Trombetas.
- Certamente, por esses me responsabili-
zo eu disse o tenente; - ficam por
minha conta; hei de agasalhá-los, alime~
t
1 tá-Ios e levá-los ã Igreja, sem que pe~
!
I
,f
soa alguma se incomode com eles.
- Eis um procedimento patriótico e digno
de imitar-se - disse amavelmente o Dr.
Justino [advogado] ( ••• ).
Alem dos votantes 'seguros' que andavam
I livremente pelas ruas, e que eram em nú-
1 mero menor, havia os dos 'viveiros', que
-
I
~
so sa1am em bandos, acompanhados sempre
por alguns dos patrões ou por um cabo de

I confiança. I
Os 'viveiros' eram as casas em que
'prendiam os votantes incertos, fartando
os de carne fresca e de cachaça ate a ho
se

I
I
ra de seguirem para a Igreja, em bandos,
guiados pelos chefes, e guardados por to
dos os cabos ( ••• ).
I
J
[
Havia dois grandes viveiros em Õbidos por
ocasião das eleições gerais e municipais
de 1870; um, liberal, em grande armazem
pertencente ao major Jose Bulcão; ou-
tro, conservador, em casa do tenente Fe-
lizberto ( ••• ).
Mal abeirava a canoa do matuto que vinha
para as eleições, ou para algum -
.
negoc10
seu, era o pobre diabo agarrado, obrigado
t a optar entre o 'viveiro do Sr. major' e

I
j
o 'viveiro do Sr. tenente'. -
Se nao
dos conhecidos como tendo dedicação cons
tante ao partido, era conduzido ao vivei
era

I
,
ro e lã encerrado até que chegasse
ocasião de aproveitar-se-lhe o voto" (In
glis de Souza, 1968, p. 122 e 136).
a

1
j
j
Ausente corno ator político, o caboclo, passada a

primeira corrida aos seringais, seria relegado ao segundo


j
plano corno ator econômico. Porém, na época da borracha,cu~
Ii
j I
50

priu um papel importante, embora desprestigiado: o de abas


tecer de mandioca e pescado a população voltada para a expo!
tação. Para José Veríssimo, em 1895, a importância econômi
ca do pescado na Amazônia era inferior só à da borracha (V~

ríssimo, 1970, p. 113). Foi provavelmente nessa epoca


fim do século passado, começo deste século que se defini
ram a ocupação da várzea e das beiras dos rios e as ativida
des econômicas, à exceção da juta, tais como configuradas
até hoje. A guerra do Paraguai e as epidemias de varíola
e de cólera, a corrida aos seringais do Madeira com certeza
desfalcaram a população que, no entanto, não parou de cres
cer. Em 1862, o Tapajós, inclusive Itaituba e Aveiro, ti-
nha 14.730 habitantes; em 1883, 22.797 e em 1920, 54.740
(Reis, 1979, p. 156). Mas aí já tinha passado o rush da
borracha. A população do Tapajós e da Várzea conheceram um
crescimento unicamente vegetativo. Só a juta daria a esta
um novo ânimo.

Segundo Janete Gentil, que estudou a economia jutei


ra de Santarém (Gentil, 1982), foram os japoneses que intr~

duziram a cultura da juta na região, mais extamente em Pa-


rintins(AM), em 1929. Nos anos 40, com a suspensao do aces
so aos jutais da lndia devido à 11 Guerra Mundial, o Brasil
procurou incentivar a cultura da juta, chegando à auto-sufi
ciência em 1953. Mas embora haja uma política de preço mí-
nimo, na realidade o preço da juta é cotado pelo mercado de
Londres, o que pressiona para baixo o preço da juta brasi-
leira e torna mais vantajoso para a indústria brasileira da
sacaria importar juta da Ásia, mais competitiva. Nos últi-
- 1
:1 ..

mos anos, a produção de juta encolheu ao mesmo tempo que as


atividades da indústria de beneficiamento Tecejuta, que ha-
via começado a funcionar em 1967.

Desse modo, temos hoje o "vargeiro", disperso na


-
varzea, entre o Ituqui e o Lago Grande de Franca, que cultl
va a juta e, no verao, feijão, melancias e jerimuns, ou que
e pequeno criador, tendo formado o seu gadinho pelo sistema
da partilha - ao cuidar do gado do fazendeiro, ganhava uma
parte dos bezerros. Lavradores ou pecuaristas, também sao
pescadores, mas há também muitos vargeiros que são, antes
de tudo, pescadores.

Na terra firme, à beira do Lago Grande, do Tapajós,


do Arapiuns, no Ituqui, são lavradores e, secundariamente,
pescadores, produtores de mandioca e de frutas, ou ainda se
ringueiros, no Tapajós.

Usei, ao falar deles, da palavra "caboclo", que ch~

ga aos seus ouvidos carregada de todo o desprezo do bran


co, do explorador. Este conseguiu fazer com que os habitan
tes das várzeas e dos rios se sentissem no úl timo degrau da
escada social. E para não se sentirem tão em baixo, difere~

ciam-se, achando que o juteiro e o produtor de mandioca es


tão acima do pescador e do caçador. Porém, ao resgatar um
I pouco da heróica história dessa miscigenação, eu quis dar
sentido de nobreza à palavra "caboclo" e fazer a ponte entre
1
.1
os caboclos de ontem e os caboclos/lavradores/trabalhadores
I rurais/camponesesde hoje.
1
Ij
i
j I
.-, -

1.3 - A FORMAÇÃO DO CAMPESINATO NORDESTINO DO PLANALTO

A "transformação [da economia escravista coloni-


aI] se dá quando esta estrutura impede que a acumulação
de capital progrida, quer dizer, impede o avanço das fo~

ças sociais interessadas nisso" (Grzybowski, 1979, p. 184).

No caso do Brasil, no século XIX, havia vários in-


teresses econômicos e políticos a favor do fim da escravi-
dão. Os ingleses, grandes produtores de bens manufaturados
- de têxteis a maquinas - e principais comerciantes do
mundo estavam interessados em expandir os seus mercados. Por
isso, precisavam de trabalhadores "livres" aos quais pude~

sem vender seus produtos.

No Brasil, com os fazendeiros da cana e, sobretud~

do café impossibilitados de renovar o seu estoque de negros,


com a extinção do tráfico negreiro, em 1850, criava-se "uma
contradição entre a expansão da economia de exportação e o
regime escravagista" (id. ibid. p. 192). Precisavam urgen-
temente de mão-de-obra livre. Enfim, para os poucos capit~

listas modernos brasileiros, era necessário criar um merca


do interno. Este seria propiciado pelo trabalho assalaria
do e por uma política de colonização de povoamento.

Neste sentido, na época imperial, e sobretudo a pa~

tir de 1850, promoveu-se a imigração e a colonização princi


palmente no Sudeste, onde estavam localizadas as fazendas
de café, e no Sul, cujo clima era favorável à imigração eu-
ropéia. A Lei de Terra de 1850 favoreceu esse movimento ao
prever "a concessão imperial de uma área de 86 léguas qua-
dradas por província, para fins de colonização agrícola"
(Hebette &Acevedo, 1979, p. 158).

A região Norte, por sua vez, precisava muito de


mão-de-obra, pois a cabanagem, além de ter acelerado o des-
moronamento do latifúndio baseado no trabalho escravo, cau
sara, junto com grandes epidemias, a redução da população
rural e da produção. Apesar da necessidade, a província do
Pará, ainda pouco integrada ao império brasileiro, demorou
para promover a colonização até 1865. Nesta data, foram ins
taladas as primeiras colônias na região bragantina, ao lon-
go da Estrada de Ferro de Bragança, e no Baixo Amazonas, co
1ônias estas compostas de imigrantes estrangeiros.

I A primeira leva de americanos (1865/66) que


riam começar a ocupação do planalto santareno
deve-
compreendia
160 pessoas (Santos, 1974, p. 365). Esperava-se que desse
certo tanto para eles corno para os demais imigrantes pois
"para muitos luso-brasileiros que estavam ainda ligados a
Portugal, o europeu era um indivíduo superior caracterizado
pelo espírito empreendedor, noções avançadas em agricultura
e um sólido senso de cidadania" (Moran, 1981, p. 68). DeceE
çao. Dificuldades de adaptação, discrepância entre o sonho
e a realidade, falta de apoio público levaram essas primei
ras tentativas de colonização ao fracasso. Apelou-se, en-
tão, para o nordestino.

I
í
1.3.1 - O Nordeste em decadência

O Nordeste, na época da colônia, estava dominado


pela economia açucareira, com exceção dos estados do Mara-
nhão, Ceará, Piauí, Bahia e Sergipe (Oliveira, 1981, p. 32).
Mas cedo "a monocul tura exclusivista de cana-de-açúcar já h~

via começado( ... ) a dar lugar ã formação, em suas franjas,


j de uma economia semicamponesa, voltada para o abastecimento
de gêneros alimentícios da própria 'região' açucareira" (id.
ibid., p. 46). Conjuntamente, expandiu-se pelo sertão, p~

ra o mesmo fim, uma pecuária extensiva que até poderia, se


gundo Francisco de Oliveira, ser considerada "atividade ex-
trativa", pois a terra era apropriada só nos limites estrei
tos das fazendas, sendo o restante espaço livre para past~

gem, disponível para qualquer criador. Aos poucos proce~

sou-se, assim, a ocupação, subordinada ã economia açucarei


ra, de todo o espaço nordestino, embora a população perman~

cesse escassa.

Nas duas últimas décadas do século XVIII, mudou a


face do Nordeste: entrou em decadência o "Nordeste açucare!
ro-têxtil", e em ascensão o "Nordeste algodoeiro-pecuário".

A pZantation nordestina de cana-de-açúcar sofria


os seguintes tipos de concorrência: a) havia outras -
a reas
produtoras, como as Antilhas, mais próximas dos centros co~

sumidores; b) a difusão, na Europa, do açúcar de beterraba;


c) o atraso técnico da sua produção. Quanto ao têxtil, foi
mencionada, anteriormente, a proibição "imposta pela Ingla-
terra ao Brasil de ter suas próprias manufaturas, a fim de
não prejudicar as manufaturas inglesas. Na divisão interna

f
I
I
cional de trabalho, era reservado ao Brasil produzir apenas
a matéria-prima, o algodão, introduzido maciçamente na re-
gião nessa época.

As invenções do fuso mecânico e da máquina a vapor,


em 1769, e do tear mecânico, em 1799, permitiram ã indús-
tria têxtil inglesa desenvolver-se vertiginosamente. As fã
bricas de Manchester precisavam da fibra do algodão arbóreo,
planta nativa da América Latina e do Oriente, e "o nordeste
agrário não-açucareiro converteu-se num vasto algodoal, de~

de o Maranhão ã Bahia"(Oliveira, 1981, p. 47). De volta, o


Brasil importava o produto da indústria têxtil inglesa. Co
mo escreu o historiador inglês Eric Hobsbawm,"(a América La
tina) salvou a indústria do algodão britânico na primeira
tade do século XIX, quando se tornou o maior mercado
m~

para
I
as suas exportações atingindo trinta e cinco por cento d~

las em 1840, sobretudo para o Brasil" (in Velho, 1976, p.


t
112) . I
Com exceçoes, notadamente do Maranhão e da Bahia,
a estrutura da produção algodoeira não foi copiada na da ca
na-de-açúcar, baseada na mão-de-obra escrava e em grandes
extensões (a plantation). A produção era repartida "em pe-
quenas e isoladas culturas" e "entregue aos cuidados de fa
zendeiros, sitiantes, meeiros, posseiros" (Oliveira, 1981,
p. 47). Francisco de Oliveira vê aqui a emergência da "es
trutura fundiária típica do latifúndio". As culturas de
f
subsistência do morador, do meeiro, do posseiro viabi1iza-
f
vam um baixo custo da reprodução de mão-de-obra e o baixo
I
preço do algodão, o que permitiu ã Inglaterra e aos Estados
I
I
f
,..
J,l

Unidos grandes lucros para as suas indústrias têxteis e o I


seu comércio.

o Nordeste algodoeiro, por seu turno, perdeu sua


vez no comércio internacional em proveito da produção norte-
americana, com exceção da época da guerra civil nos EUA
(1870) e da guerra oriental. As relações sociais determina
das anteriormente pelos "nordestes" do açúcar, do algodão e
da pecuária, relações confirmadas e endurecidas pela Lei de
Terra, de 1850, subsistiram nessa economia pauperizada. A
grande massa da população rural nordestina os antigos va
queiros, agora agregados, moradores, meeiros e posseiros', com
exceção do trabalhador permanente da cana vivia encosta-
da na fazenda, sem maiores problemas. Ao contrário, pelas
relações que mantinham com a fazenda, o meeiro ou parceiro
pagador de renda em espécie, o agregado ou morador "de fa-
vor" ou pagando renda com seu trabalho ("o cambão") confir
mavam o fazendeiro/proprietário na sua posse e asseguravam a
sua renda, sem que este precisasse fazer algum investimento
especial. Além do mais, esse campesinato "livre" configur~

va a base política do "poder monopolista do fazendeiro, co-


merciante e coronel", que cuidava de manter essa "relação
de patronagem" em que se trocam favores por votos (Martins,
1983, p. 49). A grande seca de 1877/78 pôs a nú a fragil~

dade desse sistema econômico-político e o seu caráter des-


truidor de recursos naturais e do campesina to. Este siste r
i
ma fazia do campesinato um reservat6rio de força de traba-
lho que, com a seca, nao conseguia conter. ![
Na seca de 1877 imperou a fome, o desespero e a mor
I
I
í
te. Vale colocar aqui o diagnóstico de Josuê de Castro, da
do em 1956, mas válido para o século passado:

"Muito mais do que a seca, o que acarreta


a fome no Nordeste e o pauperismo gener~
lizado, a proletarização progressiva de
sua populações, cuja produtividade e mí-
nima e está longe de permitir a formação
de quaisquer reservas com que seja possi
vel enfrentar os períodos de escassez
os anos das vacas magras, mesmo porque
no Nordeste já não há anos de vacas go~
das ••. Sem reservas alimentares e sem
poder aquisitivo para adquirir os alimen
tos nas epocas de carestia, o sertanejo
não tem defesa e cai irremediavelmente nas
garras da fome" (Castro, 1980, p. 260).
j
1 Atrás da fome e da seca, para esse autor, está o

II subdesenvolvimento regional, "expressão da monocu1tura e do


latifúndio, do fauda1ismo agrário e da subcapita1ização na
exploração dos recursos naturais da região" (id. ibid. p.
261). Para escapar da fome e da morte 200 mil vítimas
nesta seca de 1877/78 - efetivou-se o primeiro grande movi
mento de migração em direção ao Centro-Sul e ao Norte, que
a partir de então nao estancou mais.

1.3.2 - O nordestino vai para a Amazônia: da colonização ao


seringal

O governo da Província do Pará, com a experiência


resultante do fracasso da colonização estrangeira, tomou a
S3

iniciativa de criar estabelecimentos agrícolas para acolher


os retirantes. Em Santarém, foi estabelecida a Colônia Bom
Gosto onde, até março de 1879, tinham chegado, segundo João
Santos (1982, p. 47), 600 nordestinos. A colônia nao pro~

perou e, em 1881, já estava em decadência. ~ que havia co-


meçado o auge da exploração da borracha e os nordestinos jun
tavam-se aos paraenses na corrida aos seringais do Tapaj6s.
"O discurso oficial continuava a ser de orientá-los para a
colonização, mas, de um lado, muitos nordestinos queriam ir

1 para a borracha na esperança de enriquecer e, do outro lado,


I o governo, por depender da exportação da borracha, não in-
1 vestia na colonização agrícola" (Moran, 1981, p. 68).

A exploração da borracha assinalava a subordinação


da Amazônia ao capitalismo industrial. A indústria automo-
bilística nascente localizava-se na Europa. Ao seu quase m~

nop6lio comercial com o Brasil, a Inglaterra acrescentaria


o monop6lio do comércio da borracha, não s6 pelo fato de a~

segurar o transporte e a venda ao mercado consumidor, mas


também porque financiava as grandes casas comerciais de Be
lém e de Manaus que, por sua vez, financiavam casas menores
e seringalistas aviadores do seringueiro. Todo o sistema
extrativo estava, assim, diretamente subordinado e dependen
te dos centros industriais.

A Amazônia possuía a maior reserva mundial de se-


ringueiras nativas. Havia mercado, capital, mas faltavam
I
braços: os nordestinos os forneceriam. Segundo Rui Fac6,em

l
1878, de uma população cearense de 800 mil habitantes,

ram 120 mil pessoas. Nos três anos de estiagem, teriam saí
saí
I
I

I
,- f)
..l.

do para a Amazônia 300 mil cearenses. Em 1900, foram 40 mil


a fugir da seca~ em 1915, 40 mil saíram do porto de Fortale
za, dos quais 30 mil para o Norte (in: Teixeira, 1980, p.
47). A população da Amazônia "subira de 337 mil habitantes,
em 1871, para 476 mil em 1890 e 1.100 mil em 1906" (Prado
Junior, 1974, p. 240).

Os nordestinos formaram o exército dos seringuei-


ros, embrenhados nas matas durante meses, percorrendo as es
I
tradas para sangrar as seringueiras e recolher o látex, p~

ra depois transformá-lo em bolas que seriam exportadas. Se


alguns conseguiram uma relativa autonomia, pelo fato de nao

I ser o seringal "propriedade" de nenhum seringalista (o coro


nel de barranco, como seria chamado no Amazonas) e por de-
penderem só do regatão ambulante que os aviava, comprando
sua produção em troca de mantimentos e, às vezes, de um di
nheirinho a mais, a grande maioria era submetida a uma for-
ma de escravidão branca. Euclides da Cunha, descreve essa
dependência.

"No próprio dia em que parte do Ceará, o


seringueiro principia a dever: deve a pa~

sagem de proa até ao Pará (35$000) e o


dinheiro que recebeu para preparar-se
(150$000). Depois vem a importância do
transporte, numa 'gaiola' qualquer de Be
lém ao barracão longinquo a que se desti
na, e que e, na média, de 150$000. Adi-
tem-se cerca de 800$000 para os seguin-
tes utensilios invariáveis: um boião de
furo, uma bacia, mil tijelinhas, uma ma-
chadinha de ferro, um machado, um terça-
do, um 'rifle' (carabina Winchester) e
duzentas balas, dois pratos, duas colhe

l I
1
i

I
• res, duas chícaras, duas panelas, uma ca
feteira, dois carreteis de linha e um agu
lheiro. Nada mais. Aí temos o nosso ho
mem no 'barracão' senhorial, antes de se
guir para a barraca, no centro, que o p~

trao o designarão Ainda e um 'brabo' ,i~

to e, ainda não aprendeu o 'corte da ma-


deira' e jã deve 1:135$000. Segue para
o posto solitãrio enca1çado de um comboio
levando-lhe a bagagem e víveres, r1goro-
samente marcados, que lhe bastem para
i

I três meses: 3 'paneiros' de farinha


água, 1 saco de feijão, outro, pequeno,
de

I
I
de sal, 20 quilos de arroz, 30 de char-

i
que, 21 de cafe, 30 de açúcar,
banha, 8 libras de fumo e 20 gramas
6 latas de
de
I
quinino.
750$000.
Tudo isto lhe custa cerca
- deu um talho de
Ainda nao
chadinha, ainda e o 'brabo' canhestro,
de
ma- I
t

de quem chasqueia o 'manso' experimenta-


- . !
I
do, e jã tem o compromisso ser10 de
2.090$000" (Cunha, 1976, p. 109).
r
A produçio do seringueiro geralmente nao lhe perm!

tia zerar a sua dívida. Vale notar que as sociedades indus


I
J
triais, como a inglesa, que estavam se implantando, rejeita ,
vam a escravidio em nome do mercado. O contrato de traba-
t
lho era entre "homens livres", e trocava trabalho contra sa t
~.

lário. O luc'ro era obtido na superexploração dos trabalha- !


dores, homens, mulheres e crianças em longas jornadas de 12
l
1,
I horas ou mais. Mas esse capitalismo industrial reproduzia- I
I se também às custas de uma exploração semi-escrava da mao- 1
1 de-obra na "colônia", nio havendo aqui necessidade de dis-
I
curso igualitarista. Sobre a escravidão, esse regime de tra
1
1
Ii
I I
balho levava vantagem: os acidentes, as febres, o béri-béri,
essa carência de vitamina Bl que teria atingido a metade da
população flutuante da Amazônia (Castro, 1980, p. 91), dizl
maram os nordestinos sem que isso provocasse a ruína dos se
ringalistas e das casas aviadoras, pois não representavam um
capital empatado, como seria o escravo comprado.

Até a última década do século XIX, o Baixo Amazo-


nas manteve-se como a principal zona de extração da borra-

I
cha. O Tapaj ós "era por exce lência o rio da borracha" (Reis,
1979, p. 168), e Santarém, o centro que comandava todo o co
I

mércio, financiador das "expediçôes descobridoras e explor~


doras" (id. ibid.) e primeiro comprador na cadeia comercial
de borracha. O Médio Amazonas ocupou, a seguir, lugar de
destaque até ser substituído pelo Acre, que se tornou pri-
meiro produtor em 1907 com mais de 11 mil toneladas (Prado
Junior, 1974, p. 236).

A borracha vinha em segundo lugar (ver tabela 1) 10


go abaixo do café, na pauta de exportação do Brasil, repre-
sentando em 1910, ano em que foram atingidos os melhores pr~

ços, "quase 40% da exportação total do país" (id. ibid. p.


239). No comércio e nos meios parasitários a ele ligados
instalou-se uma euforia tão bem expressa pelo teatro de Ma-
naus. A queda foi brutal. Os ingleses, que desde 1867 ti
nham obtido o livre direito de navegaçao e comércio na Ama
zônia, puderam remeter sem problemas, para as suas colônias
asiáticas, sementes e mudas colhidas notadamente em Santa-
rém (Santos, 1974, p. 341). E a Ásia - sobretudo Ceilão e
~alásia - entrou com força no mercado.
Tabela 1

A produção de borracha, em toneladas


I (1870-1915)

I I I
I
1870 1887 1900 1910 1911 1912 1915

Brasil 7.000 17.000 26.750 40.000 37.730 43.370 37.220

I
~
Ásia 3 8.753 15.800 28.194 105.867

I Fontes: in Prado Junior, 1974, p. 236 (para 1870 e 1887); e


I Teixeira, 1980, p. 53.

1
1
I Como resistir? O Brasil dependia totalmente do mercado
externo, do capital estrangeiro que agora seria investido na
Ásia, enfim, de países "que dispunham de todos os setores e
alavancas econômicas da economia da borracha" (Prado Junior,

I
1974, p. 239). Além disso, não havia concorrência possível
entre uma região de extração primitiva e uma plantation r~

cional, como a da Ásia. No Brasil, tinha passado o tempo


da exploração selvagem, mas em muitos casos, a técnica ado-
tada, o número de cortes feitos numa mesma
..
arvore e a fre
qUência da extração provocavam a morte precoce das seringuei
raso
I.
I

Só nos anos 40, com o bloqueio do acesso aos serin


gais asiáticos, devido à 11 Guerra Mundial, a borracha bra-
sileira voltou a exercer determinado papel na economia in-
ternacional, para suprir as necessidades dos exércitos alia
dos, e o Nordeste voltou a fornecer à Amazônia os seus con
tingentes, os chamados "soldados da borracha". No entanto,
I
J
f
entre essas duas épocas, Santarém foi o centro de uma exp~

riência de implantação de um projeto de exploração racional


da borracha.

1.3.3 - Uma aventura tropical: a Companhia Ford em Santarém

o norte-americano Henry Ford, pioneiro da indús-


tria automobilística nos EUA, procurou na América Latina um
lugar para implantar um projeto que lhe permitiria "compe-
tir com os altos preços fixados pelo monopólio inglês e ale
mao sobre as índias orientais" (Moran, 1981, p. 70).

Em 1927, foi aprovada pelo congresso paraense uma


lei que atribuía à Cia. Ford Industrial do Brasil um milhão
de hectares na margem direita do Tapajós, numa área que pa~

sara a ser conhecida como Fordlândia, para a exploração de


seringais nativos e plantados. Na sua mensagem, em 1928, o
governador da época historiava as negociações e razões que
o levaram a atribuir essa concessão ao "miliardário" Ford:

"Não recu samo s concedê-lo s Gs b enef íc ias


incluídos na concessão] por parte do E~
tado, tao imprescindíveis para o levant~
mento das nossas energias e o preparo do
futuro econômico do Para, achamos a in-
trodução de capitais com organização ca
paz de efetuar uma obra forte, produtiva
e útil a toda a região amazônica. Nossas
prementes necessidades, vindas de um ja
longo período de privações, não encontra
ram remedio fora dessa corrente de opi-
nião. A simples exploração nativa, que
esta constituindo, sem ordem nem metodo,

f
f
f
as únicas fontes de riqueza pública, nao -
pode assegurar prosperidade real, tendo
a depreciação inevitável na sua forma ru
dimentar e pelo seu meio de devastar sem
culturas e replantas. ~ o que se vê nos
lotes gratuitamente concedidos, os quais,
apos a queima das florestas e a colheita
de algumas culturas, são abandonados em
capoeiras inúteis, sem nenhuma cultura
que garanta a produção efetiva e fixe o
homem. Esse resultado induz a favorecer
as grandes explorações, cujos capitais
exigirão culturas permanentes para asse-
gurar uma prosperidade menos efê~era, b~
rateando o custo da vida no Estado e con
tribuindo para a solução geral da subsi~
tência universal" (Veríssimo, 1935, p.
41).

Aqui estão algumas cláusulas do contrato de conces


sao:
a obrigação de plantar 1.200 hectares nos quatro primei-
ros anos (isso era totalmente insignificante em compara-
çao como o total da terra alienada);

o direito de criar e manter polícia de segurança;

- isenção por 50 anos de qualquer imposto;


- o direito de desapropriação(concedido ã Ford) de todas as
terras necessárias e úteis ao fim da concessão;

- o direito de manter escolas.

- Ford
Veríssimo (1935) escreveu o livro A aoncessao
no Par~ para manifestar sua indignação e preocupação. Hist~

riava as intervenções americanas em vários países: Colômbia,

I
I
J
I
f
üS

Flipinas, Cuba, São Domingos, Nicarágua, México, e dizia: t


"Sublinhamos os fatos principais da -
açao I
do capital americano e ela nos revela
aliança contínua entre o Estado e o capi
tal, entre o interesse particular e a co
a

I
munhão nacional, entre os negócios priv~
dos e os negócios políticos, entre o co
mercio e as medidas militares, entre o
dólar e a diplomacia" (id. ibid., p.46).

A entrega de tão grande área de terra, polícia e


ensino próprio lhe apareciam como perigo para a soberania
nacional.

A Companhia Ford empregou a mão-de-obra


regional,
...
composta de paraenses e nordestinos remanescentes da epoca
da borracha. Guarda-se na memória um "quebra-panelas" des
ses trabalhadores contra as condições de alimentação ofere
cidas pela companhia. A experiência não deu certo - as
plantações foram a tacadas pela doença - e a Ford trocou pa!,
te das terras por uma outra área plana, com solo de melhor
qualidade, mais próxima de Santarém Belterra. Mais uma
vez o projeto fracassou e, em 1945, o patrimônio foi incor-
porado ao Ministério da Agricultura. Em 1979, Belterra e
Fordlândia somavam 750 mil ha e, respectivamente, 6~400 e
3.600 ha de área plantada com seringueiras. A produção era
de 16 mil toneladas por ano (Malásia: 2 milhões). Tinham
1.649 habitantes, funcionários do governo ou arrendatários
(Província do Pará, 12/7/79).

Uma vez fracassando a pZantation racional, sobrava


para o nordestino a colonização da região.

I f
Já aludi à tensão existente na economia amazônica
durante a época da borracha - bem como o drama vivido por
sua população - entre o produto de exportação, drenando ho
mens e dinheiro, e as culturas de subsistência, para as
quais ambos faltavam. Em 1913, por ocasião da exposição na
cional da borracha, no Rio de Janeiro, o seringalista Ra~~
II
do Pereira Brasil, prefeito de Itaituba, principal área de f
extração da borracha no Tapajós, escrevia, ao propor
mas de colonização:
progr~
I
~

"o principal agente de valorização da nos


sa borracha i a 1avou~a. No dia em que
o Estado tiver vida própria de arroz, fei
jão, milho e açúcar, os grandes transmis
sores dos nossos dinheiros para fora do
Pará, então outra era nos virá e -
sera
boa, porque nela veremos o nosso Estado
normalizado e em pleno adiantamento"(Bra
si1, 1913, p. 42).

Não haveria colonização dirigida em Santarém até a


abertura da Transamazônica; mas, além da várzea e dos rios,
passaria a ser penetrada em profundidade a terra firme e a
ser ocupado o planalto santareno.

1.3.4 - A geografia física da terra firme

A terra firme, como o nome indica, em oposição -a


várzea, é toda a área não-atingida pelas inundações. Reco-
bre a grande maioria das terras do município, da margem sul
do Lago Grande do Curuai, das fozes do Arapiuns e do Tapa-

I
I
jós, do Ituqui aos "fundos" do município. A sua formação
geológica é da época do Terciário. Seus solos, de modo ge-
ral, "são bastante arenosos, ácidos e frouxos, profundame~

te vulneráveis ao lixiviamento quando a floresta é destruí


da" (Soares, 1963, p. 105). Mesmo lá onde o teor de argila
é maior, nas "terras amarelas", esses solos são pobres e po~

co propícios naturalmente à atividade agropecuária, embora


se deva ressal tar a existência de manchas de "terras pretas",
cuja origem está sendo discutida. Seriam resultantes da oeu
pação indígena - o mais provável - , ou grupos indígenas
as teriam ocupado por sua fertilidade. No vizinho município
de Prainha, na altura da Transamazônica, notam-se manchas de
"terra roxa", mui to fértil, que, segundo consta, ainda nao
foi encontrada no município de Santarém. O relevo da ter-
ra firme é relativamente plano. Começa na beira dos rios
por um terraço arenoso, que vai se elevando progressivamen-
te a partir do Tapajós e abruptamente na altura e ao leste
de Santarém, onde se ergue a escarpa do platô santareno, co
mumente chamado planalto e que atinge 130m. Nos "fundos" do
município, onde passa hoje a Transamazônica, o relevo do ter
reno já é bastante acentuado.

Encontram-se no terraço arenoso, entre o Amazonas


e o Tapajós, "matas semi-decíduas", vegetação arbustiva es-
parsa e mesmo campos cerrados. No planalto desenvolve-se a
"hiléia amazônica", a densa floresta tropical heterogênea
com suas procuradas madeiras de lei - mogno, cedro, ange-
lim, maçaranduba-,com a castanheira, o pau-rosa etc. Embora
a impressão obtida por quem sobrevoa a Amazônia seja de mo-
notonia, de fato existe uma infinita variedade de árvores e
plantas. A moderna teoria evolutiva explica isso pela for-
mação da atual floresta amazônica:

"Hã cerca de 11.000 anos e, ainda, entre


aproximadamente 4.000 e 2.000 anos atrás,
um declínio das precipitações pluviais
ocasionou uma diminuição e uma fragment~
ção da flore~ta, transformando grandepa~
te da Amazônia em campos ou savanas. As
populações vegetais e animais ficaram con
finadas em refúgios isolados da floresta
onde começaram a se diferenciar" (Meggers,
1977, p. 55).

~ só urna hipótese mas vale anotar esses dados, pois


ressaltam a juventude, na escala de tempo da geologia, da
floresta amazônica, que ainda tem muito para dar, e a sua
precariedade ligada às condições climáticas. No Baixo Ama-
zonas, as precipitações anuais não chegam a 2.000rnrn, com aI
ternância de estação chuvosa - o "inverno", de dezembro a
maio - e estação seca, enquanto em outras áreas da Amazônia
atingem 3.000mm. O mapa de Santarém pode nos iludir ao mos
trar a rede capilar dos igarapés que confluem para o rio
Curuá. No verao amazonense, fica caracterizada a ausência
de água em muitos trechos da terra firme.

1.3.5 - Os nordestinos voltam à colonização

Marcadas por sua experiência nos seringais, apos-


1910, as primeiras famílias cearenses, vindas do Alto Tapa-
jos, começavam a desbravar e ocupar o que seria Mojuí dos
Campos. a 30km de Santarém. Cultivavam o algodão. Até a d~

cada de 50. ocuparam o planal to tanto ex-seringueiros e "so.!


dados da borracha" quanto migrantes que se voltaram direta-
mente para a colonização. A primeira grande leva parece ter
chegado por ocasião da seca de 1930. Conta um deles:

"Meu pai, trabalhando nessa terra, heran-


ça da velha, devido ã seca e os recursos
que não dava, aí tinha aquele comentãrio
que o governo tã dando pas sagem para o Pa
rã e nesse movimento se junta todo o po-
vo e se manda prã Fortaleza ••. E entao,
chegava-se ali na beira do mar tinh~ um
enorme carvoeira1. Chegam as cordas des
sa grossura, o pessoal amarrava, dava t~

do de curral, porque fazia um curral mes


mo e ficava o pessoal lã tudo morrendo,
epidemia, tudo quanto era coisa ruim •..
. Era coisa horrível que não dã nem d'eu
lembrar todos os passos, so assim resu-
mindo ••. Pelo menos passamos 6 meses em
Fortaleza, e aí aquele de~espero do povo
querendo voltar. Mas voltar prã onde?
Porque não tinha condições sobre a vida
e a gente tinha aquela garra de prospe-
rar, de querer ter e diziam que o parã
tinha muita mata. Chegou ã colônia Au-
gusto Montenegro, de lã foi para Be1terra
e acabou no planalto: Nos queríamos pro~
perar" (ent. 14).

Na década de 50 deu-se o segundo grande movimento


migratório: chegaram ao município de Santarém 12.458 pes-
soas. Só em 1958, foram introduzidos pelo Instituto Nacio-
nal de Imigração e Colonização (Inic). 3.225 migrantes, dos

I
quais 80% nordestinos. Comenta um colono:

"La no Ceara nós morava numa tirinha de


terra, era muito do cheia de gruta .•. e
tirinha de terra -que não tava mais dando
mais legume de qualidade nenhuma, fraca
e pouca, cheia de gente. E eu vivia de
criar ••• Mas em 58, acabei com a cria-
1 çao~ veio uma sequinha la, acabou com tu
do. Agora, só me arrancando daqui, po~
que que e que eu faço aqui sem poder criar
mais nem galinha, nem gado, nem porco,nem
nada •.• Aí vim pra ca, mandaram me cha
mar, arrumei uma passagem com o governo"
(ent. 23).

A cultura do algodão nao prosperou, mas o planal-


to, até a colonização das estradas, era o único produtor de
arroz e principal produtor de feijão, milho, frutas e mal-
va. Mais recentemente, os colonos, seguindo o exemplo de
uma pequena minoria japonesa, começaram a plantar pimenta
do reino em pequena escala.

Os retirantes da seca e da borracha pareciam ter f


t
encontrado_ o seu lugar, mas o sertão os persegue. A pecuá-
ria, nos últimos anos, avança no planalto, e os filhos de
nordestinos estão se tornando os nômades dos garimpos. Mas
-
chegou a hora de o nordestino fincar pe, de passar de colo-
no a camponês, se não quer retomar a sua história errante.

f
I
-:' 1
I
1.4 - A FORMAÇÁO DO CAMPESINATO DAS ESTRADAS

O mais recente ciclo de migração e ocupaçao do mu-


nicípio de Santarêm ocorreu entre 1970-80, com a abertura da
Transamazônica (BR 230) e da Cuiabá-Santarém (BR 163). A
ocupação da região deu-se não mais a partir dos rios, e sim
dos "fundos", pelas estradas que, mesmo em condições precá-
rias e quase simbolicamente, a partir de então passaram a
ligar a região ao seu verdadeiro centro econômico: São Pau-
lo e.Sudeste em geral. Formou-se aí um campesinato histôr!
ca, econômica e culturalmente diferente do caboclo e do co-
lono do planalto, diferença esta que procurei acentuar ao
qualificá-lo como campesinato das estradas.

1.4.1 - A incorporação da Amazônia ao modelo capitalista mo-


nopolista

Em 1970, ao criar o Programa de Integração Nacio-


nal (PIN) , o General Médici discursava em Manaus:

"Aquilo que nio se pode fazer devido i es


cassez de capital, pode ser feito com um
programa integrado de colonização e de
desenvolvimento, cmn um mínimo de recur.sos
econômicos, capaz de gerar rapidamente a
riqueza, para completar, sem inflação, o
e s f o r ç o n e c e s sã r i o i sol u ç ã o dos d o i s pr~
blemas: o do homem sem terras do Nordes-
te e o da terra sem homens na Amazô-
nia{ ••• )" (Gomes, 1972, introduçio).

}
o que haveria por trás desse discurso, do "milagre
da integração nacional" que, com certeza, arrancava lágri-
mas ao Coronel Andreazza - autor do prefácio ao livro de
Gomes - , Ministro do Interior na época, transformado em
crente da "terra prometida"?

Em 1964, quando os militares tomaram o poder, o Br~


I
si1 estava se tornando um país industrializado.
te Getúlio Vargas tinha incentivado a indústria
O Presiden
nacional,
I
com a criação de empresas estatais como a Petrobrás e a Com I
panhia Siderúrgica Nacional (CSN). Com a chegada de Jusce-
lino Kubitschek ãPresidência da República, o Estado acele-
I
rou o desenvolvimento industrial. Também se deve a ele a I I
construção de Brasília e da estrada Belém-Brasília, bem co- l
mo o encorajamento para a implantação de indústrias de bens
de capital e de bens de consumo duráveis - carros e ge1a-
deiras, por exemplo e isso seria financiado com o capi-
tal estrangeiro.

Em 1963/64, acelerou-se tanto a crise econômica


I
com a inflação, a elevação da dívida externa, as tensões en
tre o setor da economia totalmente ligado ao capital estran
geiro e o governo, que queria um programa nacionalista e re
formista - corno a crise política, pois os trabalhadores ur
I
f
banos organizavam-se e pressionavam para obter melhores sa-
lários, e os rurais, organizados em sindicatos e nas ligas
camponesas, no Nordeste, lutavam pela melhoria de suas con
dições de vida e pela reforma agrária. A situação ficou i~

tolerável para a burguesia. Em 31 de março de 1964, deu-se


o golpe militar. O lema dos militares era segurança e de-
t
f
f
}
senvolvimento. Desenvolvimento queria dizer incentivar o
crescimento econômico do País. através da sua subordinação
definitiva ao capitalismo estrangeiro; segurança significa-
va "o controle e a repressão de toda organização e ativida-
de política das classes assalariadas. para que o capital monopo
lista tenha as mãos livres para desenvolver a acumulação"
(Ianni. 1981. p. 8).

A Amazônia particularmente a região de Santarém


até então estava fora desse processo. A classe dominan-
te continuava ligada às atividades tradicionais da pecuária.
da juta e do extrativismo. e enriquecia mais por suas ativi
dades comerciais. pelas quais explorava lavradores e pesca-
dores. Estes. por sua vez. continuavam isolados e nao-org~

nizados. Os militares. em nome dos seus princípios. iriam


cuidar para que mudasse essa situação de estagnação. deven-
do o Brasil afirmar seu poder até as fronteiras. ocupar to
do o terri tório - já que falava-se que a Amazônia era um
"vazio demográfico" - e enquadrar a região no "modelo" de
capi talismo recentemente ado·tado pela ditadura. acabando com
o "vazio econômico".

Para esse fim. foram criados. em 1966. a Superinten


dência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e o Banco da
Amazônia (Basa). A Sudam. "além de coordenar e supervisio-
nar (e mesmo elaborar e executar) programas e planos de ou-
tros órgãos federais atuando na região. ( •.• ) criou incenti
vos fiscais e financeiros especiais para atrair investidores
privados. nacionais e estrangeiros" (Ianni. 1979~, p. 61).
O Basa repassaria o dinheiro. Já que os impostos pagos pe-
lo povo lhes era revertido sob a forma de incentivos fis
cais, começaram a se instalar no Norte novas indústrias, s~

bretudo em Belem e na Zona Franca de Manaus (criada em 1967.) ,


alem de grandes projetos agropecuários.

1.4.2 - O discurso militar da colonização na Transamazônica

Em junho de 1970, o então Presidente da República,


General Medici, esteve no Nordeste onde fez um discurso do
qual se extrai o seguinte trecho:

"Aqui vim para ver, COm os olhos da minha


sensibilidade, a seca deste ano, e vi to
do o drama do Nordeste. Vim ver a seca
e vi o sofrimento e a miseria de sem-
pre( ••• ). Vi a mão verde-oliva dos com
panheiros do Exercito - do soldado ao
general - estendida a esse homem, como
estrutura atuante de assistência social.
Vi como homens $e vinculam i terra, vin-
culados aos seus donos. vi essa pobre
lavoura de sustento, sem agua, sem tecni
ca, sem adubo, sem produtividade, desen-
ganada de dar o esperado fruto. E, pior
que isso, vi a angústia dos meses que ai~
da virão sem chuva. Mas vi em toda a pa~
te dos sertões por onde andei o espírito
de religiosidade, a resignaçio, a bonda-
de, o apego i família. Vi a esperança
apesar de tudo, e a fortaleza moral da-
quela gente sofrida, que a mim falou sua
verdade( •.• )" (Gomes, 1972, p. 18).

I
I
i
75

Dez dias depois, Médici assinava o Decreto-lei n 9


1.106, criando o Programa de Integração Nacional (PIN), des
tinado a financiar obras de infra-estrutura na Amazônia e
no Nordeste, em particular '~ construir as rodovias Transam!
zônica e Cuiabá-Santarém, juntamente com a'colonização e r~

forma agrária' na faixa de 10 quilômetros cada lado das no-


b
vas rodovias" (Ianni, 1979., p. 38). Um mês depois criava o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra),
que teria como objetivo promover a colonização e projetos
de reforma agrária, bem como incentivar o cooperativismo.

Enquanto o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária


(Ibra) estivera subordinado diretamente à Presidência da
República, o Incra, que o sucedia, foi criado como uma au-
tarquia subordinada ao Ministério da Agricultura, o que in-
dicava uma minimização da questão fundiária e sua subordina
çao ao desenvolvimento econômico promovido pelo modelo domi
nante e aplicado por esse Ministério. Em 1971, um novo do-
cumento legal (Decreto-lei n 9 1.164, de 1 de abril de 1971)
declarava "indispensáveis à segurança ·e·aodesenvolvimento
nacional" as terras devolutas situadas na faixa de 100km de
cada lado das estradas federais da Amazônia legal. Boa par-
te do Pará passava, assim, às mãos da União, o que facilita
va a execução da sua política, bastante clara quando se exa
minar o projeto da Transamazônica.

A Transamazônica cumpriria várias funções:


a) permitiria o assentamento de.nordestinos, evitando possi
veis explosões sociais que poderiam afetar a segurança,
já que não se cogitava mexer na estrutura fundiária do

1
Nordeste, e freando as migrações do Nordeste em direção
às grandes cidades do Sul;

b) abriria o interior da Amazônia nao só a colonos, mas aos


empresirios, fazendeiros e latifundiirios, colocando, in
clusive, à disposição deles uma mão-de-obra abundante e
barata;

c) asseguraria o acesso as jazidas minerais que estavam se~

do descobertas (o Projeto Radam, de mapeamento completo


da região, estava em execução) e o escoamento dos . -
m1ne-
rios, que teriam assim "uma saída natural pelo sistema I

hidrorodoviirio", como declarou Delfim Netto (Cardoso &


MUller, 1977, p. 171);

d) faria esquecer ao povo que estava sendo submetido à cen-


sura, impedido de participar politicamente e reprimido,
levantando o tema do "Brasil Grande", do "Brasil potên-
cia", da ocupação do novo Eldorado;

e) permitiria melhor controle militar da região Norte.

De fato, os militares nao declaravam, mas estavam


preocupados com a possibilidade de ins-talar-se a guerrilha
na Amazônia. Ji tinham notícia de que um foco estava se
constituindo na região de Marabi. Contra essa guerrilha,
formada por um grupo de mais ou menos 100 militantes do PC
do B, foram mobilizados cerca de 90 mil soldados, que fize-
ram uma primeira campanha - sem sucesso - em 1972, e uma
segunda em 1973, em que prenderam e torturaram centenas de
lavradores e mataram 60 guerrilheiros.

I
;" ,

Houve resistências à abertura da Transamazônica vin


das da área militar, da área empresarial e do Nordeste, on
de se lamentava a "transferência de parte dos recursos que
eram canalizados para o Nordeste através dos incentivos fis

I cais" (Velho, 1976, p. 210) e se temia uma transferência ma


ciça de nordestinos para o Norte, "golpe final no sistema
de repressão da força de trabalho" que ainda vigora naquela
região (id.ibid.). Para os setores nacionalistas,primeiro
deveria ser assegurada a ocupação de áreas menos distantes,
nao se abrindo a possibilidade de exploração do subsolo por
I
grupos estrangeiros sem que arcassem com os custos da infra
estrutura. O ex-ministro Roberto Campos também se opôs, cri
ticando tia ausência de interesse em verificar-se a ( •.. ) 'vi!
bilidade econômica'" da estrada (id. ibid., p. 211). Apesar
dessas discordâncias, "o casamento de uma vocação de grand~

za de certos setores governamentais com o interesse dos em-


preiteiros" (Cardoso & MUller, 1977, p. 177) levou a melhor.
O Ministro da Fazenda, Delfim Netto, podia declarar: "Nós
vamos empurrar a fronteira para a conquista de um novo País"
(in Velho, 1976, p. 211).

Em 1970 começou a construção da Transamazônica e,


pouco depois, a da Cuiabá-Santarém. Em outubro desse ano,
o Presidente Médici foi até Altamira inaugurar uma placaf~

cada num tronco que dizia:

"Nestas margens do Xingu, em plena selva


amazônica, o Senhor Presidente da Republi
ca dá início ã construção da Transamazô-
nica: uma arrancada histórica para a con
quista e colonização do gigantesco mundo

I
78

verde. Altamira, 9 de outubro de 1970."

1.4.3 - Os projetos de colonização. A megalomania tecnocrá-


tica i prova dos fatos

Em 1972, chegavam na região de Rurópolis os prime!


ros colonos a serem assentados pelo Incra no Projeto Inte-
I
grado de Colonização (PIC) de Itaituba.

Os PIC eram ambiciosos projetos de planejamento do


espaço rural e de racionalização sócio-econômica da sua ocu
I

paçao. Ao longo das estradas principais, seriam delimita-


dos lotes de SOOm de frente por 2krn de fundo (lOOha). De S
em Skrn seriam abertas estradas vicinais de 7.200m a serem
ocupadas, de ambos os lados, por 36 colonos em lotes de
400m de frente por 2.S00m de fundo. No final dessas vici-
nais seriam localizados lotes de SOOha destinados a pecua-
ria. De 10 em 10km seriam construídas agrovilas, "bairros
rurais" previstos para a moradia dos proprietários de lotes
num raio de Skm com um mínimo de infra-estrutura coletiva:
escola, capela, comércio, posto de saú,de. Várias agrovilas
seriam colocadas sob a influência de uma agrópolis, que di~
It
poria de uma infra-estrutura maior. Enfim, a rurópolis, nú r
cleo urbano principal, deveria concentrar todas as ativida- I
l
des e serviços: indústria, comércio atacadista, hospital,
l
escolas de 2 9 grau, serviços administrativos necessários ao
atendimento de um conjunto de agrovilas e agrópolis.
b
(Ver I

Ianni, 1979., p. 61). Na prática, no PIC Itaituba (que
abrangia três municípios: Santarém, Aveiro e Itaituba) fo-
79

rarn feitos a rurópolis Presidente ~-1édici, quatro "núcleos de


apoio" no lugar de agrópolis e "lotes de comunidade" no lu- I
gar de agrovilas, sem a grandiosidade do projeto original I
(Fase, 1978, v. 2, p. 82 e 91). O PIe estava sob a respo~

sabilidade do Incra, encarregado da infra-estrutura, in-


cluindo o fornecimento de casas de madeira e instalação dos
colonos, sua titulação, assistência técnica e médica.

Segundo o Incra, em 1973 havia no PIC Itaituba 571


famílias assentadas, das quais 146 do Sudeste/Sul, 136 do
Nordeste e 264 do Norte (Ianni, 1979~, p. 72). No finalde
1976, o PIC Itaituba contaria 1.554 famílias assentadas,sen
do previsto para 1977-79 o assentamento de mais 2.457 famí
lias. Eram nordestinos e, chegando ~e1a primeira vez à re-
gião, um contingente de agricultores do Sul do país: Para
nã, Santa Catarina e, sobretudo, Rio Grande do Sul. Os co
lonos oriundos deste último estado representam no município
de Santarem um número razoável, concentrados num trecho da
Transamazônica, vizinho de Rurópo1is, imediatamente c~

a "linha gaúcha". Essas famílias, descendentes de colonos


de origem alemã, ita1iana,po1onesa, estabelecidos no Sul em
pequenas propriedades no século passado, não tinham !D3.is CO!!

dições de sobreviver. As·pequenas propriedades haviam-se


transformado em minifúndios e muitos lavradores encontrav~

se "excluídos" da sua condição de agricul tores devido ao au


mento da população, à crescente dificuldade em comprar ter
ra - cujo preço aumentava assustadoramente na medida da in
tegração do Sul no modelo agroexportador - e a expulsão
branca, provocada por esta integração. Obrigados a se meca
nizar para produzir soja e, para tal, beneficiando-se d.e cre
80

dito, muitas vezes nao conseguiam pagar as dívidas e entre-


gavam a sua terra.

Além dos colonos selecionados e assentados pelo


Incra, chegaram ã Transamazônica centenas e milhares de mi-
grantes vindos, principalmente, do Maranhão. Eles percorr~

ram em uma ou duas gerações o intinerário clássico: Ceará,


Vale do Mearim(MA), Vale do Pindaré(MA), Sul do Pará, Tran-
samazônica.

"Eu sou do estado do Cearã, sou do Juazei


ro. Agora acontece que eu saí de lã em
58, aí com 20 anos que eu saí do estado
do Ceará; aí eu vim primeiramente pro es
tado do Maranhão. Pasei seis anos no es
tado do Maranhão. Aí de lã baixei pra
banda do Marabá, pra cã eu passei dois
anos. Em 67 subi,fui para Imperatriz. De
Imperatriz então baixei para cão Vim p~
ra ir pro garimp~ Com uma turma aí, nao-
deu certo" (ent. 16).

"No Maranhão não tem minifúndio. Só tem


latifúndio. E a gente pra não ficar de-
baixo do cativeiro deles, coagido, a ge~

te tem que espocar -fora. No dia que eu


ver um homem pequeno com título lã, vou
dizer que este homem e mentiroso. Lã to-
do mundo e agregado do outro. Aqui e a
terra da promessa" (ent. 19).

Expulsos sucessivamente para deixar a terra "aman


sada" para a pecuária e a especulação, chegavam atraídos pe
la propaganda oficial i procura de terras livres e passaram
a ocupar com teimosia lotes da estrada desocupados e, sobre

I
81

tudo, travessões inóspitos. Fala um maranhense:

"Ouvia falar na Transamazônica( •.. ) Prá


mim, era um sonho. A Transamazônica, no
Pará: E Pará nessa epoca era uns con-
fins. Mas 19 de junho de 1974, nos en-
tramos naquele travessão" (ent. 19).

Esse mesmo sonho os gaúchos tinham, como lembra um


deles:

"Nesse meio tempo, então, já fim de 71 pra


72, começava a grande campanha pra a ocu
pação da Amazônia pelos trabalhadores. A
grande campanha que era levada pelo pre-
sidente, naquele tempo o ditador Medici.
Então fizeram uma exposição em Porto A1~
gre com fotografias ampliadas e mostra-
vam o que era a Amazônia. Riqueza. Mos
travam o enxerto de jurubeba com tomate,
que chamavam o jurumate. Aí dava aque-
les enormes tomates assim. Aí falavam da
terra, falavam da qualidade da produção,
do clima e da ajuda do governo. E o go-
verno então entregava uma terra, entreg~
va uma casa, entregava quatro hectares já
derrubados. E entregavam um casal de po!..
cos pra iniciar o processo tambem.
va tambem logo em seguida pra
uma vaca.
va assim .••
Ajud~

adquirir
Ia ter transporte entao. Fala
Eu ficava imaginando: eu
I
vou pra Amazônia e de lá eu vou comunicar
ã família de que eu tou lá" (ent. 1).

Em contraste,escrevia o bajulador de plantão:

"A Transamazônica está testemunhando o


maior, mais arrojado e gigantesco plano

I
82

de colonização do mundo moderno( .•• ) Os


colonos da Transamazônica dispõem de fa-
cilidades ate agora jamais atribuídas a
quem quer que seja na história agrícola
do País. Recebem 100 hectares, que pag~

rão em 20 anos, com três de carência, c~


sas de madeira confortavel, instaladas
num lote de 25 metros de frente por 120
de fundo em agrovilas, instrumentos para
cultivo da terra, instrução permanente por
parte dos agrônomos, financiamento de se
mentes e das safras, alem de assistência
medica, dentaria e hospitalar" (Gomes,
1972).

Segundo um artigo do jornalista Lúcio Flávio Pinto,


escrito em 1975, para Jarbas Passarinho "a fixação dos col~

nos na Transamazônica entre Itaituba e Marabá, feita orde-


nadamente pelo Incra, é um êxito". Dizia também o Coronel
Passarinho que "as manchas das terras agriculturáveis têm
dado resultados em produtos agrícolas, extremamente favorá-
veis" (Pinto, 1977, p. 267). Para ele, se existiam proble-
mas com a colonização, era porque "não se contou foi com a
migração espontânea" (id.ibid., p. 267). A mesma opinião
tinha o coordenador do Incra no Pará, Elias Scheffer, quag
do dizia em entrevista publicada em janeiro de 1977 que "o
maior problema fundiário do Pará é a invasão: ( •.• )Não damos
terra a todos os colonos porque muitas vezes eles querem a
terra apenas para especular. Então, precisamos ir mais len
tamente, estudando cada caso e vendo quais os colonos que
realmente têm condição de explorar a terra" (id. ibid., p.
45) • f

I
t
83

Sabe-se, no entanto, que isto nao correspondia a

realidade. Já em 1975, o mesmo jornalista respondia ao Jar


bas Passarinho que "sem essa migração espontânea, o fracas-
so da colonização seria ainda maior. As desistências foram
muito mais acentuadas entre os colonos trazidos pelo Incra
do que entre aqueles que chegaram à Transamazônica por seus
pr6prios meios; alim disso, sem estes filtimos migrantes, a
colonização oficial dirigida já teria sido substituída pela
colonização empresarial" (id.ibid., p. 267).

1.4.4 - Tirando a máscara: a Amazônia aberta à pilhagem

Na realidade, o debate sobre colonização dirigida


e colonização espontânea era bem secundário; de um lado po~
que, corno o lembra Jean Hebette e Rosa Acevedo no seu estu-
do sobre colonização espontânea (Hebette &Acevedo, 1979,p.
114), não i tão grande assim a distância entre as duas for-
mas de colonização por ser a colonização "espontânea" tam-
bim um processo induzido/dirigido.; de outro porque o enfoque
social estava ultrapassado. Convinha afirmar e incentivar
a vocaçao empresarial da Amazônia e acelerar a sua entrada
no modelo do capitalismo internacional. Aliás, ati 1975,
a Sudam já tinha aprovados para concessão de incentivos fis
cais, na Amazônia, 89 projetos agropecuários.

Ainda em 1973, o Ministro do Planejamento, João


Paulo dos Reis Ve10so, tinha declarado: "Até aqui a Transa-
mazônica deu ênfase à colonização, mas a necessidade de evi
tarmos urna ocupação predatória com conseqUente processo de
84

desmatamento e a de promover manutenção do equilíbrio ecol~

gico nos levam a convidar as grandes empresas a assumir a


tarefa de desenvolver esta região" (Cardoso &MUller, 1977,
p. 158).

o Plano de Desenvolvimento da Amazônia, elaborado


em 1975 pela Sudam, retomava o mesmo tema:

"o objetivo de ocupação da Amazônia atra-


vés da absorção de excedentes relativos
da população do Nordeste, apesar dos es-
forços empreendidos, esti em desacordo
com o desígnio de acelerar o crescimento
I
- tem a
regiona1( ••• ) a região nao ofere-
cer-lhes [aos colonos] - que
, na proporçao
seria necessirio, os solos férteis com
que sonham. De maneira que a massa de
colonos espontâneos empreende a única e
perigosa atividade que sabe realizar: a
destruição da mata e o esgotamento do so
10 pela pritica de paupérrimas culturas
de subsistência no conhecido regime de
lavoura itinerante( ••• ). Ã luz desse mar
co, parece que o objetivo da ocupação e
colonização, nos termos em que fora ver-
tido, deve ser revisto" (in Hebette & Ace
vedo, 1979, p. 43).

A argumentação, se nao fosse tão grosseira, seria


de natureza a tocar o Banco Mundial e o Banco Interamerica-
no, financiadores de projetos governamentais brasileiros e,
contraditoriamente, sensíveis devido à pressão da opinião
pública internacional quanto às questões ecológicas.

o Programa Po1amazônia, criado pelo Decreto-lei n 9


74.607, em 25 de setembro de 1974, não tomava tanta preca~
85

çao. Segundo o Superintendente da Sudam, o Polamazônia bus


cava "promover a ocupação produtiva desta região e alcançar
os objetivos estratégicos da política de desenvolvimento e
integração nacional" (Sudam, s.d.). Em 15 áreas da região
amazônica, entre as quais o Pólo Tapajós, cobrindo parte dos
municípios de Santarém, Aveiro e Itaituba, tratava-se, atr~

vés de "incentivos e favores fiscais e creditícios a empre-


sas privadas( •.. ), de iniciar ou expandir empreendimentos de
extrativismo, mineração, agricultura, pecuária e agroindú~

tria, de modo a aumentar a capacidade de produção mercantil,


em geral,' e exportação, em particular" (Ianni, 1979~, p.
236). O Incra seria colocado a serviço dessa política, co
mo o explicava a Exposição de Motivos sobre a criação do Po
lamazônia: "como condição para colonização, nessas áreas se
lecionadas de projetos de iniciativa empresarial, torna-se
imprescindível a efetivação e titulação de terras, inclusi-
ve daquelas pertencentes à União. Tais áreas irão, pois,
receber tratamento prioritário dos órgãos incumbidos do pr~

blema fundiário" (Ianni, 1979~, p. 89).

o programa específico do Pólo Tapajós recomendava,


portanto, entre outras -medidas, a discr1minação das terras
para que se pudessem definir as propriedades e, assim, in-
centivar a agropecuária; a aceleração da regularização dos
lotes atribuídos aos colonos do PIe Itaituba para que se p~

dessem beneficiar do crédito; lia implantação de médias em-


presas agrícolas com capital e tecnologia capazes de proce-
der à ocupação racional da terra" (Sudam, s.d., p. 158); "a
criação de uma área para exploração racional da floresta e
86

que sirva de abastecimento regular às indústrias onde serao


concentradas todas as atividades da região" (ibid., p. 16),
no município de Itaituba. O mesmo documento assinalava que
já existiam o Parque Nacional da Amazônia, com 1 milhão de
hectares, e a Floresta Nacional do Tapajós (F10na), com 600
mil ha, ambos criados por decreto em 19 de fevereiro de 197~

A Sudam vinha preparando essas decisões fazia já· a!


gum tempo. Em 1972, num simpósio sobre exploração flores-
tal realizado no Rio de Janeiro, o Engenheiro Francisco Gue~

ra, da Sudam, apontava uma série de oportunidades e fatores


para o desenvolvimento florestal amazônico: floresta rica
em espécies valiosas, facilidade de penetração, topografia f~

voráve1 à exploração, proximidad~ dos grarides mercados in-


ternacionais, rios navegáveis, rodovias, incentivos fiscais,
cooperação financeira e isenção de impostos, estabilidade
política (era a época do governo do General Médici!).

Os colonos da Transamazônica e da Cuiabá-Santarém,


que nunca tinham recebido muito apoio, veriam minguar ainda
mais os recursos que lhes haviam sido destinados. Chegava
a hora de privilegiar a ocupação priva.da, via empresas pa~

ticulares de co10ni zação, ligadas a grandes coopera ti vas (c~

mo a Cotrijui que obteve uma grande área, até em terras in- ..


dígenas, perto de A1tamira), ou via empresas capitalistas.
Tomava um novo alento a já velha história de especulações,
fraudes, violências contra os homens e contra a f10resta,fr~

cassos.

Enquanto isso, os colonos trabalhavam. Se o arroz


foi, durante os primeiros anos de colonização, praticamente
8':"

o único produto para comercialização, desde 1977/78 diminuiu


a sua produção e incrementaram-se as culturas permanentes:
pimenta-do-reino, cacau. A pecuária também começou a se
destacar, tanto nos lotes de lOOha, quanto nas fazendas em
expansao.

o enraizamento dos caboclos e nordestinos do pla-


nalto já é bastante antigo. Faz parte da história de Santa
rem. Já os camponeses das estradas, se tinham individualme!!
te um passado, não tinham urna história corno grupo social.Tal
vez o amplo horizonte das suas andanças e a necessidade im-
periosa de criar raízes, pois chegavam ao "fim da linha",
fizessem com que se destacassem dentro do movimento dos tra
balhadores rurais de Santarem. Em poucas centenas de quil~

metros de estradas e vicinais, formavam a síntese do campe-


sinato brasileiro.

i
I
I
88

1.5 - CONCLUSÃO

Dentro dessa história de resistências, fugas e es


peranças dos paraenses, nordestinos e sulistas, a população
e o espaço rurais do município de Santarém tomaram a sua fisiono
mia atual.

Os censos demográficos precisam o que já assinalei


anteriormente a respeito das migrações (ver tabela 2). A fo!
te migração cearense dos anos 50 cedeu lugar, na década de
70, a urna migração mais diversificada.

Tabela 2

Naturalidade dos habitantes de Santarém


(1960-80)

Estados 1960 1970 1980

Estados e territó n.e. 1.430 2.403


rios do Norte, me
nos o Pará
Maranhão n.e. 654 3.385
Ceará 9.885 11.243- 11.448
Oltros estados do 469 811 3.812
Nordeste
Os três estados 106 245 1.899
do Sul

Oltros estados 5 137 1.977

Fonte: Censos demográficos da Fundação IBGE.


n.e.: não especificado.
89

o interior santareno, nos anos 50, conheceu um cres


cimento proporcionalmente maior do que o da cidade (ver ta-
bela 3), com a ocupação maciça do planalto (recenseado então
totalmente no distrito de Santarêm. Em 1970, parte dessa
região passou a formar o distrito de Mojuí dos Campos). Nos
anos 60, com a diminuição da migração e a transferência de
grande número de moradores do interior - sobretudo do planal top~
ra a cidade, o crescimento da população rural foi menor. No
entanto, vale notar que muitas famílias colocadas na rubri-
ca "população urbana" desenvolviam atividades rurais, sendo
I
pescadores, assalariados rurais temporários ou lavradores,
morando tanto em Santarêm quanto nas sedes dos distritos ru
rais, cujos moradores, por sinal, levam um estilo de vida
mais rural do que urbano. Nos anos 70, a ocupação das es-
tradas nao chegou a compensar as saídas da zona rural. Não
me foi possível verificar como foram recenseados os colonos
da Transamazônica e da parte norte da Cuiabá-Santarêm. Tal
vez pertencessem ao distrito de Santarêm, o único a crescer
substancialmente entre 1970 e 1980.

o mapa Z, anexo, permite visualizar a ocupaçao do


espaço regional: a população rural bastante concentrada na
região do Lago Grande do Curuaí, no planalto (em direção ao
Curuá-Una, a M~uí dos Campos e a Jaboti) e na Transamazôni
ca. Embora com urna população um pouco mais esparsa, toda
a várzea e as beiras dos rios (braços do Amazonas, o Tapa-
jós, o Arapiuns) são bem ocupadas. São pouco ocupadas, ai~

da, as áreas afastadas dos rios entre o Arapiuns e o Tapa-


jós, em direção ao município de Juruti, a imensa área situa
90

da entre o rio Moju e as vicinais da margem direita da Tra~

samazônica e a F1ona, onde é proibida a ocupação. Em 1985,


conforme a Prefeitura de Santarém, o município foi redividi
do em sub-regiões e distritos que acompanham a sua ocupaçao.
Sub-regiões: Santarém (distrito: Santarém), Be1terra (Be!
terra), Tapajós (Boim), Arapiuns (Vila Gorete), Lago Grande
(Curuaí), Arapixuna (Arapixuna), Tapará (Aritapera), Ituqui
(Tiningu), Planalto (Santa Rosa), Mojui dos Campos (Mojui
dos Campos), Pa1hão (Vila do Curuá-Una), Transamazônica (A!
to Pará). Tal é o espaço da resistência a partir do qual o
campesinato vai travar novas lutas.

Tabela 3

População rural e urbana dos distritos de Santarém


(1950-80)

Município 1950 1960 1970 1980


e Popu1. Popul. PoDul. Popu1. Popu1. Popul. Popu1. Popu1.
D istritos
urbana rural urbana rural urbana rural urbana rural
Santarêm 14.061 21. 294 24.924 35.636 51.009 41.170 102.181 45.175
Alter do 372 4.951 768 6.366 640 4.504 682 5.783
Chão
Arapixuna* 589 4.191 310 5.420
u
Aveiro 190 147 191 502
Bel terra 3.556 3.670 5.347 3.467 5.394 3.083 3.619 3.104
Boim 479 2.982 657 3.505 890 3.037 615 3.415
Curuai 555 7.972 728 11.060 965 16.337 1. 254 16.419
Mojuí dos 2.129 1.277 2.996 977
Campos *
Total 19.213 41. 016 32.615 60.536 61.616 73.499 111.657 80.293
Fonte: Censos demográficos da Fundação IBGE.
*Criados após o censo de 1960.
**E1evado a município depois do censo de 1960.
91
I
CAPITULO 2

A EMERGENCIA DE UMA CLASSE:


(1974 -7 8)

2.1 - INTRODUÇÃO

Um movimento social nao nasce repentinamente da c~

beça de alguns "iluminados". Há um conjunto de elementos que


tornam possível o seu surgimento numa det~rminada época. Por
que situo o início do movimento sindical dos trabalhadores
rurais de Santarém em 1974?

Antes de responder a esta pergunta, vale lembrar


que as coisas não acontecem de um dia para o outro; as da-
tas sao referências, marcos para nao se perder no tempo.

O ano de 1974 viu o General Geisel promover a sua


política de distensão; o capitalismo moderno penetrou de vez
na amazônia, prenhe de novas contradições geradoras de con
f1itos; a evolução progressiva da Igreja comprometida com J
os pobres levou muitos dos seus agentes a se aproximar
povo - foi o caso, em particular, de Santarém. Todos
do
es-
I
ses elementos conjugaram-se para tornar possível o movimen-
to e definir os seus limites, que apareceram claramente em
1977/78.

Se tivesse de indicar um traço dominante deste pe-


ríodo, diria que foi o tempo das solidariedades imediatas e
esporádicas dentro de grupos unidos por algum interesse co-
92

mum - o tempo da "comunidade", em que se poderia ressal tar


a novidade do "momento econômico-corpora tivo".

Apresentarei rapidamente a conjuntura político-ec~

nômica na qual surge o movimento dos trabalhadores rurais


de Santarém. A seguir, darei algumas indicações sobre a e~

trutura econômica na qual está inserido o campesinato sant~

reno, terreno no qual se dão as primeiras lutas e se inicia


a sua organização tratadas no final deste capítulo.

I ff·
!
1 t
9~

2.2 - AS CONDIÇOES EM QUE SURGE O MOVIMENTO. O MEIO AMBIEN


TE E SEUS ATORES

De maneira sucinta, apresento alguns elementos de


ordem estrutural e política, do nacional ao local, que aju-
daram a tornar possível o surgimento da organização dos ru
ralistas, destacando o papel da Igreja.

2.2.1 - O contexto político-econômico geral

Em 1974, o General Geisel assumiu a Presidência da


República em condições que lhe eram favoráveis. A esse res
peito, retorno aqui ã análise de Sebastião Velasco e Cruz &
Carlos Estevam Martins (Cruz & Martins, 1984). A indicação
de Geisel pelo General Médici não sofreu contestação dentro
das Forças Armadas. A oposição política institucional - o
MDB - fora derrotada nas eleições anteriores e dava provas
de muita moderação frente ao Governo. Já a oposição nao-~

titucional - os partidos ou grupos clandestinos que tinham


optado, ou não, pela guerrilha - tinha sido esmagada. A so
ciedade civil - sindicatos, organizações profissionais, as
sociações de moradores, com exceção da Igreja e da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB),estava ausente da cena política.
A economia tinha crescido em 8% em 1969, 13,3% em 1971, 7%
em 1972 e 14% em 1973 e, embora começasse a crise detonada
pelo "choque" do aumento brutal do petróleo, a euforia mini
mizava os seus efeitos. O contexto era favorável, portan-
to, ã implantação da "estratégia de distensão - uma propo~

1
ta de liberalização gradual e limitada, cujo tempo e dire-

çao o próprio Governo se encarregaria de fixar" (Id. ibid.

p. 47).

No entanto, ainda segundo esses mesmos autores (p.

49 segs.), o projeto de distensão sofreu três impactos:

1 9 ) O MDB saiu vitorioso nas eleições majoritárias de 1974

em 16 estados, elegeu 16 dos 22 senadores e 160 dos 364

deputados. Contava, até então, com apenas 7 dos 66 se-

nadores e 87 dos 310 deputados;

2 9 ) a reação da extrema-direita militar que, através dos ór

gãos de repressão que adquiriram um poder autônomo, to

ra do controle do Governo, desencadeou violenta vaga de

repressão que culminou com as mortes, em são Paulo, do

jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, e do ope

rário Manoel Fiel Filho, em janeiro de 1976;

3 9 ) uma campanha de antiestatização oriunda de certos seto-

res empresarias.

Pela primeira vez, parte da burguesia industrial e

financeira questionava o regime ditatorial do qual ela era

um dos pilares. A distensão desembocaria em 1977, de um la

do, no "pacote de abril", destinado a assegurar a continui-


dade no poder do esquema militar apoiado por um oartido e

governadores majoritariamente da Arena; e, de outro, na Mis

são Portela, que iria escutar os setores representativos da

sociedade, e na neutralização dos militares da "linha dura".

Esse contexto permitiu à Igreja afirmar-se no seu papel de

porta-voz da sociedade civil até que esta conseguisse se ex


9S

pressar, ainda em 1977.

Apesar da crise do petróleo, o Governo Geisel deu


continuidade à política econômica da ditadura, afirmada no
11 Plano Nacional de Desenvolvimento (11 PND). Prosseguiu
a entrada maciça de empréstimos externos, e o Governo prom~

veu grandes investimentos nos setores de energia, petroquí-


mica, siderurgia, transportes, incentivando ainda a explor!
ção do subsolo. Foi também no Governo Geisel que se ini-
ciou o Projeto Carajás e se abriu a pesquisa petrolífera aos
contratos de risco. "Na prática, o aparelho estatal conti-
I

nua a serviço da acumulação monopolista, preservando inclu-


sive a mesma política de super exploração e repressao do pr~

letariado" (Ianni, 1981, p. 13).

A Amazônia foi decisivamente integrada neste pro-


cesso. Para efetivá-lo, o Governo militar, no que diz res
peito ao campo, se aparelhou com alguns meios: o Banco
da Amazônia (Basa), a Sudam, abertura das estradas e federa
1ização da terra. O Decreto-lei n 9 1.164, de 1 de abril de
1971, tinha Go1ocado sob tutela federal uma faixa de lOOkm de cada
lado das estradas federais para fins de colonização, o que
José de Souza Martins comenta assim:

liA federalização e a militarização das ter


ras da Amazônia transformou-se na condi-
-
çao para que o desenvolvimento regional
saisse das mãos da oligarquia, dos comer
ciantes e proprietarios tradicionais, e
abrisse espaço ao grande capital, cedes-
se terreno ã acumulação dos grandes gru-
pos econômicos, cuja escala de -
operaçao
e de interesse faz deles justamente os
9b

efetivos agentes econômicos da centrali-


zação do poder" (Martins, 1984, p. 50).

Em 1974, foi posta de lado a colonização oficial

em proveito da colonização privada e, sobretudo, da agroi~

dústria, política confirmada, sem maiores rodeios, no Pola

mazônia já abordado no capítulo anterior. Embora a entrada

maciça de capital na Amazônia tenha sido mais sensível, no

tocante ao Pará, no sul do estado e na Belém-Brasília, os

seus efeitos fizeram-se sentir em Santarém e atingiram nao

só o colono das estradas, mas também o caboclo de beira-rio.

2.2.2 - A cidade de Santarém

Politicamente, Santarém acompanhou o que aconteceu

no plano nacional. Em 1966, a burguesia local abriu mão do

governo municipal (a prefeitura) para não perder o seu po-

der econômico-político, como fizera a burguesia brasileira

em 1964. O candidato da Arena a prefeito nas eleições muni.

cipais de 1966, o Deputado Ubaldo Campos Corrêa, "funcioná-

rio do Banco de Crédito da Amazônia, oriundo de família tr~

dicional, bisneto do Barão de Tapajos, expressão política

do homem conservador e reacionário" (Santos, 1985~) tinha

perdido para o candidato do MDB, o Sr. Elias Ribeiro Pinto.

Dos 14 vereadores, 12 votaram a favor do afastamento do pr!

feito, sem maior reação popular. "O caso deu causa a que

Santarém, em companhia de Santos, no estado de são Paulo,

fosse enquadrado na Lei de Segurança Nacional, perdendo a

sua autonomia( ... ) Desse modo, ficou assegurado o predomínio

t
t
q~
- I

do grupo dominante da Arena" (id. ibid.), confirmado nas

eleições de 1974.

As "tradicionais famílias" de Santarém que, direta

ou indiretamente, dirigiam a política local ã sombra do po-

der militar - que marcava presença através do 8 9 Batalhão

de Engenharia e Construção (BEC) , um batalhão da Polícia Ml


litar e uma delegacia da Polícia Federal - não demonstraram

sinais de interesse pela distensão. Continuaram a dominar

a economia local, sobretudo por meio do comércio, principal

atividade econômica da cidade. Em 1978, a prefeitura cada~

trou 582 varejistas, 34 atacadistas e 6 mistos (Pacheco,

1980, p. 138), sem falar da importante feira diiria e pequ~

no comércio informal de verduras, frutas e peixe praticado

nos bairros, no cais e nos portos.

Mas as atividades tradicionais comércio, admi-

nistrações, ensino, saúde, a Tecejuta (indústria de benefi-

ciamento da juta), algumas serrarias, transporte marÍtimo-

vieram-se somar, pelos motivos ji expostos, novas atividades,

obras e serviços que mudaram o aspecto da cidade e do campo

e introduziram novos atores sociais. Além das BR 230 e 163

esta construída pelo 8 9 BEC - , executaram-se outras obras

de vulto: a barragem hidrelétrica do Curui-Una, o porto e o

cais da cidade, o novo aeroporto. Cresceu a presença de óE

gaos públicos: o IBDF, responsivel pelos projetos ligados ã

Flona Tapajós, um campus avançado, a Acar-pari, o Incra,

executor, a partir de 1976, de um ambicioso projeto de reg~

larização fundiiria, a Sudam, com uma estação experimental,

um centro madeireiro e desempenhando o papel de incentivado


98

ra e coordenadora do desenvolvimento regional. No interior,


apareceram algumas empresas rurais produtoras de pimenta do
reino, dirigidas por japoneses, barcos pesqueiros utili
zados para a ?esca semi-industrial e empreendimentos agrop~

cuários financiados pelos incentivos fiscais da Sudam: a


Agropastoril Boiuna-Soboi, na área do curso inferior do Cu-
ruâ-Una em 1974, e a Santa Izabel Agroflorestal, que ganhou,
em 1976, uma licitação para â exploração racional de madei
ra na área da Plona. Posteriormente, essa firma apareceu c~

mo dona, ao lado da Amazonex Ltda., de imensa extensão de


terras na margem esquerda do Tapajós.

A cidade onde tradicionalmente muitas famílias do


interior mantinham uma casa para que os filhos pudessem es-
tudar, ou para fugir da várzea inundada, tinha conhecido um
grande crescimento na década de 60, com as grandes migrações
de nordestinos. Esse crescimento confirmou-se na década de
70: a cidade passou de 51 mil habitantes para 102 mil em
1980. Enquanto migrantes chegavam ao campo, outros abando-
navam a roça e a varzea para se empregar nas obras públicas
da cidade, em Oriximina, no projeto de mineração da bauxita
do rio Trombetas, ou nas obras da Barragem de Tucuruí. Mui
tas famílias de garimpeiros do Alto Tapajós também passaram
a morar na cidade.
2.2.3 - A Igreja no vácuo político

Como conseqUência desse crescimento surgiram novos

atores sociais: uma massa urbana sujeita a precárias e ins-

táveis condições de trabalho e uma nova leva de colonos fren

te a uma minoria de funcionários e de profissionais que,se~

do os primeiros beneficiados pela política governamental p~

ra a região, tornaram-se, em geral, agentes ativos do poder

militar.

Na confluência do tradicional e do moderno, insta-

laram-se novos povoados, novos bairros, novas realidades e

novos problemas. O tecido social se distendeu e fragilizou.

Na zona rural, a auto-organização tradicional, sobretudo da

população cabocla, bem como o sistema de representação atra

vês de comerciantes e vereadores que fazem a ponte com a ci

dade, nao responderam bem a essa nova situação. Na coloni-

zaçao das estradas, o quase único interlocutor dos agricul-

tores era o Incra. A intervenção federal que fez de Santa-

rêm uma área de segurança nacional, a federalização das ter

ras, a presença maciça de órgãos federais ameaçavam enfra-

quecer o poder local tradicional. Havia, portanto, uma po~

sibilidade de vazio político nesse momento de reordenação

do espaço e das relações sociais (ver Martins, 1984, p. 56).

Quem iria ocupar politicamente o terreno?

Esse problema nao tinha passado despercebido aos

olhos dos tecnocratas do estado. A Sudam procurava implan-

tar o "desenvolvimento comunitário", concebido como "a ma-

neira pela qual as comunidades da região serão preparadas a

participar do processo de desenvolvimento regional e nacio-


lOll

na1, acelerando-o e integrando-se efetivamente às diretrizes


do governo" (Sudam, Programa de Desenvolvimento de Comunida
de: 1971-76, in Ammann, 1980, p. 114). Vale notar que essa
definição é bem consoante com aquela dada ao desenvolvimen-
to comunitário pela ONU em 1956: "Processo através do qual
os esforços do próprio povo se unem aos das autoridades go-
vernamentais, com o fim de melhorar as condições econômicas,
sociais e culturais das comunidades na vida nacional e cap~

citá-las a contribuir plenamente para o progresso do país"


(Ammann, 1980, p. 32).

Mais claramente, em 1975, a Sudam abribuiu ao de-


senvolvimento de comunidade a competência para "interpreta-
ção, divulgação e preparação das populações para as mudan-
ças que advi rão com a ( ... ) impl an tação do I I PDA" (Sudam,
11 PDA, 1975, in Ammann, 1980, p. 115). Nesse sentido, eram
promovidas em Santarém reuniões periódicas que juntavam en
tidades públicas e privadas voltadas para o social. Travavam
aí discussões inócuas na medida em que o destino das verbas
públicas era previamente definido e não havia entidade que
representasse um setor social organizado capaz de exercer
alguma pressao.

O único setor da sociedade civil capaz de preencher


o vazio político, pois já ocupava o terreno, era a Igreja.
Sua estrutura, sua tradição e o seu respaldo, bem como o sen
timento religioso do povo, faziam dela uma força que o regi
me não podia controlar totalmente .

• 181:IOJEUJI-........
MOAQAO GETOLlO VABGM
I 101

2.2.3.1 - A opçao pelos pobres na Igreja de Santarém

A grande maioria da hierarquia da Igreja Católica


e, por trás dela, boa parte dos católicos apoiaram o golpe
militar de 1964, por medo do comunismo. Entretanto, desen-
cantado pela repressão política e pela miséria crescente do
povo, o episcopado tornou-se progressivamente uma força de
oposição ao regime. Em 1968, reunida em Medellin, a Confe-
rência Episcopal Latino-Americana (CeIam), com participação
destacada dos bispos brasileiros, afirmou a sua "opção pr~

ferencial pelos pobres".

Em 1972, os bispos da Amazônia, reunidos em Santa-


rém, formularam as Linhas prioritárias para a Pastoral da

Amazônia. Neste documento, chamavam a atenção sobre "as


limitações e perigos" que as transformações econômicas e so
ciais da região apresentavam para o homem da Amazônia:

"- antigas e novas marginalizações;

- estruturas inadequadas importadas ou


opressivas;

- desenvolvimento econ;mico feito sem ou


contra o próprio homem;

- violação de direitos básicos, como a


posse da terra;

- injusta distribuição dos recursos mate


teriais e dos incentivos públicos;

divulgação publicitária que, as vezes,


altera o enfoque da situação real"(Pre
lazia de Santarem, 1972, p. 2).

I Atendendo a esta realidade, os bispos definiram q~

I
1
J
102

tro prioridades: formação de agentes de Pastoral, Comunida-

de Cristã de Base, Pastoral Indígena, assistência pastoral

ã Transamazônica e "outras frentes pioneiras'.'. Dom Tiago

Ryan, bispo de Santarém, dirigindo-se ao '-'clero, religiosos

e religiosas e ao povo de Deus", declarou então: "Resta p~

ra nos procurarmos aplicar as 'Linhas prioritárias' na rea-

lidade da Igreja de Santarém" (ibid., p. 1). O que repre-

sentava essa Igreja de Santarém?

A Prelazia de Santarém foi criada em 1903. Em 1907,


t chegaram os franciscanos alemães e o primeiro bispo, também
I franciscano. Em 1943, foi a vez dos franciscanos norte-ame

ricanos, que ficaram com a Prelazia de Santarém quando se

criou, em 1957, a Prelazia de 6bidos. Os franciscanos sem

pre manifestaram uma certa preocupaçao social. João Santos

(Santos, 1982) menciona a criação de escolas e orfanatos (~

mais recentemente, maternidade e hospital), a denúncia pelo

jornal da Prelazia (O Santa~ém) do trabalho escravo nos se-

ringais do rio Tapajós, a fundação do Círculo Operário, a

preservação, "graças a eles", da nação Mundurukus, a cria-

ção, em 1965, da Rádio Educadora e do MEB. Em 1969, o Pe.

Jaime Murray foi expulso do País sob acusação de subversão

por ter celebrado a missa dominical, depois da promulgação

do AI-5, "vestindo casula preta em sinal de luto pela morte

da democracia no país" (id. ibid., p. 64). Na realidade,

ele e os demais padres oriundos de Providence (EUA) "estavam

II desenvolvendo uma incômoda atividade, notadamente junto ao


I Sindicato dos Trabalhadores da Tecelagem, dominado por pel~
i

gos a serviço dos patrões, e com outras categorias de pes-

I !
i
J I
1 03

soas que precisavam de apoio e incentivo para lutar por seus

direitos" (id. ibid., p. 64).

Nos anos 70, a Igreja atuou no interior de Santarém

através de suas paróquias, da catequese rural e do MEB,

apoiada pela Rádio Educadora. Deve-se acrescentar a atua-

çao esporádica da Comissão Justiça e Paz, bem como o traba-

lho de saúde desenvolvido pelo Projeto Esperança, criado e

dirigido por um padre franciscano norte-americano.

A catequese rural contava com uma equipe central

permanente e uma rede de catequistas cobrindo, através d,as

paróquias, quase todos os lugarejos do município. Todo ano

eram organizadas "semanas catequéticas" que reuniam pessoas

de todo o município; havia também um curso de aprofundamen-

to: o Curso da "Boa Nova". Era o principal instrumento de

consolidação da Igreja no interior, mas ao mesmo tempo, por

tentar ligar em permanência "o tempo da bíblia ao tempo de

hoje", "a fé à vida", representava um grande incentivo à vi

da "comunitária", à participação dos cristãos no "desenvol-

vimento" da "comunidade".

o MEB é um dos instrumentos da açao social da Igre

ja no interior. Fundado em 1961, com o objetivo de "levar

o homem a tomar consciência de sua dignidade como pessoa h~


mana, feita à imagem e semelhança de Deus", tinha uma peda-

gogia que partia da vida e que pretendia contribuir para a

transformação da sociedade. Os militares e parte da hiera~

quia entenderam bem essa proposta e forçaram a mudança do

MEB, que passou "da ênfase sobre a conscientização para a

ênfase sobre a ajuda mútua. Segundo Emanuel de Kadt, a po-


1 () 4

litização era substituída pela cristianização" (Paiva, 1973,


p. 282). O mesmo autor salienta que o fechamento de progr~

mas do MEB no Nordeste e a intensificação do seu trabalho


no Norte facilitaram essa mudança.

O MEB de Santarém, em que pese a sua proximidade


do homem do interior e sua vontade de servi-lo e de respon-
der realmente aos seus problemas, pertence à segunda fase
do MEB, em que se passou a incentivar, no lugar da organiz~

ção sindical, a organização e a açao comunitária inócuas. I


Através da alfabetização, dos cursos para maes, cursos
primeiros socorros, criação de clubes de venda, promoçao da
de
I
I

feira anual do lavrador etc., quer promover o "desenvolvime!!


to do homem integral", mas o reduz às dimensões da sua "co-
munidade", entendida como os que habitam o mesmo lugar e
participam juntos de atividades comunitárias.

Embora não esteja ligada institucionalmente à Igr~

ja Católica, acrescento aqui, devido a sua origem e sua a~

çao, a Federação de 6rgãos para Assistência Social e Educa-


cional (Fase). Fundada em 1963 por um padre de origem nor-
te-americana, embora estivesse muito ligada ã CNBB e a

Catholic Relief Service (CRC) , entidade norte-americana ca-


tólica de ajuda aos países subdesenvolvidos, a Fase foi cria
da como "sociedade civil" independente. Ela tem como obj~

f
tivo "promover, nas parcelas da população com as quais tra-
balha, a educação e o desenvolvimento, incentivando para
I
i
I
I
.!
tal comportamentos de participação e solidariedade, criando
ou estimulando, para esse fim, atividades, organismos e as-
sociações" (Estatutos). A entidade foi muito marcada pelo l
f
1 I
lOS
Ii
desenvolvimento comunitário. Criou e divulgou, entre 1968
e 1973, um método de "criatividade comunitária", que enfati
za a "auto-ajuda". Mas, também nesses anos entraram na Fase
pessoas com trejetória ligada às Ações Católicas e/ou açao
política e sindical. A sua atuação em Santarém, então, não
escapa às contradições apontadas pela história da entidade.
Está no campo da Igreja, mas pro~ura incentivar a organiz!
ção independente; pretende, através de projetos técnicos e
da auto-ajuda, promover a melhoria de vida dos lavradores e,
contraditoriamente, contribui, assim, para integrá-los me-
lhor no sistema ·ao mesmo tempo que procura ajudá-los a questi~

nar esse mesmo sistema.

2.2.3.2 - Entre o desenvolvimento e a teologia da Libertação

Um agente de Pastoral, num texto escrito em 1974,


observa a existência, na Igreja local, de três correntes dis
tintas:

liA primeira, dos conservadores, está lig~


da ao passado. Luta por uma cristandade
desaparecida ou em vias de

Igreja do que no mundo.


desaparecer.
A visão dela está mais concentrada
A segunda
na
cor-
!
t
rente fundamenta-se na teologia do desen
volvimento. Acontece que esta
e os estudos sobre desenvolvimento em
ral transformaram-se na ideologia do
teologia
g~

oc~
I
t
dente, e esta ideologia •.. serve para per
I
petuar e reforçar a dominação do mundo
I
ocidental sobre os outros
Uma terceira corrente, formada
continentes.
oficial- I
f

I
f
mente nesta década, parte dos problemas
que encontra. Ela vai ã realidade e a
partir dela faz teologia. Não leva res-
p os tas p r o n tas" ( No tas ma nus c r i tas, 1975).

Válida por indicar tendências, a distinção simpli-


ficava a realidade. Se, de fato, parte do clero colocava no
centro da sua ação pastoral os sacramentos, sem dar muita
ênfase a "opção pelos pobres", outra parte menor e as enti-
dades no campo cristão oscilavam entre a ideologia do desen
volvimento e uma pedagogia crítica e libertadora no espíri-
to de Paulo Freire, das Ações Católicas especializadas e da
Teologia da Libertação.

o "desenvolvimentismo", bem expressado, como vimos,


pela Sudam, tem como referência os chamados países desenvo!
vidos. Pela educação do povo e pelo aporte da técnica (e o
apoio financeiro), os países subdesenvolvidos podem superar
o seu atraso e chegar à altura dos países desenvolvidos. A
tradução social dessa idéia está expressa na seguinte sen-
tença: "Se quiser matar a fome de uma pessoa por um dia, d-ª.
lhe um peixe; se quiser matar a fome para sempre, ensine-lhe
a pescar." O provérbio não pergunta se o pescador terá aces
so às águas, se haverá concorrência da pesca predatória, quem
lucrará com o peixe. De fato, a ação comunitária, promovi-
da pelos setores mais bem dispostos da Igreja local, por não
levar em conta que o desenvolvimento é também uma questão de

t política e que interesses de classes distintas estão em jo-


go, acaba contribuindo para fortalecer o binômio marginali-

I dade social da comunidade/integração. Marginalidade porque


põe em relevo o grupo, a comunidade, com seus valores, suas
J
I
J

l
1
tradições, sua capacidade de resolver os seus problemas, sem
1
que seja ajudado a se colocar como trabalhador frente a ou-
tra classe, como cidadão com direitos e deveres frente ao
1
Estado (Lins, 1980, p. 158-162). Integração porque essa ma.!:

I
1
ginalidade social está conforme o papel atribuído ao campe-
sinato pelas classes dominantes, pois não impede e até faci
lita que parte dele tenha acesso, inclusive pel~ educação e
açao comunitárias, ã classe media rural, e outra parte ace~

te seu lugar subordinado. Ressalto que setores pastorais


que têm como referência a atuação progressista da Igreja pr~
I

64, a ação católica etc.~ e defendem a primazia do povo e

i seus valores podem levar ao mesmo resultado. Isso na medi-

j da em que nao procurem, o que e bastante freqUente, ajudar


os grupos com que atuam a se instrumentalizar para que supe

l
I
rem a sua dependência para com eles, agentes de Pastoral.

A contradição vivida pela Igreja local, de ser ao


mesmo tempo incentivadora e freio da organização do campes~

nato pelos limites colocados a essa organização, encontrou


nos anos 1974/75 um começo de superação. De um lado, dois
agentes de Pastoral - um seminarista e um frei francisca-
no, nao padre - de volta do Nordeste, decidem morar no in-
terior a procura da "integração da fe na vida"; do outro,
a Fase renova a sua equipe e o seu programa, que define co-
mo voltado para o homem rural no que tem de essencial: a sua
condição de produtor, o que a faz optar pela assistência a
produção e à organização sindical. Os dois agentes de pas-
toral são originários do município, mas foram enviados a
Recife para fazer seus estudos de teologia.

~---- ~ --- -----


I
f
108

Um deles diz:

"Chegamos em 6S a Recife e pegamos toda


fase da tomada do poder dos militares, a
reação popular, movimento estudantil,gr~
pos armados, e fomos treinados, de certa
maneira, a estudar a nos comprometer com
o povo. Era impossivel no nosso tempo
um estudante que não participasse na lu-
ta da escola integrado ã luta popular.
Quando a repressão veio, todo mundo pas-
sou a concretizar aquilo que tinha estu
dadoC ••• ) Então ê marcante na nossa V1
da( ••• ) a integração ao campo em Pernam-
I

buco. G. trabalhou na Ação Católica Ru-


ral, que hoje se chama Animação dos Cris
taos no Meio Rural, por um ano e ia mU1
tas vezes aos engenhos. Eu estive na zo
na d a c a na" ( e n t. 3 O) .

Chegaram a Santarêm. portanto, familiarizados com


a tradição de lutas e organização do Nordeste canavieiro.
Parte da equipe da Fase tinha experiência anterior em past~

ral social, um inclusive junto a sindicalistas operários,na


Ação Católica Operária, na França. Embora a equipe tivesse
pouca ou nenhuma experiência no trabalho organizativo junto
ao campesinato, colocava a questão organizativa e de classe
no horizonte da sua atuação.

A superação da contradição a que aludi anteriorme~

te deu-se a partir do momento em que, reatando com uma tra-


dição mais do que centenária da classe trabalhadora, e com
os anos de paixão e esperança que antecederam o golpe mili

I
1
tar de 1964, tornou-se possível a geração de um novo movi-
i

I !
}09

mento independente da Igreja, mas fecundado pela opçao e tra


balho educativo de alguns dos seus membros, indo ao encon-
tro das esperanças e das lutas do campesinato. A sua boa-
vontade, que vai até a interiorização radical no assumir a
vida do lavrador, no caso dos agentes de Pastoral, não deve
esconder os seus limites. Um destes (que saliento aqui, pois
é compartilhado pela maioria dos educadores populares, ou

pelo menos o era na época) é a comprensão da realidade -


so-
cio-econômica e cultural do "interior" santareno. ~ impo~

sível apresentá-la aqui em toda a sua complexidade. Porém


antes de falar da emergência dos trabalhadores rurais como
classe, é indispensável compreender um pouco a estrutura eco
nômica na qual eles emergem.

I
,
f
I
110
!
2.3 - A SITUAÇÃO ECONOMICO-SOCIAL DOS RURALISTAS ~~S

Os movimentos sociais sao a "expressão contraditó


ria das relações e condições econômicas, políticas e cultu-
rais que os engendram" (Grzbowski, 1987, p. 13). Por isso,
tentarei situar aqui os grupos sociais presentes no inte-
rior do município de Santarém, analisando como sobrevivem,
se inserem na sociedade e com ela se relacionam. Depois de
situá-los na estrutura agrária nacional e regional e de dar
breves informações sobre a própria estrutura agrária do mu-
nicípiÓ, bem como o peso econômico dos lavradores, aprese~

tarei, de modo mais qualitativo, elementos constitutivos do


campesinato santareno, tratado objetivamente como classe:
suas diferenças e pontos de identificação.

2.3.1 - A estrutura agrária regional e local

Durante o período colonial e na primeira metade do


século XIX, a riqueza principal não era a terra, mas o es-
cravo. "De fato, a terra sem trabalhador nada representava
em termos econômicos, enquanto isso, independente da terra,
o trabalhador era um bem precioso" (Martins, 1979, p. 76).

Em 1850, com a proibição do tráfico negreiro, a te!


ra começou a ter valor intrínseco; mesmo assim, o propriet~
rio só poderia fazê-la render se contasse com mão-de-obra
disponível. Não tão coincidentemente, foi promulgada neste
mesmo ano a "Lei de Terras", segundo a qual a terra devolu-
ta não poderia ser ocupada por outro título senao a compra,
I
I
1 111

I
I e o preço fixado era bem alto. Estava extinto, portanto, o
regime de posse que existira precariamente entre a extinção
das sesmarias, em 1822, e a lei de 1850. Era precl
so reter o trabalhador perto das fazendas,como morador/agre-
gado ou como assalariado. Fora algumas áreas de imigração
(notadamente no sul) e de colonização, não restava outra aI
i
ternativa ao homem do campo que queria fugir do
senao a posse. "Mais do que uma simples forma de
cativeiro
existên-
!
cia econômica, a posse é uma expressão de luta. E este -
e
um traço fundamental da formação histórica do campesinato bra
sileiro" (Martins, 1979, p. 77).

Posse e propriedade são antagônicas, pois a posse


representa a subversão da legalidade jurídica formal e a

afirmação da prioridade do trabalho sobre o capital. Esse


antagonismo cria relações contraditórias entre fazendeiros
e posseiros. O proprietário precisa do posseiro, ou corno
mão-de-obra complementar, ou para poder dedicar-se a cultu-
ras rentáveis, deixando a este o que não dá lucro; mas, ao
mesmo tempo, precisa "destruí-lo" porque representa uma amea
ça à propriedade. Nas regiões de fronteira agrícola, é o
posseiro quem amansa a terra para o fazendeiro.

Na Amazônia, o antagonismo entre a posse e a pro-


priedade não era frontal, devido às características da eco-
nomia extrativista regional e à escassez populacional, fora
as áreas próximas aos rios tradicionalmente ocupadas pelas
fazendas. O historiador nortista Arthur Cesar Ferreira Reis
atribui à "legislação das posses a formação da propriedade I
[ como ]dccorrência das novas condições de vida que exigia I
j If
r
J I
J
l
112

1
a delimitação dos seringais" (Reis, 1953, p. 78). Mas, uma
vez terminado o auge da borracha, muitos seringais foram
abandonados por seus donos, pois o seu valor estava nas se-
ringue iras e não na terra. De qualquer modo, não faltava
espaço.

A situação mudou com o regime militar e a abertura


i da Amazônia ao grande capi tal. O processo de avanço da fre~

I te pioneira (o capital) sobre a frente de expansão (os pos-


~

• seiros avançando eles mesmos sobre as terras indígenas) e


suficientemente conhecido (sobre frentes, ver Martins, 1982,
I p. 75). No Maranhão, norte de Goiás, Mato Grosso, Pará (no
I
sul e ao longo da Belém-Brasília), a propriedade
se.
instalou-
E, com ela, cresceu assustadoramente a concentração de
I
I
terras. O Baixo Amazonas, por seu afastamento da fronteira
agrícola e precariedade de funcionamento da Transamazônica,
escapou parcialmente a esse processo. Também lavradores que
ocupavam as terras ribeirinhas ou do planalto tinham um en-
raizamento já antigo que os distinguia do posseiro errante,
eterno fugitivo. E os que chegaram na área de colonização
encontraram uma organização social criada pelos colonos do
PIC-Itaituba (os primeiros a se instalar) que favorecia o
seu próprio enraizamento. Mas se a frente pioneira não che
gara ainda maciçamente pela estrada, uma "minifrente" avan-
çou a partir da cidade de Santarém, sem que isso, no entan
1

I to, até os anos 80 tivesse levado a uma modificação


tiva da estrutura fundiária local. Se as grandes
substa~

empresas

I, que andam com ou que sao a frente pioneira ainda


se impuseram, os instrumentos da frente se fizeram
nao
presen-
I
I
f

i
f
113

1
i
i tes, em especial, o programa de regularização fundiária, pr~

I visto no Polamazônia.

o Projeto Fundiário/Santarém (PF/STR), abrangendo


nove municípios, foi criado em setembro de 1975. Só em San
tarém, a área atingida é de 1.275.780ha, formando as glebas
de Curuá-Una, Ituqui, Mojuidos Campos, Lago Grande de Fran-

i ca, Arapiuns e Tapajós. Ficam excluídas a várzea (" terra


da marinha"), a região da Floresta Nacional do Tapajós e uma
vasta área atrás da gleba Curuá-Una, até o "fundo" do muni-
J
...
ClplO.
.

Até o dia 5 de setembro de 1985, o PF/STR tinha e~

pedido, para o município de Santarém, 1.850 títulos defini-


tivos (num total de l33.0l6ha), 237 contratos de compra e
venda (34.4l6ha), 2 títulos de usucapião e 6.453 licenças

II de ocupação. ~ difícil combinar esses dados com os que sao


fornecidos pelos censos do IBGE, que "recenseou" em 1980
!
5.986 proprietários rurais, contra 1.452 em 1970 e 2.960 em
f
1975. -
A supor que houvesse esse numero em 1975, somando-o
com o número de titulados pelo PF/STR e mais os títulos do
PIC-Itaituba, dificilmente poderia dar 5.986 proprietários
em 1980 (e 6.982 posseiros). ~ provável que parte dos que
se declararam proprietários tivesse apenas uma "licença de
ocupação", documento provisório nao forçosamente transforma
do em título de propriedade.

Aceitando as estatísticas do IBGE, as propriedades


rurais de Santarém em 1980 teriam uma área média de 32,59ha,
enquanto o módulo local definido pelo Incra para um pe-

1 queno agricultor familiar é de 100 ha.

I
J
114

Até 1980 nao havia grande concentração de terra (ver


tabela 4). Atribuo o grande número de estabelecimentos com
menos de 10ha à horticultura e, sobretudo, aos varzeiros/pe~

cadores. Ponho em destaque os estabelecimentos de 100 a

I
J
200h que, em 1970, eram apenas 231. Acredito que os acres-
centados tenham sido quase todos lotes dos colonos do PIC-
Itaituba.

Tabela 4

Distribuição dos estabelecimentos rurais


por classes de área (1980)

-
Classes de area
Número de
estabelecimentos
Área por classes
(ha)
(ha)
Total I (%) Total I Média 1(%)
Menos de 10 5.132 39,17 25.465 5,0 5,96
10 a menos de 100 6.350 48,47 181.252 28,50 42,43
100 a menos de 200 1.525 11,64 156.681 102,0 36,68
200 a menos de 1.000 81 0,61 31.215 385,0 7,30
1.000 a menos de 10.000 14 0,10 19.032 1.359, O 4,45
Mais de 10.000 1 0,01 13.500 3,16
Total 13.103 100,00 427.145 32,59 100,00

Fonte: Censo agropecuário da Fundação IBGE, 1980.


r
f
Assentada sobre essa estrutura agrária, qual é o
f
peso da produção agrícola santarena? O produto interno bru-
to (PIB) agrícola do estado do Pará, que representava em I
1970 1,99% do PIB agrícola nacional, atingiu em 1980 3\. En
quanto isso, o valor da produção agrícola de Santarém decres I
ceu no mesmo período, passando de 5,81% do valor da produ-

I
f
f
f
I
115

çao total do estado para 3,32\. Nesse ano de 1980, o muni-


cípio manteve um segundo lugar só na horticultura e nas la
vouras temporárias, o que é indicativo da forte presença do
pequeno produtor. Quanto a pesca artesanal, não tenho da-
dos sobre a sua importância (em 1979, mais de 1.400 tonela-
das passaram pelo controle dos fiscais da colônia de pesca
Z 20) •

Feitas as contas, fica evidente a insignificância


da produção agrícola local no plano nacional e o decrésci-
mo da sua importância no estado do Pará em proveito de muni
cípios como Paragominas e Conceição do Araguaia, onde se im
plantaram as grandes fazendas beneficiadas pela Sudam. Po
rém a sua contribuição regional não pode ser desqualificada;
mui to pelo contrário, com a sua produção, a área rural de San
tarém abastecia uma cidade com mais de 110 mil pessoas em
1980, além de exportar para municípios vizinhos, inclusive
Manaus.

As estatísticas, além de levantar questões provoc~

das por sua precariedade, por si mesmas não permitem compr~

ender, um pouco mais por dentro, o grupo social objeto da


sua investigação. A estrutura, a base objetiva do campesi
nato santareno, a "classe em si" de que fala Marx não é uma
massa amorfa e indiferenciada. A "classe em si" tem a sua
dinâmica, seu movimento estrutural. São homens que agem e
se relacionam, mesmo se de um modo específico, como campon~

ses, e não como operários. Em Santarém, ao longo do tempo,


grupos sociais bastante diferenciados aproximaram-se tanto
que se lhes pôde atribuir o qualificativo de camponeses e

__ ---=:t:.~~ _____________________ _
116

distingui-los claramente de outros setores sociais, sem que


cada um perdesse suas características próprias, sua origin~

1idade.

2.3.2 - As diferenças entre os grupos sociais constitutivos


do campesinato santareno

En tre os moradores do interior de Santarém,lUTla série de dife


renças aparece mais ou menos claramente, a começar pela di-
ferença de origem, reveladora de diferenças de inserção na
economia, de participação política e de cultura. O caboclo
paraense, por ser herdeiro da cultura indígena, pelo fato de
a economia na região Norte ter sido baseada no extrativi~,

pelas dificuldades de ocupação da região e a conseqUente


abundância de terra, não é um agricultor puro: ele divide
seu tempo entre o roçado e a mata (ou o rio). Ambos são in
dispensáveis a sua reprodução, seja para o consumo direto,
seja via comercialização dos produtos. Por essa razao, e
contrariamente ao discurso dominante, o seu sistema de cul-
tivo respeita a natureza. Só é queimado o estritamente ne
cessário ao "roçado" de mandioca, e antes de ser usado nov~

mente o mesmo lugar para novo roçado, há um longo tempo de


descanso (de 13 a 20 anos) até a capoeira fina tornar-se ca
poeira grossa.

A cultura do caboclo santareno reflete a sua rela-


çao de temor/simbiose com a natureza, repleta de "mães" das
águas e da matas, entes sobrenaturais protetores e guardiães
dos elementos (ver Lins e Silva, 1980). Já o colono nordes
I
I 117

tino, recentemente chegado, com trajetória via Maranhão e/ou


sul do Pará, compelido a derrubar a mata para produzir ar-
roz e ceder lugar ao gado, ê puramente agricultor, embora a
sua itinerância o tenha preparado pouco para fazer do seu
lote, da sua terra, um sistema integrado de produção que co~

bine as culturas, a plantação de árvores frutíferas, a cria


ção de pequenos animais e a horta. O cearense, de fixação
mais antiga, que guardou na memória o sítio ancestral, con-
segue isso melhor. Mas provavelmente são os colonos oriun-
dos do Sul onde tinham um longo enraizamento na terra e
uma tradição de agricultura proveniente de seus ascendentes
alemães, italianos, poloneses -
-
que sao, a pr1nc1p10, ma1S
... . .

distantes do caboclo e das matas.

A relação desses grupos sociais com a terra também


é bastante diferente. Para os caboclos, a terra em . estado
bruto não tem caráter mercantil; "a terra não transformada
pelo trabalho nao se constitui em objeto de troca" (id.
ibid., p. 32).

Em relação à várzea, Meggers (1977, p. 188) assina


la que "o sistema de propriedade privada é totalmente inad~

quado para essa situação fluida" em que "ilhas são desfei-


tas e reformadas, canais mudam de curso e todos os pontos
de refer~ncia da paisagem são ef~meros". De fato, tradicio
nalmente a "frente" ou "restinga", essa pestana de -
varzea
mais alta que beira o rio e paranás (ver figura 1) tradicio
nalmente reservada à agricultura, era posse dividida entre
os vargeiros à medida que tradicionalmente trabalhavam tal
ou tal área. O acesso ao "fundo", campos e bebedouros era

---~------ - ------- -- - --------


118

livre para todos, sem cercamento. O vargeiro que decidisse


abandonar a várzea podia vender as benfeitorias, fruto do
seu trabalho, a casa e a área do jutal e das culturas, mas
nao o campo onde criava o "gadinho" de sociedade. Do mesmo
modo, na terra firme, o roçado e o sítio (onde eram planta-
das as árvores frutíferas) podiam ser objeto de transação
comercial porque levavam a marca do trabalho humano (e,mais
recentemente, as capoeiras), mas nunca a mata. Pode-se di-
zer que esta situação, sobretudo na terra firme, perdura até
hoje.

O nordestino do planalto, cuja maioria chegou numa


época de "terras livres", em que havia abundância de mata,
terra devoluta, tampouco valorizava a terra pela terra. Fa
zia "sentido para ele ( ... ) ser dono do trabalho que reali-
za na terra" (Fase, 1979, v. 4, p. 58). No entanto, fami-
liarizados por sua origem e trajetória com a noção de pr~

priedade, e sem participar da concepção econômico-cultural


da mata como bem comum, numa situação de "fechamento de ter
ras", de ocupação das terras livres por fazendas, os colonos
nordestinos passaram a tentar assegurar o acesso e a posse
de uma área maior. "O 'dono' da capoeira busca exercer um
direito sobre ela ( .•. ) Observa-se o plantio de árvores fru
tÍferas e capim" (ibid., p. 70). Nota-se que no processo
de discriminação fundiário do PF/STR, os colonos das mar-
gens do rio Curuá-Una, área do planalto de ocupação mais re
cente, declaravam posses de 100ha, mostrando a sua adapta-
ção às normas oficiais. Já em região ocupada por caboclos,
estes declaravam posses de até 2 ou 3ha. Nas áreas de
119

colonização do Incra, a propriedade foi colocada como um


pressuposto. Essa noção já estava bem integrada pelo colo-
no oriundo do Sul, onde a pequena propriedade ~ bem consoli
dada, mas, para o nordestino, significava a simples possibi
lidade de trabalhar em paz e liberdade. A proibição pelo
Incra de venda dos lotes era entendida por eles como a vol-
ta do cativeiro, o cerceamento da sua liberdade (ibid.,p.
57) •

Na esfera da produção/comercialização, haveria mui


tos elementos diferenciadores a assinalar. O ritmo sazonal,
na várzea, ~ ditado pela enchente/vazante, e,na terra fir-
me, pelo "inverno" (~poca das chuvas)/verão. O vargeiro,
que organiza sua atividade de pequeno produtor entre a juta,
o "gadinho", a pesca, legumes e frutas, ~ bem diferente do
caboclo de terra firme, cuja vida gira entre o roçado dernag
dioca/casa de farinha, a caça/pesca, a extração da serin-
gueira e/ou produtos da mata e as frutas do sítio. Quanto
ao migrante, devotou-se ã produção de arroz em geral, que
exige atividades e ritmos para o trato e a colheita absolu
tamente diferentes do que pede o roçado de mandioca, que po
de ficar armazenada na própria terra durante um ano e mais,
verdadeira poupança do lavrador.

Mais recentemente, a introdução de culturas perma-


nentes está cavando diferenças importantes dentro dos mes-
mos grupos sociais. num sentido que retomarei adiante. Vale
notar que essas diferenças prendem-se tanto ã origem e tra-
dição do camponês,quanto ã sua localização ou mesmo a época
da sua chegada na área. No plano da comercialização. a re-
120

lação se dá com o mercado local, regional, nacional ou mes


mo internacional, conforme os produtos, a época e a estraté
gia do produtor. Quase todos os pequenos produtores depeg
dem do capital comercial/usurário, mas no caso da juta col~

caram-se na dependência do capital industrial via prensador


(Gentil, 1983, p. 6). A possibilidade de acesso ao banco,
ligada ao tipo de produção, à entrega pelo Banco do Brasil
de uma carta de anuência e pelo Incra de uma licença de ocu
paçao criou potencialmente diferenças sensíveis entre o ca-
boclo e o colono do planalto, de um lado, e o colono assen-
I
tado pelo Incra no PIC:, de outro; e entre este último e o
posseiro dentro da área do PICo Enquanto, desde tempos ime
moriais, a dominação econômica apareceu sempre exercida por
particulares, no PIC-Itaituba ela coube diretamente aos -
or
gãos do Estado: Incra, Cibrazém, Banco do Brasil, cujos fun
cionários se posicionam diante do pequeno agricul tor "enqtIa.!!.
to personificação do capital" (Fase, 1979, V. 4, p. 109).

Essas diferenças e muitas outras de ordem polític~

ideológica e religioso-cultural, não-exemplificadas aqui,


são mais indicativas da complexidade da realidade social do .
município e das suas múltiplas determinações e potenciali-
dades do que fatores de dispersão e divisão que impossibil~

tariam o reconhecimento desses grupos sociais como uma clas


se unida objetivamente - mesmo que não tenha consciência
disso - pelos mesmos interesses e em contraste e oposlçao
a outras classes. Antes de ver o que une esses grupos e in
divíduos, faço uma observação preliminar. Trato aqui do p~

queno lavrador pauperizado ou em via de pauperização, cujas


121

atividades produtivas sao baseadas no uso da mão-de-obra fa


milíar, pois é nele que o movimento dos trabalhadores ru-
rais encontrará a sua fonte e o seu impulso.

2.3.3 - A unidade objetiva do campesinato santareno

A primeira característica que atribuo coletivamen


te ao lavrador santareno é a exclusão. Ele foi excluído po~

que posto para fora, expulso do Ceará, do Paraná ou do Ma-


ranhão; excluído porque posto de lado, abandonado, uma vez
que cumpriu seu papel de escravo, de seringueiro e heróico
soldado da borracha, de colono desbravador e construtor do
Brasil Grande; excluído porque despojado do fruto do seu tra
balho, transformado em lucro e capital nas mãos de gerações
e cadeias de comerciantes; excluído porque incompatível com
a integração da Amazônia dentro do capitalismo monopolista
e com a modernização conservadora promovida no campo pelas
classes dominantes.

Exclusão não quer dizer isolamento. Pelo contrá-


rio, desde a sua primeira ocupação, o Tapajós ficou perfe!
tamente integrado à Amazônia entendida como região extrati-
vista e tendo como centro Portugal/Inglaterra ..• via Belém
do Pará. Direta ou indiretamente, todos os interioranos de
Santarém, no decorrer da história, foram afetados por essa
economia. Se até hoje persiste a economia extrativista, no
tadamente pesca e exploração da madeira, no entanto mudou
o seu eixo. Como imagem, não é mais um eixo Santarém-Belém-
Europa (ou EUA) que podemos visualizar, mas Santarém-São Pau
122

lo/Brasilia-EUA/Japio/Europa. Ji assinalei como a federali


zaçio das terras e os programas de regularização fundiária
são instrumentos da política de abertura da Amazônia ao gr~

de capital, conjuntamente aos incentivos fiscais, ao crédi-


to bancário e outros mecanismos de política agrícola. Os
benefícios decorrentes dessa política concentram-se nas maos
de empresários e de um reduzido setcr do campesinato, al~

do planal to, a maior parte colonos das estradas "não simple~

mente em funçio da força econômica e política destes grupos


sociais, mas sobretudo pelo fato de eles se adaptarem per-
feitamente ã lógica do crédito bancirio, que nada mais é que
a lógica do capital" (Fase, 1979, v. 4, p. 108). Poucos
são os pequenos produtores que nio estio, de uma forma ou
de outra, ao mesmo tempo dominados/excluídos por esse avan-
ço do capitalismo na região, mesmo se essa tendência regi~

naL como já assinalei antes, não tenha se concretizado ain-


da de maneira sensível em Santarém. Por enquanto, o capit~

lismo moderrio rião se implantou li tão· fortemente que seja


preciso eliminai o·campesinato·local·do qual consegue
via capit~l comercial/usurário - extrair o seu sobretraba-
lho como contribuição ã sua acumulação.

Talvez seja esse o traço mais forte que unifique


no tempo e no espaço o campesinato santareno: a sua explor~

ção pelo capital usuririo. Maria Emília Lisboa Pacheco, que


pesquisou longamente na região, conclui um dos seus traba-
lhos com a seguinte constatação:

"Para uma parcela preponderante do campe-


sinato na região, a privação parcial dos
1 :2:;

meios de subsistência e dos meios de pr~


dução para sua preservaçao enquanto pr~
dutor autônomo impõe-lhe uma relação com
o capital comercial e usurario, hegemôn!
co na região, que se confronta com o pr~
dutor antes mesmo que se efetue o proce~

so de produção" (Pacheco, 1980, p. 136).

Munido de instrumentos de trabalho rudimentares, o


lavrador conta quase exclusivamente com a sua própria força
e a dos membros da família. Ele sabe que tem de dar conta
da broaa, da derruba, da aoivara, da queima, das capinas e
da colheita; que alguém da família pode ficar doente; que a
chuva e o sol podem prejudicar alguma etapa do trabalho; que
a terra e fraca e que a praga vai atacar. Não adianta, por
tanto, preparar um roçado grande que vai lhe custar caro e
do qual ele corre o risco de não dar conta. Em conseqUênci~

o volume de produção será pequeno. E corno não tem corno ar-


mazenar a produção, o intermediário/comerciante vai levar
tudo ou quase tudo por um preço irrisório. Quando chegar o
tempo de preparar o novo roçado, não há mais arroz armazena
do para o consumo, nem dinheiro. Precisa, então, recorrer
ao comerciante, ao "patrão" para que financie o "freguês",
em dinheiro ou - mais comum - abrindo um crédito na sua
taberna a ser pago na hora da venda da colheita, geralmente
vendida a ele. O caso mais extremado dessa exploração tão
violenta que nem deixa ao lavrador o mínimo para sobreviver
sem fome, mesmo com o recurso obrigatório ã caça/pesca, ao
assalariamento ou ao garimpo, é a "venda na folha". Em ge-
ral, por motivo de doença, o produto do roçado -
e vendido

I
124

ainda no pé, antes da colheita, por um preço até inferior ao


da safra anterior. Vale notar que quando o banco repassa a
intermediários (os patrões) recursos para o financiamento
da juta na várzea, o próprio capital bancário transforma-se,
na relação entre os patrões e seus fregueses, em capital us~

rário. No caso da Transamazõnica, o banco, sem ser -


usura-
rio, acabou despojando muitos colonos de parte dos seus
meios de subsistência, por obrigá-los, por exemplo, a ven-
der toda a safra para saldar a sua dívida, sem guardar uma
reserva para o consumo familiar. Embora distanciados no tem
,
po, o barracão do seringalista e o capitalismo mercantil pri
mitivo, ontem, e a agência do Banco do Brasil e o Estado fer
ro-de-Iança do moderno capitalismo, hoje, encontram-se
ou assemelham-se - na exploração dos que sonharam um dia
ser livres e donos de si mesmos.

Se a relação com o capital usurário manifesta o que


há de comum entre a maioria dos camponeses, é também indica
tiva de uma certa diferenciação entre eles. Há, de fato,
uma pequena parcela de "campesinato médio" que conseguiu evi
tar o endividamento. Pode ser que na sua chegada esses ca~

poneses tenham encontrado bastante terra livre, que tenham


se localizado numa mancha de terra preta, o tamanho da famí
lia tenha fornecido uma boa mão-de-obra e dispusessem, ao che
gar, de um fundo de reserva o caso de muitos colonos do
Sul, que antes de migrar venderam seu minifúndio e/ou ani-
mais e máquinas. O certo é que eles têm mais ou menos ga-
rantida a sua reprodução. Mas, mesmo assim, parte deles en
contra bastante dificuldade de acumulação, pois dependem da
125

mesma cadeia de intermediários. Na hora de comercializar a


safra, sem condições de armazenamento para esperar melho-
res preços, eles têm de vendê-la e submeter-se ao capital c~

mercial. Outros, embora continuem camponeses, conseguem


transformar-se em prestadores de serviços, transportadores,
beneficiadores de arroz, comerciantes, formando na região um
embrião de "pequena burguesia rural, não apenas porque assa
laria com bastante regularidade os camponeses pobres, mas
porque investe, tanto em operações comerciais e -.
usurarlas,
como também na própria exploração agrícola" (Pacheco, 1980,
p. 141).

O futuro de Santarém seria desses setores que int~

grariam a classe média rural? Após dois anos de pesquisa


junto ao "campesinato de fronteira" (Pará, Maranhão e su-
doeste do Paraná), a equipe de pesquisa da Fase concluía em
1979:

"A ampliaçio das camadas midias no campo


corresponde aos interesses dos grandes
monopolios industriais, comerciais e ban
cários. Ampliar o campesinato midio i
antes d~ tudo ampliar o mercado consumi-
dor de máquinas, a quantidade de tomado-
res de empristimos bancários e a produ-
çao que se destina aos grandes monopolios
comerciais e industriais"(Fase, 1979, v.
4, p. 111).

Pergunto-me se a realidade do sudoeste do Paraná


nao teria por demais influenciado essa apreciação. Na rea-
lidade, na região Norte, os grandes monopólios industriais
126

(Volkswagen), bancários (Bradesco) e outros, em vez de ince~

tivar o surgimento de uma classe média, passam por cima do


campesinato pauperizado. Este amansa a terra para eles ao
derrubar a mata para plantar arroz, e abre o caminho para
que comprem enormes latifúndios e, depois, o empreguem como
peao. O campesinato fornece também uma mão-de-obra abunda~

te, barata e dócil para as grandes obras de infra-estrutura


e mineração. E, como válvula de escape, mantêm-se os gari~

poso De fato, a burguesia "urbana" industrial abdicou, de~

de 1964, de exercer o poder político e aliou-se à oligarquia


rural tradicional para garantir os seus interesses. Isto
significava que nao haveria modificação profunda, tal como
uma reforma agrária nas relações sociais no campo. Conforme
Otávio G.Velho, "no caso do capitalismo autoritário, onde
quer que preexista uma base camponesa, ela não é destrutda
pelo desenvolvimento capitalista, a não ser em parte, mas
é mantida como uma forma subordinada de produção e a acumu-
lação primitiva prossegue às suas custas" (Velho, 1976, p.
49) .

Nesse sentido, o peso dos pequenos produtores na


economia nacional, se é secundário, não é desprezível. ~,

portanto, perfeitamente possível imaginar uma pequena elas


se média rural voltada racionalmente para culturas de expor
tação e, secundariamente, para outras de consumo local, e
um campesinato em vias de pauperização constante, mas subsi~

tindo porque necessário, tanto como reserva de mão-de-obra

I quanto como produtor de alimentos baratos para o consumo 10


cal.

I
1 '7
.. I

Paradoxo! Foi na década de 70, na qual se dese-


nhava para ele esse destino sem glória, que o trabalhador
rural de Santarém, em vez de se deixar esmagar, reagiu e d~

cidiu construir a sua história. Chama a atenção na trajet~

ria de cada grupo social - o caboclo de terra-firme, o var


geiro, o colono do planal to, o colono das estradas - a sua
capacidade de sobreviver, resistir, lutar. Mas se é verda-
de que "as estruturas precisam ser fecundadas pela vontade
para gerarem movimentos" (Grzybowski, 1987, p. 18), faltava
transformar essa capacidade em vontade coletiva, em cons-
ciência de classe criadora e expressão do movimento.
2.4 - NOVAS LUTAS

Por que intitulo essa seçao como nOVas Zutas, e


nao primeiras Zutas? Nessa História que percorremos, quan-
tas lutas já não se travaram ... O que chamei de estrutura,
condições objetivas é fruto de relações de forças sociais em
luta. Mas nos anos 1974-77, surgiu uma dupla novidade. A
primeira é que as ações e lutas desenvolvidas pelos lavrad~

res, colonos etc., nesses anos, contribuíram para dar impu!


so a organização nascente, foram uma das suas referências.
I

Pela primeira ve~ desde a cabanagem, parece-me que se faz


o laço entre luta e organização. A segunda novidade é que
as lutas apresentadas aqui não poderiam ter surgido em ou-
tro período, como se depreende da análise da situação econ~

mico-social dos ruralistas santarenos, nesse novo marco de


ocupação da Amazônia.

2.4.1 - As atividades comunitárias: os grupos de revenda

As atividades comunitárias juntam um grupo de pes-


soas afetadas pelo mesmo problema, a mesma necessidade, p!
ra lhe dar uma resposta. Essas atividades são uma das ca
racterísticas da "comunidade", sejam elas tradicionais, fa
zendo parte da "cultura" do grupo, ou iniciativas novas to
madas por influência de alguma entidade. Entre essas ativi
dades, uma a constituição de grupos de revenda (GR) - t~

I ria grande importância para o movimento.


GR como a união de um grupo
Podemos definir o
todos os moradores do lugar
ou parte deles - au redor da efetivação de uma proposta de
comprar em conjunto os produtos não produzidos por ele e ne
cessários à sua sobrevivência, a fim de revendê-los aos seus
membros.

o primeiro grupo de revenda surgiu no Prata, onde


viviam os dois agentes de pastoral, no começo de 1975, con-
forme o relato de um deles:

"Um dia (para o Natal de 1974) Dona Amelia


propôs fazer um presepio e nos dissemos
que ela fizesse com um grupo de pessoas
e apareceram 12 mulheres. Elas queriam
fazer COm alguma coisa da cidade e nós
achávamos que elas tinham possibilidade
de fazer com tudo do interior e fizeram
bem feito. O povo da redondeza veio
olhar. No fim ficaram com pena de des-
manchar o presepio; aí rifaram. Algumas
pessoas ficaram chateadas e saíram do gru
po porque não se pode rifar o santo, mas
aquela renda deu 68 cruzeiros e o pessoal
achou bom empregar esse dinheiro, porque
senão, no outro ano, para fazer um pres~
pio mais bonito ele perderia o valor. En
tao se resolveu comprar cadernos da
Fename, já que era 60 centavos e dava p~
ra vender a 90 centavos, enquanto o co-
merciante comprava a 60 centavos e vendia
a 3 cruzeiros. O pessoal achou a ideia
boa e fez isso de fato. Aí, o pessoal
quando viu que podia vender caderno, lá-
pis e borracha perguntou: por que a gen-
te não pode vender querosene, sabão, aç~
car, cafe, essas coisas todas? O pessoal
deu uma contribuição para aumentar o ca-
] :. (l

pital. Ai nasceu o grupo de revenda"


(ent. 30).

A comunidade do Prata nao ficaria nisso. Conta o


mesmo agente que, certo dia, ele e seu companheiro estavam
no "carro-de-1inha" quando um senhor reagiu por não ter re-
cebido o troco da passagem:

"Lã em cima do caminhão falou que um dia


os lavradores se juntariam e comprariam
um carro ••• aí começou a batalhar para
fazer um grupo. No grupo não deu muita
gente, mas deu para fazer um roçado de
16 tarefas, e aí com o dinheiro nós com
pramos a usina que ainda hoje existe no
Prata" (ent. 30).

Posteriormente compraram, também em conjunto, urna


motosserra e, em 1977, em parte com ajuda externa, um cami-
nhão.

Para os agentes, o grupo de revenda e as outras ati


vidades comunitárias eram "recursos pedagógicos": reuniam o
povo em torno dos seus interesses imediatos; mas, a partir
daí, poderia começar a descobrir a exploração em cima deles
e haveria uma maior "integração de fé na vida". Para o po-
vo, o GR ia resolver um problema imediato. Até então, cada
família precisava ou enviar um dos seus membros para fazer
compras na cidade ou comprar do comerciante local, corno já
vimos. Agora, poderiam escapar dessa exploração. As merca
dorias para consumo sairiam mais baratas, pois uma pessoa só
faria as compras, o tempo de trabalho do encarregado não se

I
1 ::;1

ria pago e nao se levaria totalmente em conta a inflação r~

aI e a necessidade de reposição do estoque. A participação


no GR tinha outra vantagem aos olhos dos sócios: era como
uma poupança. Se saíssem da revenda, receberiam com "ju-
ros", com uma certa correção monetária, acrescida à quota
que tinham pago na entrada do grupo.

Nos encontros promovidos pelos agentes de pastoral


na área atingida por eles, e nas semanas catequéticas, co-
mentava-se essa experiência, que encontrava boa receptivid~

de porque mostrava união e organização, qualidades valoriza


das nesse momento comunitário cristão. Mas, se os GR se es
p'alharam rapidamente é porque, de fato, tentavam dar wna res
posta a um problema fundamental para o lavrador: a sua de-
pendência em relação ao comerciante local. Libertar-se do
intermediário na comercialização da produção era também o
pretendido, tanto através da "usina" de beneficiamento de
arroz, comprada por urna comunidade para uso coletivo, corno
do "transporte comunitário". Os GR podiam também se impla!!
tar aparentemente sem necessidade de assessoria e recursos
externos. ~ interessante notar que, enquanto isso, proje-
tos voltados para a produção, incentivados pelas várias en
tidades presentes no campo, não conseguiam se multiplicar
nem, em muitos casos, prosperar, por não responderem as re-
ais necessidades. Falarei, em outros capítulos, da conti-
nuação dos GR. Aqui é importante resgatá-los como ativida-
de exemplar deste período.

Os GR testemunham mudanças nas relações políticas


e econômicas locais (não no plano do município, mas do po-
voado). Não teriam sido possíveis alguns anos antes, qua~

do a dependência entre o lavrador e o comerciante era total.


Agora, com o surgimento de novos intermediários que utili-
zam o capital bancário e o repassam a pequenos produtores,
com maiores facilidades de comunicação etc., há lavradores
aue nao dependem mais do comerciante local. Este, por sua
vez, às vezes percebe a precariedade do seu papel deusurá-
rio nesse tempo de mudança e, na sua dupla situação de co-
merciante e agricultor, pende mais para a terra e para a so
lidariedade com os lavradores. No plano político, os GR siK
I

nificam perda de poder da rede política tradicional, que pa~

sava geralmente pelos comerciantes, e o aparecimento de uma


nova força política. Vale notar que agentes do MEB e, par~

ce-me, da Emater incentivaram a criação de GR. Faltam-me in


formações a esse respeito. Os meus informantes nunca mencio
nam a origem do Grupo de Revenda do qual eram sócios. Todos
consideram o seu GR "filho" do grupo do Prata, menos por fi
liação direta, mas provavelmente pelo fato de ser o Prata o
berço da Corrente Sindical, objeto de análise do capínuo 3.
Mas, nessa época (1976/77), a aceitação do GR significa que
setores da Igreja começavam a exercer uma liderança concor-
rente dos políticos tradicionais, embora esses sinais sejam,
por sua pequenez, quase apenas simbólicos, não chegando a
alterar a relação de força real além de alguns poucos povo~

dos.

I
j
1
2.4.2 - A luta pela terra no Ituqui: a saída de um silêncio
secular

Nessa região, com uma área de terra firme de


l2.000ha, havia aproximadamente 200 famílias em 1975, dis-
tribuídas nos povoados de Patos, Pau d'Arco, Cabeceira do
Marajá, Serra Grande e, nos limites, Limão Grande e Paricá.
Produziam farinha de mandioca e frutas, caçavam na mata e
pescavam na várzea próxima. Deu-se aí um conflito de ter-
ras considerado exemplar por ter sido o primeiro de grandes
proporções no município, por ter decorrido da nova política
I

para a Amazônia e pela resposta que os lavradores tentavam


dar.

Em 1803, uma família portuguesa - os Rodrigues


recebeu uma carta régia de doação, pela coroa de Portugal,
de uma área de 3 x 2 léguas para o plantio de tabaco e man-
dioca. Com o advento do Império, conseguiu revalidar a ca!
ta. No entanto, não fez uso da terra, o que deveria ter le
vado à anulação da doação. Quando os ascendentes dos atuais
moradores começaram a ocupar a terra, em 1884, só encontra-
ram num ponto cacaueiros e mangueiras que provavelmente ti-
nham sido plantados por refugiados do tempo da cabanagem.
Em 1974, os herdeiros venderam a terra a uma sociedade minei
ra, a S.A. Agropastoril Boiuna Soboi, que já tinha por trás
uma fazenda beneficiada pelos incentivos da Sudam.

A Soboi procurou, então, impedir os moradores de


preparar os roçados. Ela se apoiava no IBDF, que tentou im
pedir a derrubada das capoeiras sob o pretexto de preserva
ção florestal. Paralelamente, iniciou a abertura de um pi-
1 ~·l

co nos fundos da área. A firma propos aos moradores reser


var urna área de 3.S00ha, que seria entregue ao Incra para a
divisão entre os ocupantes, correndo por conta deles todas
as despesas de remoça0 e documentação, além da metade das
despesas com a cerca que delimitaria a área. As comunida-
~

des não aceitaram a proposta. Estavam presentes na area o


MEB e, sobretudo, a Fase, cujos técnicos iniciavam a sua in
tervenção dirigida ã produção (roçado de arroz, plantação
de laranjas e hortas comunitárias) e ã educação sindical. A
Fase propôs aos moradores entrar em contato com o Sindicato
dos Trabalhadores Rurais, que se ocupava quase exclusivame~

te de assistência médica e dentária, a fim de que contratas


se um advogado para o caso, o que foi feito. Foi reorgani-
zada a delegacia sindical de Santana e criada uma nova em
Patos, e foram realizados treinamentos, assessorados pela
Fase, sobre sindicato e posse da terra. Também foi criada
uma comissão com representantes dos vários povoados para or
ganizar a defesa.

A Soboi nao ficou parada. Prosseguiu na abertura


do pico e conseguiu, com a ajuda do IBDF, que dois morado-
res fossem afastados da sua função de policiais. Um capan-
ga, que se vangloriava do seu passado de assassino, no Cea-
rá, capataz da firma, policial e fiscal do IBDF, acusou dois
moradores de Poço Branco de impedir o trabalho do pico. Es
tes foram presos arbitrariamente na cadeia de Santarém pelo
delegado interino, o famigerado Benedito Guimarães. Cinco
moradores de Poço Branco, onde havia 12 famílias, foram a
Santarém dar-lhes seu apoio, enquanto um destacamento poli-
• #
cial, mandado pelo delegado interino e por ordem da JUIza,
segundo afirmou, foi à área assegurar a demarcação. o des-
tacamento voltou logo depois com mais um preso, que ficou na
casa do capanga~ Quatro dias depois, antes de serem liber-
tados, os presos foram pressionados pelo representante da
Soboi para sair da terra, no gabinete do delegado e em sua
presença.

Em 12 de junho de 1975, o advogado do STR deu en-


trada a uma açao de pedido de manutenção de posse, sendo con
cedida a liminar pela juíza, em 1 9 de agosto. No entanto,
o IBDF proibiu aos moradores qualquer broca ou derruba, mes
mo em capoieras. Apoiados na decisão da juíza, muitos ini
ciaram a broca, pois o tempo passava. Três lavradores fo-
ram denunciados e intimados pela Polícia Federal a compare
cer no IBDF. Como resposta, no dia 1 9 de setembro 62 lavra
dores chegaram à cidade num motor fretado e se apresentaram
-a delegacia federal para identificação criminal. O deleg~

do começou a interrogá-los um por um, mas acabou por mandá-


los embora, e eles reiniciaram a preparação dos roçados com
mais força e mais vontade.

Em outubro, o presidente do STR e o advogado foram


a Brasília entregar ao ministro da Agricultura e ao presi-
dente do Incra um documento em que acusavam o IBDF de dar
cobertura à Soboi, e o Incra, de omissão. A liminar conce-
dida pela juíza e a firmeza manifestada pelos moradores do
Ituqui fizeram com que a Soboi se aquietasse até voltar a
investir contra os moradores em setembro de 1977. Estes se
mostram firmes em sua decisão de:
"I. conservar os moradores de Serra Gran-
de e Poço Branco, alem de Paricá e Li
mão Grande, nos seus lugares atuais;

2. reservar em cada povoado a área desti


nada ao patrimônio para as casas, es-
colas, igrejas etc.;

3. destinar lOOha de terras para cada


agricultor, morador do povoado, sendo
que o loteamento deve ser feito res-
peitando o mais possível os locais on
de cada um já tem as suas benfeito-
rias" (Fase, 1977).

Nesta data, o problema nao era mais só dos morado-


res do Ituqui. Formou-se, como veremos, a oposição sindica~

que assumiu junto com eles a luta. Pediram apoio ã Comis-


sao Justiça e Paz e apelaram ao sindicato. Mais uma vez, a
firma recuou.

A atuação da equipe da Fase, criticada pela Comis-


são Justiça e Paz, que queria resolver o problema de modo
amigivel t e denunciada aos órgios de segurança, foi inicial-
mente importante, possivelmente decisiva. Muitos lavrado-
res creditaram a sua permanência na terra mais ao empenho
dos técnicos do que a eles próprios. E é justamente aí que
estava o limite dessa luta. Embora os técnicos não tomas-
sem a frente nem assumissem tarefas de representação, nesse
tempo não surgiram lideranças. Encaminhou-se a luta para o
sindicato, mas este não podia se comportar, no melhor dos
casos, senão como paternalista. De fato, nem o presidente
nem o advogado envolveram os moradores do Ituqui no encami-
1~ 7

nhamento jurídico da sua defesa. A Fase pensava fortalecer


pelo menos as delegacias sindicais, mas, na realidade, o que
se batisava de "delegacias sindicais" não era outra coisa
senão as "comunidades" recicladas. Não vai nenhum desprezo
nisso, senão a constatação do caráter incipiente do movime~

to. A incorporação da dimensão sindical organizativa dentro


de uma luta econômico-cooperativa não se dá pela vontade de
alguns. Precisa de tempo e da conjugação de mui tos fatores.

A ofensiva da S.A. Agropastoril Boiuna Soboi repre


sentava uma ameaça ainda mais pelo desconhecido que repre-
sentava. Invasão dos bois do pequeno fazendeiro vizinho e
-
compadre na sua roça e uma coisa, ameaça de uma firma im-
pessoal que chega ao lavrador sob a forma da lei e da ordem
- as polícias, o IBDF, a Sudam é outra coisa.

Começaram, portanto, a descobrir o processo de en-


trada do capital monopolista na região pela mão armada do
Estado, e que nessa luta estavam juntos com lavradores do
Pindaré ou de Imperatriz, no Maranhão, com posseiros de Con
ceição do Araguaia. Era um choque cultural bastante forte
que mereceria uma análise em separado. Nessa sua prática
de luta, havia muita coisa nova: constatação de que o mun-
do não era mais o mesmo; necessidade de uma união mobiliza-
dora; descoberta de amigos e inimigos etc. Tudo isso pode
ria ter-se perdido uma vez garantida a terra se não estive~

se articulado a uma proposta de organização sindical parti-


cipativa. E o que era indício de uma consciência de clas-
se em brotação se tornaria, como é freqUente em lutas pela
terra, numa revolta espontânea de dignidade e liberdade, bo
1~8

nita, certa e corajosa mas sem conseqUência para o amanhã.

2.4.3 - Os primeiros anos do PIC-Itaituba: o amadurecimento


da revolta

A Transamazônica dista 220km de Santarém, pela Cui!


bá-Santarém. Desde a chegada dos primeiros colonos, a Igr~

ja católica se fez presente. Havia também um pequeno grupo


de luteranos oriundos do Rio Grande do Sul. As Igrejas não
desenvolveram um trabalho social nos primeiros anos. De fa
to, o Estado se encarregava em princípio, da assistência té~

nica, financeira e social. Embora os colonos das estradas


estivessem aparentemente na periferia do movimento, no seu
início, na realidade a sua situação quase que por si só ser
via de escola de formação e faria deles, num segundo momen-
to, atores centrais. Além do mais, nas semanas catequéti-
cas, encontravam trabalhadores rurais de outras áreas e co-
meçavam, assim, a criar laços importantes para o futuro.

2.4.3.1 - Chegar e sobreviver

Os colonos pensavam chegar na "Terra Prometida" e


encontravam-se "a uns 2km do inferno". O melhor é lhes dar
a palavra:

"Ao descer do avião (em Itaituba) vimos o


pessoal, os tecnicos, assistentes sociais
do Rio Grande do Sul, que tinham acompa-
nhado, numa conversa cerrada entre eles.
l .)-q.

Diziam o seguinte: 'olha, e o seguinte:


Diz pro pessoal lã do Sul que pare de di
zer, de fazer aquelas promessas loucas,
que não tem mais jeito. O pessoal do Sul
chega aqui, eles estão quebrando ... ' En
tao, ao ver aquilo, nós começamos a nos
reunir e conversar onde nós estãvamos, e
a forçar, que nos queríamos ir pra ter-
ra, queríamos ver a terra. Aí, o que
eles fizeram? Nos colocaram em cima de
um caminhão de carroceria aberta, anda-
mos 175km num sol ardido desgraçado, sem
comer, sem beber, sem saber o que era.
Quando chegamos, jã tarde, de tardezinha,
descemos lã. Eles indo, os caras do
lncra, num carro, uma Veraneio. E nós lã
em cima daquele caminhão feito uns des-
graçados. O sol tão quente que pelava
a gente. Mês de setembro, ainda era( •.. )
Chegando lã eles foram dizendo o segui~
te: 'Aqui fulano'. Aí a gente nao V1a na
da. Só via a estrada. 'Aqui voce vai
ser dono, aqui o fulano, aqui o sicrano'.
Não tinha nada, só estrada aberta.

[Dias depois dessa visita ao lote} bota-


ram a gente em cima de um caminhão. Nós
montamos com a família, com os trecos den
tro. E nós chegamos lã de volta, num lu
gar, era jã perto de meio-noite. Quando
nós fomos com a família. Nós não conhe-
cíamos nada, não sabíamos onde que tinha
agua, não sabíamos onde que tinha nada,
nada, nada. Derrubamos as bagulhadas na
beira da estrada e ficamos ali com sede,
com fome e com sono. Sem casa, sem nada.
A sorte e que não choveu. Eu lembro qua~

do chegou lã umas horas da madrugada, ma


140

mae começou a gritar, era pura daquela


formiga picadeira. Você conhece aquela
formiga preta grande? Ela estava cheia
daquilo e muitas formigas ferraram ela e
muitos de nós fomos ferrados com aquela
formiga. Então houve um desespero to-
tal.

No dia seguinte o papai, a mamae e ou-


tras pessoas nos levantamos e o pai dis
se o seguinte: 'Bem, entramos de fato num
barco furado, e se tiver, se existe o in
ferno, que eu não acredito que tenha,
mas se existir, nós estamos
J
já uns 2km
perto do inferno'. Tinha que ver. Era a
estrada e a mata, absolutamente isso só
que tinha. Tanto que a gente nao sabia
onde tinha água, onde tinha nada ••• Sim,
porque era uma seca desgraçada em 1972 aí
na Amazônia.

Bom, e aí fomos fazer entao o limpado.


Cortar folha de coqueiro pra fazer a ca-
sinha. A gente não sabia trabalhar com
folha de coqueiro. Levantamos a casinha
e quanto mais nós cobríamos, quando veio
a chuva uns 3 dias depois, chovia dentro,
molhava tudo, porque a gente não sabia do
brar e cortar aquela folha, entao nos en
grossamos de folha em cima. E fomosapre~

der depois quando nós encontramos, uns


5km pra frente um cearense, outro pes-
soal. A gente foi lá, viu a casinha de-
le bem ajeitadinha, coberta de folha de
coqueiro. Nós viemos de volta e fomos
tirar folhas e fazer. E fizemos direiti
nho também. Bom! Então aí fomos comer
o pao que o diabo amassou( ••• ) Tô vendo
toda essa história de sofrimento. Era ge~
Il1

te que chegava de todos os estados. A


maioria era nordestino. E pior, o nor-
destino ••. Nós fomos trazidos de avião,
o nordestino era trazido no pãu-de-arara.
Então eles chegavam lã mais mortos do
que vivos ••• Porque entravam via Marabã,
por Altamira. E fazer aqueles milhares
~

de quilômetros a1. Tinha também o trata


mento mau, a fome e tudo, a poeira •..
Mas quando o povo vem com esperança, a
gente não sabe o que alimenta as pessoas,
de comer um arrozinho branco de manhã e
aguentar o dia todo às vezes na foice.
Derrubar aquelas madeiras daquela grossu
ra, o ipê, o jatobã, o jaranã, maçarandu
ba, pequiã, aqueles enormes paus que o
povo vai derrubando no machado sem se ali
mentar" (ent. 1).

Havia também o problema da localização e da quali-


dade do solo. Os planos de gabinete do Incra não levavam
em conta esses "detalhes" que vão condicionar a vida dos
colonos:

"Ou tra co i sa que a gente perd eu. • • Não


tivemos uma orientação técnica, como nós
usar a terra, que eu aprendi com meus
pai s, dos meus avó s de que tinha que pla~
tar o trigo, plantar o milho, uma série
de coisas que dã lã e as épocas do ano
que tinha que plantar. Chegamos aqui.
Nós não tivemos orientação nenhuma por
parte do rncra. Nós quebramos a cara,
muitas e muitas vezes, ate saber como tra
balhar aqu1 ••• Também o tipo de solo na
Transamazônica, se for andar por ela, va
ria muito. Numa regiao a terra e ma~s

pra roxa, tem condiçio mais para um tipo


de produto. É todo manchado, sabe. Nio
e um solo pareio como o solo do Sul, que
e a terra roxa. Aqui e variado. É ter-
ra roxa, e terra de areia, e terra mais
amarela, um barro" (ent. 20).

"o carro deixou nos ali na beira da estra


da. E ali mesmo a gente pegou as coisas
nas costas e ji subia de estrada a fora
[Imaginem a ladeira do travessio subindo
íngreme na serra cortada reta]. E se ins
talando no primeiro lote do lado direito
de quem vai. o lote foi escolhido mas
terminou a gente se enganando com a ter-
ra. A gente olhou a terra e deu uma apa-
rencia com a terra do Maranhio, que nao
era barro e nem areia. Aqui i outra ter
ra. Nio i Maranhio, aqui i Pari" (ent.
19).

Era urgente plantar:

"A idiia que tinha li no Sul i que fazia


roçado em janeiro. Chega aqui, ji no co
meço do inverno, a gente pensou: e igual -
li. Entio vamos ro~ar, vamos plantar •••
Nio conseguimos queimar •••

Outra coisa, o Incra prometeu que tinha


casa, que tinha vaca de leite ••• quando
chegamos não tinha nada disso. E a gen-
te chegou sem a semente pra dar o arroz,
o feijão. E o Incra não tinha isso. Nem
uma galinha pra começar a criar... De
tanta bronca que nós fizemos no Incra,
eles conseguiram a semente pra nós. De-

I
14 :3

ram uma semente completamente estragada.


Eu consegui comprar lã em ltaituba na fe.!.
ra uma galinha com um galo e trazer assim
com O maior cuidado ••• cento e sessenta e pou-
cos quilôme tros em cima do caminhão. Co n se g u .!.
mos assim pra começar a semente de tudo:
uma muda de banana, uma rama de mandio-
ca, umas sementes de verdura" (ent. 20).

"E aí vem a dureza: fazer agora o roçado


na mata, brocar. Nessa epoca a salvação
foi a caça e o açaí. A gente vinha ali
naquela beira da faixa pedir macaxeira,
subir lã pra cima com aquilo na cabeça,
ralar num ra1inho, e depois torrar, fazia
farinha numa bacia, pra comer com açaí"
(ent. 19).

Havia muitos acidentes provocados pela derruba; a


malária, nessa agressão desordenada à natureza, atacava du-
ramente as famílias enfraquecidas. Os colonos consideravam
se abandonados ã sua própria sorte, embora se sentissem bas
tante controlados. g preciso lembrar que se desenrolava a
algumas centenas de quilômetros ao Sudeste, no Araguaia, uma
guerra entre o exército e; os guerrilheiros do PC do B, que
terminou na última campanha militar, em novembro de 1973,pe
10 extermínio destes. Recorda um colono:

"N~s iramos extremamente controlados por


assistentes sociais. Os assistentes so
ciais do lncra faziam reuniões conosco
toda semana, dependendo de 15 em 15 dias.
E tinha duas coisas: primeiro reuniam co
nosco e diziam: 'Olha, vocês são de fa-
1-14

to, o pessoal que ve10 do Sul, aqueles


que o governo acredita. vocês vao ser
grandes fazendeiros aqui. vocês -
sao a
esperança dessa colonização'. E botavam
isso pra gente, mas, por outro lado di-
ziam: 'Olha, mas tem os nordestinos que
estao ai; vocês têm que tomar cuidado,
sao gente preguiçosa, são gente isso e
aquilo'. E ao mesmo tempo, eles diziam
o seguinte: 'Olha, tã acontecendo uma lu
ta ai, um negócio em Marabã, perto da-
qui, que todos os ladrões de carros, la
drões perigosos fugiram da cadeia e ou-
tros, não deu de pegar e estão ai no Sul
do Parã. E vocês têm que ter esse com-
promisso aqui COm o governo, com nos que
somos de fato os defensores da pãtria e
queremos o progresso, o sucesso também
de todas as famI1ias. Se vocês souberem
qualquer notIcia, se alguns desses la-
drões chegarem por aqui pedir abrigo, v~
cês não dão e imediatamente comuniquem
que nós temos que prender ••• E se for pes
soas assim, voces podem até atirar, po-
dem ate matar, ne, e depois comuniquem'.
Então isso era feito em 72 e beirada de
73" (ent. 1).

Os gaúchos formariam a classe média rural, economi


camente realizada e esteio político do regime militar. A
inauguração da Rurópolis Presidente Médici pelo próprio ge-
neral atribuiu aos gaúchos um papel relevante, o de serem,
vestidos a caráter, os churrasqueiros oficiais. A inaugura
tüo aconteceu no dia 12 de fevereiro de 1974, mas ficaria
indissoluvelmente associada a um sinistro episódio aconteci
145

do dia 3 de fevereiro de 1974: o incêndio da Vila da Palha,


em Rurópo1is.

2.4.3.2 - A visita do General Médici a Rurópolis vista pelo


outro lado

No segundo semestre de 1973, o Incra começou a con~

truir, na encruzilhada da Transamazônica com a Santarém-Cuia


bá, no seu trecho norte, uma "rurópolis", a "Rurópolis Pre-
sidente Médici". Deslocaram trabalhadores de outras -
a reas
do próprio Incra,e empregaram também colonos. Em poucos m~

ses, pois tudo tinha que estar pronto para a inauguração,


ergueu-se uma vila, com a sede central do Incra, duas alas
comerciais, uma sede residencial, o Banco do Amazônia e um
hospital da Sesp, onde, naquela época, havia um médico, cin
co enfermeiras e quatro leitos. A mais ou menos 600m, com
autorização e apoio do Incra, começou a crescer a "vila da
Palha", que abrigava os operários, colonos e comerciantes.
No fim de janeiro de 1974, já contava com cerca de ISO ou
180 casas, feitas de tábua e algumas ainda cobertas com pa-
lha, mas a maioria com "brasilit" ou telhas. No dia 3 de
janeiro, a Vila da Palha foi queimada.

Em depoimento prestado numa reunião da Comissão Jus


tiça e Paz de Santarém, em 22 de abril de 1974, os 21 mora-
dores da Vila da Palha presentes contaram que foram avisa-
dos no dia 2 pelo Sr. Aníbal "que iam ser queimadas as casas
dentro de três dias" (CJP, 1974). Mas, frente a revolta dos
moradores, lhes foi dito no mesmo dia que isso nao iria
14 b

mais acontecer. TranqUilizados, no dia seguinte todos vol


taram a suas ocupaçoes.

Além dos que foram trabalhar despreocupados, outros


colonos estavam nos seus lotes. Em 3 de fevereiro, um dia
chuvoso, havia quase unicamente mulheres, crianças e velhos
na vila. Pelas 2 da tarde,

"Iam chegando, riscando fósforos na casa


e tocando fogo. A que não pegava fogo a~
sim, jogavam gasolina e tocavam fogo. T~

ve casa que tocaram fogo pro camarada


sair. -
As crianças nao qu~riam sair, a
mulher e empregada -
nao
~

sa~ram, tocaram
fogo de um lado e teve que sair por ou-
tra parte, que queimou a rede, queimou
roupa, tem gente que queimou tudo" . (Cf.
depoimento do Sr. Leandro Barbosa da Sil
va) •

"Tem uma senhora aqui [que estava dentro


de casa], o filho estava doente. Então
morreu com dois dias depois. Foi para a
chuva, ficou no relento, nos panos, nos
encerados [debaixo de lona]. Outros par
tiram com a distância de 20km para a ma-
ta, com encerado. Eles deram encerado pa
ra alguns. E outros ficaram em barracão
do BEC no 180" (Cf. depoimento de Jose
Moreira de Abreu) •

Atrás do fogo, vinham os tratores que empurravam


os escombros para uma vala aberta para esse fim. Três dias
depois, estava tudo consumado. O terreno estava limpo.

Essa operação de guerra foi executada sob a respo~


14~

sabilidade do Dr. Aníbal, responsável pela finalização das


obras de construção da Rurópolis, por um certo Dr. Haufer,
o Carlão, truculento "prefeito" da vila, e dois guardas ru
rais. O Dr. Aníbal teria dito que deviam sair porque "o
presidente ia chegar e não queria aquelas casas velhas lá,
mal feitas" (Id. depoimento sem nome). Tinha, pois, que
completar a obra de embelezamento da Rurópolis:

"o povo não tinha semente para plantar, o


povo não tinha arroz para comer e eles
semearam toda aquela região, centenas de
sacas de arroz, não sei de onde trouxe-
ram, se trouxeram da Paraíba ou do Rio
Grande do Sul, em todo o redor da Rurôp~
lis eles semearam o arroz e com a chuva
que estava dando, para que na inauguração
o arroz entio ji estava com 4 dedos de
nascido. No dia 12 de abril, parecia um
grande campo, todo verde em Rurôpolis.
Muito bonito: Todos os canteiros de Ru-
rôpolis, toda a Vila da Palha onde tinha
desgraçado tudo, para o arroz nascido des
se tamanho e quem falava ia preso" (ent.
1) •

Nesse dia, até dava para distinguir nuanças de ve~

de simbólicas: o verde oliva do exército sobre o verde ten-


ro do arroz tendo corno fundo o verde profunda das matas e,
em contraste, urna claque de colonos, comerciantes, garimpei
roz, funcionários, peoes com as camisetas brancas distribuí
das pelo Incra com impressão verde: ao redor de um círculo
com o mapa do Brasil e a inscrição "Integrar para nao Entre
gar" , estava escrito: "Transamazônica".

1
148

Nada havendo a dizer sobre o acontecimento oficial,


chego diretamente ao churrasco:

"Nós fomos usados pelo Incra pra fazer o


churrasco da inauguração ••• Foi feito um
acerto que nós ficãvamos pra fazer o chu~
rasco e a distribuição era de responsabi
lidade do Incra e tecnicos. Quem nao co
nhece a onça e uma desgraça, ne. Bem en
tão fizemos o churrasco. Muita gente.
Trabalhamos feito uns cachorros ••• Vie-
ram militares de não sei de onde e, en-
tão, eles chegavam( ••• ), pegavam o chur
rasco e saiam e não davam nem bola. E a
massa, a enorme massa que tinha sido ar-
rastada( ••• ) pra ir bater palmas pra aqu!.
le bandido que e o Medici, que nem falou
no dia. Um esquema de segurança ass~m,

que cada pessoa era vigiada( ••• ) Um ne-


gócio louco, lã no meio do mato( •.• ) Um
completo desrespeito ao povo( ••• ) O lu-
gar de servir era muito estreito, muito
ruim. Nós reclamamos jã desde o começo
e eles nao ouviram e pronto. Eu sei que
isso deu uma complicação. Claro o obje-
tivo: jogou a massa contra nos. E a mas
sa com fome, vendo aqueles milhares de
quilos de carne lã assando e nao podiam
pegar. A massa começou a empurrar a ce~

ca, e não demorou, arrebentou a cerca. E


tinha gente que desmaiava, e o povo en
trou, ocupou e levou todo o churrasco •••
Foi um negócio assim, passou pela cozi-
nha •.• era panela de suco que subia pelos
ares; a carne as vezes subia assim, o ca
ra parava com o facão, com a peixeira, e
saiu gente meio cortada ••• Sei que nos
149

fomos embora, sem nem comer o dito chur


rasco.

Na hora, como nao tínhamos consciência,


a gente ficou triste mas fomos pensar s~

bre isso. E fomos analisar que tava mui


to correto. Se nós estivéssemos no 1u-
gar da massa, era isso que tinha que ser
feito, eu era um que teria puxado a mas-
sa pra fazer isso, mas como eu estava se~

do usado e tava aqui dentro, entao cria


ram aquele preconceito no pessoal, o nor
destino contra o gaúcho e o gaúcho con-
tra o gaúcho •.• Então foi aí o primeiro
I

sinal de consciência da gente. Primeiro


sinal assim que despertou na minha pes-
soa principalmente" (ent. 1).

2.4.3.3 - Conflitos com o Banco do Brasil, o Incra,


a Cibrazém

A relação dos colonos com o banco jogaria nessa épo


ca um papel relevante nessa maturação da consciência social
dos colonos:

"Mais tarde um pouco veio o financiamento


do banco. A enganação que foi. Parecia
que era uma solução ••• Agora a ~legria

é grande. Começa a trabalhar, compra uma


coisinha, compra outra, mas não dão Tem
que continuar a fazer uns biscates pra
f ora ••• Fizemos 13 hectares de roça,
que va i dar quase 40 taref as, f inanc iamen
to, tudinho ••• Nós tiramos de todo esse
roçado cento e poucos sacos de arroz de
50 quilos. Muito pouco. A gente tirou
150

pra comer, e o resto foi pra pagar o ban


co. sã" deu isso. Pra pagar o banco"
(ent. 19).

"A pimenta me ajudou •.• -


a gente nao tinha
a motosserra para cortar a madeira (mas)
eu tinha uma pareia de boi pra puxar es-
sa madeira, que precisa madeira pra p1-
menta subir •.. Agora a pimenta ainda foi
financiada. Mas foi pior. Foram enrolan
do por li e s~ foram liberar esse dinhei
ro quando o inverno ji tinha passado. Ai,
pronto. Teve muita gente que s~ fincou
a estaca porque nao tinha condições ~e
plantar. s~ plantou quando chegou o di
nheiro. Ai o verão ji tinha entrado, mor
reu tudo. Agora eu, porque tinha esses
bois, me adiantei um pouco. Mas muitos
que tinham menos condições que eu, que a
- deu
água era muito longe e que nao pra
regar, que não tinham os bois pra arras-
tar essa madeira, acabou ficando só com
a divida no banco. t;; fogo" (ent. 2).

A questão do financiamento motivou a primeira luta


coletiva. dos colonos da Transamazônica. Eles não se volta-
ram contra o banco, mas contra a Companhia Brasileira de
Armazenamento (Cibrazêm), que representava para eles o co-
merciante usurário, sugador do seu trabalho. Deixo a pala-
vra a um colono:

"Quando chegou na safra de arroz, em ag02.


to de 74, agosto pra setembro, quando
nós fomos vender a primeira safra de ar
roz, a primeira carrada .•. Então ..• nos
I 151

não podíamos vender para particular, ti


nha que entregar pra Cibrazem. Tinha que
entregar e receber atraves do banco. Nós
nio tínhamos autorização pra vender pra
ninguem. Entio entregamos lã. Naquele
tempo se falava no preço de arroz, 64 cr~

zeiros a saca. Então papai entregou uma


carrada de 150 sacos, que deu bem aque-
le ano. E quando foi receber, uns 8
dias depois, e que fomos ver o golpe que
tinha. Eles tinham descontado, dizendo
que o arroz estava molhado. Então, foi
secagem. Aí diminuiu não sei quanto por
cento. Aí descontaram braçagem, descon-
taram pulverização e lã va1. Eu sei que
dos 150 sacos ficou uns 120 sacos. Aí dis
seram que tinham impurezas, descontaram
impurezas, descontaram um monte de coi-
sas. E desse negócio, de 64 cruzeiros,
porque o arroz não e classificado, não e
bom, veio para 22 cruzeiros o saco. lnde
pendente disso nós tínhamos que pagar o
transporte por fora. De 64 veio pra 22.
E foi um grito em toda a estrada. E nes
se tempo a gente começou a pensar na 1nau
guração de Rurópolis. Se o povo derrubou
nós temos força tambem de derrubar esse
negócio" (ent. 1).

Além desse problema, protestavam contra a "rouba-


lheira" na Cibrazém. O gerente estava montando a sua empre
sa de transporte e só aceitava o arroz carregado por seu c~

minhão ou pelos que indicava, impondo seu preço. Havia rou-


bo também no controle do peso. Decidiram ocupar o Incra de
Rurópolis:

152

"Então foi um pau danado. Eu sei que ocu


pamos o lncra. Tinha o rádio-amador, que
foi uma turma, já tinha sido discutido:
'Você tem que afastar ele, dizer que ele
não vai transmitir nada'. Nós ocupamos
tambem o lugar do rádio-amador. Tinha a
policia, entao ficou um grupo grande pra
falar com a policia e dizer pra não en-
trar porque ia dar pau e nós não queri~
mos brigar com a polícia; nós queríamos
era resolver es~a roubalheira que tinha.
Sei que imprensamos o pessoal do lncra.
Isso foi de manhã. Quando foi ã tarde,
já foi de Belem um cara da Cibrazem, não
sei o que, de avião fretado, foi bater.
E sei que resolveram. Só que não devol-
veram tudo ••• Começou a melhorar um po~

co. A partir daquele negócio, começamos


a ganhar um preço de 50, 60 cruzeiros a
saca, a desmanchar aquela corruptela to-
da de transporte ••• controle das balan-
ças. Então, já naquele tempo foi uma
grande vitória. Foi aquilo que começou
a animar" (ent. 1).

Os colonos da Transamazônica viriam a constituir um


dos mais fortes pólos que levariam ã conquista do STR deSan
tarém em 198 O. Na concepção geopolítica 'tecnocrático-mi-
litar, chegavam na Transamazônica como vanguarda da frente
pioneira, destinados a virar proprietários/empresários se
bem-sucedidos, ou bucha-de-canhão do avanço capitalista se
fracassados. Mas se rebelaram contra esses destinos possí-
veis e transformaram-se em vanguarda da luta camponesa con-
tra a frente pioneira que conheciam por dentro, por luta
própria.
1 153

2.5 - UM INfcIO DE ORGANIZAÇÃO: O GRUPO DOS 30, OS CAMINHEI


ROS

Nos anos 70, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais


- STR - estava nas bocas. Em todo o interior de Santarém
era urna reclamação só contra o fato de que era preciso ser
sócio do STR e estar em dia com a sua contribuição para ter
a ficha de atendimento médico do Funrural, e também contra
a má-vontade dos funcionários e da diretoria no atendimento
aos associados.

O STR tinha sido criado por colonos do planalto san


tareno em 1972, com a sede em Mojuí dos Campos. Como a qU!
se-totalidade dos STR do Pará e como a Federação dos Traba-
lhadores na Agricultura do Pará (Fetap), a sua criação foi
incentivada pelos políticos ligados à ditadura, notadamente
o grupo do Coronel Jarbas Passarinho. Pois estando na mao
de homens de confiança, se constituiriam em instrumentos de
controle do campesinato e dos currais políticos. Além do
mais, com a criação do Funrural em 1971, os STR transforma-
ram-se em intermediários entre esse órgão e o trabalhador
rural, associado ou nao. Maquinação engenhosa que trazia
várias vantagens para o regime:
1. aumentava o controle que podia ser exercido sobre o sin-
dicato;
2. fazia recair sobre este a culpa pelas falhas do sistema
. de saúde. Evitavam-se, assim, ataques ao governo e des-
I moralizava-se o sindicato;

j 3. criava urna imagem deturpada do sindicato, estranha a to-

1
154

1
da a história de luta da classe trabalhadora.

E, de fato, em 1975 a Igreja local denunciou o sin


dica to através da Comissão Justiça e Paz. Os dois agentes
de pastoral, moradores do Prata e com roçado plantado, de-
põem sobre as suas dificuldades para iniciar, em 1975, urna
discussão sobre o sindicato:

"Falava-se, mas muito em forma de lamenta


-
çao: o sindicato que nao presta, que nao
esti fazendo nada. Mas n~o tinha ne
nhum que dissesse: vamos entrar no sindi
cato para reformar. Nós dois tínhamos
decidido entrar no sindicato. Nós achãva
mos que O povo nao entendia, mas um dia
iria entender o que era o sindicato •••
Nós desconfiávamos que a organização dos
trabalhadores devia passar pelo sindica
to" (ent. 30).

A Fase, como já foi visto, tinha inscrito o sindi-


cato no seu programa. Para incorporar a .este a educação sÍ!!.
dical sem ser taxada de subversão, precisava de alguma lig!
ção com o STR. E, para não ser assimilada à direção, preci
sava manter-se distante dela. Essas duas pedras no caminho
levaram-na a assinar, no começo de 1975, um convênio com o
sindicato que definia a sua tarefa corno de educação sindi-
cal junto às delegacias sindicais (a descentralização do STR
já vigorava nesse tempo). Começou, então, a promover reu-
niões c pequenos cursos nas delegacias sindicais da estrada
de Altcr do Chão e na região conflituosa do Ituqui. Mais
tarde, trabalhadores da estrada de Alter do Chão confessaram
155

que, na época, nao entendiam bem de que se tratava. Já pa-


ra os lavradores do Ituqui, a coisa era mais concreta, como
foi visto anteriormente.

Ainda no primeiro semestre de 1975, a equipe da


Fase e os dois agentes começaram a encontrar-se e a traba-
lhar juntos. Por causa do conflito do Ituqui, prepararam
juntos uma cartilha, O posseiro e a terra, que não teve gr~

de sucesso fora do Ituqui, pois a posse da terra ainda -


nao
era sentida como um problema no município. No fim do ano,
saiu.a cartilha O Zavrador e seu sindicato, que passou a ser
bastante usada não só no município, como em muitos lugares
do País. Antes de se fazer as cartilhas, o seu conteúdo
era estudado e discutido, por partes, em treinamento e en-
contros, o que permitia ver o que "colava" ou nao. Depois
preparava-se o esboço da cartilha, testado junto a alguns
lavradores, e só então redigia-se a cartilha final.

No último encontro comunitário da região do Prata/


Chaves do ano de 1975, um dos problemas apontados foi a re-
lação entre o sindicato e o Funrural. Os participantes es
colheram o STR como tema de reflexão e ação coletiva. Esse
tema seria, assim, discutido nas três áreas de atuação da
equipe formada pelos dois agentes de pastoral e pelos técni
cos da Fase. Parecia a eles que era tempo de pensar nas
eleições para a diretoria do STR, previstas para 1977, e dis
cutir com os lavradores a possibilidade de uma chapa de opo
sição. Poderiam apoiar-se nas áreas em que atuavam. Elas
seriam os núcleos, a partir dos quais uma nova proposta sin
dical poderia difundir-se.
15b

Realizaram-se encontros intercomunitários em cada


-
a rea, com a presença de alguns companheiros das outras zo-
nas,preparatórios a um encontro comum. Corno viabilizar es
se encontro num contexto de recrudescimento da repressão no
plano nacional e, localmente, de boatos de ameaça a dois dos
técnicos da Fase? Esse encontro não seria taxado de subver
sivo? A solução foi obter o apoio da Igreja local. A reunião
seria promovida pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

A CPT foi fundada em junho de 1975, em Goiânia, por


bispos, padres, leigos de toda a Amazônia legal reunidos a
convite da CNBB e da Comissão Justiça e Paz - seção brasi-
leira - para refletir sobre o papel da "Igreja diante dos
conflitos sobre o legítimo uso e posse da terra e as migr~

ções resultantes desses conflitos" (Franciscano, 1975). A


assembléia resolveu empenhar-se na reforma agrária e criar
uma "Comissão de Terra [posteriormente, CPT] ( ... ) para que,
como instrumento ágil, ligasse, assessorasse e dinamizasse
pessoas e organismos que trabalham a favor dos homens sem
terra e dos trabalhadores rurais" (id. ibid.). Ranulfo Pe-
loso da Silva, único representante do Baixo Amazonas, embo-
ra continuasse a morar no Prata, tornou-se o primeiro secre
tãrio da CPT do Pará, com escritório em Belém. Passou-se
mais d~ um ano antes que a necessidade de realizar o encon-
tro fit~~se com que se propusesse a Dom Tiago Ryan, bispo
de Sant:ném. a criação de urna CPT local cuja primeira ativi
dade foi n promoçao do I Encontro de Agricultores, nos dias
18 co Ul ,Il' dezembro de 1976, em Emaús. A vantagem era que
s~ gnnhAva o respaldo da Igreja sem o qual o encontro nao
15:-

seria possível. Mas havia um inconveniente: perdia-se a po~

sibilidade de manter o encontro nos limites das áreas em que


se tinha feito um trabalho prévio. A catequese rural havia
convidado lavradores do município inteiro, e vieram 80 tra-
balhadores, entre homens e mulheres.

o encontro foi de muita vibração, entre plenárias


e grupos para permitir que todos se expressassem. Todos an
siosos para gritar a exploração que sofriam no transporte e
na venda da produção, a sua inquietação frente a uma terra
cansada, sem que tivessem condição nem técnicas para produ-
rirem melhor, as ameaças que pesavam sobre as suas posses,
a sua revolta frente às condições de saúde e educação. E o
político que dizia que ia ajudar a comunidade e mandava qU!
tro garrafas de cachaça, dizendo: "Eu troco o caboclo por
cachaça." E os criadores que faziam caçoada do agricultor
quando este ia se queixar de que o gado invadira a roça. E
O sindicato e os delegados sindicais testas-de-ferro, desmo

ralizados.

FTtmte a essa .si tuação, quem somos nós? uma esca-


da que o rico sobe de pé até chegar lá em cima", mas também
"um gigante adormecido, porque nao descobre o seu valor" ."Pra
gente ver o valor que a gente tem, tem que enxergar o 'valor
dos pobres iguais a gente". Transcrevo aqui uma parte do
relatório bastante indicativa das preocupações:

"O que estamos fazendo: estudos da B{blia,


catequése que dá alerta, criar esp{rito
de igualdade, respeito mútuo, respeito
dos bens da comunidade, luta contra o
analfabetismo, construções: capelas, gr~
pos"escolares, barracão comunitário, aber

_ _ _'t--
158

tura de ramais, com ajuda da prefeitura.


Luta para estrada, documentação pessoal,
documentação de terra, luta pela terra,
orientação para mudança de cultura, pla~
taçao de bens de raiz, roças comunitá-
rias, puxirum, clubes de revenda, cons-
trução de poços, um grupo que comprou uma
máquina de beneficiar arroz, particip~

çao nas Delegacias Sindicais, uniao con


tra invasores de pescaria, encontros com
várias comunidades.

o que podemos fazer: comprar em grupos ma-


quinas, comprar em grupo um caminhão,uma
serraria, ter culturas diferentes, roças
comunitárias, fazer minicooperativas,pro
curar orientação sobre terra, cercar os
terrenos, melhorar a venda dos produtos,
motor de luz, procurar meios de educação
e saúde, festas para projetos, luta para
se organizar, melhorando o Sindicato,con~

truções: capelas, grupos ( •.• ), grupos de


vivência, grupos de bíblia , organizar
líderes para projetos comunitários, evi-
tar a saída de líderes com visão da comu
nidade, orientar líderes no interior e
buscar da cidade para o interior, infor
mar os companheiros, continuar os encon
tros" (CPT, 1976).

No final do encontro, os trabalhadores rurais pre


sentes decidiram lançar uma chapa de oposição para as elei-
ções d0 STR e, para isso, escolheram um grupo de 30 pessoas
encarr~l!ado de lançar a chapa. "
Entraram no grupo trabalha-
dores d~ quase todos os recantos do município, menos da Tr~

sama:ônic:l, de onde só um ou dois se fizeram presentes no


159

encontro. Embora participassem da catequese e conhecessem


os promotores do encontro, estes, por causa da distância,
não tinham conseguido manter uma discussão permanente com
eles. Alem disso, encontravam dificuldades para se asso-
ciar ao STR de Santa rem, sob o pretexto de que a área nao
era do município. Foi preciso, já em 1978, um abaixo-assi
nado de 450 pessoas para que fossem aceitos como sócios.

A primeira reunião do Grupo dos 30 estava marcada


para o dia \ de janeiro de 1977, perto da Rádio Educadora.
A polícia federal foi lá, a pedido do presidente do STR, em
busca do pessoal da Fase, mas a reunião se dava em outro lu
gar e sem a participação da Fase. Ninguem percebeu na hora,
~

porem mais tarde ficou claro que havia um traidor no grupo.


O grupo apresentou uma chapa de oposição que perdeu de modo
estrondoso, ficando com 200 votos, e a situação, desdobrada
em duas chapas, com 600 votos (chapa 1) e 200 (chapa 2).

Um participante do grupo avalia assim esse JOOJIlento:

"Nossa chapa, a chapa 3, estava cheia de


mensagens e grandes ardores. Nós acháva
mos que ganhãvamos.tranqUilo. Não des-
confiávamos sequer das manobras dos pel~
gos. Não tínhamos conhecimento das
leis. Não tínhamos mobilização, nem or-
ganização, nem campanha. Esperávamos p~
lo resultado que do ceu não vinha e pe~
demos fragorosamente ••• O grande saldo
foi a reflexão que fazíamos já antes das
eleições: se a gente perder, o que a ge~
te faz? Isso deu consistência a um gru-
po que mais tarde foi chamado de 'Cami
nheiros'" (ent. 30).
lbO

o grupo, que se reunia uma vez por mês, adotou três


frentes principais de açao:
1. participar das assembléias levando propostas;
2. formar delegacias combativas e trocar delegados;
3. reforçar a "organização comunitária" através de grupos
de revenda, grupos de transporte comunitário,etc.

Nos dias 25 e28 de agosto de 1977, realizava-se


em Emaús, organizado pela CPT, o 11 Encontro de Lavradores,
com S4 lavradores, entre os quais 7 de outros municípios e
12 agentes pastorais. Pela primeira vez, apareceu com for
ça a idéia de criar uma feira livre dos agricultores. Foi
ressaltada por todos a importância do Grupo dos 30 e a ne-
cessidade de organizá-lo melhor. Na realidade, o grupo,me~

mo denominado "Caminheiros", não foi para frente. Havia pe~

soas que não entendiam a luta que estava se iniciando. Sou


be-se posteriormente que alguém do grupo passava as idéias
discutidas sobre a participação nas assembléias do STR ao
seu presidente. Também faltava trabalho de base e a asses-
soria da Fase, com grande rotação de técnicos, era falha. Por
isso, no começo de 1978, o grupo se desfez e cada um passou
a trabalhar diretamente na sua delegacia sindical.

Comentei que no encaminhamento do trabalho organi-


zativo, quando se tratou de realizar o I Encontro de Agriati
tores, foram convidados lavradores do município inteiro,sob
inspiração da catequese rural. Os critérios foram que a
pessoa, para ser convidada, devia participar das atividades
comunitárias c exercer alguma liderança. A idéia inicial
IhI

era de realizar um encontro mais restritivo, no qual esta-


riam presentes só trabalhadores das áreas em que houvesse
previamente alguma ação coletiva e um começo de "nucleação",
de organização pelo menos de um pequeno grupo nessas áreas.
A escolha feita contribuiu para o fracasso dessas primeiras
tentativas de organização. Partir dos pequenos grupos, dos
"núcleos" seria certamente um processo organizativo bem len
to que nunca poderia ter como seu horizonte as eleições sin
dicais de 1977. Porém facilitaria a criação de um movimen-
to mais enraizado na realidade, formador de lideranças, in-
tegrando a formação da consciência a práticas desvolvidas
(pois haveria núcleos só onde houvesse lutas/organização).

A escolha feita, ao contrário, colocava a organiz~

çao como uma proposta bastante exterior, de cima para bauo,


para a maioria não envolvida em práticas/reflexões anterio
res. E essa proposta era aceita pelo argumento de autorida
de usado: o cristão age em solidariedade com seus irmãos.
Os participantes do encontro e os que entraram na oposição
sindical, portanto, tinham o discurso da solidariedade, mas
nem sempre a praticavam, como ficou claro pelas traições às
quais aludi. A comunidade era baseada na união. Mas que
união e que comunidade?
lb2

2.6 - CONCLUSÃO

Talvez "comunidade" seja o termo mais recorrente


neste período. colocado sob a inspiração da Igreja. A comu
nidade cristã do interior santareno é geográfica; ela junta
os moradores de um determinado setor e, em princípio. nin-
guém é excluído dela. g uma comunidade de fé, de batizados;
quem pratica atos religiosos e,ainda mais, quem os dirige
tem seu lugar garantido nela. g uma comunidade de irmãos;
sem união. ela não existe. Enfim, como o cristão faz o 1a-
f
ço entre a fé e a vida, a comunidade preocupa-se em partic!
par da resolução dos problemas coletivos. Como, mesmo den-
tro de uma pequena comunidade rural, há pessoas com interes
ses diferentes - o pequeno comerciante, o lavrador cliente
de favores políticos etc. - , há contradições entre os mem
bros da comunidade, superadas nao pelo conflito, mas pelo
não-enfrentamento coletivo das questões conflituosas. Que~

tões econômico-corporativas são abafadas. Mesmo assim, so-


bram ações para a comunidade (cristã). A manutenção de es-
tradas e caminhos, por exemplo, é do interesse'tanto do co
merciante quanto do colono.

S possível, portanto, desenvolver um discurso da


participação e da união sem que venham à tona os conflitos
econômico-políticos subjacentes. A tendência é de achar que
quando uma pessoa expressa bem na sua fala pública os valo
res da comunidade, ela é "consciente". Opõem-se valores
(união, sOlidnriedade) a interesses que são ligados a anti-
valores (~~"{smo, disputas), favorecendo assim o status quo
das re1aç~~~ ~ociais no interior da comunidade.
163

o enfrentamento das questões econômico-corporativas


pode explodir esse tipo de comunidade. O lavrador compadre
do fazendeiro recusa-se a entrar na luta pela terra. O co-
merciante e seus devedores opõem-se ao grupo de revenda. O
colono da estrada que dispõe de um pequeno capital e se
transforma em transportador pode querer enfrentar a Cibrazém
só até o monopólio do transporte ser quebrado.

Neste período, o grande mérito de alguns setores


da Igreja santarena foi ter enfrentado o dilema que apresen
tei aqui de maneira simplificada. Aceitaram e até encoraja
ram para que fosse quebrada a comunidade, para que fosse
reconstruída a partir das lutas do campesinato e das suas
solidariedades de classe. A comunidade não era "ponto de
partida", mas "ponto de chegada" (Pacheco, 1986, p. 48).

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