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ESPIRITUALIDADE

CRISTÃ

Organização: Nelson Bomilcar

GRADUAÇÃO
Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor Executivo de EAD
William Victor Kendrick de Matos Silva
Pró-Reitor de Ensino de EAD
Janes Fidélis Tomelin
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Diretoria Executiva
Chrystiano Mincoff
James Prestes
Tiago Stachon
Diretoria de Graduação e Pós-graduação
Kátia Coelho
Diretoria de Permanência
Leonardo Spaine
Diretoria de Design Educacional
Débora Leite
Head de Produção de Conteúdos
Celso Luiz Braga de Souza Filho
Head de Curadoria e Inovação
Tania Cristiane Yoshie Fukushima
Gerência de Produção de Conteúdo
Diogo Ribeiro Garcia
Gerência de Projetos Especiais
Daniel Fuverki Hey
Gerência de Processos Acadêmicos
Taessa Penha Shiraishi Vieira
Gerência de Curadoria
Carolina Abdalla Normann de Freitas
Supervisão de Produção de Conteúdo
Nádila Toledo

Coordenador de Conteúdo
Roney de Carvalho Luiz
Qualidade Editorial e Textual
Daniel F. Hey, Hellyery Agda
Iconograia
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Isabela Soares Silva
Distância. BOMILCAR, Nelson.
Projeto Gráico
Espiritualidade Cristã. Nelson Bomilcar (Org.). Jaime de Marchi Junior
Reimpressão - 2019 José Jhonny Coelho
Maringá-Pr.: UniCesumar, 2018. Arte Capa
305 p. Arthur Cantareli Silva
“Graduação - EaD”.
Editoração
1. Espiritualidade. 2. Cristã . 3. EaD. I. Título. Matheus Felipe Davi
Victor Augusto Thomazini
CDD - 22 ed. 201
CIP - NBR 12899 - AACR/2
ISBN: 978-85-459-1049-7

Ficha catalográica elaborada pelo bibliotecário


João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828
Impresso por:
Viver e trabalhar em uma sociedade global é um
grande desaio para todos os cidadãos. A busca
por tecnologia, informação, conhecimento de
qualidade, novas habilidades para liderança e so-
lução de problemas com eiciência tornou-se uma
questão de sobrevivência no mundo do trabalho.
Cada um de nós tem uma grande responsabilida-
de: as escolhas que izermos por nós e pelos nos-
sos farão grande diferença no futuro.
Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar
assume o compromisso de democratizar o conhe-
cimento por meio de alta tecnologia e contribuir
para o futuro dos brasileiros.
No cumprimento de sua missão – “promover a
educação de qualidade nas diferentes áreas do
conhecimento, formando proissionais cidadãos
que contribuam para o desenvolvimento de uma
sociedade justa e solidária” –, o Centro Universi-
tário Cesumar busca a integração do ensino-pes-
quisa-extensão com as demandas institucionais
e sociais; a realização de uma prática acadêmica
que contribua para o desenvolvimento da consci-
ência social e política e, por im, a democratização
do conhecimento acadêmico com a articulação e
a integração com a sociedade.
Diante disso, o Centro Universitário Cesumar al-
meja ser reconhecido como uma instituição uni-
versitária de referência regional e nacional pela
qualidade e compromisso do corpo docente;
aquisição de competências institucionais para
o desenvolvimento de linhas de pesquisa; con-
solidação da extensão universitária; qualidade
da oferta dos ensinos presencial e a distância;
bem-estar e satisfação da comunidade interna;
qualidade da gestão acadêmica e administrati-
va; compromisso social de inclusão; processos de
cooperação e parceria com o mundo do trabalho,
como também pelo compromisso e relaciona-
mento permanente com os egressos, incentivan-
do a educação continuada.
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quando
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou
proissional, nos transformamos e, consequentemente,
Diretoria de
transformamos também a sociedade na qual estamos
Planejamento de Ensino
inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu-
nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de
alcançar um nível de desenvolvimento compatível com
os desaios que surgem no mundo contemporâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
Diretoria Operacional
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
de Ensino
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica
e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con-
tribuindo no processo educacional, complementando
sua formação proissional, desenvolvendo competên-
cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em
situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado
de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal
objetivo “provocar uma aproximação entre você e o
conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento
da autonomia em busca dos conhecimentos necessá-
rios para a sua formação pessoal e proissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cresci-
mento e construção do conhecimento deve ser apenas
geográica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita.
Ou seja, acesse regularmente o Studeo, que é o seu
Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns
e enquetes, assista às aulas ao vivo e participe das dis-
cussões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe
de professores e tutores que se encontra disponível para
sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de
aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranqui-
lidade e segurança sua trajetória acadêmica.
APRESENTAÇÃO

ESPIRITUALIDADE CRISTÃ

SEJA BEM-VINDO(A)!
Nas palavras de Renato Fleischner , uma das tarefas mais difíceis (e não menos prazerosa)
de um editor é selecionar e recomendar o que será publicado. No processo de aquisição
editorial, centenas de manuscritos nacionais e de títulos internacionais são garimpadas
a im de levar a você o que se julga ser o melhor conteúdo disponível, no campo de
conhecimento que o autor se propõe. Trata-se de um processo que exige que o editor
esteja permanentemente com as “antenas ligadas” para captar as grandes questões
do indivíduo, da Igreja e da sociedade. A leitura de jornais, revistas, livros, websites e
muitas conversas com formadores de opinião fazem parte de um elenco de atividades
fundamental para identiicar o que você, leitor ou leitora, deseja e precisa para seu
conhecimento, ediicação, entretenimento ou formação.
Uma dessas questões refere-se à atual situação da Igreja. Os caminhos que a Igreja
Evangélica vem trilhando no Brasil nos inquietam. A despeito do festejado crescimento
(inlacionado pelos bons e velhos números evangelásticos), a luidez doutrinária, o
desapego à ética e a inversão de valores que sempre nos foram caros transiguram o
conceito do que é ser evangélico.
Os estragos já começam a se fazer sentir. Envolvidos num ambiente de fortíssima
concorrência, cuja audiência dominical é ansiada como um índice do IBOPE, pastores
esmeram-se como grandes apresentadores de um show recheado de efeitos especiais
e boa trilha sonora. A eloquência da palavra, associada à exploração do emocional, faz
do culto um circo, uma oportunidade única para a catarse. Reforçam o individualismo e
jogam por terra a experiência comunitária, que outrora dava sentido único ao ser parte
de um “corpo”.
Se é verdade que existe um sentimento de inquietação com os rumos que a Igreja e
nossa religiosidade vêm trilhando, O livro dessa disciplina de Espiritualidade Cristã: O
melhor da espiritualidade brasileira acena com a possibilidade da esperança. A seleção
de autores convidada para reletir conosco sobre os vários aspectos da espiritualidade
cristã representa uma pequena fatia dos pensadores que reúnem os valores que a Igreja
Evangélica brasileira conseguiu despertar. É gente capacitada, motivada, vocacionada e
ungida para gritar em alto e bom som que podemos nos achegar a Deus e tê-lo como o
centro de nossa vida.
Certa vez, o salmista declarou que sua alma ansiava e suspirava por Deus, e que seu
prazer era estar na presença de Deus, do Deus vivo. Quando pensei em adotar esse
livro como base para a disciplina de Espiritualidade Cristã, imaginei esta coletânea de
ensaios, tinha como alvo motivar os alunos e alunas a voltar-se para Deus, e não para
a promessa de bênçãos, por mais necessária que seja. Como bem colocar o Renato no
texto de apresentação desse mesmo livro da Editora Mundo Cristão: queríamos dizer
que Deus quer nos aceitar como somos e, como um pai amoroso que chama o ilho
sapeca para sentar-se no colo, o Senhor toma cada um de seus ilhos no aconchego de
seus braços e conversa amorosamente com ele.
APRESENTAÇÃO

O melhor da espiritualidade brasileira resgata a importância crucial da imago Dei,


do sentido maior do acolhimento e da aceitação, do resgate da dignidade que o
Criador concedeu em sua misericórdia à criatura. Seus autores e editores esperam
contribuir para colocar ordem no caos desta irreconhecível Igreja Evangélica e desta
desigurada religiosidade.
Finalmente, quero agradecer ao editor da Mundo Cristão, Renato Fleischner e a
Nelson Bomílcar, o professor da disciplina e o organizador desse livro. Ambos foram
imprescindíveis na cessão dos direitos do conteúdo do livro para nosso curso de
teologia da Unicesumar. O Nelson Bomilcar ajudou a compor a seleção de ensaístas
e a organizar os temas.
Agradecemos também a todos os ensaístas não apenas por dedicar muitas horas a
escrever seus ensaios, mas também pelo privilégio de tê-los de forma indireta como
professores em nosso curso. Você, aluno e aluna, é privilegiado em ter nas mãos o
que há de melhor da espiritualidade brasileira.

Roney de Carvalho Luiz


Coordenador de Conteúdo
09
SUMÁRIO

UNIDADE I
O QUE É ESPIRITUALIDADE?

13 O que é Espiritualidade?

34 A Espiritualidade e a Transformação Pessoal

54 A Espiritualidade e a Vida Devocional

67 A Espiritualidade e a Experiência Cotidiana

UNIDADE II

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA

95 A Espiritualidade e a Ética Cristã

111 A Espiritualidade e a Família

121 A Espiritualidade e a Experiência Comunitária

136 A Espiritualidade e a Identidade Evangélica Nacional

UNIDADE III
A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO

155 A Espiritualidade e a Grande Comissão

171 A Espiritualidade e a Missão Integral

186 A Espiritualidade na História da Igreja Evangélica Brasileira


10
SUMÁRIO

UNIDADE IV
A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA

207 A Espiritualidade e a Adoração

222 A Espiritualidade nas Escrituras

238 A Espiritualidade a Formação Pastoral

UNIDADE V
A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS

257 A Espiritualidade e as Finanças

275 A Espiritualidade e o FeminIno

290 A Espiritualidade e a Identidade Negra


Ricardo Barbosa de Souza
Isabelle Ludovico
Elben Lenz César
Ed René Kivitz

I
UNIDADE
O QUE É ESPIRITUALIDADE?

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ O que é espiritualidade?
■ A espiritualidade e a transformação pessoal
■ A espiritualidade e a vida devocional
■ A espiritualidade e a experiência cotidiana
13

Ü DESAFIO BÍBLICO DA
O QUE É ESPIRITUALIDADE?
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
O DESAFIO BÍBLICO DA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ

�Ricardo Barbosa de Souza 1


Estudou na Faculdade
Teológica Batista de
Brasília e teologia
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

espiritual com o
dr. James Houston,
Não é fácil definir ou conceituar a espiritualida­
no Canadá.
Coordena o Centro de. Embora seja uma expressão religiosa que, a prin­
Cristão de Estudos - cípio, tenha a ver com o relacionamento de Deus com
ccE e atua cono pastor o ser humano, tornou-se, na cultura moderna, um
da Ireja Presbiteriana termo abstrato, vago e presente em quase todos os
do Planalto, em
segmentos da vida: da religião à economia, da ecolo­
Brasília (oF).
gia ao mundo dos negócios. Para entender melhor o
É articulista e autor
que significa espiritualidade nos dias atuais, precisa­
dos livros O caho
do coação - nsaios mos associá-la a outras duas expressões que se en­
sobre a ndade e contram intimamente conectadas: subjetividade e
espiriuaiade crstã e pós-modernidade. Juntas, elas formam o tripé para a
Janelas para a vida. compreensão da cultura contemporânea.
O mundo moderno era racional, científico, positi­
vo. Acreditava na bondade natural do ser humano.
Era um mundo de certezas e de sólidas convicções.
Porém, após duas guerras mundiais e uma infini­
dade de conlitos étnicos, políticos e econômicos,
esta era de certezas deu lugar a um espírito cínico e
desiludido. O mundo pós-moderno é o mundo do
desencanto, da decepção, da desilusão. das incerte­
zas. Emocionalmente, a modernidade refletiu o pro­
gresso, o otimismo, a confiança na tecnologia. O
pós-moderno é o oposto - é negativo. irracional e

13
O que é Espiritualidade?
14 UNIDADE I

subjetivo. O rápido processo de secularização, o avan ço tecn ológico, o rom -


pim en to com as tradições, a relativização dos valores e dos costum es, o
fortalecim en to do in dividualism o e a quebra do con sen so social apresen ta-
ram um a n ova agen da para a sociedade.
A reação con tra a objetividade e a m en talidade cartesian a, racion al e
cien tífica do m un do m odern o gerou um n ovo espírito, m ais subjetivo e in -
dividualista. A relativização m oral criou um a n ova form a de ateísm o: o da
irrelevância de D eus e um a form a de espiritualidade subjetiva sem nen hum
fun dam en to bíblico ou histórico. A realidade vem se torn an do m ais abstra-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ta e virtual, e a estética é a n ova base da iden tidade e da afirm ação pessoal.
U m a vez que a tradição foi descartada e vivem os a falên cia das estruturas
fam iliares e a burocratização das in stituições, n ão tem os m ais um juiz para
julgar os valores, m as um espírito in dividualista, cín ico e altam en te in dul-
gen te. Se, n o passado, levávam os n ossas questões para serem julgadas n o
tribunal da razão e da sã doutrina, hoje elas são arbitradas na jurisdição das
em oções e dos sen tim en tos. O critério que valida a experiên cia é o bem -
estar pessoal.
É den tro deste cen ário que surge o term o “espiritualidade”, estabelecen -
do um a n ova agen da para a Igreja. Espiritualidade tem a ver com o n ovo
estado de espírito do m un do pós-m odern o. Falar em espiritualidade, se-
gun do Jam es H ouston , é falar sobre a revolta do espírito humano ao aprisio-
namento que a cultura racional impôs sobre a civilização ocidental, levando-a
a olhar para a vida apen as n a perspectiva superficial da ótica cien tífica. O
ser pós-m odern o n ão aceita m ais viver sob esta ótica estreita e lim itada da
cultura racion al, m as, paradoxalmente, sua luta contra o aprision am en to da
superficialidade racion al o levou a um n ovo estado de alien ação e superfi-
cialidade, fruto do subjetivism o e do in dividualism o im pessoal.
Espiritualidade é o tem a da agen da religiosa do século XXI. Está presen te
em todos os en con tros, debates e discussões. N ão apen as n o un iverso evan -
gélico, m as tam bém n os âm bitos cultural, em presarial, econ ôm ico, político
etc. Todos con versam sobre o assun to, falam de suas experiên cias, descre-
vem seu m om en to espiritual. Em presas preocupam -se com o estado espiri-
tual de seus executivos, oferecen do cursos e palestras para elevar o espírito

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
15

e m elhorar o ren dim en to profission al. Livros e revistas especializados n o


assu n t o su rgem a cad a d ia. En t ret an t o, com o afirm a Eu gen e Pet erson ,
qu an d o t od os seu s am igos com eçam a con versar sobre colest erol, com -
p aran d o taxas, trocan do con selhos, sugerin do rem édios e chás, você logo
percebe que este é um m au sin al. Algum a coisa n ão vai bem . D a m esm a
form a, quan do vem os e ouvim os m uita gen te con versan do e len do sobre
espiritualidade, isto n os leva a pen sar que a alm a de n osso povo n ão an da
bem ; está en ferm a.
A segun da m etade do século XX foi m arcada por várias rebeliões e pro-
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testos. O m ovim en to hippie dos an os 1960 e 1970 protestou con tra a re-
pressão sexual e a guerra do Vietn ã, levan tan do a ban deira do am or livre,
das viagen s lisérgicas, da quebra dos precon ceitos e tabus. O m ovim en to
feminista lutou pelos direitos das mulheres contra uma sociedade machista,
que n ão apen as oprim ia, m as impunha sobre elas um modelo social, econ ô-
m ico e político m asculin o, abrin do as portas para que se torn assem prota-
gon istas do processo social, e n ão apen as coadjuvan tes.
N o cam po político, o fim dos an os 1980 foi m arcado pela Perestroika
(“Reestruturação” ou “Recon strução”) e pela Glasnost (“Tran sparên cia” ou
“Abertura”), a queda do m uro de Berlim , o colapso das estruturas políticas
totalitárias e o surgim en to do n eoliberalism o da econ om ia globalizada. A
ecologia tam bém con quistou sua agen da, levan do a sociedade m odern a a
recon siderar a n atureza com o fon te de vida, e n ão apen as com o um a usin a
inesgotável de riquezas, provocando, em alguns segmentos sociais, um novo
tipo de pan teísm o.
O surgim en to dos livros de auto-ajuda e a descoberta da in teligên cia
emocional abriram um novo espaço nos núcleos que, até pouco tempo atrás,
eram dom in ados pelos tecn ocratas. O s avan ços tecn ológicos n os cam pos
da com un icação e da gen ética escan cararam as portas de um a n ova realida-
de, cujas perspectivas fogem ao con trole da ética, colocan do o ser hum an o
dian te de um n ovo tem po de in certezas.
N o m un do evan gélico, t ivem os a ren ovação carism át ica dos an os 1960,
o m ovim en to da m úsica gospel n o fim d os an os 1 9 8 0 e in ício d a d écad a
d e 1990, e o surgim en to das igrejas n eopen tecostais ou pós-pen tecostais,

O que é Espiritualidade?
16 UNIDADE I

com su a frágil con sist ên cia t eológica e d ou t rin ária, m as com fort e ap elo
em ocion al e social, trazen do n ovos con torn os e n ovas defin ições aos velhos
paradigm as da fé cristã.
Todas essas coisas são m an ifestações de protesto do espírito hum an o,
que brada esta m en sagem : existe uma realidade mais profunda que a leitura
superficial do racion alism o im pessoal. Era isto que Pascal defen dia n o sé-
culo XVII , quan do afirm ou que “o coração tem razões que a própria razão
descon hece”. Foi tam bém o que a revolu ção in iciad a p or Freu d n o fim do
sécu lo XIX qu is m ost rar. Assim , a esp irit u alid ad e t em uma relação estreita

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com o espírito humano pós-m odern o em seu protesto con tra o racion alism o
alien an te, m as desen volveu n ovas form as de alien ação e superficialidade.
Ao falar de espiritualidade den tro do con texto da experiên cia espiritual
cristã e evangélica — propósito dom inante deste livro —, devem os levar em
con ta esse cen ário porque, m esm o que ten ham os um a lon ga história e tra-
dição, bem com o sólida bagagem teológica e doutrin ária, som os herdeiros
da cultura ilum inista, e fom os tam bém atingidos pelo processo alienante da
cultura m odern a e pós-m odern a.
A Reform a Protestan te — an corada n o Ren ascim en to e, posteriorm en -
te, n o Ilum in ism o — trouxe, sem dúvida, um a gran de con tribuição e um
avan ço teológico e espiritual para o cristian ism o. Libertou m uitos cristãos
da opressão da ign orân cia e da superstição do fim da Idade M édia, e apon -
tou um cam inho fundam entado nas Escrituras Sagradas, n a sã doutrin a, n a
cen tralidade de Cristo e sua obra expiat ória, n a su ficiên cia d e su a graça,
n a soberan ia de D eus sobre toda a Criação. A Reform a Protestan te do
século XVI deu ao cristian ism o um a gran de e sólida con tribuição, ao estabe-
lecer as bases da fé cristã.
A exigên cia de um a fé articulada n a esfera da razão trouxe vários desdo-
bram en tos ao estudo teológico, e deu à Teologia Sistem ática o hon roso
título “rain ha das teologias”, pois con hecer a D eus im plicava dom in ar os
dogm as da fé. O conhecim ento passou a ser um atributo exclusivo da razão.
Enquanto, nos prim eiros séculos da era cristã — tan to para os pais da Igreja
com o para os pais do D eserto —, o con hecim en to e o relacion am en to eram
in separáveis, para a era m odern a torn aram -se realidades distin tas. Para os

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
17

pais da Igreja, con hecer a D eus im plicava am á-lo e relacion ar-se com ele. A
Teologia e a oração n ão eram tarefas distin tas. N o período pré-m odern o,
não vemos uma separação entre o conhecimento e o relacionamento. Gregório,
o Gran de, do século VI , já afirm ava que “am or é con hecim en to”.
Se olharm os para as obras de Irin eu e O rígen es, do Segun do e do Tercei-
ro séculos; Agostin ho e os irm ãos da Capadócia, do século IV ; Ben edito e
Gregório, do Sext o; Sim eão, o N ovo Teólogo do D écim o; Bern ardo de
Clairveaux e Ricardo de São Victor, do século XII ; Boaven tura, do D écim o-
terceiro; Walter H ilton , do século XIV ; e m uitos outros, verem os que, para
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

todos eles, con hecim en to e am or, doutrin a e devoção, teologia e oração


eram a m esm a coisa. Sua teologia era, de certa form a, o relato da própria
experiên cia com D eus. As Confissões de Agostin ho, as R egras monásticas de
Ben edito, o Cuidado pastoral de Gregório, as O rações de Sim eão, os com en -
tários de Can tares e outros escritos de Bern ardo, en fim , todos eram expres-
sões de um a fé pessoal, de am or por D eus, de um a vida de oração. N ão
havia o divórcio en tre Teologia e espiritualidade. Evagrius Pon ticus, do sé-
culo IV , afirm ou: “O rar é fazer teologia.” A Teologia em ergia da oração. N ão
eram diferen tes en tre si.
O divórcio en tre a Teologia e a espiritualidade surge n o fim da Idade
M édia, com o escolasticism o. Se, de um lado, Gregório afirm ava, n o século
VI , que am or é con hecim en to, Tom ás de Aquin o, n o século XIII , passa a
distin guir o con hecim en to de D eus, que surgia do am or e da relação com o
Criador, daquele que era propriam en te cien tífico e dogm ático.
A partir do século XVI , vem os que a separação en tre a Teologia e a vida
espiritual e devocion al gan ha corpo, à m edida que se torn a cada vez m ais
subdividida. O Iluminismo gerou um novo tipo de teólogo: aquele que nunca
orou porque, para ser teólogo, bastava dom in ar as ciên cias da religião. O
hon roso título de “doutor em Teologia” n ecessariam en te n ão defin e m ais,
n a cultura m odern a, alguém que ten ha um a relação pessoal com D eus, que
cultive um a espiritualidade pessoal e m adura ou que “an de n os cam in hos
do Sen hor”. Para ter este título, basta ser um alun o in teligen te e disciplin a-
do, percorrer os corredores e as bibliotecas das academ ias, escrever teses,
en saios, m on ografias e dem on strar dom ín io da ciên cia teológica.

O que é Espiritualidade?
18 UNIDADE I

Chegam os ao fim do século XX com um sen tim en to de fracasso, vazio,


descrença e desilusão. N ossos avanços sistem áticos na Teologia foram gran-
des e de um a en orm e con tribuição para a Igreja e a fé cristã. N o en tan to,
falham os n a con strução de um a gram ática que estabelecesse um a relação
real en tre o que professam os crer e a vida. A gram ática teológica, para m ui-
tos, é diferen te da gram ática da vida. A crise espiritual é fruto da ausên cia
de gram ática. D a m esm a form a com o precisam os de um a gram ática para
dar sen tido à lin guagem , precisam os de um a gram ática que dê sen tido à fé.
Con hecer a D eus im plica “am á-lo de todo coração, alm a e en ten dim en -

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
to”. Isto en volve a totalidade da vida, m en te e coração em com un hão pes-
soal com D eus, e sign ifica que o con hecim en to n ão pode ser divorciado do
relacion am en to, n em a Teologia pode cam in har sem a oração. O apóstolo
Paulo n os diz que a sã doutrin a é im portan te, n ão para n os dar títulos ou
tem as para teses, m as para n os torn ar sábios para a salvação.
É den tro desse con texto de fracasso, vazio e descren ça que tom ou con ta
de n ossa civilização n a segun da m etade do século XX que vários m ovim en -
tos espirituais, muitos deles de natureza esotérica, surgiram buscando aquilo
que as gran des ideologias racion alistas falharam em proporcion ar ao ser
hum an o. Esta é a aren a n a qual o cristian ism o en fren ta seu gran de desafio.
D e um lado, há o desafio teológico de preservar os fun dam en tos da fé,
estabelecer alicerces teológicos e doutrin ários e con struir as bases da espiri-
tualidade cristã. D o outro, o desafio espiritual de con siderar as dem an das e
os an seios do espírito hum an o e resgatar o lugar e o sign ificado da oração e
d o relacion am en t o p essoal com D eu s e su a C riação. Segu n d o Jam es
H ouston , o desafio que tem os é duplo, pois sign ifica buscar um a teologia
m ais espiritual e um a espiritualidade m ais teológica.

POR UMA TEOLOGIA MAIS ESPIRITUAL


Precisam os de um a teologia que n os desperte para um relacion am en to pes-
soal e verdadeiro com D eus. Em outras palavras, um a teologia e um a lin -
guagem teológica que n os apon te o cam in ho da oração; que n os con duza e
in spire a “am ar a D eus de todo coração, alm a e en ten dim en to”; que seja
m ais pessoal, afetiva e com un itária, e n ão apen as acadêm ica.

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
19

É lam en tável con statar que m uitos estudan tes de Teologia que en tram
para um sem in ário m otivados por um profun do am or por D eus e desejo de
servi-lo, depois de quatro ou cin co an os de estudo saem m ais cín icos em
relação a D eus e à Igreja, oran do m en os, afetivam en te atrofiados e m ais
lim itados, em term os relacion ais, que ao en trarem . Por que o lugar de for-
m ação teológica n ão é, tam bém , o lugar de form ação espiritual? Por que a
relação en tre a profun didade acadêm ica e teológica e a profun didade espi-
ritual e devocion al perm an ece, para m uitos, in con ciliável?
Certam en te n ão cum pre com seu papel uma teologia que não nos motive
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

à oração; que n ão n os desperte para am ar ao D eus Triún o da graça e a sua


Palavra de todo coração, alm a e m en te; que n ão n os torn e m ais com passi-
vos e afetuosos p ara com o próximo; que não nos faça compreender e discer-
nir o pecado e n os con duza ao arrepen dim en to e à con fissão, que n ão n os
en volva com un itariam en te; e que n ão n os leve a ter sede e fom e de justiça.
D eus nos cham a para participar da eterna com unhão que o Pai, o Filho e
o Espírito San to gozam . Jesus n os apresen ta este con vite em sua oração
sacerdotal, quan do suplica, dizen do: “A fim de que todos sejam um ; e com o
és tu, ó Pai, em m im e eu em ti, tam bém sejam eles em n ós; para que o
m un do creia que tu m e en viaste. Eu lhes ten ho tran sm itido a glória que m e
ten s dado, para que sejam um , com o n ós o som os” (Jo 17:21-22; ARA).
Este relacion am en to é a razão prim eira e últim a da Teologia. Todo o
esforço da Igreja, todo o labor teológico, toda a eficiên cia do discipulado
devem , em últim a in stân cia, n os con duzir à com un hão trin itária. Q uan do
pergun taram a Jesus qual era o m aior de todos os m an dam en tos, sua res-
posta apon tou para um a dim en são relacion al e afetiva: “Am ar a D eus sobre
todas as coisas e ao próxim o com o a n ós m esm os.” Este era o fim da Teolo-
gia, a razão de ser dos m an dam en tos e das profecias. O apóstolo João n os
dá a resposta m ais sim ples e, ao m esm o tem po, m ais profun da sobre o
con hecim en to de D eus. Ao afirm ar que “D eus é am or”, ele defin e a n ature-
za pessoal e relacion al do D eus Bíblico.

U m a teo lo gia m ais espiritual deve o cupar-se co m a co nversão inte-


gral, e não so m ente com a conversão das convicções. Para a mentalidade

O que é Espiritualidade?
20 UNIDADE I

racion al e cartesian a, o que im porta é a con versão das con vicções, do pen -
sam en to ou das cren ças. É certo que a con versão pressupõe um a m udan ça
de con vicções, m as, seguram en te, im plica m uito m ais que isto. Julia Gatta,
escreven do sobre o pen sam en to de Walter H ilton , cristão que viveu n a In -
glaterra no século XIV , mostra sua preocupação com o que chamava “conver-
são das em oções”.

A t ot alid ad e d o ser est á en volvid a n o p rocesso d e u n ião com C rist o.


Tan to n ossa m en te com o n ossos sen tim en tos precisam cam in har em dire-
ção à con versão, à progressiva purificação e, fin alm en t e, à t ran sform a-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ção. A ren ovação in telectual, se n ão é m ais fácil, n o m ín im o é um assun to
relativam en te m ais sim ples com parado com a reden ção da afetividade. A
em oção, especialm en te a em oção religiosa, é um fen ôm en o com plexo. O
fruto do Espírito n ão pode ser igualado a um sim ples “sen tir-se bem ” [...]
Com o em t odos os out ros aspect os da n at ureza h um an a, a afet ividade
precisa ser in t erpret ada, disciplin ada e, fin alm en t e, redim ida. 1

O racion alism o preocupou-se com as con vicções. A psican álise veio n os


m ostrar que a fé apresen ta um a com plexidade em ocion al e psíquica m aior
que im agin am os. C.S. Lewis já dizia que a fé está m uito m ais relacion ada
às em oções que à razão.
Sabem os que a con versão en volve a totalidade da vida, com o o pecado e
a queda corrom peram todos os aspectos da existência humana. N o entanto,
a herança iluminista destacou a conversão das convicções como sendo a expe-
riên cia cristã por excelên cia. Para m uitos, a con versão sign ifica apen as um a
mudança de mentalidade religiosa. Contudo, quando olhamos para os evan-
gelhos e, particularmente, para os encontros de Jesus, percebemos que o foco
do M estre n ão estava apen as n as con vicções, m as n a gram ática da vida.
U m exem plo claro dessa preocupação está n o en con tro de Jesus com o
“jovem rico”. Ele se apresen ta com o um a pessoa de con vicções claras e
sólidas. D esde a infância, aprendera e guardara os mandamentos, mas, para
Jesus, faltava-lhe algo fun dam en tal: am ar a D eus e ao próxim o de todo
coração — um am or que o libertaria da tiran ia de seu egoísm o.
O u t ro en con t ro qu e n os aju d a a en t en d er a t ot alid ad e d a con versão
foi o de Jesus com o publican o Zaqueu. Em sua con versa reservada com o

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
21

M estre, Zaqueu responde não com um conjunto de declarações confessionais


e dogm áticas sobre a fé, m as com um gesto que deixa claro para Cristo que
ele com preen dera a n atureza do Evan gelho da salvação. Jesus estava m ais
aten to à gram ática da vida que declarações apen as form ais, racion ais e
dogm áticas da fé.
Precisam os da Teologia, e verem os isto m ais adian te, m as precisam os
tam bém in tegrar a Teologia com a vida. Para isso, ela precisa ser m ais espi-
ritual. N ão sign ifica espiritualizar a Teologia, m as recon hecer sua pessoali-
dade e o sign ificado da en carn ação n a pessoa de Cristo. A en carn ação tira a
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Teologia da prateleira e a coloca n o coração, n a m en te, n os relacion am en -


tos, n a vida, n as decisões, n os afetos, n as paixões, n as escolhas, en fim , em
tudo. Torn ar a Teologia m ais espiritual é torn á-la m ais pessoal, m ais com u-
n itária, m ais m ission ária.

U m a teo lo gia espiritual deve valo rizar m ais a santidade e a sabedo -


ria. O m un do m odern o produziu in telectuais brilhan tes; o pós-m odern o
vem produzin do técn icos extraordin ários. N o en tan to, em am bos perde-
m os o lugar do sábio ou do san to. É curioso n otar que o san to do passado
foi substituído pelo teólogo ou pelo especialista do presen te. O m un do m o-
dern o, ao recon hecer com o verdadeiro apen as o que é racion al, acabou n e-
gan do o lugar da sabedoria e a im portân cia do “san to”, valorizan do m ais o
cien tista e o in telectual.
Já o m un do pós-m odern o, dian te dos avan ços tecn ológicos e suas ferra-
m en tas, que criam as possibilidades e a fun cion alidade, valorizou m ais o
“fazer” que o “ser”, in verten do a con tem plação pela ação, e trocou a sabe-
doria pela tecn ologia. Tem os hoje ferram en tas técn icas para fazer um a igre-
ja crescer, para organizar um programa de discipulado em cinco ou dez lições
(depen den do da disposição do freguês), para torn ar um casam en to feliz e
bem -sucedido, para m elhorar o desem pen ho sexual, para fazer do pastor
um m in istro de sucesso etc. O s recursos tecn ológicos para a adoração ou
para criar am igos apen as m ostram quan to tem os n os torn ado tecn ocratas
im pessoais e alien ados, pragm áticos obcecados com o resultado e a fun cio-
nalidade.

O que é Espiritualidade?
22 UNIDADE I

O “san to” ou “sábio” era alguém que, além de dom in ar a ciên cia, pos-
suía tam bém o discern im en to das com plexidades da alm a hum an a, das es-
truturas sociais, e perm an ecia m ais preocupado com a pessoa que com seus
papéis, m ais en volvido com o ser que com suas fun ções ou seu sucesso.
Agost in h o falava d o “d u p lo con h ecim en t o”: o con h ecim en t o d e D eu s e
d e n ós m esm os. Ele escreve em seu s S olilóquios: “Perm it a-m e con hecer a
ti ó D eus, perm ita-m e con hecer a m im , isto é tudo.”
Para Agostin ho, con hecer a D eus im plicava con hecer-n os. O con heci-
m en to de D eu s e o au t ocon h ecim en t o eram in sep aráveis, d an d o ao t eó-

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logo sabedoria capaz de pen etrar n os m istérios de D eus e n os m istérios da
alm a hum an a. En tretan to, um a teologia que n os leva a con hecer apen as a
D eus, e cujo con hecim en to n ão n os leva de volta ao discern im en to da pró-
pria alm a, deixa de ser revelação para ser apen as um a ciên cia.
Jesus foi um M estre que n ão apen as expun ha as Escrituras e revelava a
n atureza do Pai, m as desn udava o espírito hum an o e revelava os segredos
m ais ín tim os do coração. Jesus era um san to, um sábio, um m estre, um
m en tor. U m a teologia m ais espiritual despertará em n ós um desejo por
D eus que n ão será m edido apen as pelo volum e de livros que lem os, n em
pela quan tidade de teses publicadas ou graus adquiridos, m as será determ i-
n ado pela sabedoria que a vida em Cristo, alim en tada e in spirada pelas
Sagradas Escrituras e con duzida pelo poder do Espírito San to, n os forn ece.
A partir de Cristo, podem os pergun tar: quem é o verdadeiro teólogo?
Aquele que defen deu um a brilhan te tese de doutorado, escreveu o m elhor
livro e estudou n as m elhores escolas? O u aquele que, em Cristo, dá sen tido
à vida con fusa e desestruturada das pessoas? Precisam os recuperar o lugar
da san tidade e da sabedoria n a Teologia. A esterilidade da academ ia precisa
dar lugar à com paixão, ao en volvim en to pessoal, à devoção e à com un hão.
É curioso n otar que m uitos teólogos aban don am ou trocam o pastorado,
seja ele institucional ou não, pela academ ia devido a sua incapacidade de se
relacion ar com as pessoas, ou m esm o con sigo. A con seqüên cia é o cin ism o,
fortem en te presen te n as in stituições teológicas.

U m a teologia espiritual deve ser m ais co ntem plativa. Segundo Eugen e


Peterson , tem os um a ten dên cia a olhar para a vida com a ótica jorn alística.

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
23

Buscam os o gran de, valorizam os o extraordin ário, exaltam os o glam oroso.


A espiritualidade pós-m odern a é assim : glam orosa e pragm ática. O con cei-
to de “bên ção” torn ou-se sin ôn im o de sucesso, gran des experiên cias, acon -
t ecim en t os fan t ást icos. Só se recon h ece com o verdadeiro aquilo que é
pragm ático. N a cultura m odern a, n ão há espaço para a con tem plação.
A visão jorn alística e pragm ática da realidade é um fen ôm en o pós-m o-
dern o. Q uerem os igrejas gran des e fun cion ais, m in istérios bem -sucedidos e
técn icas de marketing poderosas. A presen ça de D eus n a vida n ão é recon he-
cida pela com un hão, pela am izade e pela adoração, m as pela capacidade
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produtiva, pelas experiên cias fan tásticas, pela saúde física e pelo sucesso
econômico.
As págin as dos evan gelhos e as m elhores tradições cristãs, n o en tan to,
n os en sin am que a graça de D eus é din âm ica. Ela atua n os acon tecim en tos
sim ples e rotin eiros do dia-a-dia. Precisam os de um a teologia que n os aju-
de a perceber e a valorizar aquilo que D eus está realizan do em n ós, e n ão
som en te aquilo que fazem os para o Sen hor. U m a teologia que n os en sin e a
valorizar o in visível e o in tan gível.
A con tem plação e a im agin ação sem pre ocuparam um lugar fun dam en -
tal n a form ação espiritual do povo de D eus. Gran de parte do en sin o de
Jesus deu-se através de parábolas e histórias que levavam as pessoas a im a-
gin ar a riqueza do Rein o de D eus e o propósito da reden ção. O s lírios do
cam po, as aves do céu, a casa sobre a rocha, a videira ou a ovelha perdida
são im agen s que n os con vidam à con tem plação, e n ão à form ulação m ate-
m ática da fé.
O apóstolo Paulo, dian te das dificuldades, perseguições e tribulações
que en fren tou em seu m in istério, n ão se deixou abater pelas lutas reais e
visíveis. Pelo con trário, preferiu m an ter os olhos fixos “n aquilo que n ão se
vê, porque aquilo que se vê é tem porário, m as o que n ão se vê é etern o”.
Para ele, havia um a realidade n ão visível, m ais verdadeira que as realidades
visíveis. Por causa da con tem plação, ele n ão se deixou abater pelas dificul-
dades visíveis.
O livro do Apocalipse é um con jun to de visões e im agen s que fortalece a
fé e revigora a esperan ça quan do n os deixam os absorver por ele. U m dos

O que é Espiritualidade?
24 UNIDADE I

gran des erros que m uitos teólogos com eteram foi o de ten tar decifrar os
supostos en igm as por trás das im agen s que revelam n ossa m en talidade
cartesian a e a in capacidade de lidar com a poesia. G.K. Chesterton disse
certa vez que “São João, o evan gelista, viu m uitos m on stros estran hos em
sua visão, m as n en hum a criatura foi tão grotesca quan to seus críticos”.
A contem plação nos perm ite reconhecer e valorizar o pequeno e o singe-
lo. O salm ista percebe o valor das coisas pequen as e sim ples ao dizer: “Se-
nhor, não é soberbo o meu coração, nem altivo meu olhar; não ando à procura
de gran des coisas, n em de coisas m aravilhosas dem ais para m im . Pelo con -

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trário, fiz calar e sossegar a m in h a alm a; com o a crian ça d esm am ada se
aquieta n os braços de sua m ãe, com o essa crian ça é a m in ha alm a para
com igo” (Sl 131:1-2; ARA).
Para ele, libertar-se da ótica jorn alística e pragm ática é recon h ecer a
p resen ça d e D eu s n o seu d ia-a-d ia, exp erim en tar o descan so da alm a,
provar o sossego da con fian ça de quem apren deu a crer n o cuidado divin o,
perceber o poder de D eus, seja n um even to extraordin ário ou em outro,
sin gelo e discreto. É isto que sign ifica um “ser espiritual”.

U m a teo lo gia espiritual requer tam bém um a refo rm a na linguagem .


A lin guagem teológica, pela forte in fluên cia que recebeu do ilum in ism o, é
acadêm ica e técn ica. É curioso n otar que gran de parte da Bíblia trabalha
com um a lin guagem poética ou n arrativa. U m a lin guagem que com un ica a
graça de D eus de forma pessoal e toca nas necessidades mais íntimas da alma.
Jesus foi um exím io con tador de histórias. Suas parábolas, m uitas vezes
sem n en hum traço de lin guagem religiosa, ou sequer tocar n o n om e de
D eus, levavam os ouvin tes à profun da reflexão pessoal e à n ecessidade de
um a resposta igualm en te pessoal. D a m esm a form a, as con versas de Jesus
eram sem pre de n atureza bastan te pessoal e profun da. Ao in vés de dar
respostas pron tas, ele levan tava m ais pergun tas. N ão se preocupava em
apresen tar receitas espirituais ou teológicas, m as sem pre procurava tocar
n os pon tos m ais cen trais da vida e da fé.
O apóstolo Paulo, da m esm a m an eira, sem pre procurou um a form a pes-
soal de com un icar a verdade do Evan gelho. O ptou por “orgulhar-se” de

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
25

suas fraquezas, ao in vés de van gloriar-se n as gran dezas das revelações que
havia recebido de D eus. Con hecem os sua teologia através de cartas pessoais
que escreveu a am igos e igrejas. Escreven do a Tim óteo, seu filho n a fé,
Paulo recom en da que n ão apen as lem bre o que apren deu, m as sobretudo
“de quem ” apren deu. A figura de quem en sin a é fun dam en tal n a m em ória
de seu filho n a fé.
Vem os, portan to, que o apóstolo priorizava o pessoal sobre o técn ico.
N ão se trata de reduzir ou sim plificar, e m uito m en os de descon siderar a
im portân cia do estudo e da in vestigação respon sável, acadêm ica e técn ica.
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Sem pre lutam os contra a preguiça intelectual e contra aqueles que insistem
n um a espiritualidade sem raízes e sem teologia. N o en tan to, precisam os
recon hecer que há outra lin guagem que fala ao coração, e n ão apen as à
m en te. Esta lin guagem prom ove e con vida à in tim idade m ais pessoal, m ais
com un itária e m ais viva.
Ao referir-se ao “m aior m an dam en to”, Jesus afirm a que n osso am or por
D eus deve n os en volver por in teiro: alm a, força e en ten dim en to. Am ar é
con hecer. N ão se pode con hecer a D eus sim plesm en te com boas in form a-
ções sobre ele. O con hecim en to de D eus e a com un icação deste con heci-
m en to requerem um relacion am en to pessoal com ele e com aqueles a quem
esta verdade é com un icada.

UMA ESPIRITUALIDADE MAIS TEOLÓGICA

N ecessitam os de um a teologia m ais espiritual, que se ocupe do ser hum an o


de m an eira in tegral, que afirm e a san tidade da vida e do m in istério, que
resgate um a lin guagem m ais pessoal e afetiva. En tretan to, tam bém carece-
m os de um a espiritualidade m ais teológica, que estabeleça fron teiras, que
defin a os con torn os e que firm e os fun dam en tos.
Recon hecem os que há um protesto do espírito hum an o, um a busca pelo
ín tim o, pelo sagrado, por um sign ificado que tran scen da n ossas n arrativas
racion ais, que pen etre e toque a alm a hum an a. N o en tan to, recon hecem os
tam bém que há um a on da espiritual, um a form a de espiritualismo n a cultu-
ra, fortem en te n arcisista, fun dam en tada n a psicologia m odern a e an tropo-
logia egocên trica. Esta on da n ão tem recursos para preen cher as lacun as do

O que é Espiritualidade?
26 UNIDADE I

hom em criado à im agem e à sem elhan ça de D eus. Por um a espiritualidade


m ais teológica, recon hecem os algum as n ecessidades.

U m a espiritualidade trinitária. A doutrin a da Trin dade é o fun dam en to


para a espiritualidade cristã e teologicam en te bíblica. Ela n os revela um
D eus que n os con vida a participar da comunhão que o Pai, o Filho e o Espíri-
to Santo gozam desde toda a eternidade. Ao ser formados à imagem e à se-
melhança de D eus, fomos criados para a comunhão trinitária. Em sua “oração
sacerdotal”, Jesus diz: “Para que sejam um , com o és tu ó Pai em m im e eu

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em ti, sejam eles tam bém em nós.” O convite de Jesus é para que a comunhão
que o Filho e o Pai gozam seja tam bém com partilhada por aqueles que, em
Cristo, foram recon ciliados com D eus pelo poder do Espírito San to.
É por meio da doutrina da Trindade que entendemos a natureza do novo
ser em Crist o. N ossa iden t idade, a part ir da revelação da Trin dade, é
relacion al, e n ão fun cion al. N ão é o que fazem os que defin e n ossa pessoa,
m as o que som os a partir de n ossos relacion am en tos com D eus e com o
próxim o. Som os aquilo que am am os. A Trin dade cria em n ós o ser eclesial
e n os faz com preen der que a con versão é a tran sform ação do “eu” n um
glorioso “n ós”.
A revelação da doutrina da Trindade também nos ajuda a compreender o
sign ificado do con hecim en to. O s pais da an tiga Capadócia diziam : “O ser
de D eus só pode ser con hecido através de relacion am en tos pessoais e do
am or pessoal. Ser significa vida, e vida significa com unhão.” N ão há con he-
cim en to possível do Filho sem a participação do Pai; n em há possibilidade
de con hecim en to do Pai sem a revelação do Filho. Se n ão en ten dem os a
com un hão n o ser trin itário de D eus, n ão podem os con hecer a D eus. “Foi
desta m an eira que o m un do an tigo ouviu pela prim eira vez que é a com u-
n hão que form a o ser; que n ada existe sem ela, n em m esm o D eus” (John
Zizioulas).
É a doutrin a da Trin dade que n os preservará dos riscos de um a espiri-
tualidade que n ão con tem ple a n atureza do D eus criador, reden tor e san ti-
ficador. É a doutrin a da Trin dade que n os guardará de um deus que pode
ser con hecido sem a m ediação de Cristo. O D eus bíblico n ão é qualquer

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
27

deus, mas o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Sem uma gramática trinitária,
toda teologia torn a-se extrem am en te vuln erável e gera um a espiritualidade
sem n en hum fun dam en to bíblico e cristão.

U m a espiritualidade cristocêntrica. O propósito da espiritualidade cristã


é n osso crescim en to em direção a Cristo — em outras palavras, ser con for-
m ados à im agem de Jesus Cristo. N ão se t rata de ajustamento sociológico
ou psicológico, de sen tir-se bem em ocion al ou socialm en te, m as de um pro-
cesso de crescim en to e tran sform ação. A espiritualidade da cultura m oder-
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na, por ser mais individualista e, conseqüentemente, mais narcisista, mudou


o foco da espiritualidade cristã; ao in vés de serm os con vertidos a Cristo, é
Cristo que se tem con vertido a n ós. Perdem os o sign ificado da doutrin a da
imago D ei, a con sciên cia de que fom os criados por D eus e para D eus, e que
somente nele encontramos significado para nossa humanidade corrompida.
Para Paulo, isto sign ifica cam in har em direção à perfeita varon ilidade, à
m edida de estatura de Cristo. En con tram os em Cristo a expressão plen a de
n ossa hum an idade. Con verter-n os a ele sign ifica ter n ossos pen sam en tos e
cam in hos tran sform ados, n ossa hum an idade restaurada, n ossa dign idade
redim ida para viver a nova vida em Cristo. Paulo nos afirm a que a verdadei-
ra vida en con tra-se oculta em Jesus e, por esta razão, devem os buscar e
pen sar n as coisas do alto, on de Cristo vive. O fim da espiritualidade cristã
está n um a hum an idade m adura e com pleta em Cristo.
O utra preocupação é o risco da cultura espiritualista tirar a divin dade de
Cristo, reduzin do-o à categoria de Ghan di, de Buda ou de outro person a-
gem da hum an idade. A globalização resiste à idéia do sacerdócio ún ico de
Cristo. O ser pós-m odern o n ão aceita viver sob a verdade de que Cristo é
“o cam in ho, a verdade e a vida”, e que n in guém vai ao Pai a n ão ser por
m eio dele. Esta realidade ún ica de Cristo é in aceitável n a cultura pós-m o-
dern a. D esta form a, Jesus passa a ser apen as um a boa pessoa, que n os deu
exem plo de com o ser pessoas igualm en te boas, m as n ada m uito além do
que outros tam bém fizeram .
Contudo, um a espiritualidade m ais teológica requer da Igreja a afirm ati-
va da m ediação ún ica de Cristo: sem ele, n in guém con hece o Pai, n em pode

O que é Espiritualidade?
28 UNIDADE I

ser salvo. Precisa, da m esm a form a, afirm ar a cen tralidade da cruz e da


ressu rreição n a exp eriên cia crist ã d e recon ciliação, p erd ão e com un hão
com D eus.

U m a espiritualidade co m unitária. U m a vez que a n atureza de D eus é


relacion al, assim é tam bém a n atureza da pessoa regen erada em Cristo. A
con versão é a tran sform ação do in divíduo em pessoa. O in divíduo é o ser
en capsulado em si m esm o, que se realiza n a autoprom oção. É n arcisista,
con cebe a liberdade apen as em term os de auton om ia e in depen dên cia, e

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recon hece com o verdadeira apen as sua realidade lim itada. A pessoa é o ser
em com un hão, que se realiza n as relações de afeto e am izade. É altruísta,
con cebe a liberdade em term os de en trega, obediên cia e am or doado, e se
abre para a revelação que en con tra fora de si m esm o.
Esta n ova pessoa em Cristo recebe o outro da m esm a form a com o em
Cristo é recebido, e n esta n ova din âm ica a Igreja deixa de ser um clube
religioso, n o qual cada um faz o que quer e com o quer, e escolhe suas am i-
zades de acordo com os in teresses pessoais, para se tran sform ar n um a ver-
dadeira com un idade de irm ãos e irm ãs que se doam m utuam en te n um a
experiên cia real de aceitação e comunhão. N ossas relações deixam de ser de-
term in adas pelas ideologias ou pelos projetos com un s, e passam a ser con s-
truídas den tro da esperan ça escatológica.
O Credo Apostólico afirm a n ossa cren ça em D eus Pai, Criador de todas
as coisas; em seu Filh o Jesu s C rist o, n osso Salvad or; n o Esp írit o San t o;
n a rem issão dos pecados; n a ressurreição; n a vida etern a... e n a Igreja. Ela
faz parte das con vicções básicas do Credo. D a m esm a form a com o precisa-
m os crer em D eus Pai, Filho e Espírito San to, precisam os crer tam bém n a
Igreja com o am bien te de com un hão dos salvos em Cristo. Ela é a com un i-
dade do Rein o que dá visibilidade ao que Cristo fez em sua obra reden tora
no mundo.
C rer n a Igreja en volve m u it o m ais qu e recon h ecer a n ecessid ad e d e
participar de sua m issão. Sign ifica recon h ecer qu e fom os salvos e con st i-
t u ídos com o povo de D eus, um “rein o de sacerdotes”, o “Corpo de Cristo”,
a fim de testem un har a glória de D eus n a história. U m a espiritualidade

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
29

m ais teológica precisa afirm ar a Igreja com o com un idade daqueles que têm
Cristo por seu Sen hor.

U m a espiritualidade centrada na Palavra de D eus. M ais um a vez: o


propósito da espiritualidade cristã é n osso crescim en to em Cristo. É o pro-
cesso de n ossa tran sform ação pela Palavra de D eus, participan do cada vez
m ais da vida em Cristo. O apóstolo Paulo afirm a que, sen do ressuscitados
com Cristo, tem os n ossa vida oculta n ele. Portan to, a vida espiritual n ão é
um processo de ajuste aos valores sociais dom in an tes, m as um cam in ho
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que en volve crise e tran sform ação, n o qual a ten são en tre a Palavra de D eus
e o m un do estarão sem pre presen tes.
Essa t en são se d á at ravés d e d ois m ovim en t os: o p rim eiro é o con -
fron t o en tre a Palavra de D eu s e a ord em social, m oral e religiosa d o-
m in an tes. Sabem os que a leitura e a m editação nas Sagradas Escrituras n os
con sola, edifica e con forta, m as tam bém n os desafia, provoca e con fron ta.
Este con fron to exige um diálogo con stan te en tre a Palavra de D eus e o
m un do em que vivem os. Pau lo escreve aos rom an os, rogan d o p ara qu e
n ão se con form em com o m u n d o, m as sejam t ran sform ados pela ren ova-
ção da m ente. Em outra ocasião, ele fala da necessidade de term os a “m ente
de Cristo”, ou seja, pen sarm os com os m esm os crit érios, valores e p rin cí-
pios de Cristo.
O segun do m ovim en to é o con fron to en tre a Palavra de D eus e n osso
m u n d o in t erior. Tod os n ós t razem os lem bran ças, m em órias e im agen s
d o passado que n os turvam a com preen são de D eus e de n ós m esm os. São
sen tim en tos n egativos de aban don o, m edo e solidão que form am em n ós
um a auto-im agem igualm en te n egativa de in adequação e rejeição — que,
por sua vez, com prom ete n ossa im agem de D eus. Carregam os con osco m á-
goas, ressen tim en tos, in vejas e ciúm es que n os in duzem a usar D eus, ao
in vés de n os disporm os a ser usados por ele. Eles provocam um a relação
con fusa e m an ipuladora, ao in vés de um a en trega seren a e con fian te. É
preciso deixar a Palavra de D eus ilum in ar n osso m un do in terior, tran sfor-
m á-lo em Cristo, restaurar n ossa vida à im agem de D eus e resgatar a im a-
gem do D eus revelado em Cristo Jesus.

O que é Espiritualidade?
30 UNIDADE I

A Bíblia, com o in strum en to de tran sform ação e crucificação, exige de


n ós um a aproxim ação devocion al. Reverên cia e silên cio são posturas bási-
cas de quem deseja ser con solado, con fron tado e tran sform ado. É ela quem
estabelece o diálogo en tre n ós e o m un do — seja o m un do exterior seja o
in terior — e n os tran sform a em Cristo. U m a espiritualidade que n ão leva
em con ta as Escrituras pode até com eçar com boas in ten ções, m as certa-
m en te term in ará em gran de crise e con fusão pelo sim ples fato de n egar a
revelação de D eus a n ós. N ão som os n ós que determ in am os a n atureza
divin a: é o próprio D eus quem tom a a in iciativa de se revelar a n ós. E o faz

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por m eio de sua Palavra.

U m a espiritualidade m issio nária. A Igreja n ão tem um a m issão própria.


Ela participa n a missio D ei. Com o o ser da Igreja está atado ao ser de D eus,
a m issão da Igreja tam bém está vin culada à m issão de D eus. N o Evan gelho
de João vem os Cristo afirm an do que n ão tem um a palavra, um juízo ou
um a m issão sua, m as que, da form a com o ouve, ele fala; da m an eira com o
o Pai julga, ele julga. Ele tam bém afirm a que sua com ida e sua bebida con -
sistem em fazer a von tade do Pai e realizar sua obra. O ração e m issão cam i-
n ham sem pre jun tas. O ram os para que n ossos cam in hos sejam con vertidos
n os cam in hos de D eus, para que n ossos pen sam en tos sejam tran sform ados
em seus pen sam en tos, para que n ossos con ceitos de justiça, direito e verda-
de sejam con form ados com os de D eus.
A ten tação n o deserto foi um a experiên cia defin idora da vocação e da
m issão de Jesus. Sua rejeição aos cam in hos propostos por Satan ás que,
segun do H en ri N ouwen , apon tam para o im ediato, o m ágico, o popular e o
espetacular, apresen ta um a n ova form a de ver a m issão e realizar a obra de
D eus. Jesus rejeita as altern ativas que derivam do poder para abraçar um
projeto que n asce da graça e se en carn a n o am or de D eus para com o ser
humano.
N ão há com o sep arar a esp irit u alid ad e d e Jesu s d e su a m issão. N u m
d os m om en tos m ais críticos de sua vocação, Jesus diz a Filipe e An dré:
“Agora está an gustiada a m in ha alm a, e que direi eu? Pai, salva-m e desta
hora? M as precisam ente com este propósito vim para esta hora” (Jo 12:27).

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
31

A agenda de oração de Jesus foi determ in ada por sua vocação, e n ão pelas
n ecessidades pessoais. Q ualquer um , dian te das an gústias da alm a, oraria
para que fossem aliviadas, curadas, redim idas. Jesus, n o en tan to, sabe para
quê veio, e recon hece que n ão é ele quem determ in a a pauta de suas ora-
ções. En tão ora e diz: “Pai, glorifica o teu n om e.” Era a glória do Pai, o
cum prim en to de seu propósito, a m issão que recebera dele que determ in a-
va sua oração. O objeto da oração de Jesus era a glória de D eus, n ão ele
m esm o. Era a m issão do Pai, n ão a sua.
U m a espiritualidade m ais teológica exigirá de n ós um a clara con sciên cia
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de cham ado e vocação. Vivem os hoje o risco de um a espiritualidade in ti-


m ista, descon ectada da realidade, subjetiva, abstrata e com um a forte rea-
ção n egativa ao cotidian o e ao ordin ário. U m a espiritualidade cristã está
relacion ada com a m issão de D eus n o m un do em sua obra reden tora. Preci-
sa ocupar-se em dar pão ao fam in to, acolher o aban don ado, vestir o n u, dar
esperan ça ao en ferm o, visitar os que estão presos e prom over a justiça e a
paz. U m a espiritualidade que n ão con tem pla a m issão torn a-se alien an te e
sem n en hum a relevân cia social. Em últim a an álise, sem fun dam en to bíbli-
co e histórico.

SITUAÇÃO DE RISCO

Con cluím os que o m un do pós-m odern o produziu um a cultura m ais subje-


tiva e m ais aberta ao espiritual. Con tudo, esta abertura n ão sign ifica m aior
profun didade ou m aior in teresse n a obra reden tora de Cristo. Estam os en -
tran do n um a era em que a obra sin gular e exclusiva de Cristo n o Calvário
— e con seqüen tem en te a espiritualidade cristã — en con trará a m ais forte
rejeição, talvez m ais forte que aquela que a Igreja e os cristãos sofreram n os
prim eiros séculos. Certam ente, o conflito que a Igreja enfren tará na cultura
pós-m odern a n ão terá o caráter violen to e san gren to de seus tem pos prim i-
tivos, m as colocará o cristian ism o n a m esm a situação de risco de outros
tem pos, com um a diferen ça que o torn a m ais perigoso e com plexo: a n ova
geração de cristãos provavelm en te n ão terá a m esm a disposição para o so-
frim en to e o m artírio que outras tiveram em tem pos de crise.

O que é Espiritualidade?
32 UNIDADE I

U m a característica da cultura pós-m odern a é seu caráter in clusivo. Isto


sign ifica que a aceitação de outras form as de estrutura fam iliar, de outras
expressões religiosas e de outros estilos de vida torn aram -se exigên cias da
n ova con sciên cia cultural. Para ser pós-m odern o é preciso ser “aberto” e
aceitar todas as form as de diversidade sexual, cultural, religiosa e social.
Com o disse o dr. Jam es H ouston , “vivem os hoje o n ovo fun dam en talism o
da dem ocracia liberal”. A dem ocracia liberal exige um a atitude in clusivista
radical que represen ta um grave desafio à espiritualidade cristã.
A afirm ação cristã da exclusividade de Cristo com o ún ico Salvador e

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Sen hor — o qu e im p lica a rejeição d e t od as as ou t ras form as d e salva-
ção e recon ciliação com D eus — soará, n o m ín im o, estran ha e agressiva à
con sciência pós-m odern a. Além d isso, u m a vez que vivem os u m a p rofun-
da quebra de prin cípios sociais e a relativização dos valores m orais, a con s-
ciên cia de pecado está se torn an do vaga e subjetiva. Con seqüen tem en te, a
n ecessidade de perdão, ou m esm o de um Salvador, torn a-se irrelevan te.
Vem os, porém , um a gran de m assa de cristãos evan gélicos com pouca ou
n en hum a con sciên cia de seu cham ado histórico, superficiais n a com preen -
são das gran des verdades bíblicas, buscan do n as igrejas form as de en trete-
n im en to religioso, socialm en te irrelevan tes e teologicam en te im aturos. O
futuro n ão parece ser m uito prom issor. O gran de desafio que o cristian ism o
tem de en fren tar é o de afirm ar a cen t ralid ad e d a m ort e e d a ressu rreição
d e Cristo n a recon ciliação do ser hum an o com D eus e n a experiên cia espi-
ritual, assim com o a autoridade das Escrituras Sagradas tan to para a teolo-
gia com o para a an tropologia.
A espiritualidade cristã n ão pode se sujeitar aos m odelos espirituais sub-
jetivos e im pessoais que tem os hoje. Em bora a m editação, a quietude e o
silêncio façam parte da longa tradição espiritual do cristianismo, entrar num
cam in ho subjetivo, buscan do um a espécie de satisfação in terior através de
técn icas de m editação sem con sid erar t od as as im p licações t eológicas e
h ist óricas d a fé crist ã, n os colo ca rá n u m a p o siçã o ext rem a m en t e frágil
e vuln erável.
A espiritualidade de hoje requer profun do e sólido fun dam en to teológi-

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
33

A espiritualidade de hoje requer profun do e sólido fun dam en to teológi-


co e histórico. D eve, en tretan to, rejeitar os m odelos racion ais e im pessoais
do passado. Portan to, n osso desafio é o de preservar um a espiritualidade
m ais teológica paralelam ente a um a teologia m ais espiritual. Tan to a m en te
quanto o coração precisam estar plenamente envolvidos na experiência cristã.
Vivem os um m om en to de gran des desafios, m as tam bém de gran des
oportun idades, pois n un ca o cristian ism o foi tão provocado em sua rele-
vân cia e em sua pessoalidade quan to n os dias atuais. Aquilo que era dado
com o certo, por con tar com o aval de um a cultura cristã, hoje já n ão tem a
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m esm a garan tia. Para ser dado com o certo, agora precisa m ostrar sua rele-
vância.
A tarefa que tem os pela fren te é gran de, e exigirá de todos n ós firm eza e
perseveran ça. A exortação para “vigiar e orar” é a que m ais se adapta à
realidade. D e certa form a, precisam os orar com os olhos bem abertos, per-
m an ecer aten tos ao que D eus está realizan do e com preen der as m udan ças
de n osso tem po.

Nota
1
G ATTA, Julia. T hree spiritual directors for our time. Cowley Publication s, 1986, p. 37-47.

O que é Espiritualidade?
34 UNIDADE I

A ESSÊNCIA
A ESPIRITUALIDADE DA IMAGO DEI PESSOAL
E A TRANSFORMAÇÃO
A ESSÊNCIA DA IMAGO DEI

�lsabelle Ludovico
Formou-se em Economia
na França, onde nasceu,
e Psicologia na
Pontifícia Universidade

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Católica (Puc) do Rio de
Janeiro. Fez A dimensão espiritual e a pessoal possuem en­
esecialização em tre si uma ligação profunda. Particularmente, enten­
Terapia Familiar do "espiritualidade" como a busca de maior intimi­
Slstêmlca em Curitiba. dade e amizade com Deus. O coração quebrantado,
Trabalha como a alma apegada ao Senhor, o encontro em silêncio
psicóloga clínica. com a face amorosa de Deus no secreto, a leitura
scritora e palestrante,
meditativa das Escrituras e o mistério da comunhão
Integrou a diretoria do
com Deus no íntimo são dimensões da espiritualida­
Corpo de Psicólogs e
de cristã que curam as feridas humanas. "Contem­
Psiquiatras Cristãos
(cPC) e da Fraternidade plando, como por espelho, a glória do Senhor, somos
Teolóica Latino­ transformados de glória em glória, na sua própria ima­
americana. gem, como pelo Senhor, o Espírito" (2Co 3:18).
Desde 1999 é
A contemplação não é um exercício de relaxamento
representante do Brasil
[... ] É, acima de tudo, um relacionamento [ ... ]
na Commisslon on
Não é uma técnica [ ... ] É uma oração sem pala­
Women's Concem da
vras que e fundamenta no chão da fé, esperança
World Evangelical
Fellowshlp. e amor [... ] É o caminho mais seguro e garantido
rumo à santidade. 1

No entanto, como ressalta Esly Carvalho, "sem saú­


de emocional, não existe santidade [ ... ] Não acredi­
to que seja por acaso que a única diferença entre as
palavras sanidade e santidade seja a letra "t", que
representa a cruz do Messias".2 De fato, ferimos a
93

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
35

n ós m esm os e aos out ros a part ir de n ossas feridas. Som en t e o am or


in tern alizado de D eus pode cicatrizá-las, ao suprir n ossa n ecessidade de
aceitação incondicional.
O recon hecim en to reveren te do m istério de D eus Pai, Filho e Espírito
San to revela n ossa con dição de pecadores e n ossa verdadeira iden tidade de
filhos criados a sua im agem e sem elhan ça. N ascer de n ovo sign ifica con s-
truir n ossa iden tidade n ão n aquilo que tem os ou fazem os, m as n aquilo que
som os em Cristo. D ian te do olhar m isericordioso de D eus, podem os reco-
n hecer a verdade sobre n ós m esm os: tan to a luz quan to a som bra. “O fato
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de serm os con hecidos e am ados com o som os n os liberta de ter de ser al-
guém e algo que n ão som os.”3
En carar a realidade desm on ta n ossa auto-im agem idealizada ou obscu-
recida e n ossas projeções, que n os levam a acusar o outro do m al que n ega-
mos em nós. A releitura de nossa história na perspectiva da graça nos permite
en ten der o cam in ho e sarar as m arcas do passado, tran sform an do-n os de
agressores em terapeutas. Paralelam en te, som os con vidados a escolher a
vida e desen volver o poten cial de don s e talen tos que D eus n os con fiou.
A espiritualidade é autên tica se n os torn a pessoas cada vez m ais am oro-
sas e voltadas para os outros com hum ildade, em patia e gen erosidade. A
essên cia da imago D ei reside n a capacidade de amar, de se relacionar. A espi-
rit ualidade crist ã diz respeit o a esse processo con t ín uo de t ran sform a-
ção do caráter: a santificação, que resulta em serviço e engajamento maduro
n o m un do em que vivem os. Em 1994, O sm ar Ludovico n os lem brava:

A verd ad eira esp irit u alid ad e resid e n a san t id ad e d o gest o sim p les d o
cotidian o. Em Jesus Cristo n ão há m egalom an ia, gran diosidade, extrava-
gân cia; há a sim plicidade do gesto hum an o, há tern ura e firm eza [...] A
verdadeira vida cristã n ão sign ifica serm os m ais espirit uais, e sim , m ais
h u m an os. 4

Ficar em silên cio, prestar aten ção, estar alerta e presen te dian te de D eus,
saborear a Palavra, tudo isso n os perm ite discern ir a tern ura com a qual
D eus n os am a. A experiên cia da graça n os en coraja a recon hecer n ossos
m edos, escon derijos, n ossas fan tasias persecutórias ou on ipoten tes, n ossa
m en talidade de escravos. É a bon dade de D eus que n os con duz à m etan óia

A Espiritualidade e a Transformação Pessoal


36 UNIDADE I

(Rm 2:4). Ela n os ajuda a en fren tar as am bigüidades de n osso caráter, n os-
sa in stabilidade em ocion al, n osso n arcisism o, n ossa busca de recon heci-
m en t o e su cesso at ravés d e ben s e d o d esem p en h o. Ela n os cu ra d o
isolam en to, da rejeição, do desam or, do desen con tro.
A qualidade da relação con osco e com o próxim o depen de da qualidade
de n osso vín culo com D eus n o secreto do coração, e isto só depen de de n ós,
visto que D eus está sem pre disposto a n os acolher. N ada pode n os separar
de seu am or, a n ão ser n ós m esm os.

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DA SOLIDÃO À SOLITUDE E DA SOLITUDE À SOLIDARIEDADE
A Palavra n os lem bra que este m un do “jaz n o M align o” (1Jo 5:19). Afasta-
dos de D eus, os hom en s con struíram um a sociedade perversa que está em
crise: crise econ ôm ica, com recessão e desem prego; crise m oral, cujos sin to-
m as prin cipais são a corrupção e a violên cia; crise fam iliar, que gera desen -
con tros e separações. Além dessas crises culturais, som os tam bém afligidos
por crises decorren tes de n osso processo de desen volvim en to: adolescên -
cia, m eia-idade e n in ho vazio.
N este con texto, som os ten tados a lan çar m ão do fam oso “salve-se quem
puder” ou do “cada um por si”. A prin cipal con seqüên cia desta atitude é a
solidão: um sen so de aban don o e in com preen são que se tran sform a em
desân im o, tristeza e m esm o an gústia. O futuro parece som brio. N ão se
en xerga n en hum a luz n o fim do tún el. O m un do se torn ou um am bien te
hostil e am eaçador, e n ão podem os con tar com n in guém para en fren tá-lo.
A crise, n o en tan to, pode se torn ar um a alavan ca para o am adurecim en -
to. Aliás, o diagram a chin ês para “crise” é form ado de duas figuras, com o as
faces de um a m esm a m oeda: perigo e oportun idade. Existe, de fato, o peri-
go do desespero, que n os leva a retroceder n um a atitude defen siva, agressi-
va ou de auto-sabotagem que pode até con duzir ao suicídio. M as existe
igualm en te a oportun idade de sair do com odism o para descobrir cam in hos
n ovos e refazer n osso projeto de vida.
O ser hum an o é um ser solitário, já que os m om en tos m ais sign ificativos
de sua vida, com o o n ascim en to e a m orte, por exem plo, deverão ser en -
fren tados in dividualm en te. N este sen tido, é im portan te que cada um saiba

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
37

en con trar den tro de si, a partir da in tim idade com D eus, os recursos para
lidar com essas situações de form a a tran sform ar seu isolam en to ou a soli-
dão em recolhim en to e reabastecimento. É o teste de nossa fé.
O psiquiatra argen tin o Carlos H ern an dez apon ta quatro estágios em
nossa caminhada com D eus. O primeiro é o chamado, e o paradigma é Abraão.
O uço D eus m e cham ar pelo m eu n om e. Percebo que D eus n ão é apen as
um a en ergia, m as é pessoal. Ren do-m e ao abraço do Pai através do sacrifí-
cio de Cristo e da revelação do Espírito.
A segun da etapa é a missão, e o paradigm a é M oisés. D eus m e vocacion a
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para servi-lo. O terceiro estágio é o deserto, e o paradigm a é Jó. N esta hora,


m in ha fé n ão pode se apoiar em n en hum a circun stân cia favorável. N a soli-
dão, preciso lidar com o sen tim en to de aban don o e en con trar D eus n o si-
lêncio. O silêncio revela minha realidade interior. D eus lança luz em minhas
trevas. M eus ídolos são quebrados. D eus n ão é m ais um a projeção de m eus
desejos, m uitas vezes on ipoten tes. É o m om en to da en trega in con dicion al.
A partir desta subm issão à soberan ia de D eus, alcan ço o últim o estágio de
um a fé encarnada, cujo paradigm a é M aria. D izer “sim ” a D eus sign ifica
en tregar até m eu útero. Assim posso ser fertilizada e gerar “as boas obras
que D eus de an tem ão preparou”(Ef 2:10).
O terceiro estágio é o m ais delicado. Em seu livro D ecepcionado com D eus,
Philip Yan cey pon tua os question am en tos que n os assaltam em m om en tos
de provação e an gústia. D ian te do silên cio de D eus, de orações n ão respon -
didas, de sofrim en tos in justos, podem os acum ular pequen os desapon ta-
mentos ou entrar em crise aguda. N egar as emoções para preservar a imagem
de D eus ou n egar a própria existên cia de D eus são dois atalhos a evitar. N a
prim eira via, ao in ibir a raiva, estarem os adoecen do através do m ecan ism o
bastan te con hecido de som atização. O segun do cam in ho leva ao desespero
— ou, com o escreveu Cam us, à “n áusea”.
A form a com o D eus n os é apresen tado con tribui para a im agem que
con struím os. M uitas decepções dizem respeito a expectativas irreais, gera-
das por um evan gelho distorcido que apresen ta D eus com o o Papai N oel
ou o gên io da lâm pada: “Ven ha para D eus que ele vai te aben çoar.” A teo-
logia da p rosp erid ad e coloca D eu s a ser viço d o ser h u m an o. Ach am os,

A Espiritualidade e a Transformação Pessoal


38 UNIDADE I

assim , que se D eus é am or, ele deve n os paparicar e n os poupar do sofri-


m en to. A m orte de Jesus n a cruz, n o en tan to, m ostra que, para D eus, am ar
sign ificou estar disposto a sofrer. Assim , n osso con trato in icial com D eus
precisa ser alterado para chegar a um a alian ça fun dam en tada n a graça, n a
qual D eus já cum priu sua parte, e a n ossa é apen as recon hecer sua bon dade
e sua soberan ia, m esm o que a vida n os reserve aflições. D eus se declara
apaixon ado pelo hom em e prova seu am or. A fé é a m elhor m an eira de
expressar n osso am or por ele.
N o An tigo Testam en to, a Bíblia atesta que D eus forn eceu sin ais em

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abun dân cia, m as n em por isso os israelitas se m ostraram m ais fiéis. Assim ,
Philip Yan cey con clui que “os sin ais só con seguem n os torn ar viciados em
sin ais, n ão em D eus”. 5 D epois, ele m an dou seus profetas, que tam bém n ão
foram ouvidos. N a verdade, D eus tem m ais m otivos para estar decepcion a-
do con osco que n ós com ele. Em O séias, o Sen hor se com para a um m arido
traído. M esm o assim , con tin uou reten do a ira, perdoan do e buscan do o ser
humano.
Sua presen ça gloriosa é tão am eaçadora para n ós que ele se esvaziou e
en carn ou n um a m an jedoura para n os recon quistar. Ele é um rei que n ão
deseja a sujeição a seu poder, m as a en trega a seu am or. A judeus que n em
pronunciavam o nom e de D eus, Jesus ensinou uma nova maneira de dirigir-
se a D eus: “Abba, paizin ho.”
Ele ain da n os con fiou a m issão de ser seu Corpo n a Terra, e n os capaci-
tou através do Espírito San to. Assim , lim itou-se n ovam en te através de n ós:
um D eus perfeito vive agora den tro de seres hum an os bastan te im perfei-
tos, e o m un do julga D eus por aqueles que levam seu n om e. Por isso, um a
segunda fonte de decepção é a imagem distorcida que transmitimos de D eus
através de n ossas vidas.
Jó n ão tem m edo de ser hon esto com D eus e de expressar sua perplexi-
dade, sua raiva, sua indignação, sua revolta. Suas tribulações representam o
teste crucial da liberdade hum an a. D espojado de tudo, exceto da liberdade,
ele a exercitou para reafirm ar a fé n um D eus que n ão podia ver n em com -
preen der. D e fato, a vida é in justa. N o en tan to, som os cham ados a desen -
volver um a fé que n ão depen de das circun stân cias n em dos ben efícios de

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
39

D eus, m as d e u m relacion am en t o afet ivo qu e n os livra do desespero. A


questão n ão é fugir do sofrim en to, m as en con trar D eus n o m eio do sofri-
m en to, de form a que, um a vez con solados, esta experiên cia se torn e um a
alavan ca para n osso am adurecim en to.

N ossa esperan ça n ão está m ais baseada em algum a coisa que acon tecerá
d epois d e t erm in ad os os n ossos sofrim en t os, m as n a presen ça real d o
Espírito curador de D eus em m eio a esses sofrim en tos.6

A cruz expôs toda a violên cia e in justiça deste m un do. Apen as o abraço
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perm an en te de D eus pode tran sform ar n ossa dor em alegria. A experiên cia
de Jó n os reafirm a que jam ais som os aban don ados, n ão im porta quão dis-
tan te D eus pareça estar. Este discern im en to leva Jó a se arrepen der de sua
revolta an tes de receber em dobro tudo o que havia perdido.
N ossa altern ativa para a decepção com D eus parece ser a decepção sem
D eus. N ão existe vida hum an a sem sofrim en to. Podem os escolher sofrer ao
lado de D eus, con fian do em sua soberan ia e vitória sobre o m al, ou sofrer
sem D eus n um a agon ia in útil e desesperadora. Em D eus, podem os acolher
o sofrim en to, saben do que o m al já n ão tem a últim a palavra e que todas as
coisas cooperam para o bem daqueles que o am am . D eus n ão deseja o m al,
m as n ão n os livra sem pre do m al. N o en tan to, ele reverte o m al em bem n a
vida daqueles que con fiam n ele. Assim podem os en trar em con tato com a
dor, expressá-la e con fessar in clusive as dúvidas, os question am en tos e as
revoltas, pois D eus acolhe aqueles que são sin ceros e os con forta.
N ão n os cabe, porém , determ in ar de que form a D eus deve agir, m as
apen as n os abrir e n os deixar surpreen der pela expressão de sua graça. Esta
graça pode n os atin gir através de um a pessoa que n os oferece um ouvido
aten to, um olhar com passivo, um om bro acon chegan te e n os en coraja a
olhar de fren te para as m últiplas em oções que n os in vadem , de m odo a
escolher vivê-las am paradas em seu am or.
Som en te pessoas que sobreviveram à crise de fé e saíram vitoriosas po-
dem ajudar outros a atravessar esse deserto. Reafirm ar a bon dade de D eus
sem ignorar nossa realidade objetiva e em ocional requer m uita m aturidade.
A m aioria é ten tada a n egar a própria verdade ou o am or de D eus. O u
projetam os em D eus nossas angústias e concluímos que ele nos abandon ou,

A Espiritualidade e a Transformação Pessoal


40 UNIDADE I

ou procuram os abafar n ossa dor, colocan do um a m áscara e fin gin do que


está tudo bem . Seguin do o exem plo de Bon hoeffer, som os cham ados a
assum ir n ossa verdade sem deixar de recon hecer que D eus a tran scen de.
Assim , podem os orar com o ele o fez n o cam po de con cen tração, em 1943:

D en tro de m im há trevas,
M as con tigo está a luz;
Eu m e sin to solitário,
M as tu n ão m e desam paras;
Est ou desan im ado,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Em ti, porém , está o m eu auxílio;
In vade-m e um a in quiet ude,
Tu, en tretan to, és a paz;
Sin t o-m e t ão am argurado,
M as contigo está a paciência...

O silên cio e a solidão n ão con stituem um fim em si, m as um m eio para


chegar m ais perto de D eus e de n ós. “Precisam os de disciplin a para en trar
em n ós e ouvir, sobretudo quan do o m edo faz tan to barulho que n os em -
purra con stan tem en te para fora de n ós m esm os. Con verter-se sign ifica vol-
tar para casa, procurar n osso lar lá on de o Sen hor edificou sua m orada, n a
intim idade do próprio coração.”7
Silenciamos para ouvir com o coração. Ouvir D eus nos chamar pelo nome
e n os deixar abraçar com o o filho pródigo voltan do para casa. O uvir n ossos
muitos ruídos interiores e entregá-los um a um aos cuidados de D eus. Aguar-
dar, em silên cio, a revelação do m istério de D eus e sua direção. O silên cio
in terior é a terra m ais fértil para o am or divin o criar raízes. O silên cio des-
m ascara n osso falso “eu” e revela n ossa verdadeira iden tidade.

A solidão é o lugar da gran de luta e do gran de en con tro — a luta con tra
as com pulsões do falso “eu” e o en con tro com o D eus zeloso que se oferece
com o substân cia da n ova in dividualidade. É o lugar de con versão, on de
o velho “eu” m orre e o n ovo n asce [...] O n de sou só “eu” — n u, vuln erá-
vel, fraco, pecador, caren t e, desalen t ado —, sem n ada.8

Ali, Cristo n os rem odela a sua im agem e n os liberta das en gan osas
com p u lsões d o m u n d o. É n o silên cio in t erior qu e p od em os ou vir D eu s

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
41

p ergun tar: “Q uem é você?”; “O n de você está?”. Respon der estas duas per-
guntas é crucial para nosso crescim ento. Convertem os a solidão em recolhi-
m en to quan do, em vez de fugir dela, a protegem os e tran sform am os em
gestação frutífera. Ela se torn a um in ício, em vez de um beco sem saída; um
lugar de en con tro, em vez de um abism o. Ao escutar aten tam en te n osso
coração, “podem os com eçar a sen tir que n o m eio da n ossa tristeza existe
alegria, que n o m eio dos n ossos m edos existe paz [...] N o m eio da n ossa
difícil solidão, o in ício de um recolhim en to seren o”.9
Cada pessoa é ún ica. N ão existe, n un ca existiu e n un ca existirá alguém
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

igual a você. Por isso, som en te você pode descobrir o poten cial extraordin á-
rio com o qual D eus dotou sua existên cia. Eis um con vite para explorar
apaixonadamente este seu espaço interior, ir ao próprio encontro e estender a
m ão para esta pessoa especial que é você. A crise se torn ará um a fase de
gestação, uma oportunidade de autodescoberta e crescimento, se você se dis-
puser a lan çar um olhar acolhedor sobre sua vida, se souber escutar as vo-
zes que ressoam em seu in terior, os rum ores de m edos, frustrações, expec-
tativas, anseios que trancou no porão de sua alma e que lhe reclamam atenção.
Você pode fugir deles através do ativism o, abafan do esses seus an seios e
se torn an do um robô porque perdeu o con tato com o coração. Esta atitude
autodestrutiva é, in felizm en te, um a opção n ão rara que tran sform a in diví-
duos em fan toches m an ipulados com facilidade pelos m eios de com un ica-
ção que susten tam n ossa sociedade de con sum o. O ativism o n os im pede de
ter calm a e sossego para avaliar se vale a pen a pen sar, dizer ou fazer as
coisas que pen sam os, dizem os ou fazem os. N ossa n ecessidade de afirm a-
ção con tín ua e crescen te n os leva à com pulsão por m ais trabalho, m ais di-
n heiro, m ais relacion am en tos.

Q uan d o n os sen t im os sós e procu ram os algu ém para evit ar a solid ão,
depressa experimentamos a desilusão. O outro que, durante algum tempo,
talvez tenha sido ocasião de uma experiência de totalidade e paz interior,
bem depressa revela-se in capaz de n os dar a felicidade duradoura e, em
vez de elim in ar a n ossa solidão, acaba apen as por n os con fiar a sua pro-
fun didade. Q uan to m ais forte for a n ossa expectativa de que um outro
ser h um an o preen ch a os n ossos m ais profu n d os d esejos, m aior será o

A Espiritualidade e a Transformação Pessoal


42 UNIDADE I

sofrim en to quan do t iverm os qu e n os con fron t ar com os lim it es d o rela-


cion am en t o h um an o. E a n ossa n ecessidade de in t im idade depressa se
torn a exigên cia. M as logo que com eçam os a exigir am or de outra pessoa,
o am or con verte-se em violên cia.10

O cam in ho que gera am adurecim en to é m ais árduo. Você precisa ter a cora-
gem de recon hecer seus lim ites e en carar seus fan tasm as. Ao olhar para o
in t erior, você d escobrirá n ão som en t e t esou ros escon did os, m as tam -
bém algum as experiên cias frustradas e algun s desejos abortados. Será n e-
cessário abraçar essa crian ça frágil e m edrosa que você traiu e aban don ou

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em seu processo de crescim en to para vestir a m áscara de um adulto forte e
decidido. Sua história poderá revelar aspectos n ovos, até então negligen cia-
dos, que traçarão n ovos con torn os em seu horizon te.
O n ovo, porém , é am eaçador. Preferim os a m esm ice de hábitos e esque-
m as estereotipados, ao in vés de n os aven turar em picadas ain da n ão explo-
radas. Este processo de autodescoberta pode ser regado com lágrim as, pois
perm itirá um con tato com n ossa dor, em vez de n egá-la. Essas lágrim as são,
no entanto, fecundadoras de restauração, constituem bálsamo que gera cura
e libertação.
Após esse reen con tro com n ossa un icidade, este acolhim en to de n ossa
in teireza, som os capacitados a ir ao en con tro do outro e experim en tar soli-
dariedade gen uín a com ele, em suas dores e alegrias. O outro n ão é m ais
um m eio de fugir da solidão, m as um a pessoa igualm en te ún ica, parceira e
com pan heira de cam in hada. N ão é a toa que Jesus con vida a am ar o outro
“com o a si m esm o”.
Só podem os aceitar, respeitar, ouvir, acolher, con solar o outro se form os
capazes de aceitar, respeitar, ouvir, acolher, con solar a n ós m esm os. A prá-
tica da espiritualidade torn a-n os receptivos ao am or de D eus. N este pro-
cesso, nossa solidão estéril transforma-se em solitude e autodescoberta, que
n os im pulsion am a sair ao en con tro do outro, para ser solidário com ele.

A JORNADA RUMO À CURA INTERIOR


A qu alid ad e d e am or p ela qu al an siam os é h u m an am en t e im p ossível,
p ois n ossa cap acid ad e d e am ar é lim it ad a. Assim , d esd e o ven t re, n ossa

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
43

exp ect ativa é frustrada e gera feridas que se vão acum ulan do e n os defor-
m an do. O prim eiro passo para alcan çar a cura é recon hecer o m al que n os
fizeram , o que sign ifica ter a coragem de en trar em con tato com essa dor. Já
que tem os ten dem os a n egar esse m al com o in tuito de n os proteger do
sofrim en to ou assum ir a culpa por ele, de form a a proteger os outros. Em
vez de recon hecer as lim itações de n ossos pais, preferim os arcar com o
ôn us deste am or in com pleto. Por n ão receber o am or que alm ejam os, pas-
sam os a n os sen tir in dign os dele.
Com o com en ta Lya Luft n o livro O rio do meio, ao lem brar a experiên cia
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de ter sido in tern ada n um colégio: “Se m e castigaram tan to, e são pessoas
boas, e m e am am com o dizem , com certeza devo ser m uito m á. Era o seu
jeito de se con solar [...] A rejeição in stalara-se n ela: essa falha n o chão de
seus passos n un ca m ais se fechou.”11
A jorn ada rum o à cura passa pela própria dor. En quan to n egam os as
feridas, a criança dentro de nós não pode crescer, pois perm anece aprisiona-
da, à esp era d e alim en t o e con solo. Sem t om ar con sciên cia d essa reali-
d ad e, reagim os d ian te das situações de vida a partir de n ossa sofrida e
n egligen ciada crian ça in terior. Buscam os con firm ar as hipóteses que n os
m in am a auto-estim a, ou esperam os que alguém preen cha os buracos a que
apen as n ós tem os acesso.
O segun do passo é recon hecer o m al que n os fizem os com o m al que n os
fizeram . Com o vim os, ao n egar a dor, rejeitam os essa crian ça in terior que
ten tará n os cham ar a aten ção através do m ecan ism o da som atização. A dor
em ocion al que ign oram os se tran sform ará em dor física, pois estarem os
adoecen do. Ao assum ir a falha do outro, desen volvem os um a auto-im agem
deturpada ou n os pun im os, com o se fôssem os n osso carrasco.
O atalho oposto con siste em alim en tar um a autocom iseração que n os
transforma em vítim as inocentes e passivas. N a maturidade, percebe-se que
n ão importa tanto o que fizeram conosco, mas o que fizemos com o que real-
m en te n os acon teceu. Iden tificar os m ecan ism os de defesa que n os aprisio-
n am é um a tarefa árdua. Com o in tuito de n os proteger do sofrim en to,
acabam os provocan do um m al m aior, pois vam os lim itan do n osso espaço
in terior e exterior, em vez de en carar a verdade e buscar cura em D eus.

A Espiritualidade e a Transformação Pessoal


44 UNIDADE I

Adoecem os, fugim os por m eio do ativism o que n os leva ao estresse, desen -
volvem os arm adilhas con tra n ós m esm os, proven ien tes dos sen tim en tos de
autodepreciação, autopun ição e auto-sabotagem . Em vez de repetir este
m al, alim en tá-lo e m ultiplicá-lo, a Bíblia n os con vida a ven cer o m al com o
bem (Rm 12:21).
D e fato, o am or de D eus é o ún ico an tídoto para o ven en o do desam or.
Este am or é m an ifesto e acessível aos seres hum an os em Cristo, que se
iden tificou con osco e levou sobre si n ossas in iqüidades e tran sgressões.
Após a m orte de Cristo, os discípulos que voltavam para Em aús dem ora-

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ram a recon hecer seu Salvador ressurreto, que cam in hava ao lado deles.
Com o esses, n ossas expectativas n ão satisfeitas geram frustrações que n os
im pedem de en xergar a realidade. Ao abrir m ão da im agem ideal, m as irreal
de n ós m esm os e dos outros, podem os ver que a perfeição só existe em
D eus e que n ele podem os depositar todos os n ossos an seios, pois n un ca
n os decepcion ará.
Às vezes, precisam os que alguém seja porta-voz de D eus e n os acom pa-
n he n esse cam in ho, pois tem em os en con trar m on stros e ser destruídos por
descobertas avassaladoras ou em oções in con troláveis. U m terapeuta pode
ser um guia seguro n esta em preitada. En carar n osso m un do in terior, n ossas
dores, m ágoas e decepções é o ú n ico cam in h o p ara n os recon ciliar con os-
co e com a n ossa história. Resgatar esta crian ça aban don ada, dar-lhe colo,
sen do pai e m ãe de n ós m esm os, n os liberta da depen dên cia dos outros e
n os capacita a con struir relações m aduras e equilibradas.
É n o recolhim en to e n o silên cio, dian te da face am orosa de D eus, que
este processo se aprofun da, en quan to n osso vín culo com D eus se con soli-
da. Som en te a experiên cia do am or in con dicion al de D eus pode curar-n os
as feridas de rejeição, à m edida que o en xergam os com o um Pai acolhedor,
que n os criou e resgatou para con struir con osco um relacion am en to tão
ín tim o quan to o que o un e ao próprio Filho. Esta verdade, quan do assim i-
lada n o m ais profun do de n osso ser, vai ao en con tro de n osso desejo m ais
ín tim o: o de ser am ados de form a plen a e irrestrita.
Provérbios de Salom ão, n a Bíblia, n os con vidam a en ten der n osso cam i-
n ho (Pv 14:8) e a estar aten tos a n ossos passos (Pv 14:15). D e fato, a

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
45

m aturidade p rovém d a cap acid ad e d e com p reen d er n ossa h istória e in te-


grar as peças esparsas do quebra-cabeça que é n ossa existên cia para en xer-
gar o quadro com pleto. As experiên cias m arcan tes da vida precisam ser
con sideradas com reverên cia para en con trarm os o sen tido m ais profun do e
apren derm os com elas.
Tem po e aten ção são n ecessários, se querem os evitar a superficialidade.
Fom os criados à im agem de D eus, que é Luz. Assim , quan to m ais n os apro-
xim am os dele, n um a atitude con tem plat iva, m ais en xergam os a p róp ria
realidade. O olhar am oroso de D eus n os perm ite superar o m edo da rejei-
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ção e tirar as m áscaras a fim de con fessar n ossa luz e n ossa som bra. Iden ti-
ficam os em n ós lim ites, feridas, m ecan ism os de defesa e in coerên cias, m as
tam bém aspiração por am or, alegria e paz, capacidade criativa e relacion al,
busca de sen tido existen cial. Adm itim os, perplexos, a coexistên cia sim ultâ-
n ea e sistêm ica de alegria e tristeza, prazer e dor, sofrim en to e paz, am or e
solidão.
Perceber est a con d ição d e n ossa h u m an id ad e ch oca-se com o d esejo
d e n os ap egar a u m est ad o m en t al d om in an t e e obsessivo, com o a busca
da felicidade perm an en te. N ossa sociedade a defin e com o ausên cia de dor.
Para isso, construím os um castelo forte, onde estam os protegidos, m as tam -
bém en clausurados. Poupar-n os do sofrim en to n os priva da alegria, pois
estes dois sen tim en tos são parceiros in separáveis n esta vida.
N ossa cultura prega um a felicidade artificial, m an tida com pílulas que
an estesiam a dor, cam uflan do n ossa in escapável con dição de m ortalidade e
fragilidade. Solitários e caren tes, buscam os com pen sar o vazio in t erior
m edian te um con sum ism o com pulsivo. Para outros, é m ais fácil sofrer que
ser feliz. O sen tim en to de culpa e o m edo do castigo os levam a descon fiar
da felicidade. Eles preferem um caminho de auto-sabotagem ao risco de per-
der. A felicidade em D eus n ão é m erecida. Ela é de graça. M as ela n ão n os
poupa do sofrim en to, que é a con seqüên cia de n ossa hum an idade caída.
O desejo m ais profun do de am ar e ser am ado requer que n os dispon ha-
m os a baixar as defesas e a n os t orn ar vu ln eráveis. C om o d iz u m a m ú si-
ca p op ular: “Q uem quiser ap ren d er a am ar, vai t er qu e ch orar, vai t er qu e
sofrer.”

A Espiritualidade e a Transformação Pessoal


46 UNIDADE I

As feridas m ais profun das e dolorosas n ão provêm de aciden tes ocorri-


dos, m as do desam or. O am or tran sform a n ossa person alidade e n ossa per-
cepção. Ele nos arranca de um m undo unidimensional, em preto e branco, a
fim de n os tran sportar para um un iverso de cores brilhan tes e paisagen s
sem pre ren ovadas. Q uan do o am or se retrai, sofrem os a dor da perda. A
alegria do en con tro é proporcion al à dor do desen con tro.
Com o diz o teólogo John M ain , precisam os diferen ciar feridas e m achu-
cados. Estes, com o o fracasso n um teste, um a derrota fin an ceira, um a ex-
pectativa frustrada, são sofrim en tos provisórios e superáveis. Aquelas n os

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m arcam para sem pre. M odificam n ossa percepção ín tim a e o fun dam en to
de n ossa iden tidade.
U m a ferida sign ifica que n ada será com o an tes. O tem po apaga os m a-
chucados, n ão cura as feridas. Som en te a im ersão n o am or absoluto de
D eus pode curar-n os as feridas. É preciso m ergulhar n a m orte de Cristo
para experim en tar sua ressurreição. O sign ificado de n ossas feridas em erge
quan do as en xergam os à luz da graça e em sua relação com outros even tos
e padrões da vida.
N osso jeito de lidar com as feridas pode n os torn ar feridos que ferem ou
feridos que curam . A Bíblia fala de dois tipos de tristeza: um a tristeza mun-
dana, que leva à autocom iseração, n os faz assum ir o papel de vítim a e “pro-
duz m orte”; e um a tristeza n a perspectiva de D eus, que gera tran sform ação
e vida (2Co 7:10).
Ao m ergulhar na história de nossa vida, en contram os m om en tos dram á-
ticos, em que tivem os de fazer a escolha crucial de n os torn ar am argurados
por n ossas feridas ou feridos que curam . O film e Patch Adams: o amor é
contagioso, 12 con ta a história de um hom em que fez a escolha de ser um
ferido que cura, e que quase desistiu quan do um a n ova ferida o em purrou
para a beira do precipício. Para o próprio bem e o bem das pessoas a sua
volta, ele fin alm en te escolheu seguir o prin cípio bíblico de ven cer o m al
com o bem (Rm 12:21).
N a m aioria das vezes, optam os por um a solução in term ediária, m es-
clan do sen tim en tos de m ágoa e desejo de superação, passan do altern ativa-
m en te de vítim as a protagon istas.

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
47

A ún ica form a de n os livrarm os do m al que n os fizeram e que fizem os a


n ós m esm os é o perdão. A palavra grega para “perdão” sign ifica “libertar-
se”, enquanto “ressentimento” significa “sentir de novo”. Sem o perdão, conti-
nuamos presos àqueles que nos feriram. “Quando genuinamente perdoamos,
libertam os um prision eiro, e en tão descobrim os que o prision eiro que liber-
tam os éram os n ós.”13 Apen as o perdão n os liberta da in justiça do outro.
O perdão im erecido de D eus n os capacita a exercer perdão im erecido
para com aqueles que n os feriram . A partir da experiên cia restauradora de
n os saber perdoados por D eus, som os cham ados a ser despen seiros de sua
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graça. A com paixão ajuda a n os iden tificarm os com todas as em oções hu-
m an as e a perdoar, já que “o perdão som en te é real para quem descobriu a
fraqueza de seu am igo e os pecados de seu in im igo em seu próprio co-
ração”.14 H á duas categorias de pessoas: as pessoas culpadas que recon he-
cem seus erros e as pessoas culpadas que não os reconhecem. N ossas feridas,
com o n ossas falhas con fessadas, são as fissuras pelas quais a graça pode
entrar.
A busca de felicidade fora de D eus alim en ta n osso falso “eu”. En quan to
perseguirm os a felicidade com o prioridade absoluta, o farem os às custas do
bem -estar do outro. O an seio por seguran ça, afeto e recon hecim en to tam -
bém n os torn a escravos das expectativas dos outros. O quarto in terior é o
lugar da cura de n ossa baixa auto-estim a, do desejo de aprovação que n os
leva a con struir um falso “eu”.
Ao buscar m inorar a dor de nosso próxim o, no entanto, encontrarem os a
plen itude de alegria para a qual fom os criados. Ao acolher a realidade com
todas suas facetas, n ão podem os deixar de perceber o próprio D eus. Cristo
é a Verdade e a Vida. Por isso, ao optar pela verdade, en con tram os a Cristo,
assim com o através das coisas bon itas podem os en xergar a própria beleza.
A cruz de Cristo proclam a que a vida n ão se preserva n egan do a m orte, m as
acolhen do o ciclo de m orte e ren ascim en to. Por isto, som os cham ados a
levar “sem pre n o corpo o m orrer de Jesus, para que tam bém sua vida se
m an ifeste em n osso corpo” (2Co 4:10).
Assim , em vez de fugir do sofrim en to através de um a vida artificial,
podem os superá-lo com o bálsam o do am or de D eus, que tran sform a o m al

A Espiritualidade e a Transformação Pessoal


48 UNIDADE I

em bem . Precisam os olhar para os retalhos espalhados de n ossa vida n a


perspectiva de Cristo, que venceu o mal e a morte. Com isso, podemos costu-
rá-los para form ar um a colcha que reflita a obra de arte ún ica que é n ossa
existên cia à luz do am or de D eus e n a depen dên cia do Espírito San to.

AS EVIDÊNCIAS DA TRANSFORMAÇÃO
A prim eira evidên cia de n ossa tran sform ação é um coração grato a D eus.
Êxodo 23:19 nos convida a trazer as prim ícias da colheita para D eus. Trata-
se de oferecer an tecipada e in con dicion alm ente, expressando nossa confian -

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ça e dedicação. Esta oferta revela um a gratidão n ão circun stan cial, m as
existen cial, m ovida por recon hecim en to, n ão por m edo n em bargan ha. Ela
é fruto da con sciên cia de quem ele é e de quem som os. Em prim eiro lugar,
porque D eus é bom e “a sua m isericórdia dura para sem pre” (Sl 106:1).
Esta prem issa n os parece óbvia e n atural, m as D eus poderia ser um tira-
n o, sádico, cruel, que tivesse prazer em n os en gan ar, com o faziam algum as
divindades da Antigüidade. Ele poderia nos controlar através do m edo, m as
deseja n os cativar e estabelecer con osco um a relação filial. Apesar disso,
n ossa m aior ten tação é duvidar de sua bon dade. Foi essa dúvida, in suflada
pela serpen te, que provocou a Q ueda. Em seu livro A batalha da cruz, Ru-
bem Am orese com en ta: “A estratégia de Satan ás [...] con siste em produzir,
por m eio do sofrim en to, um coração in grato; portan to, ressen tido, ran coro-
so, am argurado, revoltado e rebelde.” 15
Acham os que, por n os am ar, D eus deve n os livrar do sofrim en to. Assim ,
quan do o m al n os aflige, sen tim o-n os com o que aban don ados por D eus.
Até Jesus questionou o Pai na cruz, m as m orreu reafirmando sua comunhão
com ele.
Sim , D eus é fiel. Seu am or é gen eroso e in con dicion al. N ão depen de de
reciprocidade. N ão é m an ipulador, com o a m aioria de n ossos relacion a-
m en tos. N ão é um a in cógn ita. Pelo con trário: revela-se, em vez de se es-
con der e n os deixar tatean do n o escuro. Tam bém n ão é um deus ausen te,
m as um D eus que in tervém , m uitas vezes através de n ós, dan do-n os o
privilégio de ser em issários, porta-vozes e expressão de seu am or. Tam pou-
co é um deus distan te ou autoritário, m as um D eus que n os ouve e in terage

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
49

conosco. N ão se trata de um a energia im pessoal, com o acredita a N ova Era,


pois ele seria m en os que n ós, que tem os con sciên cia de existir. É um D eus
pessoal, que se relacion a e n os oferece sua in tim idade.
Fin alm en te, n ão é um deus solitário, que estabeleceria con osco um a re-
lação sim biótica e de co-depen dên cia. É um D eus trin o que n os con vida a
participar de um a com un idade n um a rede de relações in clusivas e diversifi-
cadas. Fom os criados à im agem de D eus, e por isso som os capazes de am ar,
criar, sen tir prazer através dos sen tidos, ter sen so m oral, ético e estético.
Som os in teligen tes e dotados de auton om ia. O pecado n os deform ou, m as,
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pela graça, podem os recon hecer n ossa som bra sem m edo de ser rejeitados.
N ossa gratidão é fruto do olhar am oroso e perdoador de D eus, que n os
liberta da culpa. Esta revelação, com o está escrito em Zacarias 12:10, é
dádiva do Espírito San to. Ela n os liberta da arm adilha do orgulho pela n os-
sa luz e da autopun ição ou do desespero por causa de n ossa som bra. En ca-
rar a verd ad e, sem am or, sobre n ós m esm os seria u m a d esest ru t u ração.
A verdade em am or é libert ad ora. Ela n os libert a d a ilu são d e p erfeição,
d a onipotência, da auto-suficiência, e nos abre o caminho da humildade e da
sabedoria, fruto do recon hecim en to de n ossas lim itações e da soberan ia de
D eus.
É m ais fácil ser grato por ben efícios con cretos, m ateriais, visíveis. M es-
mo assim, tendemos a nos acostumar à graça. Só damos valor à saúde quando
ficam os doen tes. Só valorizam os as pessoas quan do deixam saudades. Se
som os in gratos em relação às bên çãos m ateriais m en suráveis e palpáveis,
quan to m ais com as bên çãos que depen dem de revelação e discern im en to!
A gratidão n os ren ova, n os ajuda a en xergar além do sofrim en to, além do
m al (2Co 4:15-18), n os perm ite dar graças pelas provações (Tg 1:2): n ão
pelo sofrim en to em si (que n ão é da von tade de D eus), m as pela capacida-
de divin a de reverter o m al em bem .
D eus n os alerta que, n o m un do, terem os tribulações. Ele n ão n os livra
sem pre das dificuldades, m as m uda n osso olhar sobre elas. Está jun to para
n os capacitar a lidar com o sofrim en to, de form a que este n ão seja in útil.
Ele n os ajuda a passar da revolta para a superação, perceben do que o m al já
foi ven cido n a cruz e visualizan do a luz n o fim do tún el. Gratidão é um a

A Espiritualidade e a Transformação Pessoal


50 UNIDADE I

graça que n os capacita a discern ir quem é D eus e quem som os para viver a
partir de n ossa verdadeira iden tidade de filhos am ados pelo Pai, salvos pelo
Filho e capacitados pelo Espírito San to. Ela n os perm ite ver além do m ate-
rial, para o que é etern o.
D ar as prim ícias é um ato de fé in con dicion al, de esperan ça. Com o diz
H en ri N ouwen , “esperar estan do aberto a todas as possibilidades é um a
atitude extrem am en te radical peran te a vida [...] É desistir de exercer o
con trole sobre o n osso futuro e deixar que D eus defin a a n ossa vida. É viver
com a con vicção de que D eus n os m olda de acordo com o seu am or, e n ão

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de acordo com o n osso próprio m edo”.16
C ost u m am os selecion ar em n ossa exist ên cia algu n s m om en t os privi-
legiados para serem lem brados, m as som os cham ados a abraçar com grati-
dão toda n ossa vida. N ela, alegria e sofrim en to estão en trelaçados, e cada
experiên cia faz parte do cam in ho da cruz que leva a um a n ova vida. Assim ,
todo n osso passado pode torn ar-se a fon te de en ergia que n os m overá para
frente.
A segun da evidên cia é a esperan ça. A esperan ça é con fiar n o futuro por-
que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que am am a D eus”
(Rm 8:28). N ão é resign ação passiva, m as fé pessoal e ín tim a n aquele que
já ven ceu a m orte e o m al.

A com un idade crist ã é o lugar on de m an t em os a ch am a da esperan ça


viva en tre n ós [...] É assim que terem os a coragem de dizer que D eus é um
D eus de am or, m esm o qu an d o à n ossa volt a vem os ap en as ran cor. É
p or isso que poderem os proclam ar que D eus é um D eus de vida, m esm o
quan do à n ossa volta vem os m orte, destruição e agon ia [...] Esperar jun -
t os, alim en t ar o que já com eçou, esperar pela sua com plet a realização.
Est e é o sign ificado do m at rim ôn io, da am izade, da com un idade e da
vida crist ã.1 7

D eus n os con vida às bodas do Cordeiro, um ban quete etern o celebran do


sua alian ça con osco através de seu san gue. Ele deixa com o lem bran ça a
Ceia, um a refeição com gosto de in tim idade e esperan ça.
A parábola do filho pródigo é um roteiro espiritual. Voltar para casa é
fazer n ossa m orada on de D eus escolheu m orar. A casa é o cen tro de n osso

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
51

ser, on de podem os ouvir a voz que diz: “Você é m eu filho am ado/m in ha


filha am ada, em quem m e com prazo.” H á m uitas outras vozes. Vozes que
dizem : “Vá e prove que é alguém , prove que m erece ser am ado através do
sucesso e do poder!” D eixam os a casa cada vez que deixam os de con fiar n a
voz que nos chama “filhos amados” para seguir vozes que nos oferecem
m an eiras diversas de gan har este am or que desejam os tão in ten sam en te.
En quan to pergun tam os “você m e am a?”,18 dam os ouvido às vozes do
m un do e n os torn am os escravos, porque o m un do é cheio de “se”. O m un -
do diz: “Sim , eu am o você se for bon ito, in teligen te e rico, se tiver um a boa
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educação, um bom em prego e for bem relacion ado.”


Precisam os escolher n os sujeitar ao m un do que n os aprision a ou assu-
m ir a iden tidade de filhos do D eus que n os liberta. Seguir a Cristo sign ifica
deixar D eus ser D eus. D eixá-lo operar toda a cura, restauração e ren ova-
ção. Após iden tificar em n ós características do filho pródigo e de seu irm ão,
som os cham ados a n os torn ar com o o Pai, escolhen do o am or ao in vés do
poder, sen do acolhedores e perdoadores.

A RECONSTRUÇÃO DE NOSSA IDENTIDADE EM DEUS


A espiritualidade reforça n osso vín culo com o D eus Triún o. Ele se revela à
m edida que n os aproxim am os com reverên cia e receptividade, pois “a in ti-
m idade do Sen hor é para os que o tem em ” (Sl 25:14).

A Palavra de D eus con duz-n os ao silên cio; o silên cio torn a-n os aten tos à
Palavra d e D eu s. A Palavra d e D eu s p en et ra at ravés d a esp essu ra d a
verbosidade hum an a até o cen tro silen cioso do n osso coração; o silên cio
abre em n ós o espaço on de a Palavra pode ser escutada. Sem ler a Pala-
vra, o silên cio ban aliza-se, e sem silên cio, a Palavra perde o seu poder
recriativo. A Palavra con duz ao silên cio e o silên cio, à Palavra. A Palavra
n asceu em silên cio, e o silên cio é a resposta m ais profun da à Palavra.19

Através do silên cio fértil e da Palavra, podem os recon struir n ossa iden tida-
de em D eus. Som os curados e tran sform ados a sua im agem para sin alizar
sua presença no mundo. Viver como cidadãos do Reino de D eus é reordenar
n ossas prioridades para estar en raizados n ele e dar liberdade ao Espírito

A Espiritualidade e a Transformação Pessoal


52 UNIDADE I

para se m over em n ós e at ravés d e n ós. Trat a-se d e u m cam in h o d e


despojamento que nos leva a experimentar uma nova e inesperada liberdade.

Som en te os pobres podem en trar n o Rein o de D eus. N ão som os n ada e


n ão tem os n ada por n ós m esm os [...] Tudo o que tem os é fruto do am or
d ivin o. M as t u d o o q u e q u erem os p ossu ir é arran cad o d o rein o d o
Am or [...] Q uan d o est am os con scien t es d e qu e n ão p ossu ím os n ad a,
en tão estam os ricos do am or de D eus [...] N a con tem plação, apren dem os
gradualm en te a valorizar coisas e pessoas sem o desejo de possuí-las.20

“Ven der o que se possui, deixar sua fam ília e am igos e seguir a Jesus n ão é

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um acon tecim en to ún ico n a vida. É preciso fazer isto m uitas vezes e de
muitas maneiras diferentes.”21 Q uando caminhamos do reino do medo para
o Rein o do Am or, o Espírito n os liberta de nossas compulsões e nos fertiliza.

O gozo com pleto é a recom pen sa de um a vida de in tim idade e fecun didade
n a casa de D eus (...) Som os in vadidos pela alegria de Jesus, que n os leva
a celebrar a vida. In tim idade, fecun didade e gozo são os frutos de um a
vida m ovida pelo am or de D eus, e n ão pelo m edo.”22

A graça de D eus m an ifesta-se fora de n ossos arraiais religiosos. Por isso,


som os desafiados por alguém com o H erbert de Souza, o Betin ho, que teve
a coragem de en carar a própria fin itude. Ao lidar com sua crise pessoal, ele
pôde ser luz para lidar com a crise de n ossa sociedade. Sua fragilidade se
torn ou um sím bolo de esperança e mobilizou milhares de pessoas, que rea-
giram ao desân im o provocado pelo escân dalo da corrupção in stitucion ali-
zada e en con t raram um a con sciên cia n ova de cidadan ia, resgat an do a
dignidade do ser hum ano através da solidariedade com aqueles que sofrem .
Viver plen am en te n ossa hum an idade é aceitar que “as pessoas que n os
am am tam bém n os desapon tam , m om en tos de gran de satisfação tam bém
revelam n ecessidades n ão satisfeitas, estar em casa m ostra tam bém n ossa
falta de um lar”.23 Essas ten sões despertam em n ós a saudade do Paraíso e
n os levam a aguardar a volta de Cristo. M aran ata!

Notas
1
K EATIN G , Thom as. M ente aberta, coração aberto: a dimensão contemplativa do Evangelho. São
Paulo: Loyola, 2005.

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
53

2
C ARVALH O , Esly Regin a. S aúde emocional e vida cristã; curando as feridas do coração. Viçosa:
U ltim ato, 2002, p. 11, 13.
3
S EAM AN D S, D avid. O poder curador da graça. São Paulo: Vida, 1990, p. 158.
4
S ILVA, Osmar Ludovico da. “Introdução à espiritualidade cristã: uma teologia do afeto”, in
A igreja evangélica na virada do milênio. Brasília: Com un icarte, 1995, p. 157.
5
YAN CEY, Philip. D ecepcionado com D eus. São Paulo: M un do Cristão, 1997, p. 45.
6
N OU W EN , H en ri. R enovando todas as coisas. São Paulo: Cultrix, 1981, p. 52.
7
Id. S ignes de vie [S inais da vida]. Bellarm in , 1997.
8
Id. A espiritualidade do deserto e o ministério contemporâneo, o caminho do coração. São Paulo:
Loyola, 2000, p. 23-24.
9
Id. Crescer: os três movimentos da vida espiritual. Lisboa: Paulin as, 2001, p. 39.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

10
Id. M osaicos do presente. São Paulo: Paulin as, 1998, p. 122.
11
LU FTY, Lya. O rio do meio. São Paulo: Record, 2003.
12
Estados U nidos, 1998, direção de Tom Shadyac
13
YAN CEY, Philip. M aravilhosa graça. São Paulo: Vida, 1999, p. 104.
14
N OU W EN , H en ri. O sofrimento que cura. São Paulo: Paulin as, 2001, p. 68.
15
AM O RESE, Rubem . A batalha da cruz. Brasília: Com un icarte, 1993, p. 9.
16
N ouwen , H en ri. O caminho da esperança. São Paulo: Paulin as, 1998, p. 19,20.
17
Id., p. 24, 26,7.
18
Id. A volta do filho pródigo. São Paulo: Paulin as, 2003, p. 47.
19
Id. Crescer: os três movimentos da vida espiritual. Lisboa: Paulin as, 2001, p. 169.
20
BLO O M , An ton y. L’école de la prière [A escola da oração]. Paris: D u Seuil, 1972.
21
N OU W EN , H en ri. O caminho do amanhecer. São Paulo: Paulin as, 1999, p. 61.
22
Id. S ignes de vie.
23
Id. Podeis beber o cálice? São Paulo: Loyola, 2002, p. 75.

A Espiritualidade e a Transformação Pessoal


54 UNIDADE I

ESPIRITUALIDADE:
A ESPIRITUALIDADE TÃO
E A VIDA DEVOCIONAL
COMPLICADO, TÃO SIMPLES
ESPIRITUALIDADE: TÃO COMPLICADO, TÃO SIMPLES

�Elben Lenz Cesar


Escritor e diretor da
revista lmato, é
pastor emérito da
Igreja Presbiteriana de

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Viçosa e prsidente
Em cada lugar que você for, cada cultura que en­
honorário do Centro
Evangélico de Missões. contrar, todas as disciplinas que estudar, sempre
Foi vice-presidente da encontrará uma forma diferente de explicar a espiri­
Thlrd World Mlsslon tualidade. A própria palavra "espiritualidade" tem
Assoclatlon (A). diversos conceitos na história, na religião, na filoso­
fia. na teologia. no judaísmo, no budismo, no cristia­
nismo, no misticismo, no esoterismo, na auto-ajuda,
na pós-modernidade. Há deinições acadêmicas,
populares, ritualísticas - até mesmo definições mes­
quinhas.
Em tese, espiritualidade deve ser o oposto de ma­
terialismo, em que tudo é matéria ou produto de ma­
téria. É a descoberta e o desenvolvimento da intuição
e do clamor religioso presentes no coração humano
- o tal "ponto Deus", que os neurobiólogos teriam
localizado na região dos lobos temporais em nosso
cérebro. O "ponto Deus" é também chamado "quo­
ciente espiritual" (QS) ou "inteligência espiritual",
que interage com a "inteligência intelectual" (o fa­
moso QI) e a "inteligência emocional" (QE).
Recentemente, essa potencialidade humana vem
sendo admitida, reconhecida e estudada dentro e ora
dos âmbitos religiosos , entre os quais o cristão.

115
O QUE É ESPIRITUALIDADE?
55

An tes, apen as a filosofia e a teologia se ocupavam dela. H oje, a espirituali-


dade tem um alcan ce m uito m aior. A n eurobiologia, a m edicin a, a psicolo-
gia, a sociologia, a econ om ia e out ras áreas do con hecim en to hum an o
passaram a valorizar e dedicar en ergia ao estudo e à pesquisa sobre o tem a.
A con clusão a que se quer chegar é que “a espiritualidade perten ce ao ho-
m em , e n ão é m on opólio das religiões; an tes, as religiões con stituem um a
das form as de expressão desse ‘pon to D eus’.”1
D eixem os de lado as com plicações filosóficas, teológicas e cien tíficas.
Pod em os d izer, d e form a bast an t e objet iva, qu e a esp irit u alid ad e crist ã
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con siste sim plesm en te n um relacion am en to sério, coeren te, profun do, pro-
gressivo e perm an en te da criatura com o Criador, por m eio da graça m an i-
festada n a pessoa de Jesus Cristo “duran te os seus dias de vida n a terra”
(H b 5:7; N VI ) e da ação con scien tizadora e fortalecedora do Espírito San to
n os dias atuais.
O con trário ético de espiritualidade é a carn alidade. N a espiritualidade,
o ser humano dá de beber ao Espírito Santo que nele habita. N a carnalidade,
dá de beber a seu poten cial pecam in oso, que tam bém m ora n ele (Rm 8:5).
En quan to oposta ao m aterialism o e à carn alidade, a espiritualidade é algo
provisório, uma vereda, uma caminhada desde o Éden (Gn 2:15) até a N ova
Jerusalém (Ap 21:1-27). É um crescen te con tín uo, “com o a luz da aurora,
que brilha cada vez m ais até a plen a claridade do dia” (Pv 4:18; N VI ). D o
lado de cá está a plen itude da pecam in osidade hum an a; do lado de lá, a
plen itude da salvação divin a.
A espiritualidade, com o algo que precisa ser resguardado e am pliado,
deixa de existir fren te à plen itude da salvação, fren te à apoteose que está
para vir. A espiritualidade atual pressupõe um esforço, que se tornará desne-
cessário depois da “glória que em n ós será revelada” (Rm 8:18). Agora ela
n ão está sozin ha, m as depois da “con sum ação do século” (M t 28:20), d e-
p ois d o ad ven t o d o Sen h or “com p od er e m u it a glória” (M t 2 4 :3 0 , a
espiritualidade dom in ará sozin ha, sem tropeço n em in tervalo algum , por-
que “o próprio D eus estará com eles [os sobreviventes, os remidos, os salvos] e
será o seu D eus” (Ap 21:3; N VI ). E isso será para todo o sem pre, por eras
que tom bam sobre eras, n um a sucessão in term in ável.

A Espiritualidade e a Vida Devocional


56 UNIDADE I

D iante desse conceito bíblico, a espiritualidade não é absolutam ente tão


m esquin ha quan to hoje se prega. N ão são os in teresses pessoais relacion a-
dos com saúde, prosperidade, seguran ça e gozo que estão prim ordialm en te
por trás da verdadeira espiritualidade. Tam pouco é un icam en te o m edo da
m orte, do juízo e do in fern o. O tem or do Sen hor, isto é, a n oção da san tida-
de e da m ajestade absolutas de D eus e o respeito a ele devido, este sim , é
um a das m olas propulsoras da espiritualidade.
Acim a de tudo, o que gera a espiritualidade m ais gen uín a, m ais bela,
m ais san ta, m ais profun da, m ais realizadora e m ais agradável é o relacion a-

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m en to da alm a hum an a com D eus com base n o am or recíproco. N a prática
da espiritualidade cristã, o ser hum an o adm ite que D eus o am a e se esforça
para am á-lo acim a de todos e de tudo. D esse am or resulta a feliz com un hão
en tre D eus e o ser hum an o, próxim a daquela que havia en tre am bos an tes
da queda, assim com o daquela que haverá depois da parúsia — a segun da
vin da de Cristo.
A descoberta da espiritualidade n o m un do pós-m odern o tem sido apro-
veitada em m uitos setores e disciplin as, com o n a m edicin a (para produzir
cura, preven ir os riscos de doença, aumentar a longevidade) e na área em-
presarial (para produzir mais contentamento, mais entusiasm o, m ais eficiên-
cia, m ais rendim ento e, naturalm ente, m ais lucros). Todavia, tudo isso deve
ser con siderado subproduto da espiritualidade. O produto m esm o é outro,
m uitas vezes n ão m uito bem com preen dido ou assim ilado pela sociedade
de hoje, orien tada pelo tão alm ejado “sucesso”.

DA SEPARAÇÃO À RE-UNIÃO
O an seio de com un hão m útua é n utrido por am bas as partes. D eus quer
en trar em com un hão com o ser hum an o, e este quer experim en tar a com u-
n hão com D eus. O desejo divin o n ão dim in ui n em aum en ta — até porque
já é alto dem ais, in ten so dem ais, perseveran te dem ais. O desejo do ser
hum an o está escon dido n o fun do do coração, m as é in con stan te quan to à
in ten sidade, à busca e até m esm o quan to à pureza da m otivação — às ve-
zes, lim itada m eram en te ao in teresse m ais m esquin ho.

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
57

D esde quan do a com un hão origin al en tre o Criador e a criatura foi que-
brada ou prejudicada com a prim eira experiên cia pecam in osa, D eus com e-
çou a tom ar providên cias para que ela fosse progressivam en te restaurada.
N a verdade, essas providên cias an tecedem a queda, com o se pode ver espe-
cialm en te em Paulo: “D eus n os escolheu n ele antes da criação do mundo, para
serm os san tos e irrepreen síveis em sua presen ça” (Ef 1:4; N VI ; grifo do au-
tor). Pedro tam bém assevera que Jesus, com o Reden tor, “foi escolhido por
D eus antes da criação do mundo”, em bora ten ha sido “revelado n estes últi-
m os tem pos em ben efício de vocês” (1Pe 1:20; N TLH ; grifo do autor).
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Ali mesmo, no jardim, D eus tomou a primeira providência para diminuir


a desagradável distân cia en tre ele e o hom em , provocada pelo pecado. A
queda gerou n o hom em e n a m ulher a horrível sen sação de n udez dian te de
D eus. Ao ouvir n ão a voz, m as “os passos do Sen hor”, os culpados “escon -
deram -se da presen ça do S EN H O R D eus en tre as árvores do jardim ” (Gn 3:8;
N VI ). Para resolver o problem a, “o S EN H O R fez roupas de pele e com elas
vestiu Adão e sua m ulher” (Gn 3:21; N VI ). Além disso, D eus prean un ciou o
Evan gelho, segun do o qual o descen den te da m ulher passaria pelo Gólgota,
m as esm agaria a cabeça da serpen te (Gn 3:15).
A partir do an ún cio da libertação do jugo egípcio, a Bíblia com eça a
prom eter o fim defin itivo e glorioso do estado de separação en tre o Criador
e a criatura: “Eu os farei m eu povo e serei o D eus de vocês” (Êx 6:7; N VI ).

Esta ben dita esperan ça cam in ha por todo o An tigo Testam en to. En con tra-
se outra vez n o Êxodo (29:45-46), em Levítico (26:12), em Jerem ias (24:7;
31:33; 32:38), em Ezequiel (34:30-31; 36:28; 37:27) e em Zacarias (8:8).
Em O séias está reservado um pequen o susto, quan do o Sen hor orden a
ao profeta que cham e seu terceiro filho de Lo-Am i, “pois vocês n ão são
m eu povo e eu n ão sou seu D eus” (O s 1:9; N VI ). Teria D eus voltado atrás e
sustado a velha esperan ça? M as o Sen hor n ão n os deixa com a respiração
suspen sa por m uito tem po. Logo em seguida, ele con fessa: “Tratarei com
amor aquela que chamei N ão-amada. D irei àquele chamado N ão-meu-povo:
Você é m eu povo; e ele dirá: ‘Tu és o m eu D eus’” (O s 2:23; N VI ).

Além de Paulo, n a segun da epístola aos Corín tios (6:16), o autor da


epístola aos H ebreus tam bém tran screve a fam osa esperan ça: “Serei o seu
D eus, e eles serão o m eu povo” (H b 8:10; N VI ).

A Espiritualidade e a Vida Devocional


58 UNIDADE I

Percebe-se claram en te que essa prom essa de proxim idade do ser hum a-
n o com D eus n ão se refere apen as a certos estágios n a história do povo
eleito, m as em especial à apoteose da salvação. Aquele processo in iciado n o
Éden , ou “an tes da criação do m un do”, chegará à plen itude, de acordo com
o Apocalipse:

Agora o tabern áculo de D eus está com os hom en s, com os quais ele vive-
rá. Eles serão os seus povos; o próprio D eus estará com eles e será o seu
D eus. Ele en xugará dos seus olhos toda lágrim a. N ão haverá m ais m orte,

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n em tristeza, n em choro, n em dor, pois a an tiga ordem já passou.
Apocalipse 2 1 .3 ,4 ; N VI

DIMINUINDO A DISTÂNCIA
U m a vez resolvido o problem a do m edo e da n udez den tro do tem po por
m eio da recon ciliação, o pecador arrepen dido e recon ciliado precisa, en tão,
manter e ampliar sua comunhão com D eus. Assim como há vida social, vida
artística e vida fam iliar, há tam bém vida devocion al. A expressão diz respei-
to à som a de todos os exercícios que produzem , susten tam e aperfeiçoam a
perfeita com un hão en tre aquele que crê e aquele em quem se crê. Esses
exercícios ben eficiam n ão os m úsculos, n em a beleza física ou o in telecto,
m as o relacion am en to do cristão com o Sen hor. Eles dim in uem cada vez
m ais a distân cia en tre um e outro. São capazes de levar o cristão à sobrevi-
vên cia, assim com o à plen itude espiritual.
Em bora devam os cultivar o tem or do Sen hor, o prim eiro e m aior m an -
dam en to n ão é “tem am a D eus”, m as “am em a D eus”. O relacion am en to
m ais elevado firm a-se n o am or. É possível gostar de D eus, sen tir-se bem em
sua presen ça. Precisam os dar vários pulos, e n ão apen as o prim eiro (da
posição de criatura para a posição de filho). O últim o salto an tes da glória
por vir, a ser revelada em n ós, é o da posição de servo para a posição de
am igo: “Já n ão os cham o servos, porque o servo n ão sabe o que o seu
sen hor faz. Em vez disso, eu os ten ho cham ado am igos, porque tudo o que
ouvi de m eu Pai eu lhes torn ei con hecido” (Jo 15:15; N VI ).
Com base n um a passagem de Isaías (41:8), Tiago diz que Abraão “foi
cham ado am igo de D eus” (Tg 2:23). N o en tan to, esse passo adian te n o

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
59

relacion am en t o com o Sen h or d ep en d e d iret am en t e d os cu id ad os d e-


d icados à vida devocion al. Se esses cuidados forem levados a sério e hou-
ver legítima perseverança, o crescim en t o esp irit u al t orn a-se con seqü ên cia
natural.
D eus n ão é um a força, um “gran de poder” (At 8:10), um a im agem caída
do céu (At 19:35; N VI ), um a peça artística talhada em cerâm ica, m adeira,
bron ze, prata ou ouro. Ele é um a pessoa. O hom em tam bém é m uito m ais
que um am on toado de ossos, carn e, n ervos e pele, cheio de laboratórios de
sofisticadas elaborações espalhados pelo corpo. Ele é a coroa da Criação.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Foi criado para “glorificar a D eus e gozá-lo para sem pre”, com o disseram os
teólogos da Assem bléia de Westm in ster. “Com o a corça an seia por águas
corren tes” (Sl 42:1; N VI ), assim o hom em tem den tro de si um profun do
desejo pela presen ça de D eus.
Logo, o hom em só se en con tra, se realiza e se com pleta de fato em
D eus. Até os leigos recon hecem esta prem issa: “Pois n ele vivem os, n os
m ovem os e existim os”, pois “som os descen dên cia dele” (At 17:28; N VI ).

Privar-se da com un hão com D eus é a loucura básica, m ãe de todos os de-


m ais tran storn os, cada um m ais com plexo que o outro. É preciso in augurar
a comunhão com D eus, dar uma form a adequada a ela e prosseguir adiante.
Aquele que um a vez se com prom eteu com D eus deve m over-se até des-
cobrir e explorar os veios cheios de água viva para se m an ter vivo e vigoro-
so, e para participar do desem pen ho da glória de D eus. M ais ain da: precisa
estar sem pre jun to às águas para, depois, torn ar-se rio de águas vivas e
correr pelos desertos alheios. Precisa estar tão cheio que a graça tran sborde
por todos os lados, para o bem dos que ain da n ão a alcan çaram .

A BÍBLIA EM HORÁRIO NOBRE


D esde os tem pos m ais rem otos, D eus fala com o ser hum an o, e este com
D eus. O Sen hor se revela ao ser hum an o, e este ao Sen hor. D eus m ost ra
su a glória, seu am or, seu p od er, su a m isericórd ia, su a san t id ad e, su a
ju st iça. O ser h u m an o m ost ra su a d or, seu sofrim en t o, su a in qu iet ação,
seu s m edos, suas dúvidas, sua carên cia, suas com plexidades, seu pecado,
sua arrogân cia.

A Espiritualidade e a Vida Devocional


60 UNIDADE I

D eus se revela n o m ais in terior e n o m ais exterior. Fala den tro da alm a e
lá fora, n o espaço sideral. Por sua beleza, sua variedade, sua im en sidade,
sua ordem , sua distân cia, “os céus declaram a glória de D eus e o firm am en -
to proclam a a obra das suas m ãos” (Sl 19:1; N VI ). É a revelação n atural,
pois “desde a criação do m un do os atributos in visíveis de D eus, seu etern o
poder e sua n atureza divin a têm sido vistos claram en te” (Rm 1:20; N VI ).
O veículo pelo qual D eus se revela de m odo extraordin ário e suficien te
é a Bíblia, m uito apropriadam en te cham ada “Palavra de D eus”. N ão há
n en hum a razão para duvidar das Escrituras Sagradas. Elas com põem a ún i-

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ca regra escrita de fé e prática. A Bíblia é a gu ard iã d a t eologia e d a ét ica.
É a fon te prim ária do con hecim en to, das n orm as, da fé, da esperan ça. Ela
fala do prin cípio de tudo — “N o p rin cíp io criou D eu s os céu s e a t erra”
(G n 1:1). Ela fala do fim de tudo — “O s céus desaparecerão com um gran -
de estron do, os elem en tos serão desfeitos pelo calor, e a terra, e tudo o que
n ela há, será desn udada” (2Pe 3:10; N VI ).

A Bíblia den un cia, explica e con den a o pecado. Apresen ta a ún ica solu-
ção para o pecado e revela aquele que tira o pecado do m un do (Jo 1:29).
Ela con ta a história com pleta da salvação, sem pre e etern am en te am arrada
a Jesus Cristo. As Escrituras n ão escon dem n em a tragédia do pecado origi-
n al n em a gloriosa apoteose fin al.
É n a leitura da Palavra de D eus que o hom em pode ouvir a voz do Se-
n hor com seguran ça. En tretan to n em toda leitura bíblica é devocion al. É
preciso defin ir bem o propósito da leitura a que se propõe. Existe a leitura
acadêmica (em busca de con hecim en to), a leitura homilética (em busca de
serm ão), a leitura apologética (em busca de argum en tos) e a leitura supersti-
ciosa (em busca de recadinhos da parte de D eus).
N a leitura devocion al, a prática da leitura da Bíblia é a arte de procurar
o Sen hor até achar, de perceber toda a riqueza que está por trás da m era
letra, de ouvir a voz de D eus, de relacion ar texto com texto, de sugar todo
o leite contido na Palavra revelada e escrita, tanto nas passagens m ais claras
quan to n as aparen tem en te m en os atraen tes, m edian te a leitura respon sá-
vel e o auxílio do Espírito San to.

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
61

H á três m odalidades de leitura que dificilm en te produzem bon s resulta-


dos: a leitura formal, por força da tradição ou do hábito; a leitura esporádica,
própria de ocasiões especiais; e a leitura desordenada, n a qual o leitor en con -
tra versículos soltos, sem con texto, ao abrir aleatoriam en te a Bíblia. N a
leitura proveitosa, a Palavra de D eus é ingerida ou assimilada pelo leitor e
digerida ou processada pela graça de D eus.
Foi o que o Sen hor orden ou ao profeta Ezequiel: “Filho do hom em ,
com a est e rolo qu e est ou lh e d an d o e en ch a o seu est ôm ago com ele”
(Ez 3:3; N VI ). A resposta de Jesus ao D iabo corrobora essa idéia: “N ão só
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de pão viverá o hom em , m as de toda palavra que procede da boca de D eus”


(M t 4:4; N VI ). U m a vez in gerida, isto é, lida de form a respon sável, a Pala-
vra de D eus n ão voltará para ele vazia, “m as fará o que desejo e atin girá o
propósito para o qual a enviei” (Is 55:11; N VI ). Isto acon tece graças ao valor
in trín seco das Escrituras e à ação do Espírito.
Além de ler (tom ar con hecim en to do texto), é n ecessário meditar (ficar
por den tro do texto), consultar passagen s paralelas (relacion ar texto com
texto), memorizar ou in culcar (D t 6.7) ou guardar “n o fun do do coração”
(Pv 4:21; N VI ) a Palavra de D eus (m eter n a cabeça, guardar n a despen sa
in terior) e se lembrar do texto lido em ocasião oportun a (retirar da despen -
sa in terior o que foi arm azen ado e servir-se deste estoque à von tade, sem
reservas).
A leitura devocion al da Bíblia n ão proporcion a apen as con hecim en to.
Ela gera progressivam en te, de m odo con scien te ou n ão, riquezas espirituais
de in con testável valor, com o fé, con vicção, pon tos de apoio, esperan ça, se-
guran ça, form ação e direção. Lida de m an eira cuidadosa, a Palavra de D eus
desce à m em ória e aos porões do subcon scien te para form ar um a bagagem
in estim ável. É daí que vem a m en te bíblica, com a qual se pode ler com
m ais proveito e com m en os desgaste em ocion al o desen rolar da história.
As Escrituras en cerram a auto-revelação de D eus e expressam toda a
von tade de D eus em m atéria de fé e com portam en to. Elas são um a espécie
de biografia de D eus, e, com o tal, dificultam as in terpretações errôn eas,
im precisas, distorcidas e in com pletas do Criador. A Bíblia produz tan to a
con vicção d o p ecad o qu an t o a con vicção d o p erd ão (n u n ca a sen sação

A Espiritualidade e a Vida Devocional


62 UNIDADE I

d e in ocên cia). Em resum o, ela é com o “um a can deia que brilha em lugar
escuro, até que o dia clareie e a estrela da alva n asça n o coração de vocês”
(2Pe 1:19; N VI ).

U m a leitura proveitosa da Palavra de D eus exige horário n obre, a crité-


rio de cada leitor. Com m uito acerto, é quase un ân im e a opin ião de que o
m elhor m om en to para ler a Bíblia é n o in ício do dia. U m a dessas vozes é
John Stott: “O ideal seria que esta fosse a prim eira coisa a ser feita pela
m an hã e a últim a à n oite, algo que deveríam os m an ter com o um com pro-
m isso sagrado com D eus”. 2

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Som os costum eiram en te estim ulados a ler todo o con teúdo da Bíblia
Sagrada den tro do espaço de um an o. O m ais im portan te, porém , n ão é a
quan tidade de capítulos lidos, m as a qualidade da leitura. É bom con sultar
outras versões além daquela que se costum a ler para en ten der m elhor a
m en sagem do texto e en con trar o m esm o recado em outras palavras. Para
reforçar e aum en tar o gosto pela leitura sistem ática da Palavra de D eus, é
bom t om ar con h ecim en t o d o ap reço a ela d em on st rad o p elo au t or d o
salm o 119:

Guardei n o coração a tua palavra para n ão pecar con tra ti (v. 11)
Com os lábios repito todas as leis que prom ulgaste (v. 13)
M editarei n os teus preceitos (v. 15)
Apego-m e aos teus testem un hos, ó Sen hor (v. 31)
Com o an seio pelos teus preceitos (v. 40)
Ten ho prazer n os teus m an dam en tos (v. 47)
N a tua palavra coloquei a m in ha esperan ça (v. 74)
Busco os teus preceitos (v. 94)
Eu am o os teus m an dam en tos m ais do que o ouro, m ais do que o ouro
puro (v. 127)
Eu n ão m e desvio dos teus estatutos (v. 157)
Pratico os teus m an dam en tos (v. 166)

ORAÇÃO PARA ENRIQUECER A ESPIRITUALIDADE


Se D eus existe, se D eus é o criador e o susten tador de todas as coisas
visíveis e in visíveis, se D eu s t em au t orid ad e sobre t u d o e sobre t od os,

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
63

en tão a oração é in evit ável. Essa esp on t an eid ad e e essa n ecessid ad e d e


orar aum en ta quan do o ser h u m an o d escobre qu e carrega d en t ro d e si
u m a fagulha divin a e sen te algo parecido com um a certa saudade de D eus.
Todavia, há m ais um a coisa que in ten sifica a oração: é quan do aquele que
ora se dá con ta de que D eus tem falado “m uitas vezes e de várias m an eiras”
(H b 1:1; N VI ), seja por revelação n atural ou por algum tipo de revelação
especial. Falam os com D eus porque ele falou con osco prim eiro, assim com o
“n ós am am os porque ele n os am ou prim eiro” (1Jo 4:19; N VI ).
A oração é um a explosão da alm a. É por isso que ela existe praticam en te
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em todas as religiões, até m esm o n as m ais prim itivas. É tam bém por essa
razão que é usada e en sin ada n os exercícios de auto-ajuda e em livros secu-
lares. N a con cepção m ais profun da, a oração é a capacidade que o cristão
tem de en trar n o San to dos San tos e de se colocar ousadam en te, em espíri-
to e pela fé, n a presen ça de D eus, falan do-lhe com toda liberdade pela
p alavra au d ível ou silen ciosa, valen d o-se d o sacrifício vicário d e Jesu s
(H b 4:14-16).
A oração é o in strum en to pelo qual o fiel recon hece, ao m esm o tem po,
duas verdades m uito solenes: a hum ilhante estreiteza dos próprios recursos
e a gloriosa largueza dos recursos do am or, da m isericórdia e do poder de
D eus. Fin alm en te (se é possível usar est a p alavra), a oração é a ou t ra via
d e com un hão com D eus: n a prim eira (a leitura cuidadosa da Palavra de
D eus), o Sen hor fala com o cristão; n a segun da (a prática cuidadosa da
oração), o cristão fala com D eus.
A m aioria dos cristãos que ora só percebe os ben efícios de ordem con -
creta da oração. D e fato, D eus respon de às orações n ão n ecessariam en te
com o são feitas, m as a seu m odo, a seu tem po e de acordo com sua sobera-
nia. Ele “é capaz de fazer infinitam ente m ais do que tudo o que pedim os ou
pen sam os, de acordo com o seu poder que atua em n ós” (Ef 3:20).
O s outros ben efícios são tão reais e valiosos com o os prim eiros. D izem
respeito à saúde em ocion al e ao crescim en to espiritual.
Por m eio da oração bem -feita é possível superar a an siedade, o m edo, a
an gústia, a ten são, o sen tim en t o d e cu lp a, cert os t ip os d e d ep ressão e

A Espiritualidade e a Vida Devocional


64 UNIDADE I

ou tros estados de espírito desagradáveis. A oração gera a en ergia espiritual


n ecessária para en fren tar as dificuldades, as situações com plexas e a dor.
A oração é, tam bém , um precioso in strum en to para in duzir ao exercício
da piedade e da disciplin a pessoal, ajustan do o cren te aos padrões de fé e
com portam en to. Ele é ouvido em suas orações n a m edida de sua perm a-
n ên cia em Cristo e da perm an ên cia das palavras de Cristo n ele (Jo 15:6). A
situação n ão é tão côm oda quan to se pen sa, pois “se alguém se recusa a
ouvir a lei, até suas orações serão detestáveis” (Pv 28:9; N VI ). O m au rela-
cion am en to en tre m arido e m ulher pode atrapalhar as orações (1Pe 3:7).

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Q uan do um a pessoa recon hece que n ão pode dispen sar D eus e precisa
ser ouvida por ele, ela prefere arrumar-se dian te do Sen hor a n ão ser ouvida
em suas orações. O m elhor exem plo desse ben efício espiritual da oração é
Jacó. Q uan do recorreu a D eus para livrá-lo das m ãos de Esaú, que vin ha ao
seu en con tro com quatrocen tos hom en s arm ados, o Sen hor lutou com Jacó
até ele ter con sciên cia do crim e com etido con tra o pai e o irm ão gêm eo.
Aquele patriarca só obteve vitória sobre D eus depois de o Sen hor obter
vitória sobre ele. A luta de D eus con tra Jacó acon teceu do lado de cá da
passagem de Jaboque, a sós, e durou a n oite in teira (Gn 32:22-31).
N ão é pecado pedir. N ão é preciso trocar a súplica pela adoração, com o
já se sugeriu. A oração é m uito m ais que en um erar pedidos. N a Bíblia há
orações de adoração, de ações de graça, de extravasam en to, de con fissão, de
intercessão, de lam úrias e de súplicas. N a adoração, o cristão exalta o caráter
de D eus, adm ira-o pela beleza da Criação e se delicia com o próprio D eus.
N as ações de graça, ele agradece as m an ifestações públicas e particulares da
m isericórdia, do am or e do poder de D eus em sua vida, em sua fam ília e em
sua com unidade.
N o extravasamento, o cristão derram a a alm a dian te de D eus, extern a
suas in seguran ças e seus m edos abertam en te, sem escon der coisa algum a,
com o propósito de descan sar n o Sen hor. N a confissão, abre-se e con ta a
D eus quan to é corrom pido por den tro. Apon ta suas m azelas e fraquezas,
adm itin do sem pre a própria culpa, sem dividi-la com quem quer que seja, e
pede a m isericórdia divin a.

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
65

N a intercessão, o cristão ora a propósito das n ecessidades, dos sofrim en -


tos e problem as alheios e m assacran do o in dividualism o e o egoísm o e
exercitan do a fratern idade e o altruísm o. N as lamúrias, declara sua profun -
da tristeza com acon tecim en tos e procedim en tos in felizes e freqüen tem en -
te irreversíveis (até a volta de Jesus), com a queda do ser hum an o, o pecado
laten te, a corrupção gen eralizada, a rejeição de Cristo, as estruturas in jus-
tas, os escân dalos, as guerras etc. Assim com o Jerem ias lam en tou a queda
de Jerusalém , Raquel lam en tou a m orte de seus filhos, Jesus lam en tou a
recusa de Jerusalém em discern i-lo com o o Filho de D eus e Paulo lam en tou
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a ign orân cia judaica da justiça que vem de D eus.


N a súplica, o cristão apresen ta suas n ecessidades pessoais, fam iliares e
com unitárias, costum eiras ou esporádicas, e clam a pela intervenção am oro-
sa e sábia de D eus.
É preciso descobrir a beleza da oração preven tiva, da oração vigilan te e
da oração in ten siva.
N a oração preventiva, o cristão ora an tes da tem pestade, an tes da ten ta-
ção, an tes da crise. O ra a tem po, e n ão tarde dem ais. O m elhor exem plo da
oração preventiva acha-se na oração dominical: “N ão nos deixes cair em ten-
tação, m as livra-n os do m al” (M t 6:13; N VI ). Jesus orou preven tivam en te
por Pedro: “Simão, Simão, Satanás pediu vocês para peneirá-los como trigo.
M as eu orei por você, para que a sua fé n ão desfaleça” (Lc 22:31-32; N VI ).
N a oração vigilante, o cristão associa a oração à vigilância, de acordo com
o con selho de Jesus: “Vigiem e orem para que n ão caiam em ten tação [pois]
o espírito está pron to, m as a carn e é fraca” (M t 26:41; N VI ).
N a oração intensiva, o cristão ora m ais vezes, com m ais tem po e m ais
propriedade. Este tipo de oração é oportun a para um a situação m uito com -
plexa e difícil. Até Jesus precisou dela: “Estan do an gustiado, ele orou ain da
m ais in ten sam en te” (Lc 22:44; N VI ).
As Escrituras con den am a associação da oração com as vãs repetições e
com o egoísm o e o con sum ism o. É Jesus quem aborda a prim eira: “Q uan do
orarem , n ão fiquem sem pre repetin do a m esm a coisa, com o fazem os pa-
gãos” (M t 6:7; N VI ). À luz da parábola da viúva persisten te (Lc 18:1-8) e da
in sistên cia das orações con t id as n os salm os, p ercebe-se qu e Jesu s est á

A Espiritualidade e a Vida Devocional


66 UNIDADE I

recrim in an do apen as a verborragia das orações pagãs e a idéia errada de


que D eus se im pression a com o volum e de oração. É Tiago quem aborda a
segun da: “Q uan do [vocês] pedem , n ão recebem , pois pedem por m otivos
errad os, p ara gast ar em seu s prazeres” (Tg 4:3; N VI ). É m uito m ais apro-
priado orar em favor das riquezas do Rein o de D eus que orar por ben s
m ateriais supérfluos e de con otação egocên trica.
N aturalm ente, deve-se repudiar tam bém o vínculo da oração com a inér-
cia. O cristão precisa agir com o N eem ias, que com bin ava oração com ação
(N e 2:4; 4:9). Precisa ouvir o en sin o do reform ador Lutero e do con tra-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
reform ador Loyola, un ân im es a esse respeito. O prim eiro dizia: “Precisa-
m os orar com o se todo trabalho fosse in útil e trabalhar com o se todo orar
fosse em vão.” O segun do afirm ou: “D evem os orar com o se tudo depen -
desse de D eus e trabalhar com o se tudo depen desse de n ós.”
A espiritualidade hum an a precisa de vida devocion al séria para n ão se
perder, para não enveredar por cam inhos que não levam a lugar algum , para
n ão se secularizar. An tes de ser objeto de pesquisas cien tíficas, a espiritua-
lidade é a presen ça de D eus n o ser hum an o, in duzin do-o a adorá-lo em
espírito e em verdade (Jo 4:24). É preciso tom ar todo o cuidado para n ão
tran sform ar a espiritualidade cristã em ciên cia e m ercado. Basta o crim e já
com etido de fazer da casa de oração um covil de ladrões, con form e den ún -
cia de Jesus (M t 21:13)!

Notas
1
BOFF Leonardo. “ ‘Ponto D eus’ no cérebro”, in Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 de dezem-
bro de 2003, p. A-13.
2
S TO TT , John . Firmados na fé. Curitiba: En con tro, 2004, p. 169.

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
67

A ESPIRITUALIDADE E A EXPERIÊNCIA COTIDIANA


Ü ESTRESSE E A
ESPIRITUALIDADE
O ESTRESSE E A ESPIRITUALIDADE INTEGRAL
INTEGRAL

�Ed René Kivitz 1


Tólogo, escritor e
conferencista. Desde
1989, desenvolve seu
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


ministério pastoral na
Igreja Batista de Água
Branca, em São Paulo. passava da meia-noite quando o telefone de casa
É fundador e diretor tocou. Do outro lado da linha, uma voz hesitante de
presidente da Galilea mulher: "Pastor, por favor venha correndo. Meu ma­
Consultoria e rido está embriagado, e meu filho está com o Diabo
Treinamento, que no corpo. Eles estão se matando." Minhas tentativas
promove palestras,
de encontrar um companheiro, sempre recomendá­
seminários e projetos
vel para essas ocasiões pastorais, falharam, e de sú­
de espiritualidade no
bito me percebi sozinho, entrando num quarto mal
mundo corporativo. É
autor de Vvendo om iluminado com as paredes repletas de fots de aviões
popsits, publicado de guerra e batalhas campais, tendo diante de mim
ela Editora Mundo um rapaz ardado, que empunhava uma aca enorme.
Cristão. - Você é o pastor que veio me falar de Deus? -
perguntou, em tom gutural.
- Sou - respondi.
- Então pode ir embora porque eu já conheço
Deus - disse ele.
- Como é o nome dele? - perguntei, com uma
ousadia que não imaginei que tivesse, e recebi como
resposta um olhar cheio de ódio, que funcionava
como alavanca para que aquele rapaz se precipitas­
se contra mim.
Você pode imaginar aquele rapaz em surto.
Entretanto jamais conseguiria convencer aquela

181
A Espiritualidade e a Experiência Cotidiana
68 UNIDADE I

m ãe, rod ead a p or d u as crian cin h as assu st ad as e u m m arid o em briagado,


am on toado sobre a cam a sob efeito de sedativos, que n ão estava fren te a
fren te com o dem ôn io. N a verdade, seria difícil você m esm o se con ven cer
do con trário, ao ouvir o urro do rapaz quan do eu disse que o n om e de D eus
era Jesus.
N em sem pre as pessoas com quem con verso estão em situações tão ex-
trem as, m as geralm en te vivem sob um a pressão que se equivale, em tem os
de perplexidade e sofrim en to. N os últim os 18 an os, m in ha atividade com o
pastor em uma comunidade cristã me tem colocado constantemente ao lado

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de pessoas para quem a vida está sen do cruel. N a verdade, m in ha rotin a
pastoral n ão difere m uito da rotin a de vários escritórios de advogados, con -
sultórios m édicos e psiquiátricos e clín icas psicológicas. A diferen ça é que
as pessoas que passam pela porta de m in ha sala n ão estão em busca de
orien tação jurídica n em de processos terapêuticos. M uitas delas, in clusive,
já percorreram estes cam inhos e experim entaram grande frustração e deses-
perança.
O que as pessoas buscam quan do discam o n úm ero do m eu telefon e é
sim plesm ente um encontro com D eus. Algum as delas acreditam firm em en-
te que, quan do cruzam a porta da m in ha sala, com eçam a pisar em solo
sagrado.
Ain da guardo a im agem de dois joven s que m e procuraram para repartir
o peso de um a gravidez in esperada. Sen tada à m in ha fren te, a m oça chora-
va sob um peso m isto de culpa e vergon ha, gerado tan to pela con sideração
da hipótese de um aborto quan to pelo seu histórico religioso, um a vez que
sua form ação evan gélica lhe dera um padrão m oral, ferido pela vivên cia
extracon jugal. O que m e surpreen deu, en tretan to, foram as palavras do ra-
paz, que n ão con cordava com as cren ças da m oça: “Eu n ão sei m uito bem
por que, m as ten ho a sen sação de que furei com o cara lá em cima. Sei que o
telefon e d ele est á n a su a m esa, e gost aria qu e você falasse com ele em
m eu n om e.”
Sem pre que m e coloco dian te de alguém em busca de cuidado pastoral,
fecho os olhos em oração e respiro fun do. N a m aioria das vezes, descon he-
ço com pletam en te a razão pela qual estou sen do procurado. M as sei que
aquele en con t ro n ão é o p rim eiro em bu sca d e alívio ou solu ção. Além

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
69

d isso, a busca espiritual geralm en te fica n o dia seguin te do divórcio, da


dem issão, d a m ort e, d o est u p ro, d o abort o, d o d iagn óst ico in d esejad o,
do filho drogado, da frustração religiosa e da an gústia existen cial.
D epois desses anos de intensa atividade pastoral, perdi a conta de quantas
pessoas já recon struíram a vida em razão de um a n ova perspectiva que
adquiriram . U m a vez que olham o m un do com as len tes espirituais, o un i-
verso se abre para opções que pareciam in acessíveis. M in ha m aior alegria é
ver pessoas descobrirem o sign ificado das palavras de Jó, person agem bíbli-
co, a respeito de D eus: “Eu te con hecia só de ouvir, m as agora os m eus
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olhos te vêem ”. 1
Foi n os in con táveis en con tros e diálogos pastorais que apren di um pou-
co a respeito de estresse e espiritualidade. E por esta razão m e aven turo a
com partilhar com você um cam in ho que ajuda a lidar com as con tradições
da alm a e con duz para fora do labirin to das em oções con flituosas.

O QUE É O ESTRESSE?
A palavra estresse foi em prestada da en gen haria e defin e a pressão m áxim a
(stress) que um organ ism o agüen ta sem se deform ar. A con otação atual,
apesar de diversa e ainda sem um a definição aceita un iversalm ente, diz que
estresse é o desequilíbrio do corpo/mente, resultante da tentativa de adaptação às
pressões internas e externas. U m a pessoa estressada tem suas dim en sões orgâ-
n ica e psíquica alteradas, fora dos padrões ideais de fun cion am en to. U m
elástico m uito esticado, prestes a arreben tar.
As pressões in tern as e extern as que todos n ós sofrem os podem ser cha-
m adas “fatores estressan tes”, que n ada m ais são do que in form ações que
exigem um a resposta m en tal ou orgân ica acim a do n orm al ou duran te um
período longo dem ais. Por exem plo, quando um a bola é chutada com força,
sofre momentânea deformação, mas logo volta ao normal. Entretanto, quan-
do alguém sen ta sobre a bola e assim perm an ece m uito tem po, ela ten de a
ficar oval. Este quadro m ostra dois tipos de estresse. O prim eiro é o estres-
se m om en tân eo, vital em m uitos casos, pois n os coloca em estado de alerta
e n os capacita para reagir às pressões e am eaças. O segun do é um estresse
con stan te, que provoca abalos em n ossa estrutura orgân ica e m en tal.

A Espiritualidade e a Experiência Cotidiana


70 UNIDADE I

Anato m ia do e s tre s s e
D ian te de um a am eaça, o cérebro en tra em ação,2 orden an do um a dose
extra de adren alin a n a corren te san güín ea, o que altera a quím ica cerebral
— especialm en t e d os n eu rot ran sm issores: d opam in a, n orad ren alin a e
seroton in a — respon sável pelo fluxo de in form ações que desen cadeia as
orden s que o cérebro dá ao restan te do organ ism o. Com as in form ações
distribuídas pelo corpo, aum en tam as velocidades psicom otoras de pen sa-
m en to e aten ção, m ultiplican do as possibilidades e a força de resposta às

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am eaças percebidas. A rotin a do organ ism o altera-se e prepara-se para agir
im ediat am en t e: o rit m o da respiração fica m ais rápido, para m an t er a
oxigen ação do san gue; as artérias se con traem , para reduzir o suprim en to
de san gue n os órgãos vitais; os m úsculos ficam ten sion ados e recebem um a
quan tidade de san gue acim a do n orm al; os batim en tos cardíacos aceleram
com o form a de poten cializar a irrigação san güín ea de órgãos vitais do orga-
n ism o, en tre eles o cérebro, os m úsculos e os pulm ões; os rin s passam a
fun cion ar com m ais in ten sidade, para elim in ar a carga extra de toxin as.

Po rta de e ntrada n° 1 para o e s tre s s e : m e tabo lis m o alte rado


En quan to o organ ism o está sob ten são, seus com an dos de defesa perm an e-
cem ativados, alteran do todo o m etabolism o. A m udan ça n o fun cion am en -
to do organ ism o provoca alterações in ten sas n as estruturas do cérebro.3
Trata-se de um globo que pesa, em m édia, 1,36 kg e é com posto por m ais
de 100 bilhões de células n ervosas, que se com un icam en tre si através dos
n eurotran sm issores, en tre eles a dopam in a, a n oradren alin a e a seroton in a,
esta cham ada “m olécula da felicidade” por ser respon sável por fazer que o
cérebro com an de o organ ism o adequadam en te. Cada célula n ervosa pode
se com un icar com at é seis m il ou t ras célu las, t ot alizan d o cerca d e cem
t rilh ões de con exões a cada instan te. Cada pen sam en to, ação ou palavra
d eriva d e t rilh ões e t rilh ões d e co n exõ es en t re célu las n er vo sas. A
d isfu n ção n a com un icação en tre as células n ervosas do cérebro afeta n ão
apen as o organ ism o físico, com o tam bém o com portam en to e a postura
dian te da vida.

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
71

Fui procurado, certa vez, por um hom em n a faixa dos trin ta an os, acos-
tum ado a experiên cias n ão m uito con ven cion ais, com o saltar de pára-que-
das, por exem plo. Certa n oite, deitou-se para dorm ir pen san do n o vôo com
destin o a Belo H orizon t e agen d ad o p ara o d ia segu in t e. A m an h ã, p o-
rém , ch egou com um pân ico im obilizador que o m an teve n a cam a, tran s-
form an d o as resp on sabilid ad es rot in eiras em m on st ru osas am eaças. A
sim ples idéia de entrar em um avião trazia um pavor insuportável. D a noite
para o dia, a ousadia que o im pulsion ava a saltar da porta do avião para o
vazio torn ara-se um pân ico que o im pedia de atravessar a porta do avião.
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Geralm en te, os que rodeiam a pessoa estrassada lhe dizem que deve
“ter m ais fé e con fian ça em D eus” ou apren der a “con trolar m elhor o tem -
p eram en t o”. Em ou t ras p alavras, elas avaliam o com p ort am en t o d o
estressado como resultado de uma incapacidade psíquica e emocional, quan-
do, n a verdade, ele resulta de um a disfun ção orgân ica, isto é, um a alteração
n a quím ica do cérebro. A resposta adequada n a situação de alteração quí-
m ica e disfun ção orgân ica n ão é a fé, o autocon trole ou m elhor geren cia-
m en to da agen da, m as um a m edicação adequada, capaz de reequilibrar a
quím ica do cérebro e devolver-lhe a capacidade psíquica e em ocion al.

Po rta de e ntrada n° 2 para o e s tre s s e : a im ag inação


Cada con exão en tre as células n ervosas realizada através dos n eurotran s-
m issores é arquivada pelo cérebro. As palavras, os sen tim en tos, as im agen s
e os pen sam en tos são resultados de padrões de organ ização das células
n ervosas. Algo com o um a m on tagem de Lego, aquele brin quedo de peças
de en caixe que as crian ças usam para m on tar casin has, carrin hos e tudo o
que sua en gen hosidade perm ite.
O dr. H erbert Ben son , da Faculdade de M edicin a de H arvard, afirm a:

U m a im agem é form ada quan do um determ in ado grupo de células é ati-


vado. Para recordar aquela im agem , o cérebro recon strói o grupo de célu-
las post o em at ividade an t eriorm en t e. Padrões de at ivação cerebral são
arm azen ados e recordados: para reviver um a m em ória, o cérebro con vo-
ca os m esm os at ores. Est e pad rão d e at ivid ad e d o cérebro, n ecessário

A Espiritualidade e a Experiência Cotidiana


72 UNIDADE I

para evocar tal im agem , é, às vezes, cham ado de n euroassin atura. Todos
os acon tecim en tos e em oções de n ossas vidas têm n euroassin aturas.4

O que o dr. Ben son cham a “n euroassin atura” cham arem os “legos mentais”,
em que cada pecin ha do jogo correspon de a um a célula n ervosa. N este
caso, im agin e que você alim en te con stan tem en te o cérebro com in form a-
ções negativas. Abre um arquivo e denom ina-o “lixo psíquico”. Em seguida,
você evoca registros de m ágoas, perdas, prejuízos causados ou sofridos,
am eaças de sobrevivên cia, m ás n otícias diárias e outras porcarias que deve-

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riam ter sido equacion adas e jogadas fora. Você m an tém um a gaveta cheia
de legos de monstros den tro da m en te. Isto tudo sign ifica que seu cérebro está
receben do con stan tes com un icações de am eaças.
O cérebro n ão sabe distin guir en tre um a am eaça real e outra im agin ária.
Q uan do a m en te apresen ta um lego de monstro, ele n ão sabe se aquele m on s-
tro é im agin ação ou im agem captada da realidade. Por exem plo, ao son har
que está sen do perseguido, as batidas do coração aceleram -se com o se você
estivesse realm en te fugin do. Tão logo o cérebro captou a m en sagem de
am eaça, descarregou adrenalina na corrente sangüínea e preparou seu orga-
nism o para correr sem olhar para trás. O cérebro não sabia que se tratava de
son ho, m an dou o coração bom bear m ais rápido, e o coração obedeceu.
Atravessei um a n oite escura jun to com um am igo. Seu pai ficou hospita-
lizado duran te algun s m eses an tes de falecer. As horas de expectativa n os
corredores dos hospitais e ao lado do leito do pai adorm ecido, som adas à
con vivên cia com registros m en tais e em ocion ais n ão equacion ados e m e-
m órias viven ciais am orosas, foram suficien tes para alterar o m etabolism o
do organ ism o, ain da que de form a im perceptível. Seu coração batia 130
vezes por m in uto, o que o im pedia de doar san gue para o pai. A pressão
arterial elevada fun cion ava com o in im iga da solidariedade m ais desejada.
O que há de espan toso n isso? O fato de que m eu am igo repetia para as
en ferm eiras: “M as estou calm o, estou calm o.”
Este processo equivale a um con jun to de trilhões e trilhões de con exões
dan osas de células n ervosas. U m a vez que o cérebro está repleto de in for-
m ações n egativas, os m ecan ism os de defesa vivem ativados e o organ ism o

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
73

passa a fun cion ar sob pressão. Com o o m etabolism o alterado, ele vai aos
poucos in ten sifican do os abalos n a estrutura quím ica cerebral. Em pouco
tem po, aquilo que era in icialm en te um a postura m en tal in adequada, ape-
nas um lego imaginário, torna-se tam bém um desequilíbrio orgânico. A partir
desse pon to, o organ ism o e a m en te passam a se retroalim en tar. Resultado:
pan e geral. O elástico que estava esticado — isto é, estressado — arreben ta
em algum m om en to in esperado.
Podem os com preen der que esses legos mentais n ão tratam apen as de es-
truturas de células n ervosas, o que é orgân ico, m as afetam radicalm en te
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n ossa estrutura de pen sam en to e posturas dian te da vida, o que im plica


dizer que possuem um a dim en são psíquico-em ocion al. Verem os isso m ais
adiante.

Os s into m as do e s tre s s e
O estresse afeta radicalm en te o corpo, a m en te, as em oções e a von tade.
M ichael An ton i, psicólogo da U n iversidade de M iam i, com pilou um a lista
de sin tom as que n os ajuda a avaliar os estragos causados pelo estresse. 5
N o corpo, o estresse é percebido através de dores m usculares de cabeça
de de estôm ago, tran spiração, sen sação de desm aio im in en te, de sufoca-
m en to, n áusea, vôm ito, in testin o solto, con stipação, freqüên cia e urgên cia
para urin ar, perda de in teresse n o sexo, can saço, calafrios ou trem ores, per-
da ou gan ho de peso, aten ção exagerada aos batim en tos cardíacos.
O estresse afeta tam bém as em oções porque o estressado fica vuln erá-
vel ao pân ico. Experim en t a an sied ad e profu n d a, d epressão, an gú st ia,
irritabilidade, in quietação, in capacidade de relaxar e desejos in ten sos de
fuga.
O estresse afeta a von tade porque este desequilíbrio em ocion al e orgâ-
n ico leva o estressado a ren der-se às possíveis soluções con ven ien tes e m e-
n os custosas, in cluin do perda da capacidade de reagir con tra os fatores de
desequilíbrio. H á m om en tos em que a con sciên cia apon ta n a direção A e
n ossa von tade, escravizada e depen den te, m ostra a direção B. Coisas com o
“Eu sei que n ão devo, m as é só m ais um pedacin ho”; ou: “Eu devia estar

A Espiritualidade e a Experiência Cotidiana


74 UNIDADE I

assistin do à apresen tação de balé da m in ha filha.” O s sin tom as dessa perda


de con trole sobre si m esm o são: problem as para dorm ir, n ervosism o, tre-
m ores in fun dados, choro descon trolado.
A m en te tam bém sofre com o estresse. A pessoa estressada vive an siosa,
com dificuldade de con cen tração, problem as com a m em ória e m ergulhada
em devan eios e abstrações.

So luçõ e s paliativas

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As propostas atuais para o com bate ao estresse dizem algo com o “apren da
a con viver com a pressão e tom e providên cias para que seus efeitos sejam
am en izados”. Essas propostas são paliativas por duas razões. Prim eiro por-
que tratam apen as da adaptação e/ou da gestão do estresse. N ão afetam
sua raiz: a m en te, que com un ica am eaças ao cérebro, que por sua vez ativa
os m ecan ism os de defesa, alteran do o m etabolism o do corpo e m an ten do-
o alterado en quan to estiver receben do com un icação de am eaças. Em se-
gundo lugar, as propostas sugerem que a solução para o estresse encontra-se
den tro do próprio com plexo estressado: disciplin e sua von tade, cuide do
corpo, con trole a m en te e equilibre as em oções — justam en te as áreas afe-
tadas pelo estresse.
O cam inho alternativo deve atentar para essas duas dificuldades. D e um
lado, deve ser um a via que possibilite a adm in istração dos legos de monstros,
im agin ários ou reais. Con form e disse Shakespeare: “as coisas raram en te
são boas ou m ás, n osso pen sam en to é que as faz assim ”. N este caso, a
situação interpretada como ameaça pode ser vista como oportunidade, como
diziam os chin eses, que usam o m esm o ideogram a para am bas as possibili-
dades. A m esm a coisa diz a sabedoria do Talm ude, o livro da sabedoria
judaico: “N ão vem os as coisas com o elas são, m as com o n ós som os.”
Por outro lado, o cam in ho altern ativo para a solução do estresse deve
acessar recu rsos qu e est ão além d o com p lexo biop síqu ico est ressad o.
D eve buscar, em outra fon te n ão afetada pelo estresse, os recursos que n ão
apen as n eutralizam a sen sação prolon gada de am eaça, com o tam bém pro-
m ovem o reequilíbrio do com plexo já estressado.

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
75

A TRADIÇÃO MEDITATIVA
Sem pre m e in com odou a razão que levou Jesus a en sin ar um a oração, em
vez de apen as um jeito de orar. Ten do dito que a oração jam ais deveria se
tran sform ar em m era repetição, aquela que recitou torn ou-se exatam en te
um m odelo reproduzido exaustivam en te, até m esm o sem m uita con sciên -
cia do que está sen do dito.
Este fen ôm en o possui duas in terpretações possíveis. A prim eira, e m ais
sim ples, é que m uitas pessoas realm en te n ão en ten deram o que Jesus pre-
ten dia. São pessoas que acreditam que a m era repetição é poderosa em si
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m esm a, com o se as palavras recitadas fossem m ágicas, um tipo de m an tra


ou um “abre-te, Sésam o” para o m un do espiritual. In felizm en te, as coisas
n ão fun cion am assim , e m uita gen te perm an ece n um prim itivism o religio-
so, sem tran scen der n a direção de D eus, apesar de repetir bastan te a oração
do “Pai N osso”.
Existe, porém , outra explicação possível para o fato de Jesus ter en sin a-
do um a oração específica, com um conteúdo elem entar, que pode e deve ser
in terpretado. N este pon to, devem os in serir n a prática da oração a tradição
meditativa do O riente, certamente muito conhecida por Jesus. A meditação
é um estado profun do de in trospecção, que possui basicam en t e t rês est á-
gios: concentração, contem plação e m editação. A concentração é a etapa da
coleta de dados, cuja palavra-ch ave é “at en ção”. A con t em p lação é a fase
d a harm on ização dos dados, cuja palavra-chave é “an álise”. Q uan to m ais
con scien te de seus m apas m en tais e m ais harm on izado o con jun to de da-
dos que um a pessoa tem , m aior a probabilidade de saúde e a possibilidade
de respostas equilibradas aos desafios que se en fren tam . Em outras pala-
vras, para que um a pessoa possa viver em estado de equilíbrio bio-psíqui-
co-emocional deve ser capaz de discernir, interpretar e administrar seus legos
mentais.
U m a história que explica o que quero dizer. Certa fez, fiz um a visita
pastoral a um a jovem senhora que acabara de chegar do consultório m édico
e tin ha n as m ãos os en velopes com os exam es que aparen tem en te in dica-
vam a progressão de um cân cer. Seu discurso era circular e suas ações,
autom atizadas: repetia sem parar as palavras literais do m édico, tirava os

A Espiritualidade e a Experiência Cotidiana


76 UNIDADE I

exam es dos en velopes e torn ava a guardá-los sem perceber seus m ovim en -
tos. Sua postura mental concentrava-se na informação do câncer. Sua gran-
de n ecessidade era assim ilar a in form ação, h arm on izan do-a com suas
con vicções m ais profun das e outras in form ações arquivadas n a m en te.
Aquela m ulher possuía um lego mental que precisava ser iden tificado e
desm on tado para que perdesse seu poder estressan te e destrutivo. Acredito
que ela con seguiu. Exatam en te agora, en quan to escrevo este texto, m e ale-
gro por ter fixado n a m em ória a im agem de um a m ulher bem diferen te

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daquela que estava atem orizada e sen tin do-se traída por D eus. A im agem
que ten ho dian te de m im é de um a m ulher valen te, que decidiu viver. Seu
corpo perdeu a batalha con tra o cân cer, m as seu coração foi vitorioso por
escolher “m orrer viven do, em vez de viver m orren do”.
Este processo de m on tagem e desm on tagem de legos mentais eviden te-
m en te n ão é tão sim ples. N em sem pre estam os con scien tes de sua existên -
cia. Isto quer dizer que, em algum as situações, n ão con seguim os iden tificar
a razão e a origem de n ossas ações e sen sações. O s cien tistas m odern os,
com o Joseph LeD ux, da U n iversidade de N ova York, dizem que possuím os
duas m em órias — um a racion al, explícita, e outra em ocion al, im plícita.6
Isto sign ifica que n osso cérebro registra in con scien tem en te experiên cias
em ocionais. Toda vez que um a situação é percebida com o am eaçadora à luz
daquela memória emocional, reagimos instintivamente. Isso explica por que
n ão en ten dem os n osso m edo de avião, o m otivo de algum a pessoa n os
irritar ou a razão de determ in ada postura do côn juge n os in com odar tan to.
Além disso, n ão é sem pre que con seguim os adm in istrar n ossos legos men-
tais. Até con seguim os iden tificá-los, m as som os in capazes de gerir seus
efeitos. N ão raro, sabem os por que estam os an siosos, m as, ain da assim ,
n ossa an siedade con tin ua laten te. Con seguim os até m esm o iden tificar os
sin tom as de um a depressão im in en te, m as n ão tem os forças para lutar con -
tra ela. Rolam os n a cam a, sen tim os taquicardia, e n ão há n ada que n os
acalm e, sen ão um a boa dose de “x”. Este “x” varia de pessoa para pessoa,
m as geralm en te trata-se de rem édio m esm o. Im agin o que n ão precise valo-
rizar a n ecessidade de um a m edicação adequada, m as quero in sistir n o fato

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
77

de que, assim com o regulam os a quím ica cerebral, devem os apren der a
m on tar e desm on tar os legos mentais.
En fim , em algum as ocasiões, quan to m ais n os dedicam os à reflexão e
ten tam os gerir os processos m en tais, m ais n os perdem os n os labirin tos dos
pen sam en tos e das em oções. N esses m om en tos, devem os en trar n um está-
gio m ais profun do de in trospecção. O s dois prim eiros — con cen tração para
iden tificar os dados e con tem plação para harm on izá-los) — n ão foram su-
ficien tes. Chegou a hora do terceiro estágio da in trospecção, cham ado “m e-
ditação”.
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D izem os m estres espirituais que “m editar é parar de pen sar” ou perm a-


n ecer em quietude, sem reagir aos pen sam en tos, deixan do que eles pas-
sem . A m ed it ação t ran scen d e a an álise. N est e est ágio de in trospecção, a
p alavra-ch ave é “revelação”. O silên cio da alm a é o am bien te do insight. A
ren dição do hom em exterior é o in ício do processo de con exão espiritual.
O processo de m editação se com para à observação de barcos que pas-
sam aos m on tes n o leito do rio en quan to estam os sen tados à m argem . Aos
poucos, os barcos vão rarean do, cada vez passan do m ais esporadicam en te,
até que fica apen as o leito do rio. Cada barco é um pen sam en to, e quan do
apren dem os a criar um “estado alterado de con sciên cia” favorável, deixa-
m os os pen sam en tos fluírem até que n os abstraím os deles e podem os en -
tão perceber os detalhes do rio e de sua paisagem .
N esse m om en to, n os abrim os para outras percepções sen soriais, com o
en xergar um a casin ha n a outra m argem do rio ou ouvir o can to de um pas-
sarin ho n a árvore atrás de n ós. D a m esm a form a, quan do aquietam os o
turbilhão de pen sam en tos que n os povoam a m en te, criam os espaço para
algum a realidade ain da n ão percebida. A m editação abre a porta para reali-
dades que tran scen dem a reflexão. Con form e observou Fritjof Capra:

O con h ecim en t o absolut o é um a experiên cia da realidade in t eiram en t e


n ão in t elect ual, um a experiên cia n ascida de um est ado de con sciên cia
n ão usual que pode ser den om in ado “m edit ação” ou est ado m íst ico. A
existên cia deste estado n ão tem sido testem un hada apen as por n um ero-
sos m ísticos orien tais e ociden tais, m as aparece igualm en te n a pesquisa
psicológica. 7

A Espiritualidade e a Experiência Cotidiana


78 UNIDADE I

Capra com para o processo cien tífico com esses três estágios da in trospec-
ção. O prim eiro é a con cen tração para coleta de evidên cias. O segun do, a
con tem plação para a an álise, que deve resultar n a com preen são dos fen ô-
m en os observados, de m odo a possibilitar um a form ulação teórica. Acon -
tece, porém , que estas form ulações teóricas n ão resultam n ecessariam en te
da an álise dos dados, m as surgem espontaneamente, quan do o pesquisador
está n o ban ho ou passean do à beira-m ar. O processo cien tífico n ão é com -
pleto sem esses insights repen tin os, que surgem de um estado de con sciên -
cia n ão an alítico, m as da totalidade do ser, que con versa con sigo e com o

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m un do a sua volta n um a dim en são supracon scien te.
Todas as tradições espirituais possuem seus in strum en tos facilitadores
da m editação, este estado alterado de con sciên cia ou estágio profun do de
in trospecção. O s iogues possuem seus m an tras; os judeus, as calabas; e os
cristãos, as orações. Isso explica as razões de Jesus en sin ar um a oração
específica, que n ão deveria ser tran sform ada em palavras m ágicas repetidas
con stan tem en te, m as poderia oferecer a base para o assen tam en to da con s-
ciência.
Acredito que Jesus teve boas razões para in cluir um a oração específica
quan do en sin ou o processo ou jeito de orar. M apas m en tais, gran des legos,
con vicções profun das que se torn ariam atitudes, posturas in teriores e esta-
dos de consciência são expressões que se harm onizam com a m editação. N a
oração do “Pai N osso”, Jesus oferece o un iverso den tro do qual podem os
chegar ao estágio de orar “sem cessar”,8 preten dido pela m editação.
O rar sem cessar é m an ter a con sciên cia fun dam en tada n esses gran des
legos oferecidos por Jesus. Isso faz sen tido quan do o Filho de D eus diz que
a oração é m uito m ais com un hão presen cial que dialogal. Jesus com preen -
dia a oração m uito m ais n a perspectiva de estar com D eus que dizer algo a
D eus. O “Pai N osso” n ão pode ser apen as orien tação para discursos ver-
bais, m as deve ser assim ilado com o base dessa com un hão espiritual com
D eus.
M as por que esses macrolegos eram n ecessários? Jesus foi ao âm ago de
todo ser hum an o, afirm an do respostas para seus con flitos m ais essen ciais.
M ais do que harm on izar in form ações n os patam ares m ais profun dos da

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
79

con sciên cia, precisam os da com un hão com D eus para que ele n os aben çoe
com seu am or cuidadoso. Con form e n os in struiu o apóstolo Paulo, a paz de
D eus, que recebem os em oração, “excede todo o en ten dim en to”,9 e esta
paz é um estado de ser, de con sciên cia, em ocion al ou espiritual — com o
você preferir, já que, n a verdade, é tudo isso.
Essa paz n ão é experim en tada quan do n ossos fatores estressan tes cir-
cun stan ciais e biopsíquicos são equacion ados, m as oferece o alicerce para
tratarm os destes fatores estressan tes. Essa paz, que excede o en ten dim en -
to, tam bém n ão é experim en tada quan do desm on tam os n ossos pequen os
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legos de monstrinhos em situações cotidian as, m as quan do desm on tam os os


gran des legos de con flitos espirituais, que afet am n ossa essên cia ú lt im a, e
os substituím os por outras convicções, que não apen as n eutralizam as an ti-
gas, m as tam bém n os capacitam a viver: “Con hecereis a verdade, e a verda-
de vos libertará.”10
Jesus se autoden om in a “a verdade”11 e ain da acrescen ta: “a tua palavra
[de D eus] é a verdade”.12 Para aqueles que desejam en con trar a verdade que
fun dam en ta o relacion am en to pessoal com D eus, Jesus en sin ou, en tre ou-
tras coisas, um a oração.

A ORAÇÃO DO “PAI NOSSO” E OS CONFLITOS HUMANOS


ESSENCIAIS
Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome;
venha o teu reino; faça-se a tua vontade,
assim na terra como no céu;
o pão nosso de cada dia dá-nos hoje;
e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos
perdoado aos nossos devedores;
e não nos deixes cair em tentação;
mas livra-nos do mal pois teu é o reino, o poder e a
glória para sempre.
A mém!1 3

A oração do “Pai N osso” é um a possível sín tese do insight espiritual cristão,


pois con fron ta o ser hum an o com a resposta a seus quatro con flitos essen -
ciais: a busca de sign ificado, as n ecessidades dos sen tidos, o peso da culpa

A Espiritualidade e a Experiência Cotidiana


80 UNIDADE I

e a opressão do M align o. Ao en con trar sign ificado para sua aven tura exis-
ten cial, o ser hum an o se liberta dos con flitos elem en tares. O s essen ciais
con stituem a m oldura den tro da qual os con flitos circun stan ciais acon te-
cem . Q uan do a m oldura é equilibrada, os con flitos m en ores são aten uados
e até m esm o elim in ados, m as quan do ela é desequilibrada, tal desarran jo
poten cializa todo o resto.
Veja, por exem plo, aquele am igo seu que vive atrapalhado com as fin an -
ças. D e vez em quan do você o ouve dizer: “U n s cin co m il resolveriam m eu
problem a”. N a verdade, o problem a a que ele se refere deve ser a dívida do

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cheque especial, m as o real problem a n ão foi iden tificado. A pergun ta certa
n ão é “quan to você está deven do?”, m as “por que você está deven do de
n ovo? Por que você adm in istra seu din heiro desta m an eira?”
Q uanta gente você conhece que, m esmo endividada, dá uma festança no
an iversário do filho? Este é um exem plo sim ples de m oldura desequilibra-
da, poten cializan do um con flito circun stan cial. Jesus, en tretan to, trata de
questões m uito m ais profun das quan do com en ta os con flitos essen ciais de
todo ser hum an o.

Co nflito e s s e ncial n°1: a bus ca de s ig nificado


“O lhe ao redor. Estran ho, n é?” Este texto estava pichado n o m uro do cem i-
tério do Araçá, em São Paulo. Entendi perfeitam ente. N ão m e recordo o dia
em que o m un do se torn ou estran ho para m im , m as o fato é que houve um
dia quan do n ão apen as o m undo mas eu mesmo me tornei estranho. Custou
para que eu chegasse à con clusão de que errado estava o m un do, e n ão eu.
N o fun do de m in has reflexões n a juven tude estava a descon fian ça de
que ou o m un do n ão era obra das m ãos de D eus ou estava, por algum a
razão e em certa dose, desfigurado. Aquela frase n o m uro do cem itério m e
tran qüilizou um pouco. Pelo m en os eu n ão estava sozin ho. M ais adian te,
fui descobrindo a filosofia, as tradições espirituais e as inquietações da raça.
U m dos m eus m estres de teologia repetia sem pre: “O que é n ão pode ser
verdade.” D e fato, deveria haver outra explicação. E foi o cristianismo quem
m e ofereceu a m elhor resposta.

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
81

Enquanto você não se abre de m odo consciente para um relacionamento


pessoal com D eus, o un iverso fica despido de sign ificado. D eus n ão é ape-
n as força, am or, luz e verdade. D eus é Espírito in teligen te, um a pessoa com
quem você pode se relacion ar n a dim en são do próprio espírito: “D eus é
espírito; e im porta que os seus adoradores o adorem em espírito e em ver-
dade”.14 Palavras de Jesus.
Jesus de N azaré foi a prim eira pessoa que se dirigiu a D eus cham an do-
o “Pai”. N a verdade, usou a expressão “Abba”, que m elhor seria traduzida
por “paizin ho” ou “papai”. D e fato, Jesus podia se dirigir a D eus desta
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m an eira porque era o un igên ito Filho de D eus. Jesus era o ún ico gerado de
D eus, diferen te de todos os seres hum an os que foram criados por D eus. Por
esta razão, o en con tro com D eus é m ediado por Jesus. Som en te ele, Jesus,
podia dizer: “Eu e o Pai som os um ”. 15
“Abba” é o balbuciar de um a crian ça que está apren den do a falar. O que
Jesus preten dia era estabelecer n ão apen as um a dim en são pessoal em n os-
so relacion am en to com D eus, com o tam bém en quadrar essa relação n um
con texto de extrem a afetividade e depen dên cia, como deve ser todo relacio-
n am en to en tre pais e filhos. U m a vez que “n ascem os de n ovo”, fazem os
con exão com o m un do espiritual, isto é, n osso espírito recebe a vida do
Espírito de D eus, o Espírito de D eus se liga ao n osso espírito e en tão pode-
m os n os dirigir a ele com o quem se en con tra dentro de n ós — “N ão sabeis
que o vosso corpo é san tuário do Espírito San to, que está em vós?”.16 As-
sim podem os n os dirigir a ele cham an do-o “Pai”.
D eus, porém , n ão é apen as im an en te (“den tro de n ós”, “em n ós”). É
tam bém tran scen den te. Podem os n os dirigir a ele com o quem se en con tra
“n os céus”. D eus n ão pode ser restrito aos lim ites do un iverso criado. A
petição “san tificado seja o teu n om e” im plica esta com preen são da sin gula-
ridade de D eus, de m odo que ele seja visto separado, isto é, distin to da
realidade criada.
Este D eus, que está além do un iverso criado, é um D eus soberan o: “Ve-
n ha o teu Rein o.” Rein o é poder, dom ín io e autoridade. A oração d o “Pai
N osso” p art e d o p ressu p ost o d e qu e o u n iverso p ossu i d im en sões em
que D eus n ão rein a de fato — caso con trário, n ão pediria que seu dom ín io

A Espiritualidade e a Experiência Cotidiana


82 UNIDADE I

se estabelecesse. N ão apen as aquele que ora está em desarm on ia, com o


tam bém o un iverso. A harm on ia plen a som en te é possível sob o dom ín io
do Rein o de D eus. A oração é o p asso qu e in d ica qu e n ossas p ossibilid a-
d es de con trole se esgotaram . A in terven ção de D eus é n ecessária e n ão
pode servir a n ossos caprichos, até porque quem ora sabe que suas possibi-
lidades são lim itadas. Por esta razão, Jesus en sin a a orar “seja feita a tua
vontade”.
A harm on ia do p lan o m en t al e m at erial (Terra) d ep en d e d a realiza-
ção da von tade de D eus de form a coeren te com o plan o espiritual (céu), o

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que con firm a e argum en ta o fato de que as leis que regem o m un do são
espirituais.
A busca de sign ificado se explica pela laten te in con form idade do ho-
m em con sigo e com o un iverso que habita. Q ualquer pessoa que se sin ta à
von tade n o m un do, com o ele atualm en te se apresen ta, está alien ada da
realidade. O cristian ism o diz que n em o ser hum an o é o que pode ser, n em
o m un do é o que será. Prim eiro porque o ser hum an o está desfigurado pela
escravidão ao ego, lon ge de expressar a im agem de D eus, segun do a qual
foi criado. Segun do porque o próprio un iverso está em desarm on ia e só
voltará ao equilíbrio plen o quan do vier o Rein o de D eus e a von tade do
Criador for realizada n a Terra com o é n o céu.

Eu pen so que o que sofrem os duran te a n ossa vida n ão pode ser com para-
do, de m odo n en hum , com a glória que n os será revelada n o futuro. O
U n iverso todo espera com m uita im paciên cia o m om en to em que D eus
vai revelar o que os seus filhos realm en te são. Pois o U n iverso se torn ou
in út il, n ão pela sua própria von t ade, m as porque D eus quis que fosse
assim . Porém existe esta esperan ça: um dia o próprio U n iverso ficará livre
do poder dest ruidor que o m an t ém escravo e t om ará part e n a gloriosa
liberdade dos filhos de D eus. Pois sabem os que até agora o U n iverso todo
gem e e sofre com o um a m ulh er que est á em t rabalh o de part o. E n ão
som en te o U n iverso, m as n ós, que tem os o Espírito San to com o o prim ei-
ro presen te que recebem os de D eus, n ós tam bém gem em os den tro de n ós
m esm os en quan to esperam os que D eus faça com que sejam os seus filhos e
n os libert e com pletam en te.17

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
83

Àqueles que con vivem com a an gústia existen cial, lutan do con tra as evi-
dên cias de que a vida n este plan o do un iverso n ão faz sen tido, o cristian is-
m o m an da dizer que a an gústia é um sin al de san idade. D e fato, chegará o
dia quando todo o universo estará em plena harm onia e equilíbrio. Chegará
tam bém o dia quan do n ós m esm os serem os com pletam en te tran sform a-
dos. Por en quan to, devem os cooperar com a von tade de D eus, a fim de que
seu Rein o se m an ifeste n o m un do, an tecipan do, com a m aior in ten sidade
possível, o que será a n ova Terra.
A oração do “Pai N osso” abre espaço para um hom em desfigurado, vi-
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ven do n um un iverso descom pen sado, sob os olhos am orosos de um D eus


tran scen den te, que deseja realizar sua von tade com o ela é feita n o Céu e
estabelecer seu Reino definitivam ente, trazendo plena harm on ia à Criação.
Q uan do oram os n ão, só assum im os sua solidariedade com a Criação e so-
frem os com ela, m as tam bém assum im os sua solidariedade com D eus e
cooperam os com ele para a reden ção das circun stân cias que ocupam sua
oração im ediata e a reden ção do cosm o.

Co nflito e s s e ncial n° 2: o ape lo do s s e ntido s


O cristianism o diz que os apetites hum anos en contram plena satisfação em
D eus: “O pão n osso de cada dia dá-n os hoje.” O pão é o sím bolo da satis-
fação plen a, isto é, tudo quan to o ser hum an o precisa para realizar-se in te-
gralm en te. Todos sabem os que as n ecessidades hum an as tran scen dem as
realidades m ateriais: “N ão só de pão viverá o hom em ”.18 Aliás, con sideran -
do a recom en dação de Jesus para que seus discípulos n ão estivessem preo-
cupados com o que beber ou com er,19 seria estran ho in terpretar o “pão
n osso” com o súplica pela provisão m eram en te m aterial.
D eus é a fon te da satisfação plen a. Toda e qualquer altern ativa de satis-
fação con trária às leis espirituais e em oposição à von tade e ao caráter de
D eus são bombas-relógios. Aquilo que n ão vem do Sen hor, pelos cam in hos
dele, n ão apen as n ão satisfaz, com o tam bém — e principalmente — funcio-
n a com o um dren o n a alm a, que suga suas reservas m ais preciosas, geran do
frustração e culpa.

A Espiritualidade e a Experiência Cotidiana


84 UNIDADE I

Q uan do oram os o “Pai N osso”, estam os dizen do que n ão desejam os


n ada sen ão o que procede de D eus, e n os recusam os a ter acesso a qualquer
coisa que n ão ten ha vin do de suas m ãos. M en tir para possuir, trair para
prosperar, fraudar para enriquecer, en ganar para conquistar, atalhar para des-
frutar e tan tas outras com bin ações com un s à sociedade do jeitinho ficam de
fora do estilo de vida de quem im ergiu n o m un do do “Pai N osso”.
Algo m uito im portan te precisa ser com preen dido sobre este “pão n osso
de cada dia dá-n os hoje”. Jesus m uito provavelm en te en sin ou esta oração
em aram aico, fazen do referên cia ao “pão de am an hã”, um a alusão ao m an á

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que D eus en viava para o povo de Israel en quan to peregrin ava n o deserto
sob a lideran ça de M oisés. O s D ez M an dam en tos in cluíam a guarda do
sábado, o sétimo dia, totalmente separado para descanso e adoração a D eus.
O sábado possuía duas fun ções: en sin ar o povo a depen der absolutam en te
de D eus, em vez de n os próprios esforços, e criar a im agem de um tem po
quan do todo o un iverso seria plen am en te satisfeito em D eus. O sábado era
um a figura do Reino de D eus em plenitude, que o N ovo Testam ento cham a
“céu”. O céu n ão é outra coisa sen ão perfeita harm on ia en tre D eus e sua
Criação.
D uran te a peregrin ação com M oisés, D eus alim en tava o povo com o
m an á, o pão de cada dia que, literalm en te, caía do céu. N a sexta-feira,
D eus m an dava porção dobrada, pois o sábado era dia de descan so e adora-
ção, de m odo que n in guém poderia recolher o m an á, isto é, n in guém podia
trabalhar. Q uan do Jesus n os en sin a a pedir o “pão de am an hã”, está n os
dizen do que estam os n a sexta-feira, e que podem os hoje desfrutar algum as
dim en sões do sábado que está para chegar. O Rein o de D eus será estabele-
cido em breve, m as já podem os com er seus prim eiros frutos.
Jesu s se ap resen t ou t am bém com o o “p ão d a vid a”, e d eixou claro
qu e é o “p ão d o C éu ”, qu e D eu s Pai t em p ara d ar. 2 0 N est e caso, creio
qu e “o p ão d e am an h ã” é o p róp rio C rist o, ou a p len it u d e d e C rist o em
n ós. Evid en t em en t e, Jesu s n ão en sin a a aban d on ar o m u n d o d os sen t i-
d os, m as qu e sat isfazer os ap et it es físicos n ão é su ficien t e p ara alcan çar
a sat isfação p len a. É o ú n ico m eio d e en t en d er qu e “n em só d e p ão vive

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
85

o homem”. Isto é, “nem só”, mas também. O u melhor ainda, “tam bém, mas
n em só”.
D ois trechos da Bíblia podem ser som ados a este quebra-cabeça para
com pletar o quadro. O prim eiro é de São Paulo, apóstolo. Aquele m esm o
texto em que diz que o un iverso todo está gem en do, aguardan do a sua
reden ção plen a, diz: “Tam bém n ós, que tem os as prim ícias do Espírito”. 21
O segun do é a n arrativa que Lucas, evan gelista, faz do m om en to quan do
Jesus en sin a a oração. Lucas coloca o “Pai N osso” ao lado de outro en sin o
de Jesu s: a sú p lica p ara qu e o Pai n os d ê o Esp írit o San t o. 2 2 A in t en ção
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d e Lucas é en fatizar que a oração tem com o fin alidade últim a a plen itude
espiritual.
Podem os, portan to, arriscar um a tradução altern ativa para “o pão n osso
de cada dia dá-n os hoje”: “A plen a com un hão espiritual com teu Filho Je-
sus, o Pão da Vida, m ediada pela presen ça do Espírito San to em n ós, n os
dá hoje. Sabem os que experim en tarem os esta plen a com un hão con tigo
quan do o teu Rein o estiver con sum ado am an hã. M as pedim os que Cristo
seja cada vez m ais real para n ós, e assim possam os experim en tar hoje a
plen a satisfação que tran scen de este m un do dos sen tidos”.

Co nflito e s s e ncial n° 3: o pe s o da culpa


Todos n ós carregam os um peso de culpa. Sen tim o-n os devedores a n ós
m esm os, saben do que deveríam os tom ar providên cias que in sistim os em
protelar. Carregam os culpa por ferir as pessoas que m ais am am os — algu-
m as vezes, volun tariam en te; outras, nem tanto — quando as coisas nos fo-
gem do controle. Assim acontece nas relações conjugais e nos horizontes mais
próxim os da fam ília. Pais, côn juges e filhos podem ocu p ar sim u lt an ea-
m en te as listas de “m ais am ados” e “m ais odiados”.
Carregam os um a culpa em relação ao próxim o, pela superficialidade de
n ossos com prom issos de solidariedade com os que sofrem , ou até m esm o
n ossa respon sabilidade en quan to cidadãos. D eixam o-n os levar pela on da
segun do a qual “todo o m un do faz” e “n in guém faz”, e lá pelas tan tas, n os
percebem os en volvid os n u m est ilo d e vid a egocên t rico d o qu al n os en -
vergonham os.

A Espiritualidade e a Experiência Cotidiana


86 UNIDADE I

Além desses poucos e con tun den tes exem plos, pesa sobre n ossos om -
bros a sen sação de que, m esm o sem saber — e descon fiados de que, n a
verdade, sabem os e n ão querem os adm itir —, estam os ferin do um padrão
cósm ico, un iversal. Aqueles de n ós cujas con sciên cias estão sen síveis ain da
con seguem dorm ir m al um a n oite ou outra por recon hecer um a perfeição
in acessível e tão arden tem en te desejada.
O cristian ism o diz que o peso da culpa só é aban don ado quan do o ser
hum an o se relacion a com D eus além dos parâm etros da justiça retributiva:
“Perdoa-n os as n ossas dívidas.” En quan to n ão aban don am os os critérios

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do tipo “eu m ereço, eu n ão m ereço”, n ossa con sciên cia m an tém o saldo
n egativo. Cada vez que n os olharm os n o espelho e fizerm os isso hon esta-
m en te, estarem os dian te de um devedor.
Pergun taram a um hom em do in terior o que ele en ten dia por “con sciên -
cia”. Sua resposta foi gen ial: “Con sciên cia é um cubo que tem os n a cabeça,
den tro do qual gira um a esfera. Cada vez que a esfera bate n a parede do
cubo, a con sciên cia dói. Algum as pessoas já deixaram a esfera bater tan to
n o cubo, sem fazer n ada, que a parede do cubo foi quebran do aos poucos e
a esfera ficou giran do em falso.” Estes que ele citou têm o que cham am os
de consciência cauterizada.
Vale ressaltar que n ão estam os falan do apen as de n ossas dívidas cir-
cun stan ciais. Referim o-n os a um a dívida existen cial dian te da gran deza e
da perfeição de D eus. Falam os, portan to, de um a dívida im pagável.
A in trospecção que n os arrem essa n a direção do en con tro com a pessoa
in terior revela as in coerên cias da pessoa exterior. Estes desen con tros so-
m en te são equacion ados n o en con tro com D eus. En quan to as tradições
m editativas falam de purificação, o Evan gelho fala de perdão — talvez por-
que as tradições m editativas exagerem ao levar o ser hum an o a sério, e a
D eus n em tan to. Im agin ar que o ser hum an o possa se tran sform ar a pon to
de qualificar-se para com un gar com D eus equivale a, pelo m en os, um a de
duas possibilidades: ou se con sidera o ser hum an o um deus am arrotado,
carecen do de reform a e aperfeiçoam en to, ou se tem um D eus pequen o de-
m ais, que sequer m erece ser D eus, pois aquele a quem a pessoa pode se
equivaler n ão é D eus — é hom em , ou ídolo.

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
87

A solução de D eus para os culpados é o perdão. Se, por um lado, o


perdão de D eus joga por terra toda preten são hum an a de viver com base
n os m éritos, tam bém desfere um golpe m ortal n o sen so de rejeição que
todos n ós carregam os em razão de n ão atin girm os a perfeição.
O perdão é, portan to, a possibilidade de con vivên cia quan do um a das
partes con trai um a dívida que n ão pode ser paga. Assim , todo devedor só
en con tra alívio e paz n o perdão de D eus. A oração fun dam en ta a relação
com D eus para além dos m éritos e débitos. Além dos m éritos, porque o
padrão é in atin gível. Além dos débitos, porque D eus, saben do que o pa-
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drão é in atin gível, provê o perdão.


Q uem deseja se relacion ar com D eus à luz da justiça retributiva fica
falando sozinho. Assim comentou Jesus quando contou a parábola do fariseu
e do publican o: “O fariseu, posto em pé, orava de si para si m esm o”. D e
fato, n esta parábola, Jesu s t am bém en sin ou a orar: “Ó D eu s, sê p rop ício
a m im , pecador!”.23 O s pais do deserto a cham avam “O ração de Jesus”, e a
utilizavam com o ân cora para a m editação, desejan do que ela se torn asse
tão in stin tiva e espon tân ea quan to a respiração. Algo com o um a atitude
in terior, que tran scen de a expressão verbal.
O perdão de D eus, por sua vez, ao libertar-n os do sen so de dívida, tam -
bém n os liberta da in sistên cia em cobrar n ossos devedores, e n este caso
tran sferim os o perdão que recebem os para aqueles que n os devem . A con -
dicion al estabelecida por Jesus n o “Pai N osso” é: “Perdoa-n os as n ossas
dívidas, assim com o n ós tem os perdoado aos n ossos devedores.” Esta peti-
ção possui um a explicação sim ples: quem acredita que deve e é capaz de
pagar n ão aceita perdão, e por isso m esm o n ão perdoa, pois pen sa que deve
receber de seus devedores para poder pagar seus credores. O perdão de
D eus n os liberta tan to de n ossa culpa em relação a ele com o n os ajuda a
libertar os culpados em relação a n ós.
Foi n a cruz que Jesus expiou o pecado da raça. Esta verdade do cristia-
n ism o foi predita: “O castigo que n os traz a paz estava sobre ele”, disse o
profeta Isaías.24 Foi tam bém corroborada pela in terpretação que o apóstolo
Paulo fez da cruz de Cristo: “D eus estava em Cristo recon cilian do con sigo

A Espiritualidade e a Experiência Cotidiana


88 UNIDADE I

o m un do, n ão im putan do aos hom en s as suas tran sgressões (...) Aquele


que n ão con heceu pecado, ele o fez pecado por n ós; para que, n ele, fôsse-
m os feitos justiça de D eus.”25 Q uan do vivem os n o un iverso estabelecido
pelo “Pai N osso”, pisam os em solo de san gue, o san gue de Jesus Cristo,
que “n os purifica de todo pecado”. 26

Co nflito e s s e ncial n° 4: a o pre s s ão do Malig no


H á um registro n o in con scien te de todos n ós de que o un iverso é povoado

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por espíritos m aus. D e fato, parece lógico que a cren ça em D eus im plique
tam bém crer n a ação dos adversários de D eus. Registre-se que o D iabo n ão
é o oposto de D eus, com o preten dem os que dizem ser o m al a ausên cia do
bem . O D iabo é apen as o opositor de D eus. Isto porque o oposto de D eus
seria outro deus, o que equivale ao dualism o, e n ão ao cristian ism o.
As crian ças sem pre pergun tam quem criou o D iabo. M eus filhos já per-
gun taram , e tive de explicar dizen do que D eus criou Lúcifer, “an jo de luz”,
e Lúcifer criou o D iabo. O D iabo é “Lúcifer rebelde”. Ele existe porque
D eus, em sua liberdade, optou por criar seres livres. Caio Fábio disse que
“os dem ôn ios são seres que m udaram o cen tro do un iverso para si m esm os;
dem ôn ios são n arcisos in curáveis”. O m un do, portan to, é povoado por se-
res que exercem as fun ções de an tagon ism o a D eus, o Criador, e se torn am
prom otores de desarm on ia n os plan os m aterial, m en tal e espiritual. Jesus
diz que a seguran ça do ser hum an o em relação ao m al e ao M align o som en -
te é possível a partir de um a ação espiritual superior: “Livra-n os do m al.”
N um m un do povoado por dem ôn ios, o ser hum an o corre três riscos. O
prim eiro é o de ser vítim a da desarm on ia provocada por eles. Espero que
n in guém con sidere que um terrem oto que m ata m ilhares de pessoas ten ha
sido plan ejado n o céu, ou que as epidem ias sejam obra do divin o. É absur-
do crer que D eus criou n euróticos d e gu erra qu e m et ralh am crian cin h as
em lan chon etes, m an íacos que m atam m ulheres em parques, além da ban -
didagem urban a e os sofisticados ladrões de colarin ho bran co. D eus n ão
coloca bom bas em aviões, n em d irige em briagad o. N ão con st rói prédios
com m aterial de qualid ad e d u vid osa, n ão d esvia verbas p ú blicas, n em

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
89

esp ecula n a bolsa. En fim , há n o un iverso e n a tram a da vida hum an a um


horizon te de realidade m align a que n ão procede de D eus e afeta a todos
que têm carn e e osso. Q ualquer um que pon dere sobre isso m ais de 30
segun dos acaba por tem er que um dia essa lam a toda se derram e sobre sua
cabeça... caso ain da n ão ten ha sido derram ada.
N este m esm o m un do povoado por dem ôn ios, correm os um segun do
risco: ser en golidos por eles. Isto seria equivalen te a “cair em ten tação”. O
even to da ten tação de Jesus pode ser an alisado com o um a luta en tre o ser
hum an o exterior e o in terior dian te do Ten tador. As sugestões para a tran s-
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form ação de pedras em pães e a oferta de atalhos para as posses e o poder


podem ser vistas com o um a tentativa do D iabo para engolir Jesus. U m a vez
que o D iabo é um “n arciso in curável”, que a tudo quer cham ar “eu”, sua
atuação m ais rotin eira é ten tar cooptar, in clusive, aquele que jam ais esteve
à ven da.
Fin alm en te, há um terceiro risco. O de n os torn arm os iguais aos dem ô-
n ios que n os ten tam . Q uem cede à ten tação e se deixa escravizar acaba
sujeito aos propósitos dos espíritos — e por eles são m an ipulados — cujos
cam in hos seguem n a direção con trária à de D eus. Q uem é en golido pelo
M align o é assim ilado por ele, e deixa a categoria de vítim a para in tegrar as
fileiras de súdito.
O Evan gelho é a boa n otícia de que Jesus veio “para destruir as obras do
D iabo”. 27 M ais do que isso, o Evan gelho diz que a vitória de Jesus con tra
Satan ás foi con quistada n a cruz. D e fato, foi ali, n a cruz, que Jesus pagou
n ossa dívida dian te de D eus, e se colocou com o m ediador en tre n ós e o Pai,
com o tam bém derrotou Satan ás e se colocou en tre n ós e o M align o.28
Q uan do oram os n o un iverso espiritual delim itado pelo “Pai N osso”, es-
tam os plen am en te seguros de que as trevas jam ais triun fam sobre a luz. Ao
orar, n os iden tificam os com o Espírito de D eus, em com un hão com n osso
espírito, podem os vencer o M aligno e andar sem tem or. Em com unhão com
D eus, sabem os que poderem os orden ar “afasta-te de m im , Satan ás”, n a
certeza de que a voz de com ando não é nossa, m as do Cristo, que foi m orto,
m as ressurgiu, e tem n as m ãos as chaves da m orte e do in fern o. 29

A Espiritualidade e a Experiência Cotidiana


90 UNIDADE I

CRER E TER FÉ
M ais do que de auto-ajuda, você precisa de ajuda do alto. Você é um ser
espiritual, e som en te a com un hão en tre o seu espírito e o D eus Espírito
pode levá-lo além do com plexo biopsíquico e suas ten sões e de seu estres-
se. Arquim edes queria um pon to de apoio fora do un iverso. D isse que seria
capaz de fazer um a alavan ca e m over a terra de seu eixo. Jesus ofereceu este
pon to: a fé faz m over as m on tan has.30 A fé é a alavan ca da oração: “Sem fé
é im possível agradar a D eus, porquan to é n ecessário que aquele que se
aproxim a de D eus creia que ele existe e que se torn a galardoador dos que o

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buscam”.31
O en con tro com D eus é sem pre um passo de fé. As expressões bíblicas
“crer” e “ter fé” são distin tas. A m aioria das pessoas acha que elas se equi-
valem, mas na verdade falam de duas coisas diferentes. Crer é assumir como
verdadeiro; ter fé é sintonizar interativamente. Crer equivale a assumir como
verdadeiro que existem on das m agn éticas n o ar; ter fé equivale a sin ton izar
as on das para assistir à TV ou ouvir rádio. Q uem sabe que existem on das n o
ar, crê. Q uem sin ton iza, tem fé. É possível, portan to, crer sem ter fé. A fé
que rem ove m on tan has n ão é aquela que sabe que D eus existe, m as aquela
que, além de saber que ele existe, entende que é galardoador, isto é, interage,
com un ga, participa, recom pen sa o fiel.
Isto faz perfeito sen tido com a com preen são de que D eus é tran scen -
den te e im an en te, e que “O próprio Espírito testifica com o n osso espíri-
to”,32 conforme afirmou São Paulo, apóstolo. A fé transcende a manipulação
de processos m en tais que qualificam a quím ica do cérebro, e catapulta o ser
n a direção de um relacion am en to com D eus. U m relacion am en to plen o de
possibilidades, on de, n o “quarto fechado da oração”, a an siedade e o es-
tresse são substituídos por “paz (...) que excede todo o en ten dim en to”. 33

Notas
1
Jó 42:5
2
C U KIERT , Arthur, e BERN IK, M árcio. In Veja, edição n o 1556, julho de 1998.
3
BEN SO N , H erbert. M edicina espiritual. São Paulo, Cam pus, 1998, cap. 4.
4
Idem , p. 65.

O QUE É ESPIRITUALIDADE?
91

5
G OLD EM AN , D aniel. Equilíbrio mente/corpo. Rio de Jan eiro, Cam pus, 1997, p.19.
6
LED UX, Joseph. O cérebro emocional. Rio de Janeiro, O bjetiva, 1998.
7
C APRA, Fritjof. O tao da Física. São Paulo, Cultrix, 1984, p. 31.
8
1Ts 5:17.
9
Fp 4:6,7.
10
Jo 8:32.
11
Jo 14:6.
12
Jo 17:17.
13
M t 6:9-13.
14
Jo 4:23,24.
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15
Jo 10:30.
16
1Co 6:19.
17
Rm 8:18-23; N TLH .
18
M t 4:4.
19
M t 6:25-34.
20
Jo 6:31-35.
21
Rm 8:18-23.
22
Lc 11:1-13.
23
Lc 18:9-14.
24
Is 53:5.
25
2Co 5:19,21.
26
1Jo 1:7.
27
1Jo 3:8.
28
Cl 2:13-15.
29
Ap 1:18.
30
M t 17:20.
31
H b 11:6.
32
Rm 8:16.
33
Fp 4:6,7.

A Espiritualidade e a Experiência Cotidiana


Rubem Amorese
Carlos Roberto Barcelos
Eduardo Rosa Pedreira
Orivaldo Pimentel Jr

A ESPIRITUALIDADE E A

II
UNIDADE
VIDA COMUNITÁRIA

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ A espiritualidade e a ética cristã
■ A espiritualidade e a família
■ A espiritualidade e a experiência comunitária
■ A espiritualidade e a identidade evangélica nacional
95

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


A ÉTICA QUE BROTA DO AMOR
A ÉTICA QUE BROTA DO AMOR

�Rubem Amores e 1
Escritor, ormou-se em
Comunicação Social

E
pela Universidade do
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Estado do Rio de
Janeiro e graduou-se
comum nos preocuparmos com o crescimento
mestre pela
Universidade de de nossos ilhos. Em particular, com sua maturidade
Brasília. Tem pós­ espiritual e ética. Aqueles que não têm filhos, oram
graduação em pels jovens da igreja. Ou então pelos novatos, cha­
Inormática. Foi mados "neófitos". A propósito, hoje em dia há mui­
professor na Faculdade
tos filhos orando, da mesma forma, por seus pais, e
Teolóica Batista de
dizendo: "Ó, Senhor, quando é que meu pai [ou 'mi­
Brasília e presidente do
nha mãe'] vai tomar juízo" Faz sentido. Com a aci­
diretório regional da
Sociedade Bíblica do lidade no processo de separações, pais e mães se vêem,
Brasil. É consultor de uma hora para outra, livres, leves e soltos no mun­
legislativo no Senado do, prontos para uma nova experiência: a de um tipo
Federal, presbítero na de liberdade que não existia em sua juventude. A par­
Igreja Presbiteriana do tir daí, passam a se comportar como adolescentes.
Planalto e presidente
Assim, sinto-me tentado a propor que os trate­
da Missão Soial
mos todos por "filhos". Afinal. tenham vinte ou cin­
Evangélica -
Comunicarte. qüenta anos de idade, sua caminhada para a maturi­
dade obedece aos mesmos princípios. Também faria
esta proposta porque nos interessa refletir sobre a
relação filho-pai de uma forma que abranja todas as
idades.
As inquietações dos pis são sempre as mesmas:
quando poderei largar meu üho no mundo e descan­
sar, sabendo que ele está preparado para tomar as

131
A Espiritualidade e a Vida Comunitária
96 UNIDADE II

próprias decisões? Quando saberei que sua formação m oral está com pleta e
que ele, além de ser capaz de discern ir o certo do errado, já tem a estrutura
psicológica, espiritual e ética que lhe perm ite escolher o certo e renunciar às
ten tações do en gan o?
Essas pergun tas an gustian tes surgem quan do os filhos com eçam a ter os
próprios program as, as próprias am izades e já n ão querem ser tutelados. É
hora de tom ar as próprias decisões, m uitas das quais lhes podem trazer
con seqüên cias para o resto da vida. Estarão pron tos para isso?
N esse m om en to, n osso pen sam en to se in terioriza, e n os pergun tam os:

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estam os n ós, seus pais, pron tos para tom ar as decisões que esperam os de-
les? O u estam os jogan do sobre seus om bros um fardo que n ós m esm os n ão
podem os carregar? É quan do com eçam os a puxar pela m em ória para lem -
brar quan do foi que n os vim os m aduros para en fren tar a vida sozin hos.
N este m om en to descobrim os, m uitas vezes aterrorizados, que n ão sabe-
m os respon der com seguran ça a essas questões. N esse caso, talvez as refle-
xões deste texto possam n os ser úteis. Basta assum irm os o papel de filhos,
saben do que sem pre terem os um Pai desejoso de n os ver espiritualm en te
amadurecidos.
N a prática, as inseguranças dos pais são tantas que n ão querem que seus
filhos decidam n ada sozin hos. Sob a desculpa de n ão ser pais ausen tes,
in vadem a vida deles para participar, ajudar, tutelar, vigiar, acon selhar, co-
m an dar. En tão, percebem os que esses verbos todos apon tam para um gran -
de m edo: o de que os filhos cresçam apen as n o corpo e n o in telecto, m as
que se torn em espiritual e eticam en te raquíticos.

FREIOS DO CORAÇÃO
Pretensão das pretensões seria tentar equacionar definitivamente essas ques-
tões e forn ecer um a receita ou fórm ula que resolvesse o problem a. M as
talvez seja possível con tribuir fazen do o m apeam en to das n ascen tes da éti-
ca cristã. D e on de ela vem ? Com o n ascem os freios do coração? D e on de
vem a sabedoria que leva um jovem a n ão colar n a prova, n ão experim en tar
o baseado, n ão ir para a cam a com a n am orada — coisas que quase todos os
seus colegas fazem ? D e on de vem a força para dizer “n ão” n um m un do de
“sim , eu m ereço”?

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


97

Vam os às Escrituras, e lá encontram os um a fam ília com posta por um pai


e dois filhos. U m a profun da parábola de Jesus, versan do sobre relacion a-
m en tos, m atéria-prim a de todo seu en sin o. Talvez lá en con trem os o m ate-
rial n ecessário para trazer luz ao tem a.

OS DOIS IRMÃOS

O exam e do com portam en to dos dois filhos da parábola do filho pródigo,


con tada por Jesus em Lucas 15, n os revela que eles se m ostraram diferen tes
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n a form a de agir, m as tin ham m uito em com um em suas m atrizes com por-
tam en tais, em suas m otivações. Chegam os à con vicção de que Jesus n os
apresen ta dois filhos pródigos: o que saiu de casa e o que ficou. N os dois
casos, percebe-se um a profun da e dolorida ruptura com o pai, cujas causas
n ão são apresen tadas n a p arábola — t alvez com p reen síveis ap en as ao
p ú blico origin al de Jesus —, a m otivar atitudes bastan te distin tas.
N o con texto, Jesus dá um a resposta tríplice a seus detratores (fariseus e
escribas), que o cen suram por receber pecadores e com er com eles. D efen -
de um a atitude in esperada para seus in terlocutores ao bater três vezes n a
tecla da alegria da restauração por m eio das parábolas da ovelha, da dracm a e
dos filhos perdidos. N os três casos, a m oral da história é a m esm a: “Ven ha
se alegrar com igo, porque achei o que estava perdido.”
Tal debate de idéias se in icia em torn o do que é certo e errado n o com -
portam en to do Filho de D eus. O s fariseus n ão podiam adm itir que Jesus
com esse com pecadores, pois, para eles, sen tar-se à m esa com aquele tipo
de gente apontava para o grande banquete m essiânico de Isaías, para o qual
os im puros n ão seriam con vidados. A seus olhos, partilhar a m esa com
aquelas pessoas im puras tam bém torn ava Jesus im puro.
O M estre reage e apresen ta outro ân gulo da questão: o sacrifício m iseri-
cordioso de quem deseja salvar. E vai além : associa os in sen síveis fariseus
ao filho m ais velho, aquele que escon de as m ágoas e fica em casa. Possivel-
m en te tão problem ático quan to o m ais m oço. N o en tan to, m uito m ais difí-
cil de restaurar, pois m antém sua ira sob a superfície de aparente obediência
e subm issão. É dessa posição m ascarada que desanda a conden ar o com por-
tam en to fran co do irm ão.

A Espiritualidade e a Vida Comunitária


98 UNIDADE II

Essa parábola, en volvida em seu con texto, com o tan tas outras traz à luz
um debate sobre o com portam en to esperado para determ in ada situação; o
“errado” é o com portam en to n ão aprovado, n ão san cion ado socialm en te.
Trata-se, portan to, de um a discussão sobre ética. Estaria Jesus sen do ético
ao com er com a escória de sua sociedade? Jesus se defen de, con tan do a
parábola e apresen tan do outra questão: estaria o irm ão m ais velho adotan -
do um com portam en to ético?
Parece que o ún ico pon to pacífico de toda essa disputa foi a avaliação
n egativa do filho que aban don ou o pai e foi viver dissolutam en te. E a pará-

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bola-resposta se torn a m ais agressiva ain da quan do se n ota que este filho é
o ún ico person agem que recebe um a festa em sua hom en agem . U m a festa
oferecida pelo Pai.
Para en riquecer o tem a, Jesus m ostra que sen tim en tos e experiên cias
muito semelhantes produziram comportamentos tão diferentes entre os dois
filhos daquele sen hor. Q ueriam os fariseus que fossem avaliados apen as os
com portam en tos, e n ão as m otivações. A esta altura, Jesus reage, m ostran -
do que, com isso, eles procuravam justificar sua in sen sibilidade.
D e fato, Jesus n ão perdia oportun idades de apresen tar seu Pai com o o
D eus dos m otivos, das causas, dos corações. Basta lem brar os m om en tos
em que falava: “O uvistes o que foi dito; eu, porém , vos digo.” Em cada
exem plo, ele queria dizer: “M eu Pai é um D eus ético, para quem o com por-
tam en to correto é tão im portan te quan to a fon te dessas águas.”
Em algun s m om en tos, o coração será m ais im portan te que as próprias
ações. É o que se aprende com o personagem principal da parábola: o irm ão
m ais velho. Sim , este filho, e n ão o m oço volun tarioso e desastrado. O que
fica em casa, um vulcão adorm ecido, um bolo queim ado coberto de glacê,
este é a figura do fariseu que m urm urava. Jesus traz para a discussão sobre
ética filial os elem en tos subjetivos que hão de causar profun das dificulda-
des aos legalistas fariseus.

ÉTICA E ETHOS
Talvez seja óbvio assin alar que toda essa discussão sobre com portam en to
só tem sen tido porque estam os em sociedade. N ão tivessem os filhos pró-

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


99

digos um pai e um irm ão, n ão fossem um a fam ília, a discussão perderia seu
sen tido. Talvez pudéssem os, com m uito in teresse cien tífico, estudar o com -
portam en to de um a pessoa aban don ada em um a ilha deserta. Por exem plo,
ela poderia levar para aquela situação con dicion an tes do passado que a
torn assem m ais ou m en os cap az d e sobreviver. Pod eríam os at é exam i-
n ar su as at it u d es m en t ais, com o p erseveran ça, d iscip lin a, au t ocon t role,
orien tação espacial e tan tas outras habilidades que a torn assem m ais ou
m en os capaz de en fren tar os desafios de um a situação tão extrem a. N o
en tan to, n ão estaríam os falan do de ética.
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É possível im agin ar que certos com portam en tos e atos desse n áufrago
im agin ário pudessem ser classificados com o certos ou errados. Com porta-
m en tos errados poderiam lhe valer a m orte em um a situação radical, que
n ão perdoa erros. M as, ain da assim , n ão estaríam os falan do de ética. O
m otivo é sim ples: a ética pressupõe o relacion am en to com outras pessoas.
D iz respeito a um a arte, um a habilidade: a capacidade de viver bem com outras
pessoas.
Por serem livres, as pessoas com portam -se de form a volun tária e n ão
program ada, diferen tem en te dos an im ais, fazen do escolhas todo tem po.
Por causa de um a gran de deficiên cia in stin tiva, se com parados com os an i-
m ais irracionais, seu com portam ento é quase todo apren dido. Cham a-se ao
processo de habilitação para a vida en tre os hum an os “socialização”. Com
o tem po, o apren dizado por m eio de repetições produz os hábitos adequa-
dos à sobrevivên cia, m an uten ção e, em particular, ao con vívio social. Essa
m esm a sociedade julgará o com portam en to do in divíduo, determ in an do se
seus hábitos são bon s ou m aus. Ele apren derá a duras pen as sobre o que é
aceito ou rejeitado.
Por esse m ecan ism o, a sociedade in culca n as pessoas um con jun to de
costum es de bem -viver, de n atureza n ão form al (en tre os “costum es for-
m ais”, citaríam os as leis e os con tratos). Costum es, em latim , é mores. D e
mores vem moralis (m oral). M oralis é a palavra que Cícero usou para tradu-
zir a palavra grega éthicós. Ética e m oral são gêm eas. A ética se preocupa
com o aspecto m oral do ato hum an o e de toda a atividade hum an a: o bem
e o m al, o hon esto e o deson esto, o justo e o in justo, o virtuoso e o vicioso.

A Espiritualidade e a Vida Comunitária


100 UNIDADE II

As escolhas que as pessoas fazem dian te das situações sociais da vida


redun darão ou n ão em um bem -viver. Esse bem -viver refere-se, em particu-
lar, ao trato com as pessoas, pois é n essa dim en são relacion al que a vida de
alguém pode se tran sform ar em céu ou in fern o. As escolhas, que se refle-
tem n os atos, têm com o in gredien tes im portan tes a liberdade, o con heci-
m en to e a respon sabilidade. Sem liberdade de escolha n ão se pode falar de
ética.
A origem da palavra “ética”, n o en tan to, tem m ais um a variação. Ela
deriva de dois term os gregos de sign ificados e pron ún cias m uito sem elhan -

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tes. Éthos sign ifica hábito ou costum e — com o já vim os, apon tan do, n or-
malmente, para o comportamento exterior. Êthos, por outro lado, significava
o lugar ou pátria on de habitualm en te se vivia. Pode ser en ten dida, n esta
acepção, com o o caráter habitual de ser ou a form a de pen sar de um a pes-
soa. Assim , o ético poderia traduzir-se por m odo ou form a de vida, n o sen -
tido m ais profun do da palavra, com preen den do as disposições da pessoa n a
vida: seu caráter, suas atitudes, seus costum es e a m oral.
Portan to, ain da que a ética se con cen tre, n a prim eira defin ição da pala-
vra, na observação dos atos hum anos exteriores, na segunda definição, ethos
diz respeito a com o com preen der e organ izar a con duta, tan to n a vida pri-
vada quan to n a pública. N este n ível de profun didade, já estam os falan do
de alm a e de coração.
U san do um a lin guagem m odern a, diríam os que, ao apresen tar suas pa-
rábolas, Jesus estava “problem atizan do” a abordagem sim plista e superfi-
cial da ética farisaica: aquela que se lim itava aos atos exteriores, abordagem
esta con ven ien te a um a cultura legalista. N ão im portam os m otivos, n ão
im porta o coração, n ão im portam as circun stân cias; im porta, sim , se fez ou
n ão fez, se agiu certo ou errado. O que n ão se en quadra n esses m oldes,
diziam , é im pureza.

REFERENCIAIS ÉTICOS
A p art ir d est e p on t o, u m a d ú vid a com eça a in com od ar: com o sabem os
qu e tais com portam en tos m orais, por m ais livres, in form ados, respon sá-
veis e aprovados que sejam , são os m elhores? Apen as porque nossa socie-

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


101

dade os aprova? Apen as porque os escribas e fariseus os en sin am ? E se essa


sociedade, even tualm en te, n os propuser com portam en tos que n ão percebe
serem fon te de mal-viver? Q uem julgará a validade ou a propriedade dos
costum es que ela n os apresen ta?
E quan do a escolha ética recair sobre um dilem a hierárquico de valores?
Por exem plo, que dizer da prática de aborto para crianças sem cérebro e que
am eaçam a vida da m ãe? U ns dizem que a vida da criança está acim a dessas
decisões; outros, que n ão há vida possível para essa crian ça, e que há o
dever m oral de salvar a m ãe, intervindo antes que seja tarde. E agora? O nde
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está a regra clara?


Q ue dizer dos costum es sociais en sin ados pelas parábolas m odern as, as
n ovelas, a respeito do am or livre e da prática sexual sem restrições? Q ue
dizer das cam pan has govern am en tais de apoio e recon hecim en to dos “di-
reitos dos hom ossexuais” — cam pan has essas que n ão som en te protegem
seus direitos civis, com o tam bém transformam seu comportamento público
em m odos aprovados e n orm ais de ser e viver?
Q ue dizer, ain da, do uso de verbas públicas (din heiro de todos os cida-
dãos) para distribuir m ilhões de cam isin has em festas populares com o car-
navais, micaretas, bailes funk e outras festas populares? N ão está o Governo,
ao represen tar o “pen sam en to da sociedade”, legitim an do a prom iscuidade
sexual? Será ético “ficar” com cin co pessoas em um a m esm a festa? E ser for
com bin ado en tre cin co casais con siderados “liberados” que farão a troca de
cônjuges “num a boa”, e todos aceitarem tal conduta? N este caso, seria anti-
ético? Im oral? Q ue fazer com essas sugestões de com portam en to aprova-
do, difun didas através de todos os m eios de com un icação? Sim plesm en te
adotá-los por con siderá-los éticos, m odern os?
A resposta para todo esse question am en to é: precisam os julgar os costu-
m es aprovados, com o fazia Jesus em relação ao en sin o rabín ico. Este julga-
m en to pode advir de fon tes in tern as ou extern as a essa m esm a sociedade.
In tern am en te, surgem os críticos, os tran sviados e os in telectuais, revoltan -
do-se e den un cian do as falhas. U m fen ôm en o em blem ático foi a gran de
con cen tração de Woodstock, n os Estad os U n id os, em 1 9 6 9 , on d e a ju -
ven tude “paz e am or” den un ciava, com seu slogan “faça am or, n ão faça
guerra”, a hipocrisia da sociedade am erican a do pós-guerra. Com seu com -

A Espiritualidade e a Vida Comunitária


102 UNIDADE II

portam en to escan daloso, perm eado de sexo e drogas, os hippies con testa-
vam o sistem a m oral de seus pais. D en un ciavam sua ética podre n os n egó-
cios, n a vida social, n a vida em fam ília e n o Govern o.
O tem po m ostrou, n o en tan to, que esses joven s n ão eram tão diferen tes
dos pais. A revolução sexual seguiu seu curso, com a in ven ção da pílula
anticoncepcional e de outros m eios contraceptivos. As mulheres assumiram
n ovo papel n a sociedade. U m a n ova on da de liberdade dos costum es sur-
giu. M as é aí que cabe a pergun ta: hoje se vive m elhor? Com o avaliar os
avan ços ou retrocessos? Percebem os que as fon tes in tern as n em sem pre

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são suficien tes. Surge a n ecessidade de padrões extern os, m en os m an ipulá-
veis. Referen ciais extern os.
Para n os ajudar com esse ân gulo de visão, tem os a filosofia e a religião,
fon tes mais ou menos perenes, que não mudam com as diferenças culturais,
com os m odism os sociais ou com in teresses políticos. São prin cípios que se
aplicam a qualquer relacion am en to hum an o e oferecem , com o resultado, a
felicidade, o bem -viver. Vale salien tar, in clusive, que essas fon tes n ão preci-
sam ser com plicadas n em acadêm icas. Podem ser, tam bém , populares.
U m exem plo de sabedoria popular do bem -viver são os provérbios. Eles
en cerram gran de dose de religião e percepção filosófica. Q uan do ouvim os
n ossos pais dizerem que “o tolo com e o que gosta, m as o sábio com e o que
precisa”, apren dem os sobre sabedoria popular. M uitos desses provérbios
trazem con teúdo ético. Por exem plo, quan do o ditado popular afirm a que
“falar é ouro, calar é prata”, está n os en sin an do sobre relacion am en to, so-
bre bem -viver. O utros, ainda, encerram ética concentrada: “M ais vale o cré-
dito n a praça do que o din heiro n a carteira”; ou: “A verdade am arga cura; a
m entira doce m ata.”
In t eressa-n os, en t ret an t o, olh ar para a religião crist ã com o gran d e
referen cial ético, m an an cial de prin cípios pelos quais julgarem os o en sin a-
m en to rabín ico de n osso tem po e escolherem os, com seguran ça, o cam in ho
para o bem -viver.

AS RAZÕES PARA A ÉTICA


Q uan do pen sam os n a parábola dos filhos pródigos, com a qual Jesus de-
fen deu a ética qu e su st en t ava seu com p ort am en t o m essiân ico, ficam os

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


103

in trigados com o com portam en to tão diferen te dos irm ãos. N o en tan to,
percebem os que eles agiram a partir de um a m atriz com um , revelan do rela-
ções adoecidas com o pai.
Surge, n este m om en to, um a questão: o desejo de liberdade do irm ão
m ais m oço não estaria, de algum a form a, relacionado à obediência servil do
m ais velho? Afin al, trata-se de situação de ruptura que veio à ton a de for-
m as bem diferen tes, m as resultan tes de um m esm o problem a relacion al
cham ado “pecado”. N o silên cio solitário de sua vida, n o adoecim en to das
relações, havia dois irm ãos ressen tidos com o pai e en tre si. U m deles, de
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person alidade m ais expan siva e volun tariosa, abre a ferida e vai-se em bora.
Foi cham ado pela cristan dade “filho pródigo”, ou o filho gastador, perdulá-
rio. O outro, talvez m en os corajoso, prefere ficar. Jesus, porém , tem o cui-
dado de m ostrar que ele n ão é m elhor que seu irm ão. Ao saber da festa que
é oferecida àquele que, derrotado, volta para casa, recusa-se a participar,
cen suran do publicam en te o com portam en to m isericordioso do pai.
Por ser o filho “bom ”, n a avaliação extern a da ética farisaica, n ão n os
pergun tam os as causas de seus problem as com o pai. N em sequer n os da-
m os con ta de que o filho m ais velho n utria ressen tim en tos e am arguras, até
que ele m esm o o revela n a m agistral con strução de Jesus. Sem pre foi obe-
dien te, m as tin ha problem as para gozar das liberdades de um filho; jam ais
m atara um n ovilho para com er com seus am igos, disse, carregado de am ar-
gura e ran cor. Im agin ava, talvez in vejosam en te, os prazeres com que seu
irm ão dissipava os ben s que susten tariam a velhice do Pai.
Q uaisquer que fossem os m otivos da obediên cia do filho m ais velho,
seu com portam en to seria aprovado pelos fariseus. Jesus sabia disso. Pode-
ria ser um a obediên cia covarde, de quem desejava, n o secreto do coração,
fazer o que o m ais m oço estava fazen do, m as sem coragem . Seu com porta-
m en to aprovado poderia estar calcado n o m edo de ser cen surado pelo pai;
n o m edo de errar; n o m edo de ser pego em falta; n o m edo da vergon ha de
ser desm ascarado ao se com portar coeren tem en te com sua in veja, com sua
m ágoa.
O m edo caracteriza um a das m ais arraigadas e profun das razões da ética.
N o entanto, nem sem pre torna as pessoas m elhores, m ais aptas para o bem -

A Espiritualidade e a Vida Comunitária


104 UNIDADE II

viver. N a verdade, suas dificuldades e pecados estão lá den tro, produzin do


n ecessidades e desejos destrutivos. O com portam en to ético, n esses casos é
com o o vern iz sobre a m adeira de cupim .

PODER OU AMOR
O m edo é um dos subprodutos do poder. O s dois pólos en tre os quais
oscilam as razões (os m otivos) da ética são o poder e o amor. O s dois se
apresen tam com o fon tes do com portam en to dito “correto”. Pelo poder,
podem os domesticar os filhos ou os subordin ados. Ten do o poder de pun ir,

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a sociedade direcion a o com portam en to de seus cidadãos, reprim in do o
que en ten da ser an ti-social, an ti-ético. D a m esm a form a, even tualm en te
prem ia com portam en tos con siderados “aprovados”. É assim que apren de-
m os, em n ossos lares, n a escola e n a vida, a agir de form a a evitar as pun i-
ções ou a merecer recom pensas. Conquanto se possa — e deva — privilegiar
os in cen tivos ao com portam en to “aprovado”, n a prática, a prin cipal ferra-
m en ta desse exercício de poder é o m edo.
Vale n otar, n o en tan to, que o uso do poder n ão garan te m udan ças n as
razões da ética. N ão m uda o coração, m as som en te o com portam en to exte-
rior. Para o fariseu, seria o suficien te. Talvez seja assim para m uitos de n ós,
pais ou pastores preocupados com o desen volvim en to ético de n ossos fi-
lhos. N o en tan to, essa abordagem tem tudo para criar um a geração de filhos
pródigos. Gen te que, assim que se torn a don a do próprio n ariz, cai n o m un -
do. O u en tão, faz pior: fica, m as seu coração é um vulcão em atividade. Só
aparece a fum aça, e nunca se sabe quando entrará em erupção para destruir
tudo que o cerca.
O corre que a ética que provém do poder gera um tipo de con strução de
vida em que o im portan te é n ão ser flagrado, n ão ser pun ido. O m edo que
gera o ato virtuoso é o da punição (que pode variar da censura verbal à pena
de m orte). Portan to, con seguin do evitar o “efeito das causas” (a m an ifesta-
ção exterior de um coração egocên trico), fica tudo certo.
O resultado dessa postura varia m uito. É tão variado quan to com um . O
m en tiroso se justifica m ais que o n orm al. O ladrão doa din heiro para cre-
ches e fundos beneficentes para ser aplaudido por seu desapego. O invejoso

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


105

elogia exagerad am en t e seu s com p et id ores, p arecen d o gost ar d eles. O


violen to brin ca com crian ças ou an im ais, de m odo a n ão tran sparecer sua
person alidade letal. O covarde con ta histórias pitorescas de riscos e peri-
gos, n as quais surge, m odestam en te, com o person agem prin cipal. O fraco
vive colocan do a culpa n os outros por seus erros ou falhas. E assim por
diante.
O utra form a com um de abordar o problem a do “efeito das causas” é
pela via do am or. E aqui estam os falan do do cristian ism o em um a de suas
características ún icas, n ão en con tradas em outras religiões. Em sua revela-
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ção, o cristian ism o é berço de um a ética diferen te. U m a ética com razões
ín tim as e gen uín as. Isso porque seus cam in hos de espiritualidade propõem
razões in tern as para as ren ún cias doloridas — ain da que salutares — que as
escolhas éticas en volvem .
Já n ão estam os falan do de um poder extern o e am eaçador, seja n a form a
de um D eus que tudo vê e pun e o pecado, seja n a form a da desaprovação
da própria sociedade. A proposta cristã question a a ética do poder e do
m edo, que traz, in teriorm en te, o vício de ten tar burlar a vigilân cia ou con s-
truir desculpas. Ética que, jun to com a educação que proporcion a, gera as
distorções de caráter que sem pre buscam m ecan ism os de poder que perm i-
tam a im pun idade, ao in vés de buscar retidão. Em m uitos casos, in ven tam
escapes por m eio de desculpas, de alegação de m in oridade, de deficiên cias
físicas ou m entais. Esse tipo de personalidade resolve suas culpas com auto-
in dulgên cias, autocom iseração, m ágoas perm issivas, um a espécie de síndro-
me do coitadinho e tan tos outros artifícios quantos possa conceber o enganoso
coração humano.
Jesus n os propõe um n ovo paradigm a. N ão elim in a de todo a lógica do
poder. Isso porque n ão elim in a um D eus m oral, um “Pai que está n os céus”
e n ão pode ser m an ipulado (por n ossos poderes), e tam bém n ão descarta
as con seqüên cias de n ossos atos. Ao con trário, com as m uitas m en ções a
choro e ran ger de den tes, à aprovação dos servos fiéis, à ceifa do que se
plan tou, fala-se do salário do pecado, pago in teiram en te n a cruz.
Sim , o cristian ism o n ão subestim a as questões éticas e suas con seqüên -
cias. N o en tan to, o eixo m uda radicalm en te. N ele é apon tado um cam in ho

A Espiritualidade e a Vida Comunitária


106 UNIDADE II

“sobrem odo excelen te”, um cam in ho do coração, um cam in ho da alm a. Já


n ão se en fatizam as pun ições, m as o cham ado para a festa. Já n ão se fala de
um D eus que “visita a m aldade dos pais n os filhos”, m as de um Pai que diz
ao filho m ais velho: “Participe, in corpore-se, alegre-se con osco n esta festa
da restauração.” N essa dim en são relacion al, o m edo se tran sform a em te-
m or. U m tem or que dá origem à sabedoria.

A ÉTICA DO AMOR
O poder isola. M esm o o poder político, essa com petên cia para m an ipular

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(n o bom e n o m au sen tidos) o com portam en to das pessoas. Ain da quan do
exercido de form a legítim a, por govern an tes dem ocraticam en te eleitos ou
pela polícia, o poder separa seu deten tor dos dem ais. Talvez seja por isso
que se diz que m om en tos de decisão (exercício ín tim o do poder) são m o-
m en tos solitários. N in guém pode tom ar um a decisão por outra pessoa por-
que se trata de um a operação in tern a.
Estam os de volta à ética. N in guém pode ser ético por outra pessoa, pos-
to que a ética se opera in tim am en te, por m eio de um a ação con tín ua de
tom ada de decisões. D ecidir en volve ren un ciar. N ão se pode escolher tudo,
pois n ão seria escolha. A ren ún cia é in evitável. Ao chegar n um a en cruzilha-
da, n ão se pode resolver seguir pelos dois cam in hos. A escolha de virar à
direita im plica ren un ciar ao cam in ho da esquerda. Assim , a ética cobra seu
preço: o preço da ren ún cia e da solidão. Precisam os fazer a escolha ín tim a
sozin hos.
Talvez a ún ica form a de exercer solitariam en te esse poder e obter, com o
com pen sação, a in tim idade (o con trário de solidão) seja a decisão de am ar.
N esse momento, ainda que permaneçamos momentaneamente isolados pelo
caráter ín tim o da escolha e m agoados pela dor específica da ren ún cia, o
resultado im ediatamente subseqüente é a proximidade, a intimidade, ainda
que de n atureza n ão física, apen as espiritual.
Talvez seja por causa do alto preço que a ética cobra que decidam os
trocar a dor da ren ún cia pelas dores das con seqüên cias de m ais lon go prazo
da escolha in sen sata. Essas con seqüên cias serão o mal-viver em sociedade,
o anti-ethos. Por exem plo, se decido que certo m odo de agir m e é lícito (todo

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


107

m un do faz), m as n ão m e con vém , pago o preço im ediato, tan to da solidão


da decisão quan to da dor im plícita n a ren ún cia. En tretan to, se escolho que,
em bora in con ven ien te, desejo agir assim , o preço a pagar é in evitável, m as
eventualmente só se apresentará com o conta a pagar, de forma diluída e com
m ais prazo. É possível que eu n un ca perceba que estou pagan do, hoje, o
preço de escolhas éticas passadas, pois fica tudo n a fum aça da vida. So-
m en te a sabedoria con segue ver essas coisas.

A ÉTICA DO SANTUÁRIO
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D e um a coisa n ão se pode escapar: as contas de n ossas decisões serão cobra-


das pela própria vida. A renúncia, enquanto opção ética, normalmente é um
preço m uito m ais baixo, m as à vista. A opção pelo prazer im ediato é cobra-
da a prazo, m as com juros. Sábio é aquele que reún e as con dições de pagar
suas con tas éticas à vista. E é aqui, dian te dessa im en sa m on tan ha ín tim a a
escalar, que som os socorridos pelo Espírito San to. É aqui que Jesus n os
con vida a en trar em n osso quarto, para a adoração ín tim a, on de toda n ossa
vida se m etaboliza e produz a en ergia n ecessária.
Agora, o cen tro da questão do poder m an ifesta-se com o o poder que
em an a do próprio D eus. En tro em m eu quarto e dedico-m e a um a con versa
ín tim a a três: D eus, m in ha alm a e eu m esm o. Trago as escolhas ín tim as e
solitárias sobre as quais preciso decidir, após julgar o m elhor cam inho. Con-
verso, tam bém , sobre os preços a pagar e a dor das ren ún cias.
N esse espaço de in tim idade em que pais, m ães, dirigen tes, tutores ou
qualquer outra autoridade é barrada n a porta, direi a m in ha alm a: “Por que
estás abatida? Por que te turbas dentro em mim?” E tentarei ouvir suas razões
e respostas. D irei, en tão, a ela: “Espera em D eus, pois ain da o louvarei”, e
lhe discorrerei sobre D eus, sua m ajestade, sua fidelidade, sua m isericórdia
e seu am or, em vista do problem a a resolver. Voltan do-m e para D eus, apre-
sen to-lhe essa m in ha alm a atribulada e toda a m in ha an siedade, e lhe digo:
“Sen hor, n ão an do à procura de gran des coisas, n em de coisas m aravilhosas
dem ais para m im ; pelo con trário, fiz calar e sossegar a m in ha alm a; quero-
a quieta com o um a crian ça n os braços de sua m ãe.” E ouvirei do Sen hor
suas razões e respostas. Este é o berço, o n ascedouro da ética cristã.

A Espiritualidade e a Vida Comunitária


108 UNIDADE II

A verdadeira adoração se com põe de pelo m en os três experiên cias bási-


cas: a expressão, a oferta e a transformação. Em bora ela possa acon tecer liturgi-
cam en te, seu lugar por excelên cia é o am bien te m ais reservado, o quarto,
m esm o que este seja um a m etáfora para o m om en to de in tim idade e reco-
lhim ento contem plativos de D eus. “Entrar no quarto” é tudo com que sem -
pre son haram aqueles que oram pela m aturidade ética de seus filhos. Vale
um a explicação.
Assim com o as decisões éticas são sem pre solitárias e sacrificiais, posto
que são ín tim as, e n in guém pode tom á-las por outrem , assim tam bém n in -

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guém pode “en trar n o quarto” por seu filho ou por seu pai. É um lugar para
on de se vai com as próprias pern as, e de on de se sai com o próprio coração.
É ali que se dão os en con tros prim ários da vida. N ão m e refiro apen as à
vida espiritual porque estou falan do de toda a vida. É n o quarto que o
n eófito en con trará “seu Pai que vê em secreto”. É ali que ele apren derá,
fin alm en te, a se relacion ar com D eus em um a dim en são n ão m ediada por
seus tutores. É ali que a crian ça deixa de ser crian ça (ten ha a idade etária
que tiver) e se tran sform a em cristão respon sável. Ali, ele apren de a se
relacion ar com D eus o m ais ín tim a e diretam en te possível para um m ortal:
eu-tu. É a dim en são em que acon tece o fen ôm en o Abba Pai: o filho do
Altíssim o, por m eio do seu Espírito San to, fazen do m orada n o coração hu-
m an o, con form e sua prom essa.
D ian te de um D eus que tudo sabe, tudo vê, tudo pode, m as tam bém
que tudo espera, tudo sofre, tudo suporta; dian te de um Pai que bate à
porta e n un ca arrom ba, m isericordioso e desejoso de cultivar n ova am iza-
de; dian te dele, a crian ça se faz m aior e passa a discern ir a própria vida e os
cam in hos a trilhar.
M ais que isso, é n o quarto da adoração que as três experiên cias m en cio-
n adas forn ecem ao cristão as forças para pagar o preço da solidão e da
ren ún cia. N o recôn dito, ele expressa sua vida com a lin guagem de que é
capaz, trazen do-a toda à presen ça de seu Pai. É a “ben dita hora de oração”.
Em seguida, a adoração genuína se encam inha, pelo poder do Espírito, para
a exp eriên cia d a oferta. Pelo m esm o p od er se d erram a em con t rição, ar-
rep en d im en t o e con fissão, evolu in d o p ara n ovos p rop ósit os ou vot os. É

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


109

o “sacrifício vivo, san to e agradável a D eus”, que o colocará em con dições


de experim en tar a boa, agradável e perfeita von tade de D eus. Essas duas
experiên cias produzem um a terceira, a da transformação, m edian te a qual o
cristão sairá de seu quarto pron to para viver a vida que o espera — da
m an eira o m ais ética possível, pois essa é a von tade de D eus, e essa é a sua
von tade, tam bém .

MATURIDADE ESPIRITUAL E ÉTICA


Com o saber que n osso filho agora tom ará decisões m ais éticas que an tes?
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Q ue m udan ças n os perm item descan sar para en tregá-lo à vida, saben do,
in clusive, que sua experiên cia vital n ão será um a réplica de n ossas virt u d es
e falh as? A resp ost a é qu e agora ele vive u m a exp eriên cia pessoal e ín ti-
m a de am or com D eus. Lan çan do fora o m edo, já n ão será a partir da lógica
do poder que ele organ izará todo seu agir, m as por am or.
Eis o que faltava aos irm ãos pródigos: am or. Seu com portam en to era
regido por con dicion an tes extern as, com o o m edo. Forças que só atuavam
sobre os atos exteriores, m as n ão sobre as fon tes de sua ética. Pobres filhos
pródigos! Vale cham ar a aten ção para o fato de que Jesus iguala esses dois
irm ãos. D e form a diferen te, eles expressam um a m esm a com preen são de
suas relações. E elas se resum iam às exterioridades do poder.
Esses pen sam en tos n os dão con ta de que agora tem os um critério para
avaliar a m aturidade espiritual, aplicável a qualquer pessoa (m as que só
pode m edir a n ossa). D escubram os qual é o “m otor” de n ossa ética: o po-
der ou o am or. Pelo poder, serem os fariseus, preocupados com com porta-
m en tos socialm en te aprovados. Pelo am or, serem os filhos, desejosos de
fazer a von tade do Pai e, com isto, agradá-lo. A m aturidade espiritual chega
n o m om en to em que a “crian ça” en tra n o quarto em secreto, e de lá sai
habilitado a pagar, à vista, as faturas de suas escolhas ín tim as e solitárias.
Eis aí um cristão pron to para crescer e dar m uitos frutos. Agora, a cam i-
n ho da “perfeita varon ilidade”, ele subirá os degraus da san tificação, pon ti-
lhados de idas e vindas ao quarto secreto da adoração pessoal. D as poderosas
experiên cias ín tim as ali vividas, ele tirará forças para dizer, ele m esm o — já
n ão m ais por m edo, n em por desejo de aprovação de seu pai ou sua m ãe,

A Espiritualidade e a Vida Comunitária


110 UNIDADE II

m as por am or àquele a quem con ta todos os segredos e oferta t od as as


d evoções, em form a d e sacrifício vivo, san t o e agrad ável: “Tod as as coi-
sas m e são lícit as, m as n em t od as m e con vêm ; t od as as coisas m e são
lícitas, m as n ão m e deixarei dom in ar por n en hum a delas” (1Co 6:12). Sim ,
ele terá apren dido a dizer “n ão” a si m esm o.
Terá forças para fazê-lo sem pre que a situação o exigir? Sabem os que
n ão. M uitas lágrim as ain da hão de ser derram adas n aquele quarto. M as
serão ben ditas, porque serão lágrim as suas, e n ão de seus pais ou pastores.
E serão vertidas n o altar de D eus — on de m elhor, n o m un do?

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Com algum a ousadia, é possível dizer que aquelas lágrim as con stituem
a n ascen te de um rio caudaloso: o rio do san tuário. Q uan do o quarto se
tran sform a em san tuário, a vida que dele em an a se tran sform a em sacerdó-
cio, e a m inistração, por m ais singela que pareça, tem o selo da genuinidade.
É desse quarto-san tuário que fluem os rios do pastorado, do presbiterato,
do diacon ato, do m in istério de louvor e adoração, en tre tan tos outros.
Ain da ousando, pode-se afirm ar que n ão há m in istério legítim o e gen uí-
n o que n ão ven ha dali. Q ualquer ação m in isterial que n ão se ten ha origin a-
do no quarto é, no mínimo, deficiente, pois apenas nesse lugar de intimidade
com D eus se apreen dem e recebem as habilitações carism áticas para o ser-
viço, para a abn egação, para o am or sacrificial, en fim , para o sacerdócio real
do cristão.
A adoração gen uín a e secreta se revela, en tão, a experiên cia prim ária,
geradora e din am izadora de tudo isso. Con form a-n os à im agem do Filho,
para que ele seja o Prim ogên ito en tre m uitos irm ãos. O quarto da adoração
é o berço da ética cristã. M uito m ais que fon te de bem -viver, é fon te de vida
etern a. Bem -aven turados os que atin am com sua porta.

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


111

A ESPIRITUALIDADE E A FAMÍLIA
DESCOBRINDO A GRAÇA
NOS RELACIONAMENTOS
DESCOBRINDO A GRAÇA NOS RELACIONAMENTOS

�Carlos Roberto Barcelos


Bacharel em Teoloia
pela Faculdade
Teológica Batista de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

São Paulo, formou-se


em Psicologia ela
Universidade Santo
A afirmação seguinte não é exatamente das mais
maro.com originais, mas não lhe alta validade e propriedade:
espclaJização em a amília é o grupo social mais básico da espécie hu­
Terapia Familiar mana. As pessoas só existem por conta dela. Ne­
Sistémica elo nhum de nós nasceu sem um pai e uma mãe,
Instituto de Terapia
independentemente do tipo de vínculo que possa
Familiar de São Paulo.
ter sido estabelecido antes que tivéssemos sido ge­
Foi diretor técnico do
rados. Segundo a Bíblia, este foi um projeto divino,
Vitória - Centro de
Rcuperação de descrito em Gênesis 1 :26-28 e 2:24.
Farmacodependênclas. Ao longo das Escrituras Sagradas, as relações hu­
É tamém pastor e manas estão inseridas no contexto amiliar, e a pró­
presbítero da Igreja pria história da salvação introduz a idéia de família:
Batista do Morumbl.
Deus e Jesus Cristo têm uma relação de ai e Filho,
modelar para todos os relacionamentos humanamen­
te equivalentes; a Igreja é entendida como a amília
de Deus; o casamento é metáfora do relacionamen­
to de Deus com a Igreja; a promessa de vida eterna
também contém o elemento amiliar como referên­
cia das relações uturas. Por essas razões, o casa­
mento e a família têm um lugar proeminente no
contexto bíblico. Assim, onde o Evangelho é prega­
do, ensina-se o projeto divino para o relacionamen­
to conjugal e familiar.

169
A Espiritualidade e a Família
112 UNIDADE II

A história hum an a, do pon to de vista das Escrituras, é m arcada pela


queda, m edian te a qual todo tipo de con flito surge em qualquer form a de
relacion am en to hum an o. U m a das con seqüên cias recaiu sobre o projeto
fam iliar in icial, que sofreu lim itações. In stalaram -se um a crise n a in stitui-
ção matrimonial e fam iliar e um a ruptura conceitual sobre os papéis mascu-
lin o e fem in in o.
O livro de Gên esis descreve a crise in augural en tre o prim eiro casal hu-
m an o exatam en te n o even to da queda. A partir daí, criou-se um a situação
de difícil com preen são. Afin al, com o casais e fam ílias podem atacar-se m u-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tuam en te duran te an os, sem pre com as m esm as queixas e fórm ulas, sem se
dar con ta da total in utilidade desse ato? Essas querelas giram quase sem pre
em torn o de m in úcias cotidian as.
D o p o n t o d e vist a p sico ló gico, a q u ed a p ro vo co u u m p ro cesso
n eurotizan te, pelo qual as questões em ocion ais n ão resolvidas pela im po-
tên cia hum an a fazem surgir um con tín uo apelo de correção, deixan do as
pessoas en volvidas em um beco em ocion al sem saída. Paulo, n o sétim o
capítulo de sua Carta aos Rom an os, faz um a avaliação bem precisa dessa
im possibilidade. A n atureza hum an a, pecadora de origem , provoca um a
rudeza n os relacion am en tos in terpessoais. Assim , as coisas pequen as pelas
quais um casal ou um a fam ília lutam n ão são bagatelas para os côn juges e
fam iliares, m as são, e t êm p or fu n d am en t o, u m a qu est ão d e p rin cíp ios.
Esses p roblem as são t ão at orm en t ad ores, t ão p en osos e t ão d ifíceis
d e serem solu cion ad os p orqu e se baseiam em p rocessos em ocion ais in -
con scien t es. A Bíblia refere-se a essas d ificu ld ad es: “O coração é m ais
en gan oso que qualquer outra coisa e sua doen ça é in curável. Q uem é capaz
de com preen dê-lo?”.1
Esses processos em ocion ais adquirem gran de im portân cia quan do duas
pessoas estão n a fase de escolha do côn juge. Am bos esperam a restauração
m útua das lesões e frustrações da prim eira in fân cia, an seiam libertar-se dos
tem ores preexisten tes e san ar m utuam en te a culpa que prevalece de relacio-
n am en tos an teriores. As fan tasias e im agin ações n un ca expressadas, que
in quietam e un em am bos os côn juges, posteriorm en te tran sm itidas aos fi-
lhos, constituem uma predisposição à formação de um inconsciente comum,

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


113

ou seja, estruturas em ocion ais e de pen sam en to que costum am trazer m ui-
to sofrim en to e in felicidade tan to para o casal quan to para a fam ília toda.
N os an os seguin tes, o casal se dá con ta de que o in ten to m útuo de res-
tauração pessoal e do côn juge n ão é eficaz. Isto realim en ta as dificuldades
e as frustrações do casal. Caem n o fosso da desilusão e, cheios de raiva e
ódio, acabam por culpar-se e aborrecer-se mutuamente. Estranham-se a ponto
de viver um a vida de separação den tro de casa. É in crível com o o jogo que
os casais praticam , n a ten tativa de solucion ar os con flitos tan to n a eleição
do parceiro quanto na continuação da vida, está baseado, inconscientemen-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

te, em um esforço legítim o de un ião dos m em bros. En quan to o casal e a


família não forem contemplados pela graça de D eus, a vida familiar se cons-
tituirá de crises can sativas e desgastan tes, um esforço en orm e e cheio de
em baraços rum o a um ideal de felicidade aparen tem en te in alcan çável.

A ANGÚSTIA NO MATRIMÔNIO E NA FAMÍLIA


U m a das gran des dificuldades relacion ais n o casam en to é a falta de en ten -
dim en to do m istério en volvido n esta relação tão específica. U m a releitura
de Gên esis 2:24 ajuda a en ten der m elhor a força deste con ceito e a resolver
m uitas dificuldades n os relacion am en tos. N esse texto está esboçado o m is-
tério que tem desafiado a com preen são de todos os estudiosos in teressa-
dos n as relações con jugais e fam iliares: “Por essa razão, o hom em deixará
pai e m ãe e se un irá à sua m ulher, e eles se torn arão um a só carn e.”
O texto n os descreve um a con ta estran ha: o hom em m ais a m ulher so-
m am um ! Q ue aritm ética é esta, na qual um m ais um resultam em um ? E as
duas un idades, on de ficaram ? Elas desaparecem ? Phillipe Caillé, um estu-
dioso das relações fam iliares, n os ajuda a en ten der o m istério: um m ais um
dá três! Isto é resultado do hom em m ais a m ulher que form am o casal.
Assim , a con ta é a seguin te: o hom em (1) m ais a m ulher (1) e m ais a rela-
ção de casal (1) resultam em 3.
Para um a relação con jugal ser fun cion al e con duzir a um a vida fam iliar
tam bém fun cion al, o hom em e a m u lh er p recisam con t in u ar a ser in d i-
víd u os, ao m esm o tem po que são um só n a relação con jugal. O s in divíduos
que form am o casal devem estar claram en te diferen ciados um do outro.

A Espiritualidade e a Família
114 UNIDADE II

Somente quando há tal diferenciação pode haver partilha e complementari-


dade. Cada um , com o in divíduo, deve con duzir-se com respon sabilidade
própria, sem obstáculos em seu desen volvim en to pessoal, ao m esm o tem -
po em que am bos devem ser capazes de solucion ar con strutivam en te seus
con flitos de processos decisórios com un s e de distribuição eqüitativa de
privilégios.
N os últim os an os, experim en tam os um a gran de tran sform ação n as n or-
m as sociais que, por m uitos an os, determ in avam o papel do hom em e da
m ulher e do fun cion am en to da fam ília. Isto n ão põe n ecessariam en te em

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risco o casam en to e a fam ília, m as, com certeza, traz gran de in quietação,
tan to aos joven s quan to aos m ais velhos. U m a liberdade n ão con hecida
an teriorm en te exige readaptações n un ca im agin adas. A liberdade sexual, o
trabalho da m ulher, o divórcio, as m udan ças legais n os direitos da fam ília
levam côn juges e fam iliares a decidir por si m esm os que tipo de relação
estabelecerão.
A pressão social pelo respeit o à liberdade in dividual t em levado as
pessoas e os casais a crer que com prom issos m útuos n ão têm m ais lugar em
relacion am en tos in terpessoais, assim com o um n ão deveria exigir do outro
n ada que lhe tolhesse a liberdade. N o en tan to, se querem os que esta liber-
dade aparente se torne realidade, devem os aceitar com o prem issa um a edu-
cação séria e in t en siva para a liberdade. D esde pequen os, precisam os
desen volver a com petên cia n ecessária para poder decidir com respon sabili-
dade com o con struirem os n osso relacion am en to con jugal, n ossas posturas
sexuais, os objetivos pessoais e com un s que gostaríam os de alcan çar, a dis-
tribuição dos papéis n a relação e com o m an terem os n ossas fam ílias.
H oje, m ais que em qualquer outra época, fica claro que um casal só per-
manece junto por escolha consciente exercida diariamente. H á uma percep-
ção m aior de que, a cada dia que acordam os, estam os decidin do con tin uar
casados e trabalhar para a m an uten ção de n ossa fam ília. Só n os m an tem os
casados porque querem os ficar casados. E isto coloca sobre n ós, que assim
escolhem os, a respon sabilidade de proteger n osso relacion am en to.
Esta con sciên cia n os desafia de um a form a que, até algun s an os atrás,
n os era totalm en te descon hecida. N ovos tabus e arran jos deslocados estão

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


115

surgin do, deixan do côn juges, fam ílias e con selheiros con fusos dian te das
n ovidades. H á m uitos perseguin do a relação ideal, em que se experim en ta
a am izade livre, am pla e duradoura en tre com pan heiros em an cipados. Ao
m esm o tem po, deve oferecer aos in teressados auto-realização ilim itada e
ain da perm an ecer viva, m otivada pelo am or desobrigado.
Logo, porém , percebem que esse ideal n ão passa disto m esm o: um ideal
que n ão se con cretiza n a realidade do dia-a-dia. En tão, bu scam at en d er a
su as carên cias p or m eio d e u m a in d ep en d ên cia forçad a e exp eriên cias
sexu ais desen freadas. Já que são “adultos m aduros”, têm m edo e vergon ha
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dos sen tim en tos de carin ho, recean do o riso dos am igos por con siderá-los
in fan tis, in gên uos e débeis. O s “em an cipados” n ão ten cion am dizer um ao
outro que se querem , que depen dem um do outro e que seria in ten sam en te
triste se o am or se perdesse. Parece haver um jogo in con scien te para de-
m on strar quem é o mais forte e vencer o parceiro, não se permitindo dem on s-
trações de fragilidades pela expressão de sen tim en tos carin hosos.
O m edo de com prom isso im pede m uitos de en trar em relacion am en tos
con jugais. H oje, o ficar e o namorar substituem o com prom isso respon sável,
sen do logo in terrom pidos quan do surgem sen tim en tos de am or, de n ecessi-
dade de carinho e desejo de uma amizade duradoura. A perspectiva da união
peren e é vista com o am eaça, com o se ficassem à m ercê do com pan heiro e
seus sen tim en tos pudessem sofrer ataques de surpresa.
A an gústia de n ão poder suportar um a rejeição frustran te os leva a
an tecipá-la, preferin do rom per as relações an tes de dar ao parceiro a opor-
tun idade de deixá-lo n a m ão. N o en tan to, isso tam bém gera um a gran de
frustração. A ten dên cia para destruir todas as em oções e afetos con duz ao
vazio in terior, à resign ação profun da e à falta de sen tido n a vida.
N este m om en to, pode-se dizer que, se em an os passados o con flito con -
jugal estava baseado em um a forte exigên cia de absoluta sujeição, n os an os
m ais recen tes dom in a o m edo de um a un ião m ais ín tim a. Assim , é preciso
procurar um a fórm ula in term ediária en tre tais extrem os. Isto exigirá um
esforço de n egociação en tre a n ecessidade de liberdade in dividual e o an -
seio de um a am izade estável e duradoura com um com pan heiro jun to ao
qual se passem as distin tas fases da vida, con strua-se um lugar em com um ,

A Espiritualidade e a Família
116 UNIDADE II

crie-se um a fam ília e chegue-se à velhice jun tos, passan do por um a vida
com um frutífera.
Embora essa tensão dialética entre a necessidade de liberdade e de união
con stitua a riqueza, o din am ism o e a plen itude da vida con jugal, poderá ser
tam bém a fon te de tiran ia em tal relacion am en to.
D eve existir um equilíbrio en tre a garan tia da auton om ia e a disposição
de se torn ar parte in tegran te de um todo m aior. N a adolescên cia, há um
esforço m uito gran de para se chegar à auton om ia. Se perm an ecer n este
pon to, haverá m uitas dificuldades relacion ais. O bem -estar de um a pessoa

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só pode ser m an tido quan do ela se m ostra disposta a tran sm itir o apren di-
do e o con quistado até en tão a outra pessoa com quem experim en te os
ben efícios da com plem en taridade. O m atrim ôn io e a fam ília con stituem o
con texto ideal para tal experiên cia de partilha. A iden tidade do in divíduo é
con firm ada n a relação com o outro.
Este tam bém é o con texto em que problem as, obrigações e crises surgi-
rão com o gran des tem pestades. Q uem se casa e fun da um a fam ília será
atin gido violen tam en te pela vida. Expõe-se a dificuldades que exigirão for-
ças n o lim ite da resistên cia, e n ão terá outro rem édio a n ão ser esforçar-se
ao m áxim o, e m esm o assim n ão poderá evitar o risco do fracasso. M uitos
percebem , ao lon go do tem po, que com eteram erros que com prom eteram
irreparavelm en te seus relacion am en tos. Im pression a observar fam ílias in -
teiras experim en tan do um declive fatal, ou pais que fizeram gran de esforço
para criar os filhos sem con seguir atin gir seus projetos tão carin hosam en te
desen volvidos. En tretan to é precisam en te através dessas tragédias que a
vida pode gan har, em term os de dim en são hum an a.

A FAMÍLIA, PROJETO DE DEUS

U m a releitura cuidadosa de Gên esis con duz à con vicção de que a fam ília é
o projeto de D eus para o hom em e a m ulher. É através do casal que a
fam ília se form a, crian do a estrutura que, n o âm bito do ideal, dará suporte
aos filhos, garan tin do a preservação da espécie. Além disso, é através tan to
do casam en to quan to da fam ília que cada in divíduo que os in tegra pode
desen volver o ideal relacion al design ado por D eus para o ser hum an o.

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


117

Acreditam os que é exatam en te por isso que a fam ília sem pre estará pre-
sente na vida hum ana. Ela passa por grandes m odificações de configuração,
en quan to a estrutura perm an ece in alterada. É possível que algum as con fi-
gurações atuais n ão sejam as projetadas por D eus. N o en tan to, qualquer
relacion am en to hum an o precisa de um a estrutura, sem a qual o relacion a-
m en to n ão acon tece.
O que pode acon tecer em um casam en to e um a fam ília é a possibilidade
de con struir n ovas form as de vida fam iliar e con figurar de m odo diferen te e
m elhor a distribuição de fun ções en tre hom em e m ulher, ain da que n ão por
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m eio de obrigações forçadas n em im postas, m as buscadas e subm etidas à


com provação da realidade. É no exercício do relacion am ento que encon tra-
m os a iden tidade pessoal, que sem pre en con tra um paralelo n o relacion a-
m en to divin o da Trin dade.
O desen volvim en to hum an o se realiza em ciclos. Som os m arcados pelas
experiên cias dos prim eiros an os de vida. Se tal desen volvim en to n ão é ade-
quado, a n eurose cum pre o papel de reatualização das experiên cias, ofere-
cen do-n os um a oportun idade para repará-los.
En con tram os um paralelo perfeito n a Bíblia, quan do tom am os con heci-
m en to de que o tem po divin o é diferen te do tem po hum an o. O n osso é
histórico; o de D eus é etern o. Som os “datados”; D eus é atem poral. N osso
tem po é con tado em dias; um dia e m il an os são a m esm a coisa para D eus.
Isso oferece um a oportun idade sem igual: dian te de D eus, o que acon teceu
em n osso passado está sem pre presen te. N ossos n ós em ocion ais estão sem -
pre dian te de D eus, que vê o passado n o presen te, e dian te de n ós, em
n ossas n euroses. Podem os, en tão, in teragir com D eus n a recuperação de
n ossas questões em ocion ais n ão resolvidas.
O relacion am en to con jugal e fam iliar n os oferece o con texto adequado
para que n os aperfeiçoem os com o pessoas. Se, por exem plo, um a pessoa
tem sua auto-estim a com prom etida, é m uito provável que isto surja com o
sin tom a de dificuldades pessoais geradas na infância. Quando esta pessoa se
casa, a deficiên cia n a auto-estim a resultará em con flitos em ocion ais, seja
com o côn juge seja com os filhos.

A Espiritualidade e a Família
118 UNIDADE II

Para m an ter um a relação saudável, ela se verá n a n ecessidade de tratar a


auto-estim a, revelada em com portam en tos n ão aceitáveis pela fam ília. D o
pon to de vista da espiritualidade, aí se apresen ta a oportun idade para a
tristeza e o arrepen dim en to.2 As dificuldades relacion ais de um a pessoa são
as oportun idades de m an ifestação da graça de D eus.
Q uan do casados, fazem os um a escolha diária. M esm o n ão n os dan do
conta, escolhem os todo dia continuar vivendo com o côn juge e perm an ecer
n a fam ília. Isto n os con duz à escolha da m elhor resposta a n ossa form a de
ser e à da pessoa que é objeto de n ossa am izade. A n ecessidade de decisão

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é o exercício plen o da im agem de D eus em n ós.
Q uan do se trata da n atureza hum an a, m arcada pela queda n o Éden , as
relações in terpessoais são, por defin ição, perturbadas, con fusas e con flituo-
sas. O s côn juges e os m em bros da fam ília vêem -se con stan tem en te en vol-
vidos em problem as que devem ser aten didos, se a decisão for efetivam en te
por um a relação duradoura.
N um relacion am en to fam iliar saudável, há certa divisão de fun ções en -
tre todos: ajudam -se m utuam en te, com pletam -se e realizam -se, substituin -
do-se um ao outro em muitas tarefas. Cada um assume, segundo seus gostos
e suas habilidades, algun s aspectos da vida em com um que lhes são m ais
fáceis, em relação a seu parceiro. Esta com plem en taridade que tira proveito
das diferenças entre os cônjuges e fam iliares é um a m etáfora de nossa união
com D eus. O ideal de relacion am en to com D eus é a com p lem en t arid ad e,
on d e o Tod o-p od eroso n os p ed e licen ça p ara in t eragir con osco, e n ós,
suas criaturas, lhe dam os perm issão para en trar em n ossas vidas.
A com plem en taridade en tre os in divíduos que escolhem viver jun tos
cria um eu comum, que n ão perm ite que a vida psíquica do particular seja
in depen den te da vida psíquica de seu com pan heiro. D a m esm a form a, a
com plem en taridade en tre n ós e D eus tam bém n ão perm ite a separação.
Jesus referiu-se a esta un ião extraordin ária ao dizer que “eu e o Pai som os
um ” (Jo 10:30). U m pouco m ais tarde, em sua oração sacerdotal, ele pede
ao Pai: “Pai San to, protege-os em teu n om e, o n om e que m e deste, para que
sejam um , assim com o som os um ”.

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


119

A GRAÇA DE DEUS, POSSIBILIDADE DE UMA RELAÇÃO


EQUILIBRADA
U m a vez que o casam en to é a un ião de duas pessoas in eren tem en te “desti-
tuídas da glória de D eus”, 3 a relação con jugal pode ser o con texto de con fli-
tos graves entre os cônjuges, que acabam sendo transmitidos para o restante
da fam ília. M as n ão se trata de um caso perdido. Pelo con trário, a graça é o
recurso de socorro para a m an uten ção da solidez na estrutura desse relacio-
n am en to. H á três prin cípios fun dam en tais n a aplicação da graça de D eus
para o êxito de um casam en to.
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Em prim eiro lugar está o prin cípio do desligam en to em ocion al. Para um
bom relacion am en to con jugal, é im portan te para cada pessoa que form a o
casal ter clara defin ição quan to ao que é seu e o que é do outro. Voltan do à
afirm ação de João 10:30, Jesus deixa claro que ele é ele, e o Pai é o Pai: “Eu
e o Pai...”.
Gran des dificuldades em ocion ais acon tecem quan do um dos in divíduos
da relação perde a iden tidade pessoal n o outro. A Bíblia in dica que o dom
da graça é in dividual e que cada um recebe um n ovo n om e, torn a-se n ova
criatura. N en hum a pessoa é igual a outra, e n isto está a preciosidade de
cada vida. A reden ção em Cristo resgata esta in dividualidade. Assim , a gra-
ça de D eus atua n o oferecim en to da in dividualidade de cada pessoa atin gi-
da por ela.
O segundo princípio é que, em bora na relação conjugal possam os preen-
cher algum as carên cias afetivas origin adas n a in fân cia, n ão podem os sus-
ten tar um a depen dên cia in fan til em relação ao côn juge. O sen tim en to de
perten cim en to, n ecessário desde cedo — e que, m uitas vezes, n ão é aten di-
do —, pode ser preenchido no casam ento. M as, ao m esm o tem po, os côn ju-
ges devem ser adultos plen os, ou seja, precisam ter a capacidade de auto-
suprim en to das n ecessidades em ocion ais.
A relação en tre Jesus e o Pai foi assim . D epen dia em tudo de D eus, m as
tin ha um a obra que só ele poderia realizar. Esta din âm ica paradoxal en tre
perten cim en to e in dividuação tem seu ápice n o Calvário, quan do Jesus ex-
clam a: “M eu D eus, m eu D eus, por que m e aban don aste?”. 4 Jesus clam a a
D eus, a quem perten ce, m as lam en ta profun dam en te ser aban don ado, o
sen tim en to típico de todo processo em ocion al de in dividuação.

A Espiritualidade e a Família
120 UNIDADE II

O terceiro prin cípio refere-se ao equilíbrio resultan te do sen tim en to de


am or-próprio. A relação id eal é a qu e oferece aos p arceiros u m equ ilíbrio
d e igualdade de valor. A graça de D eus oferece tal equilíbrio:

Todos vocês são filhos de D eus m edian te a fé em Cristo Jesus, pois os que
em Cristo foram batizados, de Cristo se revestiram . N ão há judeu n em
grego, escravo n em livre, hom em n em m ulher; pois todos são um em Cris-
to Jesus. E, se vocês são de Cristo, são descen dên cia de Abraão e herdei-
ros segun do a prom essa.5

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O casal e a fam ília são os con textos n os quais a graça de D eus pode ser
experim en tada em toda a plen itude. O s con flitos con jugais e fam iliares
podem ser red efin id os com o u m p ed id o d e t od os p ara t od os d e at en di-
m en to de carên cias afet ivas p rofu n d as. C om o a carên cia básica é a d a
graça de D eus, a espiritualidade é que a aten derá.
A observân cia desses preceitos con duz a um relacion am en to do qual
pode em ergir um a un ião satisfatória tan to para o casal quan to para a fam í-
lia. A m aioria dos casais con hece in tuitivam en te esses prin cípios. Se n ão os
observam , é m en os por descon hecim en to que pela cren ça de que precisam
aplicá-los por si m esm os. N ada m ais lon ge da verdade. E é por isso m esm o
que a espiritualidade é fun dam en tal para o bem -estar con jugal e fam iliar.

Notas
1
Jr 17:9; N VI .
2
“A tristeza segundo D eus não produz rem orso [ou sentimento de culpa], m as um arrependi-
mento que leva à salvação, e a tristeza segundo o mundo produz morte” (culpa e vergonha).
3
Rom an os 3:23; N VI . O utra tradução n os diz que carecem os da glória de D eus. Con flitos
emocionais dentro do casamento são o resultado desta carência.
4
M t 27:46; N VI .
5
Gl 3:26-29; N VI .

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


121

COMUNHÃO
A ESPIRITUALIDADE COM o SANTO
E A EXPERIÊNCIA COMUNITÁRIA
NA COMUNHÃO COM OS SANTOS
COMUNHÃO COM O SANTO NA COMUNHÃO COM OS SANTOS

�Eduardo Rosa Pedreira


É escritor e pastor da
Comunidade
Presbiteriana da Barra
da Tijuca, no Rio de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Janeiro. Doutor em
O pai se levantou no meio da reunião e decla­
teologia na área de
Espiritualidade ela rou, de maneira absolutamente comovedora, que no
Pontlicla Universidade período mais crítico do vício que seu filho enfren­
Católica (Puc), é tou, ele sentiu um desejo insistente de matá-lo. Pre­
professor de Ética senciei tão libertadora confissão quando dei suporte
Corporativa e espiritual aos dependentes químicos de uma clínica,
Rsponsabilidade
o que também me deu a oportunidade de freqüentar
Social das Empresas na
reuniões de seus familiares.
Fundação Getúlio
Vargas. Leciona Ética e Acostumado com as reuniões na igreja, onde qua­
Espiritualidade no se sempre a confissão é uma dolorosa ausência,
Seminário Batista do inicialmente fiquei chocado com o intenso desnuda­
Sul do Brasil. mento emocional, tanto dos que lutavam contra o
vício escravizador de suas vontades quanto dos fa­
miliares, cansados de muitas recaídas, feridas, dores
causadas por aquela odiada dependência. Nunca, em
todos os meus mais de quinze anos como pastor,
ouvi, em tão curto período de tempo, tantas confis­
sões públicas.
O curioso é que aquelas reuniões não carregavam
nenhuma bandeira religiosa, tampouco ouvia-se uma
linguagem evangélica e muito menos um declarado
objetivo espiritual. Porém, a ausência destes elemen­
ts não significava a ausência de Deus - ao contrio,

293
A Espiritualidade e a Experiência Comunitária
122 UNIDADE II

quan do se pen etrava m ais n as en tran has daqueles fascin an tes en con tros,
descobria-se um a profun da experiên cia com un itária, m arcada pela forte
presen ça da espiritualidade.
D aqueles en con tros, que hoje m oram em m eu passado, ficou um a con -
clusão que m e baliza o presen te e o futuro: a Igreja in stitucion al, con form e
a con hecem os, n ão é o ún ico espaço on de a espiritualidade cristã se expres-
sa com un itariam en te. Em outras palavras: a Igreja, n a form a com o hoje se
apresenta no Brasil, não constitui o único caminho possível para vivermos a
espiritualidade cristã de m an eira com un itária.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O con t eúdo da espirit ualidade crist ã é t ão rica quan t o suas várias m a-
n eiras de se expressar com un it ariam en t e. Em bora exist a um a variedade d e
exp eriên cias com u n it árias p elas qu ais a esp irit u alid ad e crist ã est á p re-
sen t e, n ão se p od e recon h ecê-las com o eclesiást icas!
Faço questão de, logo n este prim eiro m om en to de n ossa reflexão, n ão
reduzir a experiên cia com un itária à igreja, por saber que, n a m aioria das
vezes, a redução é, em si m esm a, em pobrecedora, ain da m ais n este caso.
Além disso, m uitos de n ós passam os por experiên cias am argas o suficien te
com a igreja para ver afetada n ossa espiritualidade. N ão são poucos aque-
les que viram seu vigor espiritual esvair-se por con ta das tram as políticas,
dos dram as in stitucion ais, da superficialidade teológica, da corrosão do ca-
ráter, da pobreza relacional, da irrelevância transform adora que m uito m ar-
ca a cam in hada da Igreja em n osso país.
Com isso, um n úm ero sign ificativo de irm ãos en con tra-se m ergulhado
em um a ressaca eclesiástica, fruto do desen can tam en to e m esm o da descren -
ça na capacidade da Igreja de propiciar verdadeira espiritualidade. É de den-
tro dessa ressaca que provêm sérias in terrogações quan to à n ecessidade da
igreja local n o processo de vivên cia da espiritualidade cristã: Por que n ão
cultivar m in ha espiritualidade n o silên cio de m eu quarto, n a in terioridade,
n um a perspectiva privada, sem n ecessidade de ritos, liturgias, in stituições,
dias e espaços sagrados? Por qu e n ão assu m ir p essoalm en t e u m sacerd ó-
cio cotidian o que m e foi dado por D eus, sem a n ecessidade de pastores,
bispos, apóstolos? Por que n ão ser ap en as d iscíp u lo d e Jesu s, sem t er d e
ad icion ar a m in h a id en t id ad e d e fé u m n om e, u m a d en om in ação, u m

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


123

sím bolo institucional? A igreja é um a fonte viva, capaz de fazer viver minha
espiritualidade? O u ela é o túm ulo da m in ha relação com D eus? N o fim
das con tas, a igreja, com sua hum an idade, seus ran ços e suas in stitucion ali-
zações, n ão seria um forte fator de arrefecim en to do vigor de n ossa paixão
espiritual por D eus?
Essas e tan tas outras questões in quietan tes en con traram um forte eco
na experiência de Philip Yancey, relatada em seu livro Alma sobrevivente. D esde
o título, este é um livro capaz de reverberar com brilhan tism o e elegân cia
literária o processo de desen can tam en to eclesiástico que estam os descre-
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vendo.
Yancey considera-se sobrevivente de um a relação com a Igreja que teve o
poten cial de cegar seu discern im en to, en rijecer seus precon ceitos e m esm o
m in ar um a autên tica relação com D eus e sua graça. Q uem o resgata dessa
triste experiên cia com un itária são, en tre outras, algum as pessoas que n ão
n ecessariam en te estavam ligadas à Igreja, ou m esm o ao cristian ism o. Elas,
porém , se tornaram faróis teológicos e existenciais com quem, seja através de
contato pessoal seja da literatura, ele estabeleceu um vínculo espiritual muito
além das pobres fron teiras estabelecidas pelas igrejas por que ele passou!
Tudo isso só con firm a aquilo que já é lugar-com um em n osso saber: a
instituição Igreja não dá conta de preencher plenamente os profundos anseios
e as n ecessidades da alm a hum an a n o que diz respeito à espiritualidade!
Superadas ou recon hecidas as possíveis dificuldades que a Igreja possa
n os oferecer, o fato é que a espiritualidade cristã precisa desem bocar n eces-
sariam en te n um a experiên cia com un itária, pois há um a relação in trín seca,
visceral, com plexa e in stigan te en tre essas duas realidades. U m a n ão pode
ser vivida sem a outra, posto que elas se alim en tam , se reclam am , se com -
pletam .
Pode ser que encontrem os, dentro de outras tradições religiosas não cris-
tãs, um a ausên cia desta relação. Todavia, a espiritualidade cristã n ão pode
prescin dir da experiên cia com un itária, sob pen a de se desfigurar ou m esm o
se reduzir.
D ian te de tal percepção, pergun ta-se: quais bases bíblicas e teológicas
susten tam essa relação? Com o ela se dá? Q uais são as características e as

A Espiritualidade e a Experiência Comunitária


124 UNIDADE II

din âm icas próprias? Esboçam os aqui algum as respostas a estas questões,


por en ten der que n ão basta afirm ar que a espiritualidade cristã deve de-
sem bocar n um a experiên cia com un itária. Faz-se n ecessário criar um alicer-
ce sobre o qual possam os apoiar solidam en te tal con vicção.

A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ EM SUA ORIGEM E PLENITUDE


EM UM DEUS RELACIONAL
É curioso n otar que n a Bíblia en con tram -se reveladas pelo m en os três m a-
n eiras de perceber a D eus. Estas percepções de D eus term in aram por fun -

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dar igualm en te três m odelos de espiritualidade. N ão poderia ser diferen te,
pois n ossa visão de D eus determ in ará n osso m odelo de espiritualidade.
Cada um a dessas visões e seus respectivos m odelos foram vividos a seu
tem po, por diferen tes protagon istas.

A visão po liteísta e o m o delo utilitarista: predom in ou fortem en te n os


povos pagãos do Antigo Testamento, cuja espiritualidade alimentava-se dos
muitos e diferentes deuses. Aqueles deuses nada mais eram que um subpro-
duto das n ecessidades dos povos, um a fan tasia divin a criada para satisfazer
carên cias hum an as. Tal visão de D eus n ão poderia gerar outro m odelo de
espiritualidade senão o utilitarista, que se resumia exclusivamente na troca de
favores en tre os adoradores e a divin dade adorada.
Este m odelo utilitarista revelou-se tam bém ritualista, pois se lim itava a
satisfazer os deuses, através de ritos, liturgias e cultos, para obter favores
pessoais, sem que se m an ifestasse n en hum a relação além da ritual. Este
m odelo não ficou enterrado no passado bíblico — ao con trário, encon tra-se
presente hoje de forma vigorosa, caracterizando nosso tempo chamado “pós-
m odern o”, m arcan do a jorn ada espiritual de m uita gen te, den tro e fora da
Igreja.

A visão m o no teísta e o m o delo relacio nal: viven ciado pelo povo de Is-
rael em sua relação de adoração com Javé, n om e e face de D eus revelada n o
An tigo Testam en to. O D eus de Israel revelou-se a seu povo, deu-se a con he-
cer, convidando-o a superar o ritualism o, a superficialidade e o utilitarism o.

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


125

Com Javé, o povo estabeleceu um m odelo de espiritualidade com base n o


relacionamento.
Embora nesse modelo de espiritualidade existisse um conceito relacional
estava lon ge de ser m ais ín tim o, pois Javé ain da era o D eus que se revelava
n o topo da m on tan ha, ao qual n em todos tin ham acesso n o ofuscar de sua
glória que, ao parecer, tan to revelava quan to escon dia, através da m ediação
do sacerdote (que represen tava o povo dian te de D eus) e dos profetas (que
represen tavam D eus dian te do povo). Tudo isso n os in dica que este m ode-
lo m on oteísta gerava um a espiritualidade relacion al, m as ain da n ão com a
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in tim idade que haveria de vir.

A visão trinitária e o m o delo da intim idade relacio nal: revelado n a


profun da relação de Jesus, que, cheio do Espírito, am ava o Pai. A espiritua-
lidade cristã n asce dessa relação de Jesus com o Pai e é m arcada por um a
relação profun da, tran sform adora e libertadora. Javé se torn a Abba; de
“Todo-poderoso” a “Paizin ho querido”; de D eus tem ível a um sussurro de
am or; de D eus in alcan çável a cúm plice m ais presen te n a existên cia. D ian te
de tal in tim idade, os ritos se relativizaram , o utilitarism o e a superficialida-
de foram tragados pelo am or m an ifestado n esta relação. N a in tim idade
relacion al de Jesus com o Pai, apren dem os defin itivam en te que D eus deve
ser n osso objeto de desejo, e n ão de n ecessidade.
Q uan do se torn a refém de n ossas n ecessidades, D eus n ão passa de um
m eio usado para chegar a um fim : a satisfação do n osso ego. Por esta razão,
deve ser m ais desejado pelo coração que propriam en te n ecessário às de-
m an das existen ciais. N ão deveríam os buscar a D eus com o prioridade para
en con trar a satisfação das carên cias em ocion ais e espirituais.
En quan to a pessoa de D eus n ão n os atrair e n ão n os seduzir pelo que é,
n ossa experiên cia com ele estará com prom etida. A autên tica e gen uín a ex-
periên cia com D eus n ão é aquela em que o possuím os a fim de usá-lo para
satisfazer as n ecessidades. Ao con trário: quan do n os deixam os possuir por
ele, tom ados por sua doce presen ça, seduzidos pelo seu descon certan te
am or, som os convidados a iniciar um a relação em que o controle é dele, não
n osso.

A Espiritualidade e a Experiência Comunitária


126 UNIDADE II

A espiritualidade cristã não é, portanto, uma fórmula esotérica feita para


ser rapidam en te con sum ida por pessoas espiritualizadas ao sabor da salada
religiosa pós-m odern a. Tam bém n ão é um a filosofia de vida cheia de belos
prin cípios, de frases aplicáveis ao cotidian o para provocar bem -estar e m e-
lhorar o astral. Tam pouco é um a teoria racion al gerada por teólogos ou
filósofos. A experiên cia espiritual cristã é essen cialm en te um a relação. Vi-
ver a espiritualidade cristã é experim entar a m ais profun da e revolucion ária
relação que um ser hum an o pode ter.
O D eus cristão é ún ico, m as, ao m esm o tem po, relacion al, pois em es-

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sên cia tem a m esm a n atureza, viven ciada por três pessoa divin as: Pai, Filho
e Espírito San to. N esta relação trin itária, desaparece toda e qualquer com -
petição, in seguran ça, violên cia, desrespeito, hierarquia, pois n o seio desta
relação rein a um a harm on ia divin a que a m en te hum an a é in capaz de tocar
ou m esm o im agin ar. A trin dade, n o dizer do teólogo, é a m elhor com un ida-
de, é o exem plo m áxim o de com o um a com un idade de fé deve se estruturar
e viver.
Ten do a espiritualidade cristã seu pon to de partida e seu pon to de che-
gada em um D eus trin itário, cuja essên cia é relação, n ão pode ser vivida n o
fecham en to egoísta que n os isola e alien a em relação aos outros. A Trin da-
de exige um a com un idade. M ais ain da: é através da experiên cia relacion al
n a com un idade que podem os apreen der, em bora parcialm en te, com o se dá
o m istério trin itário. É n os desafios da experiên cia com un itária que o rosto
do Pai, do Filho e do Espírito San to se revela a n ós.
A segun da oração de Paulo por seus filhos espirituais, con form e texto de
Efésios 3:14-21, m ostra isso claram en te. N ela, o apóstolo in tercede, en tre
outras coisas, para que os san tos e fiéis de Éfeso, “jun tam en te com todos os
san tos”, possam com preen der a largura, o com prim en to e a altura do am or
de D eus, isto é, en ten dê-lo em todas as dim en sões.
Essa oração — “jun tam en te com todos os san tos” — parece in dicar que
este im en so am or de D eus, e o próprio D eus, n ão podem ser com preen di-
dos exceto n a dim en são com un itária. Assim , n ão fica difícil supor que haja
dim en sões de D eus que só podem ser percebidas e vividas com un itaria-
m en te, o que torn a a experiên cia com un itária fun dam en tal para perceber o
rosto do Espírito de D eus que habita n a Igreja, da qual Cristo é a Cabeça.

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


127

É n o cotidian o m uitas vezes ban al e n em sem pre sedutor de um a com u-


n idade de fé que se escon de, qual tesouro a ser buscado, a presen ça de
D eus. Isto m e faz n ecessário o olhar, a experiên cia, a percepção de m eus
irm ãos e irm ãs para com preen der o meu D eus. N a com un idade, en con tro a
real possibilidade de corrigir deform ações de pen sam en to e sen tim en to so-
bre D eus.

A TENDA, O TEMPO E O CORAÇÃO: A ESPIRITUALIDADE


COMO FUNDAMENTO PARA CONSTRUIR A COMUNIDADE
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A im agem n ão poderia ser m ais bela. Cen ten as e cen ten as de pequen as
ten das ou barracas fam iliares n um en orm e acam pam en to a perder de vista,
arrum ado com o n um gran de círculo. N o m eio, havia um a barraca m aior,
um a Ten da das ten das, a Ten da da Con gregação, a Ten da da Revelação. Ali,
a glória de D eus se m an ifestava para fascín io e tem or de quem a via.
Essa arrum ação logística, que toda a com unidade de Israel acam pava em
torn o do tabern áculo, n ão se dava por sim ples obra do acaso. Tratava-se de
um a m etáfora, sign ifican do que a com un idade de Israel existia em resposta
ao D eus que se revelava; n ão en con trava seu fun dam en to em si m esm a,
m as n o D eus ali revelado.
D epois, a ten da deu lugar ao tem plo. O m óvel perdeu espaço para o
fixo. As cortin as foram substituídas pelas paredes; a sim plicidade, pela sun -
tuosidade. M as o sign ificado resistiu. O tem plo era a referên cia com un itá-
ria de Israel. A cidade substituiu o acam pam en to, casas tom aram o lugar
das ten das, m as ain da assim o tem plo ficava n o coração do n ovo m un do
urban o. Ao ser destruído o tem plo, Israel perdia sua m ais forte referên cia
da presen ça de D eus, e a experiên cia com un itária com eçava a se deteriorar.
M uito depois, o tem plo de pedra deu lugar a um tem plo espiritual: o
coração de hom ens e m ulheres seduzidos pelo cam in ho de Jesus de N azaré.
A referên cia extern a de D eus habitan do en tre o povo é in tern alizada n a
pessoa do Espírito San to, que faz de n osso in terior seu lugar de habitação.
A glória, outrora revelada em um espaço físico, n ão m ais se restrin ge a um a
tenda móvel ou a um templo fixo, mas irrompe no coração daqueles que parti-
cipam da N ova Aliança.

A Espiritualidade e a Experiência Comunitária


128 UNIDADE II

Cada irmão é uma pedra viva a compor as paredes do novo templo. Tendo
como alicerce o ensino dos apóstolos e dos profetas, e com o pedra an gular
Jesus Cristo, este n ovo tem plo tran sform a-se n um Corpo, cujos m em bros
estão in trin secam en te ligados, e en tão se fun dem de m odo defin itivo n a
visão cristã da espiritualidade e da experiên cia com un itária.
Percebe-se, nesta rápida trajetória iniciada na tenda, passando pelo tem -
plo e chegan do ao coração, que a experiên cia com un itária som en te era pos-
sível a partir da experiên cia espiritual. A espiritualidade está n o cen tro, ao
redor do qual gira a com un idade. Por con seqüên cia, as relações n a com un i-

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dade deveriam ser in spiradas pela espiritualidade e, por sua vez, as expe-
riên cias vividas n o seio da com un idade deveriam aprofun dar a espirituali-
dade. Assim , n esta harm on ia divin a, a vida em com un idade ia se torn an do
o celeiro den tro do qual se con struía a vida com D eus.

A QUALIDADE DA ESPIRITUALIDADE AFETARÁ A QUALIDADE


DA EXPERIÊNCIA COMUNITÁRIA E VICE-VERSA
Com o am bas estão ligadas de m odo in trín seco, n ão poderiam deixar de se
afetar mutuamente. Por isso, quanto mais sólida, saudável e profunda for nos-
sa relação com D eus, tan to m ais sólida, saudável e profun da ten de a ser
n ossa relação com a com un idade de fé em que n os en con tram os. Por sua
vez, a qualidade de n ossa experiên cia com un itária está relacion ada com a
qualidade dos vín culos que m an tem os com a com un idade. Vín culos frágeis
geram um a experiên cia com un itária superficial, en quan to o oposto é exata-
m en te verdadeiro.
Assim , um a experiên cia com un itária pobre ten de a gerar um a espiritua-
lidade igualm ente em pobrecida. U m a experiên cia com un itária profun da só
pode ocorrer quan do en ten dem os a com un idade com o um espaço de en -
con tro com D eus, con osco e com o outro. D esta form a, apen as quan do
travam os relações sign ificativas de am izade e fratern idade n o seio com un i-
tário é que, de fato, tem os um a autên tica experiên cia n a com un idade.
H oje, n o Brasil, assistim os a u m esvaziam en t o d os vín cu los com u n i-
t ários, pois já existe um sign ificativo n úm ero de pessoas que procura a igre-
ja som en te para aten der a dem an das pessoais, sem n en hum a preocupação

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


129

em assum ir relacion am en tos m ais profun dos. Pode-se perceber esta fragili-
dade dos vín culos com un itários até m esm o n a arquitetura de n ossas igre-
jas: o altar, com seus sím bolos bíblicos, cada vez m ais é substituído pelo
palco em que cantores e pregadores desenvolvem uma performance para aten-
der as dem andas de um a m ultidão. O encontro é substituído pelo espetácu-
lo, e en tão se form a m ais um a clien tela de con sum o que um a com un idade
relacional. O bviam ente, tal quadro com unitário produzirá um cenário espi-
ritual frágil e superficial.
Ain da bem que o con trário deste quadro descrito acim a é possível. A
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experiên cia com un itária saudável, rica e profun da n os ajudará a con struir
uma espiritualidade com essas mesmas características. Vejamos alguns exem-
plos positivos e práticos desta verdade.

A experiência espiritual vivida co m unitariam ente no s liberta da fo r-


te tendência à so lidão e no s ensina o cam inho da so litude. A jorn ada
espiritual, quando trilhada solitariamente, apresenta-se cheia de riscos. O rar
sem pre sozin ho é correr o risco de escutar a própria voz, sem estabelecer
n en hum diálogo com D eus e com o outro. Sozin ho, alim en to m eus pon tos
cegos, m in has dim en sões in con scien tes, fico à m ercê de m im m esm o e pos-
so m e perder n o im en so labirin to existen cial que é o próprio coração. A
experiência com unitária livra m inha espiritualidade de inúm eros equívocos
produzidos pela solidão e pelo in dividualism o. Em lugar da solidão, a vida
com un itária n os con vida à solitude, que, com o verem os, é um a via de rela-
ção, e n ão de alien ação.
A esta altura, precisam os fazer um a breve pausa para diferen ciar solidão
e solitude. A solidão é um estado de isolam en to opcion al ou circun stan cial.
É um en trin cheiram en to da alm a, a partir do qual as relações desaparecem .
A solidão até pode ser um a escolha de m om en to, m as n un ca, n um a pers-
pectiva cristã, deverá se torn ar um projeto de vida.
Q uan do con sideram os que o ser hum an o, em sua estrutura m ais origi-
n al, é um nó de relações — e, por ser assim , é totalm en te vocacion ado a se
relacionar —, percebemos ser a solidão um estado pouco útil para seu cresci-
mento, até porque a solidão é sempre conseqüência da ausência de algo não
preenchido. Por isso mesmo, causa tristeza, saudade, ilusões, idealizações.

A Espiritualidade e a Experiência Comunitária


130 UNIDADE II

Solitude, ao contrário de tudo isso, é sem pre um a opção, e n un ca um a


con seqüên cia das circun stân cias. É um estado de quietude da alm a, de pro-
funda tranqüilidade do coração. É silêncio interior, um retiro para se encon-
trar com D eus e con sigo, e assim estar m ais preparado para o en con tro com
o outro.
A solitude tem de ser um projeto de vida, um desejo con stan te, um a
vivên cia perm an en te. É sem pre con seqüên cia do desejo de presen ça: a de
D eus e a dos irm ãos e irm ãs com quem cam in ho com un itariam en te. O pos-
ta à solidão, que é vazio in terior, a solitude é realização in terior; é sobretu-

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do não um lugar, m as um estado da m ente e do coração. É o silêncio da alm a,
m esm o quando não nos retiram os para estar a sós. Silên cio profundam en te
desafiador para n ossa vida.
Existim os n um m un do on de há abun dân cia de solidão e escassez de
solitude. É esta ausên cia de solitude que com prom ete as relações e faz a
solidão parecer um a opção m elhor. A experiên cia com un itária é a experiên -
cia do en con tro provocado pela solitude capaz de exorcizar nossa sede egoís-
ta por solidão. A solitude n os cham a de volta para o en con tro com un itário.
Sem , n ossa espiritualidade se perderá n a solidão.

A experiência co m unitária no s ajuda a vivenciar a experiência única


da reco nciliação. N a essên cia, espiritualidade cristã é uma experiên cia de
recon ciliação. N ascidos sob o sign o de um a ruptura, todos carregam os um
afastam en to essen cial do Criador. O pecado, esta realidade fun dam en tal
do ser, n os alien a e separa de D eus. D e todas as separações vividas em
n ossa hum an idade, n en hum a é tão esm agadoram en te dolorosa como a alie-
n ação de D eus.
Essa queda ou ruptura de n ossa relação com D eus, con osco e com o
outro perdurou até a encarnação, a m orte e a ressurreição de Jesus. N a cruz,
ele n os recon ciliou com tudo e com todos de que o pecado separou. Em bo-
ra viven do em um m un do caído, podem os form ar um a com un idade de re-
con ciliados. Toda teologia do N ovo Testam en to, especialm en te n a visão de
Paulo, apon ta para a Igreja com o esta com un idade dos recon ciliados.
É, pois, n a vida desta com un idade de fé — que cham am os “Igreja” —
que n ossa espiritualidade será forjada, em m eio à queda e à recon ciliação.

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


131

Viver a espiritualidade em com unidade é con hecer de perto as deform ações


causadas pela queda ao lado da recon strução da im agem de D eus em cada
um de nós, fruto da reconciliação. É através da experiência com unitária que
n ossa espiritualidade con hecerá o sabor da recon ciliação. Foi isso o que
pen sou Agostin ho ao dizer: “Foi para reun ir de n ovo todos os seus filhos,
desorien tados e dispersos pelo pecado, que o Pai quis reun ir toda a hum a-
n idade n a Igreja de seu Filho. A Igreja é o lugar on de a hum an idade vai
reen con trar a un idade e a salvação. Ela é o m un do recon ciliado”.1
Pela experiência comunitária podemos construir uma espiritualidade mais
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hum an a. A vida em um a com un idade de fé n ão n os deixa espaço para ilu-


sões quan to ao poten cial de n osso pecado e o de n ossos irm ãos. Experi-
m en tam os a D eus em m eio ao processo de cura, de aperfeiçoam en to, de
crescim en to pelos quais passam os. Ele n os en sin a que a espiritualidade
cristã n asce e se desen volve den tro da ten são da queda e da recon ciliação
presen tes n a face, n o com portam en to, n a vida de todos quan tos con osco
partilham de um a experiên cia com un itária. Sem a com un idade caída, po-
rém recon ciliada, n ossa espiritualidade n ão seria a m esm a.

As razões citadas, obviam en te, n ão são suficien tes para esgotar as di-
m en sões da m aravilhosa relação en tre a espiritualidade e a experiên cia co-
munitária. Entretanto, a título de completar a reflexão feita até aqui, e mesmo
para concluí-la, sugiro uma atitude fundamental que pode nos ajudar a cons-
truir uma espiritualidade genuinamente comunitária. Aponto este caminho
por con statar a quase ausên cia dele em n ossa vivên cia evan gélica brasileira.
Reduzim os m uitas vezes n ossa experiên cia com un itária a sim ples freqüên -
cia dom in ical aos cultos. Todavia, se quiserm os ir além , um bom com eço
seria buscar a experiên cia da m en toria ou direção espiritual.

A BUSCA POR DIREÇÃO E MENTORIA ESPIRITUAL


D os m uitos cam in hos que alguém possa trilhar n a vida, a sen da da espiri-
tualidade é, sem a m en or som bra de dúvida, a m ais desafian te, assustado-
ra, con fusa, fascin an te e m aravilhosam en te superior.
É desafian te porque, quan do alguém in citado pelo próprio Espírito de
D eus sen te o desejo de in iciar um a cam in hada cujo pon to de partida é o

A Espiritualidade e a Experiência Comunitária


132 UNIDADE II

auto-aban don o e o pon to de chegada é o m ergulho n o ocean o divin o, tal


pessoa está dian te de seu m aior desafio existen cial.
É confusa pela própria natureza da nossa humanidade. Q uando começa-
m os a trilhar um a jorn ada espiritual, carregam os n ossa história psicológica,
que en volve os m edos, os vícios, as pulsões radicais, as paixões, as lim ita-
ções, a incapacidade de enxergar o todo. D esta form a, o cam inhar espiritual
em direção a D eus n ão poderia se dar sem a presen ça de um a certa con fu-
são n a m en te e n o coração.
É assustadora porque n ão há com o se aproxim ar do m istério divin o sem

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a sen sação de profun do tem or dian te do gran de descon hecido. N ão im por-
ta quan to D eus já ten ha se revelado à hum an idade ou a cada um de n ós;
n ão im porta quan to, em n ossa experiên cia, já ten ham os captado de D eus;
por m ais que saibam os, ele será sem pre, pela im possibilidade de esgotar
seu m istério, o gran de descon hecido para todos n ós. A perplexidade, um
certo toque de tem or e susto do sobrenatural, sem pre acom pan hará todos
quan tos optarem por ser peregrin os deste m istério m aravilhoso, que tudo é
e a tudo circun da.
É fascin an te porque, diferen tem en te do m un do hum an o, o m un do divi-
n o n un ca perde o brilho e a fascin ação. Em D eus n ão há espaço para aquela
sen sação de fastio tão com um em n ós após as con quistas. D esejam os con -
quistar coisas e pessoas. Lutam os para isso, fascin ados por aquilo que ain -
da n ão tem os. Tão logo o con quistam os, o brilho fascin an te se desvan ece e
o fascín io vai em bora.
N o cam in ho espiritual, este fascín io jam ais se apaga, pois n in guém con -
quista a D eus defin itivam en te. M esm o o que já foi alcan çado em n ossa
jorn ada espiritual, seu Espírito ren ova de m an eira a deixar acesa a cham a
da fascin ação, levan do sem pre m ais e m ais à busca de D eus.
É m aravilhosam en te superior à m edida que n en hum outro cam in ho tri-
lhado n a existên cia será tão rico, tão profun do, tão grávido de D eus que a
própria busca dele. N em m esm o as coisas que reputam os com o as m ais
belas do espírito hum an o podem ser com paradas aos m aravilhosos m o-
m en tos em que a alm a tem sede de D eus e se joga n um cam in har in ten so
para en con trá-lo. Todavia, est a su p eriorid ad e d o cam in h ar esp iritual n ão

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


133

é do tipo hierárquica, com o a roubar o brilho das outras dim en sões da vida.
Ao con trário, a espiritualidade é o clím ax de tudo quan to possam os viver. É
e sem pre será o ápice de qualquer experiên cia hum an a.
É n essa perspectiva que Fran cisco de Sales, um profun do escritor do
século XVI , cham an do “devoção” o que aqui den om in am os “espiritualida-
de”, cutuca nossa percepção para enxergarmos a superioridade do caminhar
espiritual sobre todas as outras trilhas da vida:

Acredite-m e, a devoção é a delícia das delícias e a rain ha das virtudes; é


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a perfeição da caridade. Se a caridade é o leite, a devoção é sua n ata; se


for a plan ta, a devoção é sua flor; se for um a pedra preciosa, a devoção é
seu brilho; se for um rico un güen to, a devoção é seu m aravilhoso perfu-
m e, sim , o perfum e da doçura que con forta hom en s e alegra an jos.

D ian te deste m aravilhoso e com plexo cam in ho, con form e descrito acim a,
com o será possível trilhá-lo sozin ho? Com o an dar por ele sem se desviar?
Com o percorrê-lo sem cair n os atalhos ilusórios oferecidos pela própria
psique? Com o n ão trocá-lo por outros m ais prazerosos, quan do con fusos
con statarm os que n ão sabem os os segredos de suas en cruzilhadas?
A con statação óbvia da resposta a esta pergun ta é: se em áreas m en os
im portan tes da vida n ão terem os sucesso plen o se n ão form os bem -orien -
tados, m en os ain da n a m ais im portan te de todas as jorn adas de n ossa exis-
tên cia. N ão há com o ser peregrin o solitário n este cam in ho. Precisam os
desesperadam en te de orien tação, de direção den tro dele. Em sín tese: preci-
sam os de pais e m ães espirituais que n os tom em pela m ão e n os levem por
este cam in ho até o colo de D eus.
H oje, con fesso, a m in ha alm a n ecessita m ais que n un ca en tregar-se a
alguém que já con heça e ten ha experim en tado m uito m ais in ten sam en te os
altos e baixos deste cam in har, os atalhos a ser evitados, a direção certa n as
m uitas en cruzilhadas, os m om en tos ilum in ados do cam in ho, bem com o “a
n oite escura da alm a”, quan do as som bras n os con vidam a desistir. Sim ,
tod os est am os d ian t e d e u m a d em an d a u rgen t e: h om en s e m u lh eres,
con dutores e con dutoras, pon tos de luz em n ossa con fusão, capazes de n os
ilum in ar o cam in ho para um a espiritualidade autên tica e profun da.

A Espiritualidade e a Experiência Comunitária


134 UNIDADE II

N o seio da con fusa e caótica espiritualidade da Igreja brasileira, perce-


ber a n ecessidade de direção espiritual é, n o fun do, retorn ar ao cam in ho de
Jesus, m en tor dos m en tores. O filho do hom em fez, em sua vida e em seu
m in istério, um a opção radical n ão pela adren alin a que o sucesso com as
m ultidões p od eria d ar, m as p ela segu ra orien t ação e m en t oria d aqu ele
qu e quisesse segui-lo. Ele n un ca con vidou alguém para aceitá-lo, m as sem -
pre in sistiu com todos para que seguissem um cam in ho. Aliás, ele m esm o
se defin iu com o o ún ico cam in ho: “Eu sou o cam in ho, e a verdade, e a vida;
n in guém vem ao p ai sen ão p or m im ” (Jo 1 4 :6 ).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Bu scar m en t ores esp irit uais para n ossa jorn ada é rein ven tar e reeditar
o cam in ho de Jesus de N azaré, cam in ho este tão desfocado e m esm o escon -
dido e m aquiado pelas falsas trilhas pelas quais se enveredam muitos de n ós.

A PONTE QUE LIGA AS MARGENS DO RIO


N ossa alm a em busca de D eus clam a por direção espiritual. Talvez m uitos
n ão estejam ouvin do este clam or, m as ele está aí. Precisam os en con trar
pais e m ães espirituais que n os con duzam pela trilha em direção a D eus. O
curioso é que esses m en tores espirituais estão por aí, e m uitos deles n ão se
en caixam n os estereótipos evan gélicos defin idores do que é um hom em ou
u m a m u lh er d e D eu s. M u it as vezes, em n ad a se p arecem com as tias
cujos lábios destilam profecias e profetadas; ou m esm o com os pastores po-
derosos e triunfalistas, cuja santidade os afasta do m un do frágil dos m ortais.
O s m en tores de que precisam os devem ser tão gen te quan to n ós, con he-
cer as an gústias do silên cio de D eus, as dores do próprio fracasso e as delí-
cias de, apesar de tudo, n un ca desistir dessa busca fascin an te. Com o n os
adverte Thom as M erton :

O trabalho de um diretor espiritual n ão con siste em n os en sin ar um m é-


t odo secret o e in falível para obt er experiên cias esot éricas, m as em n os
m ostrar com o recon hecer a graça de D eus e sua von tade, com o ser hum il-
de e pacien te, com o desen volver um a percepção m ais aguda de n ós m es-
m os e das n ossas dificuldades, e com o rem over os prin cipais obstáculos
que podem n os im pedir de ser pessoas de oração.

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


135

Ter um diretor, um pai ou m ãe espiritual, um m en tor ou qualquer outro


n om e que se queira cham ar é, n a prática, con struir um a pon te en tre espiri-
tualidade e experiên cia com un itária. Isto porque, n a direção espiritual, dei-
xo de lado a ilusão de viver esta aven tura da fé baseado em m im m esm o.
Tenho no m en tor, um m em bro da com unidade, alguém que m e liga a ela tal
qual um a pon te faz con exão en tre as duas m argen s de um rio. E assim ,
n ossa espiritualidade pode ir sen do con struída n a com pan hia de m en tores
que, por trás de si, trazem um a com unidade de fé através da qual cotidiana-
m en te a face trin a de D eus pode ser vista e experim en tada.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Nota
1
San to Agostin ho, S ermões 16, 7, 9.

A Espiritualidade e a Experiência Comunitária


136 UNIDADE II

A ESPIRITUALIDADE E A IDENTIDADE EVANGÉLICA


NACIONAL QUEM SÃO os "EVANGÉLICos"?
QUEM SÃO OS “EVANGÉLICOS”?

�Orivaldo Pimentel Jr.l

Pastor da Igreja Batista


Viva, em Natal, é
proessor e

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
coordenador do Curso
de Graduação em
Sob o ponto de vista das mais diversas dis­
Ciências ociais da
ciplinas - antropologia, sociologia, eclesiologia
Universidade Federal
etc.-. uma questão parece se levantar: ainda ha­
do Rio Grande do
Norte. Capelão veria lugar, hoje em dia, para se falar de um grupo
universitário, é religioso identificado como "evangélico"?
graduado em Tologia Muitas pessoas que, há alguns anos, se identifi­
pela Faculdade cariam prazerosamente como evangélicas hoje recu­
Teológica Batista de sariam esse róulo. Elas se sentem como se grupos
São Paulo. É mestre em
religiosos inescrupulosos lhe tivessem roubado esta
Teologia pelo eminário
identidade. Entretanto, o relativismo moderno e o
Teolóico Batista do
Sul do Brasil e doutor
esvaziamento das palavras não podem conduzir ao
em Ciências Sociais sacrificio dessa terminologia, pois muita história lhe
pela Pontiícia serve de esteio e lastro.
Universidade Católica Na primeira metade do século X, o relativismo
de São Paulo. É moderno estava associado à eclosão e ao crescimen-
coordenador da
to da Antropologia multiculturalista. Tratava-se de
Fratenidade Teolóica
uma prática acadêmica que reletiu uma espécie de
Latino-americana no
sentimento de culpa dos países que. na condição
Nordste.
de potências e matrizes, oereceram um tratamento
negligente às colônias e a outros povos considerados
"periféricos".
A nova atitude, porém, se revelava tão nociva
quanto o próprio imperialismo, pois qualquer forma

75
A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA
137

de ativid ad e p assava a ser ju st ificad a p elas diferen ças culturais de m odo


com placen te e in gên uo. Em m eio a esse pode-tudo relativista, as palavras —
um dos maiores patrimônios da hum anidade — começaram a se esvaziar. E,
com prejuízo para todos, o n om e “evan gélico” foi atin gido por este fen ô-
meno.
Tal situação con stituiu terren o fecun do para posturas reacion árias: m ul-
tiplicaram -se as “iden tificações fortes”, ou seja, afirm ações en fáticas e até
virulen tas de iden tidade; recorreu-se ao expedien te de requen tar even tos
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históricos esquecidos; e deu-se o retorn o sem i-idolátrico aos pais fun dado-
res e a certas doutrin as excessivam en te datadas. Essa postura reforça o
relativism o, pois dem arca pequen os territórios, policia as fron teiras e rejei-
ta visões de con jun to.
É o caso das den om in ações históricas, que passam a realizar con gressos
e publicar lições e livros sobre a própria iden tidade den om in acion al, recu-
peran do even tos m arcan tes de sua história e se autovalorizan do em relação
aos outros grupos cristãos, com o se fossem historicam en te in feriores, m es-
m o que m ais bem -sucedidos em term os de crescim en to n um érico. N este
caso, o term o “evan gélico” é aban don ado por ser dem asiadam en te abran -
gen te. É preciso en fatizar, n o en tan to, que o desprezo pelos con ceitos un i-
versais reforça o relativismo e o esvaziamento das palavras. D aí a importância
de recuperarm os a com preen são do que sign ifica ser evan gélico.

UM POUCO DE HISTÓRIA

Em tem pos relativistas com o o n osso, é necessário rever a história do cristia-


n ism o m odern o em seu con jun to, en fatizan do os m ovim en tos in tegradores
e un iversalizan tes. U m desses m ovim en tos, que represen ta um esforço de
equilíbrio e in tegração, é o cham ado evan gelical. O pouco m aterial históri-
co a seguir ajudará a fazer um a an álise da atual con dição da espiritualidade
evan gélica n o Brasil.
O s diversos estilos de praticar e con ceber a fé den tro do cristian ism o
fazem desta um a das m ais m ultiform es m an ifestações religiosas que já exis-
tiu. Além das m acrodivisões en tre católicos rom an os, ortodoxos e protes-

A Espiritualidade e a Identidade Evangélica Nacional


138 UNIDADE II

tan tes, existem as m an ifestações periféricas e paracristãs, além das in úm e-


ras subdivisões in tern as. D os três gran des grupos, os protestan tes foram os
que m ais se subdividiram . 1
Existem razões históricas para isto, com o o livre exam e das Escrituras
Sagradas, a proxim idade ideológica com o espírito da livre em presa, o an -
ticlericalism o e as form as n ão cen tralizadas de estruturação eclesiástica. O
m ais in t eressan t e, p orém , n a abord agem d est e t ext o é d ist in gu ir u m a
faixa n este vasto leque de agrupam en tos eclesiásticos autoden om in ada
“evangélica”.2

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Grosso m odo, o protestan tism o se divide em três gran des corren tes: o
protestantism o tradicional (main line protestantism, com o é denom inado nos
Estados U n idos), os evan gélicos e os pen tecostais. O prim eiro é com posto
pelas igrejas origin ais da Reform a Protestan te do século XVI : os an glican os
(ou episcopais), os luteran os, os reform ados, os presbiterian os e algum as
den om in ações que n ão surgiram com o resultado direto da Reform a, m as se
jun taram ao grupo tradicion al por con ta de seu alin ham en to teológico: os
batistas, os m en on itas, os con gregacion ais e os m etodistas.
Algu n s p rot est an t es t rad icion ais são con h ecid os com o “con ciliares”
p or fazerem parte do Con selho M un dial das Igrejas. En tretan to, em prati-
cam en te todas essas den om in ações, existem alas evan gélicas e alas pen te-
costais. D esta form a, pode-se dizer que, em bloco, n en hum a delas é exclu-
sivam en te alin hada com o estilo protestan te tradicion al de práxis religiosa.
D o pon to de vista in stitucion al, a corren te evan gélica é a m en os visível.
Poucas das gran des den om in ações m un diais podem ser con sideradas pre-
dom in an tem en te evan gélicas. M esm o aquelas cujos n om es in cluem o ter-
m o “evan gélico” n ão são n ecessariam en te evan gélicas n o estilo. É o caso da
Igreja Evangélica de Con fissão Luteran a n o Brasil. Em bora abrigue um gru-
po evan gélico (En con trão), é m ajoritariam en te con ciliar. O u ain da a Igreja
Evangélica Assem bléia de D eus, m aior den om in ação protestan te n o Brasil,
e que é pen tecostal.
O s pentecostais surgiram m ais recentem ente. N a verdade, o m ovim ento
pen tecostal tem pouco m ais de um século, e n o en tan to é o que m ais tem
crescido em n úm ero, n otadam en te n o Terceiro M un do. Em bora ten da à

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


139

cissiparidade, esse fen ôm en o n ão se revela um obstáculo a seu crescim en to,


pelo contrário. M ais recentem ente, a corrente pen tecostal sofreu um a gran-
de cisão com o surgim en to dos n eopen tecostais.3 Esses se distin guem em
m uitos aspectos dos pen tecostais, m as m an têm a característica doutrin ária
básica: o batism o com o Espírito San to.
O s pen tecostais m an têm um distan ciam en to crítico em algun s lugares e
m om en tos históricos em relação ao evan gelicalism o. Por exem plo, o pen te-
costalism o n o Chile com eçou com um a divisão n a Igreja M etodista. En -
quanto a igreja de origem manteve uma linha tradicional, a Igreja Pentecostal
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M etodista iden tificou-se com o evan gelicalism o.4 Já n os Estados U n idos, o


pen tecostalism o seguiu lin ha própria, m uitas vezes fechada com o fun da-
m en talism o. N o en tan to, este perfil m udou recen tem en te. N o Brasil, de-
pois do surgim en to do n eopen tecostalism o, m uitos pen tecostais passaram
a con siderar-se evan gélicos.
Tan to os pen tecostais quan to algum as den om in ações n eopen tecostais
possuem evan gélicos em suas fileiras; por isso, a faixa cen tral, dos que são
cham ados evan gélicos, n ão con stitui um agrupam en to de igrejas, m as um a
corren te de pen sam en to, um a postura, um estado de espírito ou um a ten -
dên cia. Esta corren te in clui partes sign ificativas das den om in ações pen te-
costais e do protestan tism o tradicion al.
Até certo pon to, o m esm o pode ser dito do pen tecostalism o presen te em
denominações tradicionais e até no catolicismo, através de movimentos como
o da Renovação Carismática Católica. N o entanto, diferentemente do evan-
gelicalism o, há in úm eras den om in ações explicitam en te pen tecostais.

LONGO PROCESSO

O processo de con strução da iden tidade evan gélica é lon go, e já dura m ais
de dois séculos. Em 1795, o País de Gales foi palco de um gran de aviva-
m en to religioso 5 cham ado evangelical revival (reavivam en to evan gélico), en -
volven do as igrejas m ais populares, isto é, m ais afastadas da igreja oficial
anglicana.

Pela prim eira vez, a palavra “evan gélico” [“evangelical”] torn ou-se conhe-
cida popularmente e amplamente usada em inglês. Os “evangélicos” com e-

A Espiritualidade e a Identidade Evangélica Nacional


140 UNIDADE II

çaram a ser vistos com o um grupo distin to: aqueles que se preocupavam
com a con versão pessoal, u m viver san t o, an sied ad e p or evan gelizar;
aq u eles que criam n a t ran sform ação do carát er at ravés da experiên cia
com Cristo; aqueles que olhavam para as gran des figuras da Reform a —
e, ain da m ais atrás, a Igreja apostólica do N ovo Testam en to — com o sua
in spiração e exem plo.6

An tes disso, a tradição pietista en tre os m orávios, m etodistas, batistas e


reform ados já preparara o terren o para a eclosão do evan gelicalism o. N os
Estados U n idos, on de essas igrejas tin ham forte presen ça — visto que m ui-

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tos britânicos tinham em igrado para lá justam en te para poder exercer livre-
m en te sua religiosidade —, os evan gélicos experim en taram , n os séculos
XVIII e XIX, um rápido crescim en to. O im pulso m aior se deu com o “segun do
avivam en to”, que surgiu n a virada do século XVIII para o XIX e teve a partici-
pação de in telectuais de destaque, com o Jon athan Edwards, presiden te da
U niversidade de Yale. Esse m ovim ento foi tam bém um a reação ao ilum inis-
m o, que com eçava a ter vasta aceitação n o m eio estudan til e eclesiástico.
Todas as den om in ações in fluen ciadas pelos avivam en tos evan gélicos se
caracterizavam por um forte “ardor m issionário”, isto é, investiam no envio
de m ission ários por todo o m un do. Em 1792, um batista in glês, W illiam
Carey, con seguiu con ven cer sua den om in ação a en viá-lo com o m ission ário
à Ín dia. Esse episódio é con hecido en tre os evan gélicos com o o “in ício da
obra m ission ária m odern a”. 7
Graças a esse fervor m ission ário, o m ovim en to evan gélico espalhou-se
por todo o m un do, ten do m aior ou m en or sucesso em fun ção da qualidade
do trabalho m ission ário e da con jun tura sócio-religiosa do país a ser alcan -
çado. Com isso, duran te os séculos XIX e XX, os evan gélicos con tin uaram a
crescer e a con struir sua iden tidade em relação às igrejas protestan tes tradi-
cion ais — e, m ais adian te, em relação aos pen tecostais.
Posteriorm en te, o m ovim en to precisou rearticular sua iden tidade por
con ta da eclosão de outra força que vigorava n o in terior das m esm as igrejas
desde o in ício do século XX, fortalecida n os an os 1960: o fun dam en talism o.
A reação n ão ext rem ad a ao socialism o crist ão d ist in gu iu os evan géli-
cos de um a parte sign ificativa do protestan tism o tradicion al, que n a virada

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


141

d os sécu los XIX e XX era sim p at izan t e d o evan gelh o social e d o liberalis-
m o teológico. A adoção da prática social — posteriorm en te cham ada “m is-
são in t egral d a Igreja” — e a abert u ra in t erd en om in acion al d ist in gu iram
os evan gélicos d os fu n d am en t alist as, qu e rejeit avam t od a p reocupação
social n o âm bit o d a religião e at ivid ad es em con ju n t o com ou t ras d en o-
m in ações.
Por dar m uita im portân cia ao texto bíblico, parte con siderável dos evan -
gélicos revelava um a certa ten dên cia ao fun dam en talism o. Para criar um
con trapon to a essa ten dên cia, foi preciso recorrer à exegese crítica. Por con -
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ta da ên fase n a con versão pessoal, m uitos grupos evan gélicos tam bém m os-
tram um a inclinação ao sectarism o, em bora bem m en os inten sa, em função
da respon sabilidade social em butida n a m issão.
A ambivalência dessas características dificulta a visibilidade orgânica dos
evan gélicos, levan do-os a buscar alin ham en tos tran sversais. M uitos evan -
gélicos procuram e têm m ais afin idade com outros evan gélicos de den om i-
n ações diferen tes que com seus colegas da m esm a den om in ação. Em outras
palavras, apesar de n ão com partilharem doutrin as teológicas, n utrem afin i-
dades teológicas e missiológicas. Congressos como o de Lausanne, em 1974,
e as cham adas organ izações para-eclesiásticas tiveram um papel im portan -
te n esses alin ham en tos tran sversais.
A distin ção en tre tradicion ais, evan gélicos e pen tecostais n ão se apóia
em supostas características sociológicas (classe, agrupam en to étn ico, rural-
urban o, n ível educacion al etc.), m as teológicas. Isto n ão só é verdade em
relação ao protestan tism o tradicion al n os Estados U n idos e n a In glaterra,
com o tam bém é o caso com o atual pen tecostalism o n o Terceiro M un do.
An tes do surgim en to do n eopen tecostalism o, o pen tecostalism o esteve
m ais associado às classes m en os favorecidas, o que pesava n a defin ição de
suas características. H oje, porém , essa distin ção perdeu m uito de seu sen ti-
do, especialm en te depois que o perfil sócio-econ ôm ico deixou de ser o
parâm etro prin cipal das explicações sociológicas.
D e fato, a identificação clássica dos protestantes tradicionais com a clas-
se alta, dos pen tecostais com a classe baixa e dos evan gélicos com a classe
m édia m ostrou-se m uito sim plista.

A Espiritualidade e a Identidade Evangélica Nacional


142 UNIDADE II

O s evan gélicos surgiram n um am bien te de avivam en to religioso com


forte ênfase na experiência da conversão 8 e em plena eclosão do ilum in ism o.
Por isso e por outros fatores de n atureza doutrin ária, eles se caracterizaram
por um a religiosidade n ão acom odada com o racion alism o. N ão se iden tifi-
caram com o iluminismo do protestantismo tradicional norte-americano nem
com o liberalism o teológico europeu. Com a fusão do protestan tism o tradi-
cion al n os Estados U n idos com o liberalism o teológico, que redun dou n a
am pliação do socialism o crist ão, as ên fases evan gélicas p areceram in su fi-
cien tes para algun s.

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Ven do o qu e est ava acon t ecen d o, a Assem b léia G eral da Igreja Presbi-
t erian a Am erican a decid iu q u e t in h a ch egad o a h ora d e d efen d er os
prin cípios básicos da fé cristã. Em sua assem bléia de 1910, os presbiteri-
an os traçaram um a declaração de cin co fun dam en tos que eles con sidera-
vam in egociáveis: os m ilagres, o n ascim en to virgin al, a m orte expiatória e
a ressurreição de Crist o e a aut oridade das Escrit uras. N os cin co an os
segu in t es, n u m a série d e d oze livret os ch am ad os O s fundamentos [T he
fundamentals], líderes e eruditos evan gélicos de várias d en om in ações na
Grã-Bretan ha, Can adá e n os Estados U n idos expan diram essas id éias e
a rgu m en t a ra m a cerca d e su a im p o rt â n cia. Bat ist as p ré-m ilen arist as
fu n d aram a World ’s Ch rist ian Fu n d am en t als Associat ion , em 1 9 1 9 , e
um jorn al in t it ulado O fundamentalista foi lan çado n os Est ados U n idos
poucos an os depois.9

A referên cia aos pré-m ilen aristas n esta citação é dign a de n ota. Trata-se de
uma postura escatológica que espera o retorno de Cristo para inaugurar uma
era de paz e prosperidade para os salvos. Ela se opõe à postura tipicam en te
m odern ista, pós-m ilen arista, que crê n a superação dos problem as in eren tes
à natureza hum ana e na instauração de um a utopia que inclui a correção da
in justa estrutura social, para en tão assistirm os ao retorn o de Cristo.
O crescim en to fun dam en talista — predom in an tem en te pré-m ilen arista
— teve um reforço ecológico com o fracasso das utopias m odern istas in dica-
do pela Gran de D epressão e pelas duas guerras m un diais.
D evido à qualidade dos escritores da série O s fundamentos, em sua ori-
gem o m ovim en to m an teve posturas abertas em relação àquelas que veio a
desen volver posteriorm en te.

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


143

O s que pen sam que tudo o que é fun dam en talista só pode ser an ti-in te-
lect ual, sim plist a e polêm ico ficariam su rpresos ao ler O s fundamentos.
Con quan to algun s artigos tivessem um tom em ocion al e hostil, a m aioria
deles era irôn ico, calm o e bem equilibrado. 10

Os fundamentos abordam de m odo bastan te con ciliador até m esm o a teoria


da evolução de D arwin , que veio a ser objeto de discórdia depois do cha-
m ado “M on key trial” (“Julgam en to do m acaco”), isto é, o julgam en to de
John T. Scopes, em 1925, n o Ten n essee. Scopes era professor de biologia
se recusou a obedecer a um a lei estadual que proibia o en sin o da evolução
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n as escolas. Q uan do ele foi a julgam en to, Claren ce D arrow apresen tou-se
com o advogado de defesa e W illiam Jen n in gs Br yan , um fun dam en talista
que havia se candidatado três vezes à presidência dos Estados U nidos, como
prom otor.

Com sen sacion alism o, D arrow con vocou o próprio Br yan com o testem u-
n ha para a defesa e gastou n oven ta m in utos in terrogan do-o cruelm en te
acerca de seu con h ecim en t o de ciên cia, t eologia e religiões com paradas
[...] com o t en t at iva de ridicularizar a cren ça con servadora. 1 1

O s jorn ais aproveitaram ao m áxim o o episódio para criticar os evan gélicos,


tidos n a época com o equivalen tes aos fun dam en talistas. D arrow registrou
prazer m órbido pela vitória ao com en tar n um jorn al, em term os pouco ele-
gan tes, a m orte de Bryan , ocorrida um a sem an a após o julgam en to. N a
represen tação popular n orte-am erican a, o episódio teve com o efeito a idéia
de que os evan gélicos eram in telectualm en te lim itados.
O “Julgam ento do m acaco” m arca a passagem do fundam entalism o para
um a fase sectária e ressen tida. Com o toda religiosidade sectária, reduziu a
ética cristã a regras m oralistas de proibições a tudo o que fosse con siderado
“m un dan o”: m úsica secular, en treten im en tos, m oda, jogos, cin em a, álcool,
tabaco e dança. D esenvolveu posturas anti-intelectualistas e tornou-se cheio
de suspeitas para com a ciên cia.
D esde o surgim en to do fun dam en talism o, em 1910, os evan gélicos en -
con traram gran de dificuldade para se iden tificar, seja por proxim idade seja
distân cia desse m ovim en to. D e fato, a iden tificação dos fun dam en talistas
induz à m esm a postura dos evangélicos, que nunca haviam criado um perfil

A Espiritualidade e a Identidade Evangélica Nacional


144 UNIDADE II

con sisten te por m eio de in stituições, textos e aparições públicas. “A despei-


to do en trelaçam en to orgân ico en tre o m ovim en to evan gélico e o fun da-
m entalism o, eles não são idênticos”, defende M ark Ellingsen. 12 Só nos anos
1940 é que os evan gélicos com eçam a se apresen tar com o distin tos do fun -
dam entalismo.13
D esta form a, o fun dam en talism o tem sido o prin cipal obstáculo n a his-
tória do desen volvim en to do m ovim en to evan gélico exatam en te por ocu-
par praticam en te a m esm a faixa n o leque dos cristãos protestan tes. Carl
H en r y, com o editor da revista Christianity Today, e o teólogo George Ladd,

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após a Segun da Guerra, iden tificam o evan gelicalism o em oposição ao fun -
dam en talism o. Foi Ladd quem in troduziu en tre os evan gélicos o con ceito
de Rein o de D eus com o form a de con ceber a in dissociabilidade en t re
evangelização e ação social, marca distintiva em relação aos fundamentalistas.
Ellin gsen 14 vê n a questão do separatism o a prin cipal característica dis-
tin tiva en tre os evan gélicos e os fun dam en talistas. Estes n ão con cordam
com n en hum a aproxim ação en tre den om in ações diferen tes, n em m esm o
com o objetivo de realizar em preen dim en tos de m assa com o, por exem plo,
as cruzadas evan gelísticas.
A defin ição de fron teiras é um a questão tratada de m odo diferen te por
fun dam en talistas e evan gélicos. O s prim eiros ten dem a se fechar em in sti-
tuições isoladas do m un do exterior. Eles criam as próprias escolas, faculda-
des e têm até suas páginas amarelas cristãs. Atualm en te, defen dem in clusive
o en sin o caseiro dos filhos para que n ão freqüen tem escolas seculares. A
questão do separatism o talvez n ão seja, com o sugere Ellin gsen , a ún ica
distin ção en tre o fun dam en talism o e o evan gelicalism o. O fun dam en talis-
m o sem pre foi fortem en te con trário a qualquer en volvim en to com as ques-
tões sociais, geralm en te associadas ao evan gelho social e ao com un ism o.
Expressan do-se n a form a de um a sociologia cristã, o evan gelho social
foi um m ovim en to socialista cristão presen te tan to n a In glaterra com o n os
Estados U nidos.15 Por conta da aproxim ação suspeita de qualquer atividade
social com esse m ovim en t o, os evan gélicos ad ot aram p or m u it o t em p o
certa cautela, chegan do m esm o a praticam en te sair de cen a em algun s m o-
m en tos. N o en tan to, com o essas questões adquiriam gran de urgên cia n o

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


145

Terceiro M undo, os evan gélicos se viram dian te do desafio de tom ar posi-


ções teológicas e sociais m ais progressistas. Este veio a ser justam en te o
pon to m ais forte n a distin ção relativa aos fun dam en talistas.
O último grande avivam ento evangélico mundial ocorreu nos anos 1970
e 1980: “O maior crescimento no cristianismo americano neste período não
foi n o liberalism o, n a n eo-ortodoxia ou n o fun dam en talism o, m as n o evan -
gelicalism o”.16 O efeito tem alcan ce m un dial por três razões: a força de
destaque dos Estados U nidos no cenário mundial num momento de eclosão
da globalização; a ligação histórica — e até organ izacion al — das den om i-
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n ações evan gélicas am erican as e autócton es; e a realização, em julho de


1974, do I Con gresso In tern acion al de Evan gelização, em Lausan n e, Suíça.
O con gresso em Lausan n e reun iu quatro m il líderes evan gélicos de todo
o m un do e produziu um a base teológica bastan te con sisten te, sin tetizada
n o docum en to con hecido com o o “Pacto de Lausan n e”. Isto deu certa visi-
bilidade para a corren te evan gélica do protestan tism o. O utros con gressos
posteriores tiveram alcan ce region al.17
M ais recentem ente, o neoliberalism o econôm ico, a globalização e a crise
do socialism o real torn ou essa questão m ais com plexa, arrastan do o evan -
gelicalism o para um a crise de iden tidade. O extrem o oposto desse eixo, o
liberalismo teológico, deixou de oferecer desafios teológicos e programáticos
atraen tes. Sem essa baliza, que havia por tan to tem po servido de referên -
cia, os evan gélicos viram -se bastan te atraídos pelo n eofun dam en talism o,
que veio com toda força n os an os 1960.

O QUE É IDENTIDADE?
Com o ilum in ism o, o próprio con ceito de iden tidade en trou em crise. O
racion alism o m odern o, que se susten tava n a an álise cartesian a — segun do
a qual é n ecessário distin guir as coisas de m odo claro até chegar aos con cei-
tos puros —, foi posto em cheque. O prin cípio da iden tidade, n esse tem po,
passou a ser o susten táculo de toda razão, isto é, cada coisa é um a coisa, e
n ão pode deixar de sê-lo. W illiam Shakspeare registrou este prin cípio n a
fala m agistral de H am let: “Ser ou n ão ser, eis a questão.” Em outras pala-
vras: n a m odern idade, se é ou n ão se é.

A Espiritualidade e a Identidade Evangélica Nacional


146 UNIDADE II

Foi n esse berço que n asceu e cresceu o protestan tism o. E logo passou a
ser quem o balan çava. Era fun dam en tal defin ir a iden tidade religiosa de
cada pessoa. D e m odo que, sem a lon ga experiên cia pré-m odern a que ti-
n ha, por exem plo, a Igreja Católica, o protestan tism o torn ou-se an alítico
ao extrem o, separan do-se em m icroiden tidades excluden tes en tre si.
A crise do ilum in ism o, porém , com o já m en cion ada, colocou em crise o
con ceito de iden tidade, de m odo que, se Shakespeare escrevesse n os dias
de hoje, ele colocaria n a boca do prín cipe H am let outro dilem a: “Ser e n ão
ser, esta é a questão.” N esse caso, a questão que se levan ta é: seria oportu-

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n o falar de iden tidade evan gélica hoje? A resposta é “sim ”, se tom adas
certas precauções.
N um artigo que escrevi, 18 alerto sobre três equívocos básicos por trás do
discurso sobre iden tidade, todos frutos do con texto histórico em que são
con struídos, ou seja, o do ilum in ism o. O prim eiro equívoco é atribuir um
certo im obilism o à iden tidade. O segun do é a busca da iden tidade un ica-
m en te n a esfera subjetiva. Fin alm en te, o terceiro equívoco é o n arcisism o.
Em outras palavras, n ão existe iden tidade estática, pois toda iden tidade
está em con stan te m utação exatam en te por ser algo n ão subjetivo, que se
estabelece n as relações que vão se alteran do com o tem po. Por isso, é m ais
apropriado falar sobre iden tificação que sobre iden tidade. Q uan do um a
pessoa ou grupo se volta apen as para o próprio un iverso, n a ten tativa de
defin ir sua iden tidade, perde tem po ou se perde: ao erguer os olhos, perce-
be que tudo a sua volta m udou e sua iden tidade n ão se en caixa m ais n aque-
le con texto. Só podem os n os iden tificar n as relações que estabelecem os,
isto é, por m eio do diálogo.
Por n ão ser um processo autocen trado, é im portan te preven ir-se con tra
todo tipo de postura n arcisista com poten cial de alim en tar defin ições, pois
logo servirão para a depreciação daqueles iden tificados com o “os outros”,
“os diferen tes”, “os de fora”. Em vez disso, a iden tidade serve com o ferra-
m en ta para o diálogo, coisa im possível de ocorrer n o gueto e n o ecletism o.
Q uan do se fala em diálogo, refere-se ao m esm o tem po à tolerân cia, ao
respeito e à propriedade de ser e de n ão ser ao m esm o tem po.

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


147

M ichel Serres alerta sobre o perigo de en carar iden tificação com o um


perten cim en to. Esta atitude tem gerado equívocos sign ificativos ao lon go
da história, sendo um dos m ais m arcantes a guerra entre os tutsis e os hutus
em Ruan da, país on de m ais de um m ilhão de pessoas foram assassin adas
em 1994. Para superar essas arm adilhas, Serres propõe o con ceito de “in -
terseção flutuan te”, segun do o qual cada pessoa ou grupo poderia se in serir
n a etern a m udan ça de tudo ao redor.
Abram de Swaan cham a a esse processo “alargam en to dos círculos de
desidentificação”. Ele o faz num fascinante estudo sobre o conflito em Ruanda.
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Para evitar essas arm adilhas que o con ceito de iden tidade criou, é possível
usar, pelo m en os n este estudo, o term o “sin gularidade”. Realm en te, algo de
peculiar está sen do con struído há quase trezen tos an os en tre os in úm eros
m ovim en tos e ten dên cias do protestan tism o — daí ser possível falar de
um a certa “sin gularidade evan gélica”, com posta de um a série de caracterís-
ticas.

SINGULARIDADE EVANGÉLICA

É m uito difícil defin ir os evan gélicos recorren do isoladam en te a caracterís-


ticas teológicas ou sociológicas. A con dição de evan gélico é, n a verdade,
resultado de um processo dinâmico, que inclui concepções distintas, algumas
vezes divergen tes, m as que n ão são separadas por um a racion alidade es-
treita. M esm o assim , é possível listar algum as características abran gen tes:

1 . Com pleto apoio n a autoridade últim a das Escrituras para questões de


fé e prática;
2 . A n ecessidade de um a fé pessoal em Jesus Crist o com o Salvador do
pecador e a con seqüen te subm issão a ele com o Sen hor;
3 . A urgên cia de se procu rar at ivam en t e a con versão d e p ecad ores a
C rist o.1 9

A essas t rês características podem se acrescen tadas m ais duas que surgi-
ram n o t ran scorrer d o sécu lo XX : a p reocu p ação com a resp on sabilid ad e
social da Igreja e a abertura para en con tros e ações in terden om in acion ais.
A preocupação com as questões sociais partiu da compreensão da a salvação,

A Espiritualidade e a Identidade Evangélica Nacional


148 UNIDADE II

em bora n ão social — com o defen dia o m ovim en to do evan gelho social —,


gerava im plicações sociais e, conseqüentem ente, o convertido precisava dar
m ostras de sua con versão através das boas obras que praticasse.
O relacion am en t o in t erd en om in acion al foi u m a form a d e reação à
t íp ica cissiparidade protestan te, m an ifestada desde seus prim órdios com o
fruto do conceito cartesiano de identidade e, m ais recentem en te, do fun da-
m en t alism o segregacion ist a. N est e sen t id o, o m ovim en t o evan gélico foi
u m a reação ao ilu m in ism o e, desta form a, desagradou tan to o liberalism o
teológico quan to os fun dam en talistas, am bos m an ifestações tipicam en te

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m odern as de religiosidade.
John Stott, n um a palestra prom ovida pela Fratern idade Teológica Lati-
n o-am erican a em Recife, n o fim dos an os 1980, apon tou para seis caracte-
rísticas dos evan gélicos, m en cion adas an teriorm en te n este texto, de um a
form a ou de outra. Porém , ele cham ou a aten ção para o fato de que ser
evangélico é aceitar o pluralismo, e isto coloca este grupo em perfeita sintonia
com o presen te processo de globalização. Talvez seja o grupo religioso m ais
bem preparado para en fren tar esse n ovo tem po.
O com prom etim en to do protestan tism o com o ilum in ism o, n o esforço
de torn á-lo aceitável ao ser hum an o m odern o, sign ificou seu atrelam en to a
um m un do evan escen te. Tam pouco as soluções que apregoam um retorn o
ao m un do pré-m odern o são razoáveis, pois ele n ada tin ha de superior ao
m odern o, assim com o o pós-m oderno não tem . O equívoco reside em achar
que se pode en con trar um a defin ição fin al de com o exercer a fé n um a pro-
posta historicam ente condicionada.
H á ain da um elem en to que se con stitui em desafio para os evan gélicos:
su a relação com o m u n d o in t elect u al secu lar. Eles sem p re t en t aram
posicion ar-se numa faixa eqüidistante do liberalismo teológico, de boa parce-
la do protestantismo tradicional e do fundamentalismo de algumas das novas
igrejas e das independentes. N uma crítica publicada em T he Atlantic M onthly,
Alan Wolfe, afirm a que os evan gélicos perderam seu equilíbrio e n ão con -
seguem m ais se distin guir dos fun dam en talistas. A tese de Wolfe é a de que
os evan gélicos n os Estados U n idos são in telectualm en te m ortos, e que o

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


149

esforço d e algu n s p en sad ores evan gélicos p ara revit alizar a at ivid ad e
in t electual n ão parece m uito prom issor.
Essas ten tativas soam , para ele, com o arrem edo dos tradicion ais, e n ão
com o expressão con sisten te de sua iden tidade. O s evan gélicos dem on s-
tram sua ten dên cia sectária em suas un iversidades, ao fugir do diálogo com
outras cren ças e com os descren tes, de m odo que “o retraim en to provoca o
fan atism o”.20 Trata-se certam en te de um risco sem pre presen te en tre os
evan gélicos, com o qual eles têm hoje sérias dificuldades, como um reflexo
dos tempos de políticas neoconservadoras. Um exemplo é dado por Tito Pa-
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redes, que descreve esta tendên cia ao retraim en to en tre os evan gélicos n o
que tan ge às ciên cias sociais:

Poder-se-ia afirm ar que a com part im en t ação e dicot om ização da vida é


um a das ten tações e fatos m ais característicos do m un do evan gélico. N o-
t em os qu e a t eologia ocid en t al qu e h erd am os em n ossa apreen são d o
evan gelism o con t ribuiu fort em en t e para est a separação en t re fé e vida,
en tre fé e ciên cias sociais.21

Esse talvez seja o m aior obstáculo que o evan gelicalism o tem a suplan tar
para poder desen volver um a espiritualidade tran sform adora n a sociedade
pós-m odern a. Ele lida bem com o pluralism o in tern o, m as n ão avan çou
suficien tem en te em sua relação com a sociedade com o um todo. Esta ten -
dên cia pode lhe ser fatal, além de im en sam en te prejudicial para sua m issão
peculiar n o atual m om en to histórico.
Pode-se con cluir este esforço de iden tificação situan do os evan gélicos
num cruzam ento histórico que lhe confere potencialidade integradora. N os
extrem os de um dos eixos estão os dois agrupam en tos in stitucion ais típicos
do protestan tism o: o protestan tism o tradicion al (main line) e o pen tecosta-
lism o. O outro eixo in clui em seus extrem os ten dên cias ao liberalism o teo-
lógico e ao fun dam en talism o.
Ele só poderá m an ter essa posição, in stável por n atureza, se cultivar o
diálogo in tern o e extern o com as dem ais faixas do cristian ism o e con struir
um a n ova fren te de con versação com a sociedade com o um todo. É bom
lembrar qu e gru p os n eop en t ecost ais t êm in vest id o n u m a relação com a
esfera polít ico-social sem nenhuma perspectiva missionária. A política é

A Espiritualidade e a Identidade Evangélica Nacional


150 UNIDADE II

corporativista, e o contato com a sociedade é pela m ídia de m assa, que só


faz reforçar a alien ação.
A afirm ação de sua riqueza histórica, in cluin do aí a espiritualidade do
en con tro, da con versão e da con versação, há de servir de alicerce e lastro
para a con strução de um a face pública m ais efetiva n a sociedade pós-m o-
derna — sem m edo de perder, com isso, sua sin gularidade; a espiritualidade
do serviço aos m ais n ecessitados com o expressão da con versão; e a espiri-
tualidade da paixão pelas Escrituras, com todas as con seqüên cias para um a
disciplin a espiritual cotidian a e pessoal.

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Essa há de ser a espiritualidade que trará, em n ovas bases, o verdadeiro
reencantam ento do m undo.

Notas
1
N ão há registros que dêem conta da multiplicidade de denominações protestantes. Algumas
estim ativas, como a de D avid Barrett (W orld Christian encyclopedia [Enciclopédia mundial cristã],
1980), chegam a se referir a 23 m il. Só que esta já era m uito conservadora em 1980, de m odo
que poderíamos, pelo menos, dobrar este número para os dias de hoje, sem risco de exagero.
2
Embora seja historicamente mais preciso, preferimos aqui o termo “evangélico” a “evange-
lical” para evitar o anglicismo deste último, assim como o surgimento de mais uma divisão no já
fragmentado quadro das igrejas cristãs, que a difusão em português do termo “evangelical” pode-
ria insuflar.
3
Os assim chamados neopentecostais têm sido alvo de inúmeros estudos. Este nome foi o que
adquiriu maior difusão, especialmente com a publicação do trabalho de Ricardo M ariano. Porém,
Paul Freston fala de “terceira onda do pentecostalismo” (no Brasil), e Paulo Siepierski cunhou a
feliz expressão pós-pentecostalismo. Essa discussão, no entanto, foge do escopo deste texto.
4
ALLAN , John. T he evangelicals: T he history of a great Christian movement [Evangélicos: A história
de um grande movimento cristão]. Exeter: Paternoster Press, 1989, p. 108.
5
Um avivamento talvez seja a experiência religiosa coletiva mais extraordinária que existe. O
despertam en to para a prática religiosa alastra-se rapidam en te por um a com un idade e logo se
expande para outras regiões geográficas. As experiências são intensas e se caracterizam, em seu
estágio in icial, pela alegria. A força do coletivo se esten de, geran do um legalism o exacerbado
numa segunda fase. Geralmente, um avivamento religioso surge em momentos de grande tensão
social e deixa suas marcas na história.
6
ALLAN , John . O p. cit., p. 38.
7
Esta definição indica um certo etnocentrismo dos evangélicos, que fazem vista grossa para o
im en so avan ço m ission ário católico desde o século XVI e dos em preen dim en tos heróicos dos
morávios no século XVII.
8
O u de N ovo N ascimento, que levou m uitos evan gélicos a se autoden om in arem born-again
Christians [cristãos nascidos de novo].
9
ALLAN , John . O p. cit., 139 s.

A ESPIRITUALIDADE E A VIDA COMUNITÁRIA


151

10
ELLIN GSEN , M ark. T he evangelical movement, 1988, p. 50s.
11
ALLAN , John . O p. cit., p. 142.
12
E LLIN GSEN , M ark. O p. cit., p. 97.
13
Alan Wolfe refere-se ao emprego do termo neo-evangelical já nos anos 1930 para se defini-
rem, em oposição ao extremo antimodernismo dos fundamentalistas. “The opening of the evan-
gelical mind”, p. 4.
14
ELLIN GSEN , M ark. O p. cit., p. 104.
15
O M ovimento Evangelho Social foi um agrupamento amórfico de líderes eclesiásticos que
se propun ha a prom over reform a social n a virada do século XIX para o século XX. En tretan to,
tinha seus centros de influência, e esses eram também, por definição, centros para a propagação
da Sociologia Cristã. LYON , D . “The idea of a Christian Sociology”, p. 234.
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16
BALSW ICK, The em ergen ce of evan gelicalism . In S WATO S JR, W illiam H . (ed.). Religious
sociology: Interfaces and boundaries, p. 144.
17
Com o, por exem plo, o II Con gresso Latin o-Am erican o de Evan gelização – CLAD E 2, em
1979, o Congresso Brasileiro de Evangelização, em 1983, e o Congresso N ordestino de Evange-
lização, em 1987.
18
LOPES Jr., Orivaldo L. “Sou evangélico. Quem sou eu?”, in M issão integral: Proclamar o Reino
de D eus e viver o Evangelho de Cristo. Belo H orizonte: Visão M un dial e U ltim ato, 2004.
19
Q uebedeaux, In S WATOS JR, W illiam H . O p. cit., P . 144.
20
Idem , p. 30.
21
P ARED ES , Tito. El evangelio en platos de barro, p. 19.

A Espiritualidade e a Identidade Evangélica Nacional


Antonia Leonora
Antonio Carlos Barro
Joyce Every-Clayton

A ESPIRITUALIDADE E A

III
UNIDADE
MISSÃO

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ A espiritualidade e a Grande Comissão
■ A espiritualidade e a missão integral
■ A espiritualidade na história da Igreja Evangélica brasileira
155

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
A ESPIRITUALIDADE MISSIONÁRIA
A ESPIRITUALIDADE MISSIONÁRIA

�Antonia Leonora
Formada em etras
pelo Centro de Ensino
Uniicado de Brasília,

Q
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

é mestre em Teologia

uando pensamos no desafio missionário que


pela Faculdade

está diante de nós neste terceiro milênio, nos


Teológica Batista de

convencemos de que só podemos enfrentá-lo no po­


São Paulo. Atualmente
é doutoranda em
Misses pela Asla der e na graça de Deus, e apenas através de pessoas
Graduate School of e de uma Igreja radicalmente dispostas a buscar a
T holoy, nas glória de Deus em primeiro lugar, consagradas ao
Senhor e obedientes ao seu chamado.
Filipinas. Foi

É hora de deixar de lado a busca de glória para


missionária da

nosso grupo e servir unidos, com humildade, tra­


Aliança Bíblica

balhando com servos de Deus de todas as igrejas


Universitária e da

verdadeiramente cristãs e de todas as nações já al­


Intenational
Fellowship Evangelical
Students em Angola. É cançadas.
proessora e diretora Missões está voltando a ser tarefa de toda igreja
da Escola de Missões
e da Igreja toda, como era no princípio, e não só de
nações poderosas e influentes para nações de algu­
do Centro Evangélico

ma forma sujeitas a seu poderio - idéia que preju­


de Missões (cM), em

dicou a tarefa misionária desde os dias do imperador


Viçosa.

Constantino.
Sempre existiram grupos diferentes que, apaixo­
nados por Jesus e dispostos a seguir o caminho da
cruz, se tornaram missionários mais efetivos. No
entanto, há grupos ainda não alcançados. São os mais
difíceis, seja porque vivem em contextos resistentes

329
A Espiritualidade e a missão
156 UNIDADE III

ao Evan gelho (con t rolad os p or ou t ra religião ou id eologia), seja porque


sua realidade está in stalada em um a situação de guerra, de extrem a pobre-
za, ou ain da porque estão localizados em lugares in óspitos, on de poucas
pessoas querem viver.
Precisam os buscar n a m issão de Jesus um a com preen são bíblica sobre o
sofrim en to. Ele sofreu para libertar os seres hum an os e a própria Criação
da corrupção da queda, restauran do em n ós a glória de D eus. Jesus n os
cham a a seguir o cam in ho da cruz, n egan do-n os a n ós m esm os, torn an do-
n os objetos do ódio do m un do e sofren do, n ão para pagar pelos pecados,

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m as para serm os testem un has da n ova realidade de seu Rein o.
Este testem un ho provoca a reação daqueles que an dam n as trevas. Se
form os seus seguidores, sofrerem os. Jesus sofreu quan do aceit ou n ossa
n atureza, en fren tou n ossas ten tações, viveu n ossa dor, levou n ossos peca-
dos e m orreu n ossa m orte.1

JESUS, NOSSO MODELO DE ESPIRITUALIDADE MISSIONÁRIA


Espiritualidade m ission ária está relacion ada com n ossa disposição à ren ún -
cia, dian te do desafio do cum prim en to do m an dato m ission ário. Vejam os
com o Jesus respon deu ao sofrim en to relacion ado com seu cham ado e m i-
n istério e o que podem os apren der desse m odelo. Ele n os ajudará a lidar
com o sofrim en to n o testem un ho m ission ário hoje — n ão para ver a obra
m ission ária com o excessivam en te pen osa, m as com o um desafio para bus-
car a glória de D eus e n os dispor à obediên cia a D eus com o prioridade em
n ossa vida.
Jesus, n osso m odelo, M estre e Sen hor, n os con vida a an dar em seus
passos. Com o a espiritualidade se m an ifestava n a vida de Cristo? Em pri-
m eiro lugar, ele sem pre m an ifestou in tim idade e harm on ia total com o Pai
e com o Espírito San to. Buscava um tem po de tran qüilidade para estar em
com un hão pessoal, ren ovan do-se para con tin uar a derram ar seu am or in -
con dicion al n um con texto de trevas, ign orân cia, resistên cia e m iséria. O s
evangelhos mostram como ele costumava sair de madrugada, ou à tardezinha,
para um lugar deserto ou para um m on te, para buscar a com un hão com o

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
157

Pai (M c 1:35; Lc 4:42; Lc 5:16). N aqueles m om en tos, ele n ão precisava de


outra pessoa, m as apen as ren ovar os laços etern os de am or que sem pre o
un iram ao Pai e ao Espírito San to.
Lucas m en cion a um a ocasião em que Jesus exultou n o Espírito San to e
agradeceu ao Pai n a presen ça dos discípulos, alegran do-se n o fato de os
pequeninos com preenderem a revelação da graça de D eus m anifestada nele
(Lc 10:21-22; M t 11:25-30). A in tim idade com o Pai e o am or por suas
ovelhas estavam sem pre in tim am en te ligados (Jo 12:23-28). Em João 12,
Jesus ora buscan do glorificar o Pai e en tregan do sua vida para que produza
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m uitos frutos em pessoas tran sform adas de todas as n ações.


Jesu s t am bém bu scava a com u n h ão com o Pai n os m om en t os crít icos
de sua vida e de seu m in istério, com o an tes da escolha dos D oze (Lc 6:12)
e d ep ois d a m u lt ip licação d os p ães, qu an d o o p ovo qu eria con sagrá-lo
rei (M t 1 4 :2 3 -2 5 ; M c 6 :4 5 -4 8 ). Lu cas m ost ra qu e ele su biu ao m on t e a
fim d e orar, p rep aran d o-se p a ra o so frim en t o, q u a n d o fo i t ra n sfigu ra-
d o d ian t e d os d iscíp u los, e est es t iveram o p rivilégio d e ver su a glória
(Lc 9 :2 8 -3 1 ).
Com o Jesus en fren tou as horas m ais críticas, de m aior luta e trevas n o
Getsêm an i e n a cruz? Com o ser hum an o, buscou o apoio dos am igos m ais
ín tim os, m as eles n ão o com preen deram n em con seguiram apoiá-lo. Jesus
lutou sozin ho, disposto a en tregar sua vida e a obedecer ao Pai, apesar de
estar profun dam en te an gustiado dian te do peso dessa tarefa.
É im pression an te ver com o Jesus, apesar de sua gran diosa m issão e de
suas lim itações de tem po, espaço, m eios de com un icação e transporte, n un-
ca se precipitou. Sabia fazer cada coisa n a hora certa, pois estava sem pre
depen den do do Pai, e n ão sujeito às pressões hum an as (Jo 7:2-8).
In felizm en te, m uitos m ission ários hoje vivem sob in ten sa pressão. Pro-
curam satisfazer m uitas expectativas e n ão en con tram tem po para se ren o-
var n a com un hão com o Pai e esperar a hora dele para agir ou n ão. Assim ,
há m uito esforço estéril e m uitos m ission ários desgastados e caren tes. N o
en tan to, se fizerm os as coisas do Pai n a hora e n a depen dên cia dele, recebe-
m os sua força, sua graça e sua sabedoria.

A Espiritualidade e a missão
158 UNIDADE III

A CRUCIFICAÇÃO E A MORTE DE JESUS


O s judeus e os roman os con den aram Jesus com o pregador e pen sador revo-
lu cion ário. A acu sação escrit a em lat im , grego e h ebraico era: “Est e é
Jesu s, o Rei d os Ju d eu s”. A acu sação “Rei d os Ju d eu s” m ost ra qu e Jesu s
era con sid erad o u m a am eaça p ara o Im p ério Rom an o (M t 2 7 :3 2 -5 1 ;
M c 1 5 :2 1 -41; Lc 23:26-49; Jo 19:16-30). D a hora sexta até a n on a houve
trevas. En tão, Jesus gritou: “Eloí, Eloí, lam á sabactân i” (M t 27:46), um
grito que expressou o profun do horror de sua separação do Pai.
As trevas que tom aram con ta do am bien te sim bolizavam as trevas espi-

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rituais que o circun daram , trevas da exclusão absoluta da luz da presen ça
de D eus. Foi um a separação verdadeira en tre o Pai e o Filho, aceita volun ta-
riam en te por am bos. Jesus foi aban don ado para que nós jamais o fôssem os.2
D epois, gritou em alta voz: “Está consum ado”, m ostrando que a obra de
reden ção estava com pleta. D eliberada e livrem en te em am or, ele en fren ta-
va o juízo por n ossos pecados. Fin alm en te disse: “Pai, n as tuas m ãos en tre-
go o m eu espírito”. N esse m om en to, o véu do San tuário rasgou-se em duas
partes, de alto a baixo, m ostrando que a barreira entre o ser hum ano e D eus
fora derrubada. H á um n ovo acesso a D eus.3
A cruz parece ser a vitória do m al. N um a cultura contem porânea centra-
lizada na busca de sucesso e de prazer, não há n ada tão im popular quan to o
D eus-h om em cru cificad o, qu e se t orn a realid ad e p resen t e p ela fé. N a
cruz:

[...] o sofrim en to é superado pelo sofrim en to e feridas são curadas pelas


feridas [...] Porque o sofrim en t o do sofrim en t o é a falt a de am or, e as
feridas das feridas são o aban don o. O sofrim en to do am or n ão tem receio
do que está feio e doen te, m as o aceita [...] a fim de restaurá-lo”.4

O cham ado para seguir a Jesus sign ifica n egar a n ós m esm os, tom ar sua
cruz e com partilhar seu sofrim en to. Jesus sofreu e foi rejeitado. É possível
sofrer e ser adm irado, m as a rejeição rouba a dign idade do sofrim en to. N a
com unhão com o sofrim ento de Cristo, nosso sofrim ento torna-se um m eio
de ter com un hão com D eus. Seguir a Jesus sign ifica com prom eter-n os com
sua m issão e tom ar nossa cruz. Significa perseverar quando não há nenhum
apoio.5

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
159

Jesus m orreu por n ossos pecados, que n os separavam de D eus. Ele m or-
reu n ossa m orte, receben do o castigo que m erecíam os. A cruz n os en sin a
que n ossos pecados são tão graves que a ún ica saída foi o próprio D eus
tom á-los sobre si, em Cristo, para assim n os perdoar. O am or de D eus é
m aravilhoso e totalm en te im erecido. A cruz é a expressão m áxim a da m ise-
ricórdia e justiça divin as. 6
Por causa do grande amor de D eus por nós, Jesus veio nos salvar (Lc 1:78;
Tt 2:11). D eus n ão estava disposto a agir em am or às custas de sua san tida-
de, ou em san tidade às custas de seu am or. Assim , ele satisfez seu am or
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san to, m orrendo nossa morte e levando nosso juízo sobre si.7
A glória de Jesus se m an ifestava em sua fraqueza hum an a e n a hum ilda-
de de sua en carn ação (Jo 1:14). A cruz, que parecia vergon ha, foi de fato
gloriosa. O Pai e o Filho revelaram seu am or in con dicion al através da cruz.8
Ela é a plen a revelação da glória divin a do Filho. Sua glória con sist e em
aceit ar a vergon h a e a h u m ilh ação d a cru z (Jo 8:28; 13:31-3). 9
D eus n os deu seu Filho, e Jesus n os deu sua vida para n os libertar com o
in divíduos e com o sociedade, crian do um a n ova com un idade que apren de-
ria a viver de acordo com seu exem plo e en sin o. Jesus esteve sem pre n o
con trole da situação. Preparou o cam in ho para seguirm os suas pisadas. Só
assim n os torn am os in strum en tos da graça restauradora de D eus.

O SOFRIMENTO E A ESPIRITUALIDADE NO ENSINO DE JESUS

D uran te sua vida, Jesus en sin ou os discípulos através de seu m odelo de


vida em con stan te com un hão com o Pai e de sua atitude para com o sofri-
m en to. Ele n un ca buscou o próprio con forto. Sem pre esteve disposto a pa-
gar o preço para cum prir sua m issão, agradan do a D eus e aben çoan do os
seres hum an os caídos.
Jesus falava, en sin ava, respon dia às questões que surgiam , e assim os
preparava para um a vida de espiritualidade sem elhan te à sua.

O Se rm ão do Mo nte
Jesus prom ete bên çãos aos discípulos, que deixam tudo para segui-lo. Por
causa de seu cham ado, est ão d isp ost os a n egar a si m esm os (M t 5 :3 -1 2 ;
Lc 6:20-23).

A Espiritualidade e a missão
160 UNIDADE III

• “Bem -aven turados os pobres de espírito, pois deles é o Rein o dos


céus” (M t 5:3; ARC ). O s pobres são os hum ildem en te depen den tes de
D eus (Sl 34:6), que recon hecem sua in capacidade de salvar a si m es-
m os. Assim , buscam a ajuda de D eus, saben do que n ão a m erecem . A
expressão tam bém se refere aos pobres de recursos m ateriais, que
buscam socorro em D eus (Lc 6:20).10
• “Bem -aven tu rad os os qu e ch oram , p orqu e eles serão con solad os”
(M t 5:4). Essa tristeza se refere ao arrepen dim en to, ao recon heci-
m en to da falta de dign idade m oral e de um a atitude de hum ilde

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con trição. In clui chorar pela situação do m un do, de violên cia, degra-
dação m oral, opressão. Lutero usava a palavra leidtragen (“carregar o
sofrim en to”), porque eles carregam o sofrim en to que lhes vem por
causa de Cristo.12
• “Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra” (M t 5:5).
O s m an sos são gen tis para com os outros, ren un ciam a seus direitos
e suportam a violên cia pacien tem en te. Valores do m un do en sin am
que aqueles que lutam serão os herdeiros, e os hum ildes devem ser
desprezados.13
• “Bem -aven turados os qu e t êm fom e e sed e d e ju st iça, p orqu e se-
rão fart os” (M t 5 :6 ). Est a fom e se relacion a a u m a vid a vivid a d e
acordo com a von tade de D eus, e isso n as Escrituras sem pre in clu i a
preocupação com a justiça social, buscan do ativam en te a liberdade
para os oprim idos. D iscípulos cristãos têm fom e de ren ovar com ple-
tam en te a si m esm os e ao m un do. M ostram am or e com prom isso
com os desprezados e m argin alizados. 14
• “Bem -aven turados os m isericordiosos, porque alcan çarão m isericór-
dia” (M t 5:7). A palavra é elêmones e sign ifica “ben ign idade para os
m iseráveis e aflitos”, um a palavra relacion ada com dor, desespero e
pobreza. É o fruto da m isericórdia que recebem os de D eus. 15
• “Bem -aven t u rad os os lim p os d e coração, p orqu e verão a D eu s”
(M t 5 :8 ). Refere-se aos sin ceros, que perseguem um relacion am en to
tran sparen te com D eus e com os outros, e que buscam diariam en te a

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
161

purificação e o perdão em Jesus. Esta atitude é in dispen sável para


an dar em com un hão com D eus.16
• “Bem -aven turados os pacificadores, porque serão cham ados filhos
de D eus” (M t 5:9). Se prom overm os recon ciliação en tre as pessoas,
sofrerem os reações. O s pacificadores são cham ados “filhos de D eus”
porque seguem seu propósito, ren un cian do à violên cia e suportan do
a in justiça, em vez de in fligi-la a outros. Eles sofrem n o con fron to
com o ódio e o m al, e ven cem o m al com o bem . 17
• “[...] quan do os in sultam , perseguem e dizem todo tipo de calún ia
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con tra vocês” (M t 5:10-12; N TLH ). O s que buscam a justiça e seguem


a Cristo p od em ser socialm en t e rejeit ad os p or cau sa d e Jesus. A
perseguição surge com o fruto d o ch oqu e d e valores con t rad it órios.
A reação cristã n ão é de estoicism o, au t op ied ad e ou ira, m as d e
regozijo.18

O cus to de s e g uir a Je s us
Jesus explicou que seus seguidores teriam de en fren tar tribulações e con fli-
tos, e que o com prom isso com o Rein o é prioritário. Q uem n ão estiver
disposto a carregar sua cruz cada dia não pode ser discípulo de Jesus. A cruz
é a m arca do estilo de vid a d o d iscíp u lo, ch am ad o a sofrer a h ost ilid ad e
d o m u n d o, com Jesu s, p ela cau sa d e seu Rein o (Lc 9 :5 7 -6 2 ; 1 4 :2 5 -3 5 ;
M t 8:18-22; 10:34-39; 15:3-9).19
Torn ar-se discípulo de Jesus sign ifica pôr n ossos in teresses pessoais de
lado e suportar o sofrim en to próprio ao seu serviço. Estas con dições se
aplicam a todos os discípulos: sem ren ún cia, sem tom ar a cruz e seguir a
Jesus, n ão existe discipulado. Isto tam bém sign ifica n ão n egá-lo em situa-
ções de perseguição. Carregar a cruz é a ún ica m an eira de triun far sobre o
m al. Jesus estava preparan do seus discípulos para a m issão global, para
edificar a Igreja, por isso en sin ou-lhes com o en fren t ar a violên cia. Jesu s
en sin ou qu e o sofrim en t o d o crist ão é p or cau sa d ele (M t 1 6 :18,24-26;
17:12; 23:33-36; M c 6:4; 8:34-38; Lc 9:23-26). 20
Jesu s foi od iad o porque fazia as obras do Pai. H avia um a atitude per-
m an en te de ódio. U m estilo de vida con sisten te, em palavras e obras, expõe

A Espiritualidade e a missão
162 UNIDADE III

as trevas do m un do e causa ódio (Jo 15:18-25). Aqueles que estão em


Cristo serão perseguidos pelo m un do. A perseguição com eça com a rejei-
ção, m as pode resultar em violên cia e m artírio. Jesus disse que tal oposição
é suportável, porque n o m eio d o sofrim en t o exp erim en t arão a com u -
n h ão com ele (Jo 1 6 :1 -4 ,3 3 ). 2 1
Jesus en sin a os discípulos a n ão resistir con tra os hom en s m aus, m as a
estar pron tos para reagir com hum ildade, com disposição de servir, e n ão
em defesa própria. Em bora isso se pareça m uito com o tipo de cristian ism o

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com batido por M arx, Jesus se referia às reações pessoais. En sin ava a ven cer
o m al com o bem . Jesus n ão é con trário à justiça social, com o bem o m os-
tram seu en sin o e sua vida. Seus discípulos n ão apen as devem aceitar o m al
que outros lhes causam , m as am ar os m aus e trazê-los a D eus. A ún ica
razão por que se com portam assim é porque são filhos de um Pai que am a
aos que o rejeitam e dele abusam (M t 5:38-48; Jo 3:16; Lc 6:27-36).22
Ser discípulo sign ifica segu ir a Jesu s e ap ren d er d ele, m as t am bém
sign ifica im itá-lo, desen volver caráter e com portam en to sem elhan tes aos
dele, apren den do a perdoar com o ele perdoava (Lc 11:4; M t 6:14; 18:32s);
a am ar com o Jesus am ava, dan do-se a si m esm o (Jo 13:34; 15:12).23 Jesus
enviou seus discípulos com o ovelhas entre os lobos, m uito vulneráveis, m as
tam bém com o os que deviam ser astutos com o as serpen tes e in ocen tes
com o as pom bas. N ão é reagir à violên cia com violên cia, m as a disposição
ao m artírio, se for n ecessário (Lc 12:3-12; M t 10:16-33).
Jesus estava preocupado com a preparação dos discípulos para sua m is-
são, ajudan do-os a en fren tar as perseguições que viriam e a reagir a elas.
Ele os cham ou a ser testem un has corajosas, m esm o dian te da hostilidade
(M t 10:17-18). Em Lucas 21:13, ele declara que devem ver tais ocasiões
com o oportun idades para o testem un ho.24
O s discípulos serão odiados pela fam ília e por todos. Em tais situações,
a resposta n ão deve ser de am argura, m as de am or perseveran te. Q ue juízo
t em em os: o d e D eu s ou o d os h om en s? Se t em em os o ju ízo d e D eu s,
n ão ficarem os d em asiad am en t e preocu pad os com a rejeição d os h om en s
(M t 10:34-39).25

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
163

Jesus apresen ta um a escolha aos discípulos: “Vocês querem m e seguir


n o cam in ho do serviço hum ilde e do sofrim en to, que leva à vitória fin al?
Pensem nos custos. Seguir-m e significa seguir o m esm o padrão: m orrer para
produzir fruto e receber a vida etern a”. Ele tam bém prom ete sua presen ça,
sua força e sua sabedoria para os que cum prem sua m issão de levar o Evan -
gelho e fazer discípulos de todas as n ações.

Qual é a função da cruz na vida do s dis cípulo s ?


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A fun ção da cruz de Jesus, com o dissem os, foi o perdão de n ossos pecados.
Sua cruz foi um acon tecim en to ún ico, que jam ais poderá ser repetido ou
com plem en tado. A salvação do m un do con sist e em d u as p art es: o sofri-
m en t o d e Jesu s p elos p ecad os d o m un do, seguido pela proclam ação da
salvação para todas as n ações. Essa salvação n ão alcan çará as n ações sem
o sacrifício d e seu s m en sageiros. Por isso, tom ar n ossa cruz sign ifica que o
prin cipal objetivo da vida é testem un har de Jesus a outros, fazer discípulos
e en sin á-los a obedecer a Cristo. Isso custará din heiro, pode custar n ossa
reputação, pode n os levar ao cam po m ission ário e pode vir a sign ificar a
morte.
Q uan do os discípulos de Jesus ouvem o cham ado de D eus e lhe obede-
cem , levan do as Boas N ovas às n ações, viven do em hum ildade, com paixão
e am or pelas pessoas, eles se sacrificam pela salvação dos perdidos. Este
serviço hum ilde n os prepara para, n o futuro, rein ar com Cristo.26
A cruz de Cristo é o sím bolo do Servo Sofredor e um estím ulo à perse-
veran ça. Torn a-se claro que sofrim en to e serviço, paixão e m issão estão
ligados. O sofrim en t o n a m issão a ser viço d e D eu s é p ou co en fat izad o
h oje, m as o segred o d a eficiên cia m ission ária é a disposição para sofrer e
m orrer. H ebreus 12 e João 15 n os levam a con cluir que D eus usa o sofri-
m en to com o m eio de graça, porque produz um a fé purificada e hum ilde, e
traz ben efícios para outras pessoas, através do serviço e da solidariedade.27
Sofrer com o Cristo é sofrer com ele. Com partilhar seus sofrim en tos é
com p art ilh ar su a glória. A esp eran ça d a glória t orn a o sofrimen to supor-
tável. O propósito de D eus é de n os apresen tar em sua gloriosa presen ça

A Espiritualidade e a missão
164 UNIDADE III

sem falha e com gran de alegria (Jd 24), com o aqueles que foram con form a-
dos à im agem de seu Filho.
A cruz de Cristo é a prova do am or com passivo de D eus, porque ele n ão
fica in diferen te a n osso sofrim en to. Através dos profetas do An tigo Testa-
m en to, D eus já expressava seu in ten so am or com passivo. O s sen tim en tos e
o sofrim en to de Jesus (am or, com paixão, ira, tristeza, alegria), m en cion a-
dos n o N ovo Testam en to, refletem o coração de D eus.28
D evem os estar dispostos a ren un ciar a coisas que, em bora corretas, ser-
vem com o barreira para n ossa obediên cia radical. Paulo n egou seus direitos

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a ter fam ília e ao susten to fin an ceiro. Cristãos hoje podem ser cham ados a
n ão se casar, a deixar um bom em prego e um a casa con fortável.29
Som os cham ados a am ar e a servir as pessoas. Som os cham ados a seguir
a Jesus, a escolher en tre o con forto e o sofrim en to. O n de estão os cristãos
dispostos a colocar a m issão acim a da seguran ça, a com paixão acim a do
con forto?30 Viver com o discípulos de Jesus traz gran des desafios, respon sa-
bilidades e oportun idades para servir de tal m an eira que agradem os a D eus
e sejam os bên ção para os povos do m un do.

Es piritualidade m is s io nária na his tó ria da Ig re ja


O s cristãos prim itivos n ão tin ham n en hum a dúvida a respeito do custo de
seguir a Jesus e do dever de cada cristão de testem un har da m aravilhosa
n otícia do gran de am or de D eus m an ifesto em Cristo. Era com o a parábola
da pérola de gran de valor. A n ova descoberta valia m ais que qualquer coisa
an terior. N esse testem un ho fiel, m uito cedo com eçaram a en fren tar perse-
guições, prisões e m artírio, m as em vez de lam en tar ou calar, sen tiram -se
en corajados a testem un har, hon rados por ter sido dign os de sofrer afron tas
pelo n om e de Jesus (At 5:41).
O martírio não era considerado desgraça ou perda, mas sim honra. Ignácio,
bispo de An tioquia, foi preso e con den ado por sua fé e en viado a Rom a
para ser jogado aos an im ais selvagen s, n o Coliseu. Ele era m uito respeitado
e am ado, m as pediu que os cristãos n ada fizessem para libertá-lo. Con side-
rava o m artírio um a honra e um privilégio. Ele desejava m orrer porque acre-
ditava que, daquela m an eira, sua vida falaria com m ais clareza ao m un do,

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
165

assim com o Jesus falou através da cruz. Ele estaria se aproxim an do do so-
frim ento de Cristo, e assim , se aproxim aria m uito m ais de D eus. Acreditava
que o verdadeiro discipulado e a verdadeira vitória dos cristãos eram alcan -
çados através do sofrim en to.31
N o in ício do século IV , Eusébio de Cesaréia descreveu a m orte dos m ár-
tires falan do de sua paciên cia e de seu am or pelo Sen hor m an ifestados
duran te o m artírio. Eles n ão gem iam n em choravam en quan to eram dilace-
rados ou queim ados. En ten diam que o verdadeiro m artírio n ão podia ser
provocado pelo hom em , m as vin ha da von tade de D eus.
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A terceira característica é que o verdadeiro m ártir n ão pen sava em si


m esm o, m as n os outros, procuran do dar testem un ho para que outros fos-
sem fortalecidos n a fé ou viessem a crer. Policarpo era bispo em Esm irn a e
foi m artirizado quando tinha m ais de oitenta an os. Q ueim ado vivo, en fren -
tou essa m orte com coragem e dign idade. Q uan do desafiado a dizer que
“César é sen hor”, respon deu: “O iten ta e seis an os eu o servi, e ele n un ca
m e fez m al algum . Com o poderia blasfem ar do m eu Rei que m e salvou?”.32
A Igreja prim itiva preparava seus m em bros para en fren tar o m artírio.
Q uan do, sob Con stan tin o, a Igreja deixou de sofrer perseguições e co-
m eçou a aliar-se ao poder político, o com prom isso radical dos cristãos pri-
m itivos en fraqueceu e en trou a politicagem e a corrupção religiosa e m oral.
Ser cristão dava status. Com o reação, surgiu o m ovim en to dos Pais do D e-
serto, que buscavam a sim plicidade, a im itação de Cristo e a obediên cia
radical ao ensino de auto-renúncia, e seguir a Jesus n o cam inho da cruz. N o
deserto, buscavam um a n ova in tim idade com D eus, viven do um a vida de
austeridade e rejeitan do os valores m un dan os. Seu objetivo era buscar em
prim eiro lugar o Rein o de D eus.
Esses hom en s de D eus acabavam atrain do outros que desejavam seguir
seu exem plo, e assim surgiu o m ovim en to m on ástico. O silên cio para os
Pais do D eserto n ão sign ificava apen as n ão falar, m as um a postura dian te
de D eus e de n ós m esm os, um silên cio que n os en sin a a ouvir, m editar e
con tem plar as obras e os m istérios de D eus. O objetivo prin cipal daqueles
hom en s era viver um a vida de con sagração total ao Sen hor, estar em sua
presen ça, evitan do a corrupção do m un do. 33

A Espiritualidade e a missão
166 UNIDADE III

N osso cristian ism o do terceiro m ilên io está m uito distan te desse m ode-
lo. Buscam os bên çãos e van tagen s im ediatas, rejeitam os qualquer tipo de
renúncia, vivemos um consum ism o evangélico na busca do prazer, de rique-
zas e de status. Com o Igreja, vivem os um a agitação desen freada de m uitas
at ivid ad es, reu n iões e con gressos. A qu alid ad e d o crist ão é m ed id a p or
sua agen da cheia e pelo n úm ero de cargos que ocupa. Já n ão tem os tem po
para um a devoção p rofu n d a e t ran qü ila, p ara cu lt ivar u m a vid a n a p re-
sen ça do Sen hor, para ouvi-lo e n ão som en te falar-lhe, ou can tar e falar
sobre ele.

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Q ue D eus nos livre de cair na condenação do profeta Amós (5:23): “Afas-
tem de m im o som das suas can ções e a m úsica das suas liras”; ou de
M alaquias (1:10): “Ah! Se um de vocês fechasse as portas do templo!” ( N VI ).
O con texto desses profetas era a falta de justiça social (Am ós) e a con sagra-
ção de ofertas de segun da qualidade (M alaquias). Será que n ão correm os o
risco de n ossos cultos tam bém aborrecerem ao Sen h or? Vam os ap ren d er
o que podemos dos Pais do D eserto, sem cair no radicalismo de seu ascetismo.
Chegando m ais adiante na história, temos o movimento missionário dos
celtas, que surgiu a partir da evan gelização da Irlan da por Patrício, jovem
in glês que fora escravo n a Irlan da, para on de m ais tarde, em 432 a.D , sen -
tiu-se cham ado a fim de levar o Evan gelho. Ele foi um m ission ário m uito
bem -sucedido e deu lugar a um m ovim en to sem im on ástico m ission ário,
independente de Rom a. Sua vida caracterizou-se pela peregrinatio, combina-
ção de ascetism o, aven tura e m issão, praticada por m on ges que ouviam o
cham ado de D eus e cruzavam o m ar, dirigidos pelo Espírito de D eus e
pelos ven tos, em busca de n ovos lugares para im plan tar seu m in istério.
Saíam deixando toda a vida anterior para trás, para onde quer que o Senhor
os levasse.
Colum ba foi um líder desse m ovim en to. Com o jovem , en trou n um a
dessas com un idades sem im on ásticas, apren deu tudo o que podia das Escri-
turas, especialm en te os salm os, que decorou. Q uan do tin ha pouco m ais de
quaren ta an os, resolveu deixar sua posição de líder cristão respeitado e
in iciar a vida de peregrin o, seguin do o m odelo de Abraão e levan do doze
irm ãos con sigo.

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
167

Ao chegarem à Fran ça, n um a zon a m arcada pela corrupção, decadên cia


m oral e um a form a diluída e sin cretista de cristian ism o, en sin aram a Pala-
vra de D eus, ajudaram os oprim idos e estabeleceram vários m osteiros, que
atraíam m ilhares de pessoas. 34
A espiritualidade daqueles monges caracterizava-se por sua vida em Cris-
to, que era robusta, ascética, reflexiva e con tem plativa. Possuíam um gran -
de am or pela vida e pelo m un do criado. Valorizavam o apren dizado, o
desenvolvim ento mental, a arte, a m úsica e os livros. Cultivavam a solitude,
a m editação e a oração.35
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M uito m ais recen tem en te, tem os a com un idade dos m oravian os com o
m odelo de vida m ission ária e de espiritualidade. O com prom isso desse gru-
po com m issões m un diais com eçou em 1732. N os 150 an os seguin tes, o
m ovim en to en viou 2158 m ission ários com um a form a especial de espiri-
tualidade e de vida em com un idade.
As raízes desse m ovim en to estão n o pietismo, que surgiu no fim do sécu-
lo XVII n a Igreja Luteran a, n a Alem an ha. A teologia reform ada torn ara-se
form al e árida, e o pietism o focou sua aten ção n o relacion am en to pessoal
com Jesus. A piedade e o tem or de D eus substituíram o in telectualism o. A
fé era m ais questão do coração que da m en te, e estim ulou um n ovo in teres-
se em m issões.
O s pietistas en fatizavam que os cristãos deveriam ser en viados sob a
direção direta de Cristo e do Espírito. N ão se tratava, portan to, de hierar-
quia eclesiástica. Q ualquer cristão (n ão só os líderes oficiais) poderia ser
cham ado e en viado.
O s m oravian os desen volveram um a devoção profun da ao Cristo crucifi-
cado e um a en trega in con dicion al a fazer sua von tade. A m aioria era agri-
cultores e artesãos sim ples. En ten diam que o trein am en to desen volvia-se
através da própria vida em com unidad e. Valorizavam a cap acid ad e p rofis-
sion al que os ajudasse a prover o auto-susten to, com o, por exem plo, o cul-
tivo de subsistên cia.
Eles escolhiam especialm en te as regiões m ais difíceis, rem otas e perigo-
sas: Groen lân dia, en t re escravos n o C aribe, en t re os ín d ios d os Est ad os

A Espiritualidade e a missão
168 UNIDADE III

U n id os, n a África d o Su l, n a Argélia, n a C h in a, em Sri Lan ka, n a Pérsia


(at ual Irã), n a Et iópia e em Labrador. Com o a Igreja surgira en t re pessoas
p ersegu id as, qu e p erd eram tudo, desen volveram u m am or esp ecial p elos
m argin alizad os. C ad a com u n id ade m ission ária m oravian a vivia com o fa-
m ília, com partilhan do os ben s. D avam m u it a ên fase à p regação d a d ou -
t rin a d os sofrim en t os d e Jesu s. 3 6 Por m ais d e u m sécu lo, os m oravian os
m an tiveram um a vigília con stan te de oração, 24 horas por dia, pela obra
m issionária.

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N o Brasil, havia focos de prática m ission ária, com o a Jun ta de M issões
M un diais e a M issão Kaiwá. O Con gresso M ission ário da Alian ça Bíblica
U n iversitária acon teceu em 1976, reun in do m ais de 500 estudan tes. N ele
surgiram vários cham ados, prin cipalm en te com o “fazedores de ten das” em
m issões n acion ais e in tern acion ais. M as foi prin cipalm en te depois do Con -
gresso Com ibam que houve um gran de im pulso e crescim en to n o com pro-
m isso m ission ário da Igreja brasileira.
A m issão brasileira Antioquia foi fundada nos anos 1970, e se constituiu
em exem plo de espiritualidade m ission ária. Surgiu a partir de um in stituto
bíblico em Cian orte, m arcado pela oração e pela devoção, pelo espírito co-
m un itário e pela abertura para m ilagres realizados pelo Espírito San to. A
partir de um a visita de Leslie Brierly e Robert H arvey, da M issão Am ém , a
visão m ission ária com eçou a ser am pliada. M as foi duran te um a aula de
m issões que os alun os ficaram con ven cidos pelo Espírito San to e com eça-
ram a orar, chorar e clam ar a D eus que os perdoasse pela falta de com pro-
m isso m ission ário, o que durou toda a m an hã.
Em 1974, um ex-alun o foi en viado para M oçam bique, on de foi preso
duran te a revolução pela in depen dên cia. Surgiu, en tão, um gran de m ovi-
m en to de oração pelo m ission ário e pelo povo de M oçam bique, e foi a
partir daquela experiên cia que n asceu a m issão, que m an tém um cen tro de
oração in in terrupta, in spirada pelo m odelo m oravian o. 37
A M issão An tioquia n ão é a ún ica qu e d ed ica t al ên fase à esp irit u ali-
d ade, m as se torn ou m arco e m od elo p ara o m ovim en t o m ission ário bra-
sileiro.

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
169

ESPIRITUALIDADE E AÇÃO

Se querem os chegar aos povos ain da n ão alcan çados, cum prin do a ordem e
o propósito de n osso Sen hor, precisam os desen volver um a vida de in tim i-
dade com D eus, n ão um a espiritualidade que se esquece do m un do. A espi-
ritualidade m ission ária n os leva a am ar o m un do com o D eus o am ou, a
an dar n as pisadas de n osso M estre e a n os dedicar sem reservas à obra de
proclam ação das Boas N ovas.
Se, por um lado, n ão devem os buscar espiritualidade sem ação, por ou-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tro devem os fugir da ação sem espiritualidade, que segue os m odelos e os


m étodos de sucesso do m un do. Assim , n ossas atividades podem im pressio-
n ar as igrejas e os povos, m as n ão causarão tran sform ações profun das e
duradouras.
Sigam os n as pisadas do M estre. Felizm en te, ele está con osco, disposto a
n os guiar com im en sa paciên cia, am or e com preen são, e n os ajudará a con -
tin uar seus cam in hos, n os esten den do a m ão, n os susten tan do e n os dan do
sua graça.

Notas
1
S TO TT , 1997, p. 399.
2
LAN E, W illiam L. “The Gospel according to M ark” (“O Evan gelho segun do M arcos”), in
T he new international commentary on the N ew Testament [N ovo comentário internacional do N ovo
Testamento]. Gran d Rapids: W illiam B. Eerdm an s, 1975, p. 572,3.
3
M O LTM AN N , 1973, p. 1,2.
4
Id., p. 46.
5
Ibid., p. 46-9, 54-63.
6
S TO TT , 1986, p. 60,1,88.
7
Id., p. 156-160.
8
Ibid., p. 204-6.
9
M ORRIS, Leon. “The Gospel according to St. John” (“O Evangelho segundo São João”), in
T he new international commentary on the N ew Testament [N ovo comentário internacional do N ovo
Testamento]. Gran d Rapids: W illiam B. Eerdm an s, 1977, p. 452.
10
S TO TT , JOH N . Contracultura cristã. Série “A Bíblia fala hoje”. São Paulo: ABU , 1981, p. 28.
11
FRITZ. “O Evangelho de M at eu s”, in Comentário Esperança. C u rit iba: Esp eran ça, 1 9 9 4 ,
p. 77.
12
S TOTT , 1981, p. 30; C ARSON , D .A. T he S ermon of the M ount [O S ermão do M onte]. Carlisle:
Paternoster Press, 1994, p. 21.

A Espiritualidade e a missão
170 UNIDADE III

13
S TO TT , 1981, p. 32,3.
14
C ARSO N , 1994, p. 25.
15
Id., p. 27.
16
S TO TT , op. cit., p. 41; C ARSO N , op. cit., p. 28.
17
Idem.
18
C ARSO N , op. cit., p. 32-3; S TO TT , op. cit., p. 43.
19
YO D ER , 1975, p. 45,126-8.
20
BO N H O EFFER, 1967, p. 96-103; T ON , 2000, p. 85-9.
21
M ORRIS , 1977, p. 678-9; M ILN E, Bruce. T he message of John [A mensagem de João]. Leicester:
InterVarsity, 1993, p. 225,8.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
22
T ON , 2000, p. 45.
23
YO D ER , 1975, p. 41,116-121.
24
T ON , 2000, p. 70-1.
25
Id., p. 75-81; BO N H O EFFER , 1967, p. 237-9.
26
Ibid., p. 102.
27
S TO TT , 1986, p. 315-17.
28
Id., p. 320-3,335.
29
Ibid., p. 275-284.
30
Ibid., p. 285-293.
31
T ON , 2000, p. 325-8.
32
Id., p. 328-331.
33
BARBO SA, Ricardo. O caminho do coração: Ensaios sobre a Trindade e a espiritualidade cristã.
Curitiba: En con tro, 1996, p. 97-100,116.
34
W ARN ER , C LIFTON S. “Celtic community, spirituality, and mission. (“Comunidade, espiri-
tualidade e missão dos celtas”), in T AYLOR, W.D . Op. Cit., p. 491-2.
35
W ARN ER , 2000, p. 493.
36
T IPLADY, RICH ARD . “M oravian community, spirituality and mission” (“Comunidade, espiri-
tualidade e missão dos morávios”), in T AYLOR , W.D , Op. Cit., p. 503-5.
37
BURN S, Barbara. “Antioch community, spirituality and mission” (Comunidade, espiritua-
lidade e m issão n a An tioquia”), in T AYLOR , W.D . (ed.) Global M issiology for the 21st century
(M issiologia global para o século XXI ). Gran d Rapids: Baker Academ ic, 2000, p. 516,7.

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
171

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO INTEGRAL


AFINAL, QUEM É O "ESPIRITUAL"?
AFINAL, QUEM É O “ESPIRITUAL”?

�Antonio Carlos Barro


Pastor da 8ª Igreja
Presbiteriana de
Lonrina. Fundador e
professor da
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Faculdade Teológica Q
uando penso nos dois temas interligados nes­
te capítulo - espiritualidade e missão integral -
Sul-Americana

começo pelo grande desafio de encontrar uma boa


naquela cidade. Fez
mestrado e doutorado
no Fuller Thological definição para eles. Ambos acompanham as refle­
Seminar, nos stados xões evangélicas nos últimos anos, orientando con­
Unidos. Atualmente gressos, palestras e seminários realizados no Brasil
e na América Latina. Seria, portanto, interessante
está envolvido com o

pensar num primeiro momento numa forma de


Programa de

explicá-los. Ainda que outros ensaios deste livro


Doutorado para a

possam conter definições, creio que mais uma ten­


América Latina
(POo) e é membro
do Comitê xecutivo tativa pode enriquecer a apresentação de outras
do Congresso de facetas do tema.
Lausanne. É O que é espiritualidade? Verônica Moraes Ferreira
diz que, "no meio evangélico, concebemos espiritua­
espcialista em

lidade como algo exterior, e não como uma mudança


Teoloia de Missão.

no mundo interior da pessoa" . 1 Esta afirmação me


parece correta, pois a espiritualidade tem sido tradi­
cionalmente asociada às mudanças extenas ou, mais
apropriadamente, à aparência ou à estética.
Uma pessoa é avaliada e considerada "espiritual"
ou não pelas demonstrações externas. Se alguém,
em uma reunião de oração, responde com "amém"
ou "glória a Deus". esta pessoa tem mais chance de

275
A Espiritualidade e a Missão Integral
172 UNIDADE III

ser cham ada “espiritual” do que outra que fique calada. U m a igreja com
louvor con tem porân eo, com m úsicas da cham ada “adoração profética”, é
possivelm en te um a igreja esp irit u al em relação a ou t ra em qu e a lit u rgia
é m ais con servadora.
Essa visão popular da espiritualidade além de n ão ajudar só aum en ta a
distân cia en tre as m uitas den om in ações ou grupos evan gélicos. N este sen -
tido, a espiritualidade carece de referências concretas ou mais refinadas para
ser defin ida.
Existe ain da outro aspecto que torn a a com preen são deste tem a m ais

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
difícil. N o m ovim ento evangélico, espiritualidade quase sem pre é associada
a term os e expressões com o “m editação”, “devocion al”, “hora silen ciosa”,
“a sós com D eus” e assim por dian te. Este tipo de term in ologia dá a en ten -
der que a espiritualidade é meramente uma disciplina interior, e que tem rela-
ção apenas com a comunhão pessoal entre o cristão e D eus. Esses parâm etros
tam bém são usados para determ in ar que grau de cristian ism o um a pessoa
já alcan çou (normalmente — e equivocadamente —, quem tem o hábito da
devocional diária é visto com o cristão de primeira linha, enquanto outros não
tão regulares n a leitura da Bíblia são percebidos com o de segunda categoria).
D e um a form a ou de outra, n ão há dúvidas a respeito do fato de que a
espiritualidade está gan han do força n ão som en te n o un iverso evan gélico,
m as tam bém en tre outras religiões, assim com o n o m un do dos n egócios.
Ela já faz parte de palestras que têm com o objetivo prom over m otivação
en tre fun cion ários de em presas e gran des com pan hias. Este in teresse n ão
tem com o alvo o retorn o a qualquer aspecto religioso, m as apen as a produ-
ção de um desejo in terior de satisfação com o objetivo explícito de um
aum en to n a produção ou de algum a m elhoria n os serviços prestados pelos
fun cion ários. Veja com o se expressam Boog, M arin e Wagn er sobre este
assun to:

O tem a da espiritualidade n o trabalho vem crescen do de form a in ten sa


n os últim os an os n o m un do em presarial. Algo que an tigam en te era visto
com o assun to desligado do un iverso organ izacion al, com o algo religioso
ou até m ístico, hoje se in sere como uma dimensão estratégica, na medida
em que dá sign ificado à m issão da em presa e ao t rabalh o das pessoas.

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
173

Q uan do elas têm esta con sciên cia, a con seqüên cia é que fluem com m ui-
to m aior facilidade os fatores m ais buscados pelos executivos das organ i-
zações: a m otivação, o desem pen ho, o espírito de equipe, a com un icação
eficaz, a qualidade, o foco n o clien te, o “estar de bem com a vida”.2

N ota-se, portan to, que a espiritualidade foi descoberta pelo mundo materia-
lista — o que em certo sen tido con stitui um con tra-sen so, m as ao m esm o
tem po um a retom ada in teressan te, pois sign ifica a ten tativa de aliar o espi-
ritual com o m aterial.
Em outro artigo sobre o m esm o tem a, “Espiritualidade e trabalho”,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Lucian a Seabra in dica que “a espiritualidade pode ser um a form a de au-


m en tar a m otivação dos fun cion ários de um a em presa”, e cita a palestra
realizada n o auditório da U n iversidade de Brasília pela psicóloga clín ica e
organ izacion al Lúcia Guim arães M on teiro, especialista em Psicologia do
Trabalho pela Fun dação Getúlio Vargas ( FGV ), que afirm a: “Espiritualidade
é o cam in ho que n os ajuda a desen volver a con sciên cia de estar n este m un -
do de form a respon sável”.3
A con clusão da autora da palestra é que a espiritualidade n ão está ligada
à religião, assim com o n ão está desvin culada da realidade.
Parece que a citação que n orteia esta busca pela espiritualidade n o tra-
balho é a frase do teólogo e filósofo Teillard de Chardin : “N ão som os seres
hum an os viven do experiên cias espirituais. An tes, som os seres espirituais
viven do experiên cias hum an as.”
U m autor que aprecio é o espiritualista católico Segun do Galilea. Para
ele, a espiritualidade possui três aspectos fortem en te in terligados: relacio-
n a-se com a fé, ou m elhor, com a experiên cia da fé; com Jesus Cristo e com
a fidelidade ao Evan gelho de Jesus Cristo em determ in ada situação históri-
ca. 4 Esses três aspectos são fun dam en tais para a realização da m issão in te-
gral da Igreja.

O QUE É MISSÃO INTEGRAL?

D efin ir m issão in t egral n o m ovim en t o evan gélico brasileiro t am bém n ão


é t arefa fácil. N ot e qu e a p alavra u sad a aqu i é “m issão”, n o sin gu lar.
N orm alm en te se faz algum a con fusão en tre “m issão” e “m issões”, com o

A Espiritualidade e a Missão Integral


174 UNIDADE III

uso in devido de um ou outro. Trata-se de coisas diferen tes, com sign ifica-
dos bem específicos.
N o fim dos anos 1960, uma importante revista missionária, a International
R eview of M issions, tirou o “s” de seu n om e. O resultado foi um a gran de
reform ulação n o sign ificado da palavra. “M issão” está relacion ada com o
propósito geral de D eus n a criação do m un do e n a form ação de um povo
para si m esm o. Este povo tem com o alvo glorificar a D eus e torn ar visíveis
seu n om e e sua glória em toda a Terra. A m issão, portan to, é a missio D ei, ou
seja, a m issão de D eus. O prin cípio e o fim da m issão são o próprio D eus.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Por “m issões” en ten de-se a atividade que a Igreja ou o povo de D eus
realiza den tro do escopo da missio D ei. Para ilustrar, pen sem os em situações
con cretas: a im pressão da Bíblia, o trein am en to de m ission ários, o susten to
de m ission ários, o en vio de n ovos evan gelistas, tudo isso faz parte de m is-
sões. A m issão é con ceitual, en quan to m issões pressupõe ação. Q uem n ão
tem um bom con ceito ou en ten dim en to do que é a m issão da Igreja prom o-
verá m issões de m odo desorden ado.
In felizm en te, parte con siderável da Igreja brasileira ain da n ão con segue
fazer a distin ção correta en tre os dois term os. O term o “m issão” deve ser
m elhor trabalhado, em term os teológicos e bíblicos, para que as ações
m ission árias alcan cem êxito e con tin uem fazen do parte do con scien te cole-
tivo das com un idades evan gélicas.
Creio que a deficiên cia n esta com preen são tem atrapalhado — e até
m esm o dim in uído — o fervor m ission ário das igrejas locais. Im pression a
n egativam en te o fato de que qualquer con ferên cia para refletir sobre a m is-
são da Igreja recebe poucas adesões por ser in adequadam en te associada ao
tem a “m issões”. O m esm o acon tece com livros evan gélicos. Q ualquer títu-
lo que con ten ha a palavra “m issão” corre o risco de ser con fun dido, e talvez
ign orado. A m issão é a gên ese de todas as coisas — in clusive, é con siderada
a “m ãe” da teologia, con form e recorda M artin Kähler.5
Cabe m en cion ar que os m issiólogos do Brasil e da Am érica Latin a pre-
feriram usar a palavra “in tegral”, em vez de “holística”, m ais utilizada n os
países de lín gua in glesa. N o en tan to, am bas traduzem a característica da
m issão da Igreja. U m apan hado histórico perm ite com preen der o processo

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
175

que levou a adotar a expressão “m issão in tegral” (ou “m issão holística”).


Com este dado, é m ais fácil en ten der o que sign ifica, em term os con cretos,
espiritualidade da e na m issão in tegral.

COMO A MISSÃO INTEGRAL FOI ESTABELECIDA


É difícil explicitar com seguran ça com o e quan do a expressão “m issão in te-
gral” foi cun hada. Certam en te n ão n asceu n a Am érica Latin a, m as com o
variação de outra já m en cion ada: a missio D ei, usada pela prim eira vez por
Karl H arten stein em 1934, e que depois veio a ser utilizada n a Con ferên cia
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

M issionária de W illingen, em 1952. A expressão foi popularizada por Georg


Vicedom n o livro M issão como obra de D eus,6 publicado origin alm en te em
1965, e sign ifica que a m issão é, prim ariam en te, obra de D eus. Ela con tém
a idéia de que a tarefa da Igreja n ão deve ser resum ida apen as a seu papel
evan gelístico n o m un do, m as deve tam bém in cluir a participação direta n a
tran sform ação da sociedade.
A missio D ei surgiu n o m esm o con texto da teologia política, delin eada
pelos teólogos germ ân icos Karl Rahn er e Joham m B. M etz, e que in fluen -
ciou, n a Am érica Latin a, o surgim en to da teologia da libertação. Segun do
M etz, a teologia política pode ser vista a partir de dois aspectos. Prim eira-
m en te, ela corrige a ten dên cia de con fin ar a teologia à aren a privada, que
reduz o coração da m en sagem cristã e o exercício prático da fé a um a deci-
são m eram en te in dividual, afastada do m un do — um a reação ao ato de a
religião da sociedade.
Em segun do lugar, é o esforço para form ular um a m en sagem escatológi-
ca do cristianism o no contexto da sociedade de hoje, levando em considera-
ção as m udan ças n as estruturas n a vida pública. Em outras palavras, é um
esforço para ven cer a passividade herm en êutica do cristian ism o n o m un do
de hoje.7
Em face desses desdobram en tos e cam in hos que a teologia trilhava n a
Europa, in fluen cian do a m issão, os evan gélicos reagiram im ediatam en te.
O s m ais con servadores acreditavam ser este n ovo rum o um plan o orques-
trado para tirar o evan gelism o do papel prim ário en tre todas as tarefas da
Igreja. O setor progressista da Igreja Evan gélica, con hecido com o “evan ge-

A Espiritualidade e a Missão Integral


176 UNIDADE III

lical”, procurou responder de m aneira mais positiva às mudanças teológicas


que ocorriam n ão som en te n a Europa, m as tam bém n os Estados U n idos.
A certa altura, a m issão da Igreja en trou n um período de crise de iden ti-
dade. Já n ão se sabia o que era m issão, se in cluía o fator social ou se con ti-
n uava priorizan do a evan gelização. N o Con gresso de W heaton , realizado
em 1966 n os Estados U n idos, os evan gelicais dem on straram preocupação
com a justiça social e a tran sform ação da sociedade. Todavia, a ên fase n o
evan gelism o com o tarefa prioritária da Igreja foi m an tida.
O con gresso n ão aceitou os postulados de m issão oriun dos do m ovi-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
m en to ecum ên ico, m an ifestan do sua preocupação com o liberalism o teoló-
gico. Era m uito difícil exigir que os evan gelicais pudessem aceitar a ação
social ou a prática da justiça n o m esm o patam ar da evan gelização.8 O utros
con gressos se seguiram para tratar desses tem as, en tre os quais o Con gres-
so M un dial de Berlim , em 1966. Em todos eles, o evan gelism o recebeu
prioridade sobre todas as dem ais ações da Igreja.
A prim eira vez em que se procurou olhar o tem a da m issão in tegral com
m ais cuidado, in fluen cian do toda um a geração de pastores e líderes, in clu-
sive n o Brasil, foi n o Con gresso de Lausan n e, realizado n a Suíça, em 1974.
Sob a forte lideran ça do con hecido teólogo John Stott, ten tou-se dar desta-
que à justiça social com o parte in tegran te da m issão, ao lado do evan gelis-
m o. M esm o assim , quan do se lê o fam oso Pacto de Lausan n e,9 percebe-se
que o evan gelism o ain da ocupou lugar de destaque em relação à obra social
da Igreja. Apesar disso, Lausan n e é con siderado um m arco por ter forn eci-
do m ais abertura aos que buscavam espaço para a ação social.
D epois dele, algun s posicion am en tos foram se firm an do. O grupo que
sem pre advogou o evan gelism o com o tarefa prioritária da Igreja con tin uou
firm e, bem com o o grupo que n ão via prioridade n a m issão, seja quan to ao
evan gelism o seja quan to à justiça social. D esde W heaton , outro grupo pro-
curava in tegrar um a abordagem holística à m issão. Em bora afirm asse a im -
portân cia do evan gelism o e da justiça social o prim eiro com o prioridade.
N a Am érica Latin a, tem os represen tan tes dos três grupos m en cion ados.
O m ais represen tativo ain da é aquele que advoga que a evan gelização tem
prioridade n a m issão da Igreja. Esse grupo n ão descarta a ação social n as

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
177

atividades da Igreja, m as m uitas vezes a usa com o porta de en trada para a


evangelização.
N o Brasil, os con ceitos e as práticas ain da n ão estão bem defin idos.
M uitas vezes a m issão in tegral é usada m ais com o ban deira de marketing
que realm en te um a filosofia de m in istério que provê diretrizes para a cam i-
n hada da Igreja. O m aterial produzido pelo fam oso Con gresso Brasileiro
de Evan gelização (1983) eviden cia qu e a m issão in t egral p erm an eceu su-
bordin ada ao evan gelism o. Isto se depreen de do próprio objetivo do con -
gresso: “Reafirm ar a evan gelização com o t arefa priorit ária d a Igreja,
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d esafian do o povo de D eus a realizá-la de form a autên tica e urgen te, em


âm bito n acion al e m un dial.”10
As palestras seguiram esse direcion am en to, e de vez em quan do alguém
lem brava da m issão in tegral. Aparen tem en te, foi a partir do CBE que se
cunhou a expressão “evangelização integral”, que não fazia nem faz sentido
— a evan gelização n ão precisa ser in tegral; a m issão, sim .
D e form a mais objetiva, Br yant M yers, pensando no ministério integral,
o defin iu com o aquele em que “a com paixão, a tran sform ação social e a
proclam ação estão in separavelm en te relacion adas”. 11 Con cordo ain da com
Tetsunao Yam am ori quando faz, de m aneira clara, a diferença entre evange-
lização e ação social: “U m m in istério in tegral verdadeiro defin e a evan geli-
zação e a ação social com o funcionalm ente separadas, m as relacionalm ente
in separáveis e n ecessárias para um m in istério in tegral da Igreja”. 12

ASPECTOS DA ESPIRITUALIDADE DA MISSÃO INTEGRAL


Q uais são eles e em que in fluen ciam a cam in hada m ission ária da Igreja?
Creio que o texto n orteador desta questão está registrado em João 20:21:
“D isse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz seja con vosco! Assim com o o Pai m e
en viou, tam bém eu vos en vio a vós” ( ARC ).
Precisam os prestar m ais aten ção ao advérbio “assim ”. D o grego kathos,
significa “da mesma maneira”, “na mesma proporção” ou “no mesmo grau”.
Vemos aqui o elemento da missio D ei fortemente exposto. A missão de Cristo
com eçou n o céu (Fp 2:5-11) e desem bocou n a Terra (Jo 1). Em outras
palavras, ela n ão se tratou de m issão desautorizada, n em descontextualizada.

A Espiritualidade e a Missão Integral


178 UNIDADE III

Q uan do lem os o texto clássico da Gran de Com issão (M t 28:18-20),


en con tram os esses dois elem en tos presen tes. Jesus afirm a que possui toda
a autoridade (exousia). Esse term o já foi bastan te estudado, e apresen ta
sign ificado am plo. A pessoa com exousia tem poder de escolha, pode fazer o
que lhe agrada. Este poder é tan to físico quan to m en tal — usufruir poder
para decidir ou govern ar. Isto sign ifica que todos os com an dados precisam
se subm eter e obedecer a essa pessoa.
Esse poder é tam bém un iversal, isto é, está sobre toda a hum an idade,
sim bolizan do a realeza de quem o detém . Portan to, Cristo, ao m orrer e

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ressuscitar, con quistou o direito de ter todo o poder para orden ar e dirigir
sua Igreja. Assim com o o Pai lhe deu autoridade para vir ao m un do, ele
con cede autoridade à Igreja para estar n o m un do em m issão.
O segun do aspecto da m issão de Cristo é o local dela. Jesus disse que o
Pai o en viou. N o Evan gelho de João, apren dem os que D eus o en viou ao
m un do, ou seja, um lugar con creto. N a Gran de Com issão, é Cristo quem
en via sua Igreja ao m un do para fazer n ovos seguidores do Rein o. O m un do
é a aren a on de a m issão se desen volve, tom a form a. O m un do, com todas
as coisas boas e ruin s, é o palco on de a batalha pela vida do ser hum an o é
travada. Assim , quan do se aproxim ava o retorn o ao Pai, Cristo com ission a
sua Igreja a represen tá-lo n o m un do.
Pen san do n a m issão da Igreja e n a m issão de Cristo, chegam os a duas
con clusões: é a m esm a m issão, e portan to n ão pode diferen ciar-se da reali-
zada por Cristo. Ele é o m odelo para agirm os, o referen cial absoluto de
prática para tudo o que som os e fazem os.

ASPECTOS DA ESPIRITUALIDADE DE CRISTO

O pon to de partida da m issão de Cristo é sua com pleta obediên cia aos
propósitos de D eus. Por várias vezes ele declara que veio ao m un do para
fazer a von tade do Pai (M t 6:10; Lc 22:42; Jo 4:34; 5:30; 6:38-40). Este é o
elem en to basilar em qualquer cadeia de autoridade. O que en via tem o
poder de determ in ar, e o en viado tem o dever de obedecer.
A verdadeira espiritualidade com eça com a obediên cia, e isto Cristo de-
m on strou em todos os aspectos de sua m issão. A m issão da Igreja Cristã

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
179

n ão pode ter outro pon to de partida que n ão seja o desejo de obedecer a


Cristo, fazen do a von tade de D eus.
O utro elem en to da espiritualidade de Cristo é que ela é pn eum atológi-
ca. O profeta havia an un ciado (Is 61:1-3) que o M essias seria un gido pelo
Espírito San to. Este foi o en ten dim en to de Cristo ao dar in ício a seu m in is-
tério. Ao ler o texto de Isaías n a sin agoga, ele afirm a que n aquele dia aquela
Escritura havia se cum prido. O texto afirm a expressam en te: “O Espírito do
Sen hor é sobre m im ” (Lc 4:18; ARC ).
D uran te todo seu m in istério, Jesus esteve sob a orien tação do Espírito
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San to, e n o fim ele in dica que o Espírito San to perm an ecerá ao lado da
Igreja, orien tan do-a e fortalecen do-a n o desen volvim en to de sua atividade
m issionária.
O utro aspecto da espiritualidade de Cristo é solidariedade. Ten do en -
carn ado n o m un do, Cristo olha para ele com am or, e é solidário à dor de
seus habitan tes. Seu m in istério era sen sível às n ecessidades das pessoas,
prin cipalm en te daquelas que m ais sofriam , com o as viúvas, os pobres, os
m argin alizados por causa de algum a en ferm idade ou os in justiçados n as
m ãos dos religiosos da época. Por on de passava, as pessoas afluíam em
busca de algum tipo de con solo, e o in teressan te é que Jesus jam ais se
can sou delas. As pessoas n un ca o in com odavam , pois ele as via com o gen te
sem direção, sem um pastor. Sua solidariedade era con stan te e im pressio-
n ava pela bon dade dem on strada.
U m quarto aspecto dessa espiritualidade é o din am ism o. Cristo a desen -
volve n o cam in ho. Ele percorria as aldeias, as cidades, en trava n a casa das
pessoas, ia para o cam po, subia as m on tan has, falava com as autoridades e
relacionava-se com pescadores. Em cada encontro, Cristo revelava seu amor
pelas pessoas e lhes proclam ava a m en sagem de libertação. D iferen tem en te
dos líderes religiosos de seu tem po, que percorriam as casas dos pobres e
das viúvas para espoliá-los, Jesus falava com autoridade, pois seu discurso
con dizia com suas ações.
Fin alm en te, n ão p od em os d eixar d e m en cion ar qu e a esp irit u alid ad e
d e Cristo foi totalm en te sacrificial. D esde o in ício de seu m in istério, João
Batista já o an un ciava com o o C ord eiro d e D eu s. Est a lin gu agem foi

A Espiritualidade e a Missão Integral


180 UNIDADE III

em prestada do An tigo Testam en to e, quan do Cristo ouviu aquele an ún cio


de João, sabia que se tratava de sua m orte. Ele se hum ilhou e foi hum ilhado
até a m orte. D eu a vida volun tariam en te em favor daqueles que seriam
resgatados para o Pai.
Tudo isso parece suficien te para m ostrar-n os que a espiritualidade de
Cristo deve ser m odelo para n ós. A Igreja precisa resgatar esses aspectos
em sua m issão in tegral, e para isso é im portan te sem pre recordar com o
Cristo realizou sua m issão. A ten dên cia da Igreja parece ser a de adequar-se
aos ditam es da era em que se en con tra, e raram en te en con tra forças para

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ser o povo con tracultural de D eus n a Terra. Sua agen da tem forte carga
pragm ática com vistas ou ao crescim en to n um érico ou à prosperidade m a-
terial dos m em bros da com un idade.
O Cristo revelado n as Escrituras precisa estar n a m em ória da Igreja para
que ela n ão in corra n o grave erro de pregar um Jesus desfigurado ou am ol-
dado aos ideais do tem po presen te.

A MENSAGEM DE CRISTO É O FUNDAMENTO DA NOSSA


ESPIRITUALIDADE
Vim os que Cristo veio do alto e habitou n a Terra, n o m eio da hum an idade.
Sua vinda não se deu apenas para morrer na cruz do Calvário, mas também,
e prin cipalm en te, para proclam ar a m en sagem do Rein o de D eus. Cristo
m orreria, ressuscitaria e voltaria ao Pai, m as os que ficassem para dar con -
tinuidade a seu ministério precisariam de um plano de ação. Teriam de trans-
m itir um a m en sagem totalm en te con trária às m en sagen s que os povos
costum avam ouvir. Se assim n ão fosse, n ão haveria sen tido em sua vin da,
posto que seu Rein o n ão é deste m un do — m as in vadirá esse m un do para
transformá-lo.
A m en sagem de Cristo con tin ha diretrizes para que o ser hum an o recu-
perasse o sen tido da vida, a razão de ser de sua criação. Creio que o texto
áureo da espiritualidade cristã está n o serm ão do M on te. Foi ali que Jesus
deixou explícitos os prin cípios, a ética e os valores do Rein o de D eus. Pode-
m os delin ear algun s fun dam en tos que n orteiam n ossa m issão in tegral n es-
sa jorn ada rum o à con sum ação dos tem pos.

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
181

A e s piritualidade de ve trans ce nde r as


circuns tâncias de s s e m undo
N o in ício do serm ão do M on te, Cristo n os recorda que as circun stân cias
deste m un do, por m ais avassaladoras que possam ser ou parecer, n ão se
esgotam em si. Podem n os hum ilhar, n os levar a chorar por fom e ou por
falta de justiça, fazer-n os in com preen didos por con ta de n ossa m an eira de
viver, levar-n os ao sofrim en to e até m esm o a padecer perseguições por cau-
sa do ideal cristão ou do próprio Cristo. N o en tan to, n ada disso tira n ossa
alegria de perten cer ao Rein o de D eus. O Rein o é um a realidade etern a,
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en quan to as circun stân cias deste m un do são tran sitórias e fin itas. A espiri-
tualidade da missão integral não é alienada e nem alienante. Enquanto olha
para este m un do, prega um a m en sagem n ão apen as hum an ista, m as que
tran scen de este un iverso e apon ta para um a realidade m aior: o Rein o de
D eus.

A e s piritualidade de ve m o dificar as
circuns tâncias de s te m undo
O desen volvim en to da m issão in tegral da Igreja n ão lim ita-se às paredes do
tem plo. Ali, n a atm osfera segura que a com un hão dos san tos proporcion a,
apren dem os de D eus; porém , a m issão se realiza n o m eio do caos em que o
m un do está in stalado. O s seguidores de Cristo precisam estar n o m un do,
assim com o ele esteve. É n ecessário en cher-se de coragem e ousadia e m o-
dificar o am bien te, acen den do a luz que ilum in a as trevas e trazen do sabor
para os lugares on de o pecado tem apodrecido tan tas vidas. O Pai se agrada
quan do os discípulos de Jesus fazem o que ele fez, ou seja, an dam pelo
m un do prom oven do glória de D eus. A espiritualidade da m issão in tegral é
in ten sa, e n ão se acovarda fren te aos desafios. A luz ilum in a o m un do, e o
sal salga a m assa. O m en or tem m ais força que o m aior. É um a espirituali-
dade que se m an ifesta n os cam in hos do m un do e n ão se escon de sob o
velador.

A e s piritualidade de ve valo riz ar a vida do pró xim o


O m aterialism o tran sform ou a vida hum an a em objeto. N o Rein o de D eus,
o ser hum an o con tin ua sen do a im agem e a sem elhan ça do Criador. N ão se

A Espiritualidade e a Missão Integral


182 UNIDADE III

pode pen sar n a vida m en os que isso. H oje o m un do perdeu a con cepção da
santidade da vida. O ser hum ano não vale muito, e aqueles que não possuem
o status que o m un do oferece são os que m ais sofrem as in justiças. A vida é
decepada, os lares são destruídos e quase n ão se tem m ais espaço para a
prática do am or. A m issão in tegral resgata as pessoas de suas futilidades e
m aneiras vãs de viver. Proclam a profeticam ente contra todos que procuram
escravizar as pessoas em seus esquem as satân icos e tam bém con tra as es-
truturas que prom ovem m orte e desestruturação. A espiritualidade da m is-
são in tegral proclam a a dign idade do ser hum an o.

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A e s piritualidade de ve alte rar m e u m o do de ag ir e pe ns ar
N este m om en to do Serm ão, Jesus m ostra a im portân cia do equilíbrio espi-
ritual e da sanidade daqueles que estão no cam in ho, realizando a m issão do
Pai. D eve-se saber que esses discípulos precisam realin har seus projetos
com a von tade de D eus através do exercício das práticas espirituais. A ora-
ção e o jejum têm com o objetivo desn udar-n os dian te de D eus e revelar-lhe
os segredos da alm a, restabelecen do as prioridades do m in istério e im pe-
din do que os cuidados deste m un do torn em a m issão tão m ecân ica a pon to
de even tualm en te perder o rum o. A espiritualidade da m issão in tegral é
tam bém vertical. N ão podem os pen sar que a prática das disciplin as que
purificam a alm a seja alienante, e por isso deva ser evitada e substituída por
atividades sem fim . A verticalidade da m issão é tão im portan te quan to a
horizontalidade.

A e s piritualidade de ve m anife s tar de pe ndê ncia


da s o be rania de De us
M esm o a serviço de D eus, é possível esquecer que ele é o doador de todas
as coisas. O s cuidados deste m un do e seus atrativos são tão fortes que
podem levar o povo de D eus ao desân im o e, prin cipalm en te, à falta de fé.
N a observação das coisas m ais sim ples deste m un do, com o um pequen o
p ássaro e u m a flor, D eu s p roclam a qu an t o som os valiosos para ele, que
declarou sem pre estar pron to a cuidar de n ós. A espiritualid ad e qu e n ão
valoriza a soberan ia d e D eu s n a m issão é d est in ad a ao d escréd ito e ao

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
183

ceticism o. M uitos caem pelo cam in ho, sucum bem às dificuldades que n ão
raro o serviço cristão im põe. Afin al, com o o apóstolo Paulo, precisam os
apren der a viver tan to n a escassez com o n a abun dân cia, pois, em todas as
coisas, tudo pode aquele que n os fortalece.

A e s piritualidade de ve z e lar pe la s antidade


do bo m te s te m unho
Existe a possibilidade de realizar a m issão sem dar um bom testem un ho da
graça de D eus. Por isso, Cristo m ais um a vez incita os discípulos a vigiar em
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oração e aten tar para os perigos e as ten tações do cam in ho. N a cam in hada
m ission ária, a Igreja depara com m uitos im itadores de Cristo — gen te que
an un cia a Palavra, m as n ão foi tran sform ada por ela. É tem po de sem ear,
ten do com o base o sólido fun dam en to da Palavra de D eus, pois esta é a
ún ica garan tia de perm an ên cia n os propósitos de Cristo. A espiritualidade
da m issão in tegral prom ove a san tidade dos servos de Cristo, a qual os
diferen cia dos que apen as aparen tam possuir a m en sagem . Estes n ão resis-
tem ao tem po.

A MISSÃO: REVELAR CRISTO AO MUNDO


Ch egam os ao fim deste capítulo com a pergun ta n o ar: o que todas essas
coisas têm a ver com espiritualidade e m issão in tegral? É m om en to de ava-
liar tudo o que foi dito até agora.
A espiritualidade n ão pode ser apen as um con ceito abstrato, n em algo
para ser experim en tado na vida particular ou privada. É certo que a experiên-
cia pessoal, e a com un hão n o secreto do quarto tam bém fazem parte da
verdadeira vida espiritual. En tretan to, os frutos e os ben efícios de um a vida
em com un hão com D eus devem ser m an ifestados.
Q uando Cristo caminhava pelas ruas da Palestina, revelava a todos quem
era dian te do Pai. “A m in ha com ida é fazer a von tade daquele que m e en -
viou e realizar a sua obra” (Jo 4:34; ARC ), disse ele, quan do teve aquele
encontro com a mulher sam aritana. N ele ela encontrou a água que lhe trou-
xe a vida. Assim , n ão existe espiritualidade que n ão desem boque n o m un -
do, prin cipalm en te quan do este m un do está tão caren te de bon dade e paz.

A Espiritualidade e a Missão Integral


184 UNIDADE III

A teologia política e a teologia da libertação ajudaram a estabelecer


m elhor os con ceitos e a firm ar os con teúdos da m issão in tegral. A Igreja
descobriu que ela é parte do m un do, e que sua m issão n ão é esquartejada
em m uitas facetas, com um a ou outra m ais im portan te que as dem ais. É
um a só: revelar Cristo ao m un do com o o M ediador de D eus. Em sua m is-
são, ela tan to proclam a quan to serve; tan to adora quan to en sin a. A m issão
é in t egral p or cau sa d isso: ela é u m t od o, in d ivisível. Assim foi Cristo,
assim som os n ós.
A sociedade de hoje cobra da Igreja um a participação m aior n a solução

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de seus problem as. E ela precisa realizar sua m issão com os recursos de que
dispõe: com criatividade e sim plicidade, ela testifica ao m undo sobre a bon-
dade de D eus e o seu am or por suas criaturas. Aliás, n a história do cristia-
n ism o, a Igreja gan hou m ais credibilidade quan do estava n a periferia, fora
das esferas do poder, pregan do con tra os desm an dos e abusos dos podero-
sos e opressores.
Vim os tam bém que a espiritualidade en con tra n o m in istério de Cristo
os aspectos n ecessários para a m issão. Ele, o perfeito e justo H om em de
D eus, m ostra que é preciso deixar os con ceitos deste m un do e im ergir n o
ser de D eus para n ão se acovardar duran te a peregrin ação terren a. Sua
m en sagem é ousada e tran sform adora. Q uem crê tam bém m uda: seus valo-
res, seus prin cípios e sua ética serão todos determ in ados pelos sin ais do
Rein o de D eus.
A espiritualidade da m issão in tegral é proativa e busca resgatar o ser
hum an o em sua totalidade — e isso até que o Rein o seja chegado, pois
Cristo e o Pai trabalham , e n ós tam bém trabalham os.

Notas
1
F ERREIRA, Verôn ica M oraes. “O que é espirit ualidade”, in www.ejesus.com.br/onAS P/
exibir.asp?arquivo= 3164 (consultado em 29 de junho de 2004).
2
BOOG , Gustavo G.; M ARIN , M aysa C.; e W AGN ER , Valéria Silveira. “Espiritualidade n o
trabalho”, in www.guiarh.com.br/p55.htm (con sultado em 29 de jun ho de 2004). Apen as com o
curiosidade, destaca-se que Boog é consultor e terapeuta organizacional, M arin é consultora e
numeróloga e Wagner é terapeuta floral e produtora de eventos culturais. São autores e coordena-
dores da série “Espiritualidade no trabalho”, da Editora Gente.

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
185

3
S EABRA, Luciana. “Resgatar a fé no trabalho”, in www.unb.br/acs/unbagencia/ag0304-27.htm
(consultado em 29 de junho de 2004), U nB Agência.
4
G ALILEA, Segun do. R enovação e espiritualidade. São Paulo: Paulin as, 1982, p. 13-5.
5
Citado por BO SCH , D avid J. M issão transformadora: M udanças de paradigma na teologia da
missão. São Leopoldo: Sin odal, 2003, p. 34.
6
Sin odal, 1996.
7
M ETZ , Johann Baptist. “Political Theology” (“Teologia Política”), in Encyclopedia of T heology:
T he concise Sacramentum M undi [Enciclopédia de Teologia]. RAH N ER, Karl (org.) N ova York: Crossroad,
1991, p. 1238-43.
8
A versão em in glês da “W heaton D eclaration ” está dispon ível n o Billy Graham Cen ter
Archives, e pode ser consultada no endereço eletrônico www.wheaton.edu/bgc/archives/docs/wd66/
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

b01.html.
9
Ler o Pacto de Lausanne na íntegra em www.ejesus.com.br/onAS P/exibir.asp?arquivo= 4322.
10
S TEUERN AGEL, Valdir (org.) A evangelização do Brasil: U ma tarefa inacabada. São Paulo: ABU ,
1985, p. 12.
11
M YERS , Br yan t. “O n de estão os pobres e os perdidos?”, in Together, edição de outubro-
dezembro de 1988, citado por Tetsunao Yamamori em “Bases bíblicas e estratégicas”, in YAMAMORI,
Tetsunao; P AD ILLA, C. René; e R AKE, Gregório. Servindo com os pobres na América Latina. Curitiba/
Londrina: D escoberta, 1998, p. 13.
12
YAM AM ORI , Tetsunao. Op. cit., p. 14. Sugiro a leitura de todo o capítulo de Yamamori, no
qual ele estabelece também as bases bíblicas para a missão integral.

A Espiritualidade e a Missão Integral


186 UNIDADE III

p ASSADO
A ESPIRITUALIDADE E PRESENTEDADAIGREJA
NA HISTÓRIA
EVANGÉLICA BRASILEIRA
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
PASSADO E PRESENTE DA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
poyce Every-Claytonl
Nasceu na Irlanda do
Norte. Posui ormaão
em Geograia e Tologia

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
pela Universidade de

Tão difícil quanto definir o significado da palavra


ondres. Desde 1973,

"espiritualidade" é encontrar um conceito comum a


trabalha no Brasil com

respeito do que ela representa. Conseqüentemente,


a União Evangélica Sul­
americana. Mora em
Rcife, onde atua como a tarefa de analisar o processo histórico de desenvol­
proessora do Seminário vimento da espiritualidade cristã no âmbito da igreja
Teológico brasileira é bastante árdua.
Enquanto a conceituação secular de espirituali­
Congregacional do

dade está relacionada com a busca vaga do sagrado


Nordeste e do Seminário

pelo ser humano, a conceituação cristã diz respeito


Teolóio Batista do

diretamente à maneira pela qual se vive o "conhecer


Norte do Brasil. Nste,
concluiu mestrado e
doutorado na área de a Deus", uma vida de comunhão com o Deus das
História da Igreja Escrituras do Antigo e do Novo Testamento.
Evangélica no Brasil. Espiritualidade é, portanto, algo de cunho pes­
soal, que cada um experimenta a sua maneira, em
seu cotidiano. Ela se evidencia através de formas re­
ligiosas distintas, como jejum, reunião de oração, ser­
viço cristão e leitura da Bíblia, e se expressa de
maneiras igualmente diversas, de acordo com o gru­
po religioso em questão.
Para evangélicos, em especial, a forma de ex­
pressão dessa espiritualidade está subordinada a
sua essência, em conformidade à imagem de Cristo
(Rm 8:29). Além disso, em cada época e em cada

55
A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
187

lugar on de a igreja tem sido plan tada, cristãos vivem diferen tem en te seu
relacion am en to com D eus.
Segun do o próprio Jesus, o m an dam en to prin cipal con siste em am ar a
D eus, am ar a si m esm o e am ar ao próxim o (M c 12:28-31). A história da
espiritualidade cristã pode ser sin tetizada com o um levan tam en to de vin te
séculos de leitura, in terpretação e vivên cia desse m an dam en to. Fazem os
parte desta história global. N ós a espelham os. N ós a rein ven tam os a n ossa
maneira.
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AS BASES HISTÓRICAS
Algum as características im portan tes da espiritualidade cristã sobressaem
em determ in adas épocas da história, ainda que sejam menos valorizadas em
outras. É difícil detectar as causas precisas dessas m udan ças de ên fase. Cer-
tas tradições e práticas espirituais são afetadas, por exem plo, pelo tem pera-
mento do crente ou pelo contexto histórico em que ele vive. U m a m ulher
n ordestin a, que passa an os en fren tan to as m azelas das con stan tes secas e
as influências de movimentos messiânicos, formará uma espiritualidade bem
diferen te daquela experim en tada por um a catarin en se de origem alem ã.
O s pressupostos teológicos são, acim a de tudo, fun dam en tais para com -
preen der as m udan ças de ên fase ao lon go da história. Em últim a an álise, é
a teologia da salvação que determ in a tudo: a espiritualidade está in tim a-
m en te ligada à percepção de com o se apropriar da salvação, da graça de
D eus, por m eio da fé. O con sen so geral é que n osso legado nacion al, n o
que diz respeito à teologia e à espiritualidade evan gélicas, con siste em he-
ran ça pietista, evan gelical, sobreposta n um a base que rem on ta à Reform a
Protestan te, a Calvin o e Lutero.
Lutero, ten do sido m on ge, tin ha um a form ação m ística que se fez refle-
tir em sua vida devocion al de louvor sin cero a D eus pelos ben efícios da
justificação pela fé, p ela realid ad e d a graça d e D eu s e d a Liberdade do
cristão, con form e o título de um texto de sua autoria (1520). Ele traduziu a
Bíblia para o alem ão, com pôs hin os, casou-se, am ou seus filhos, brigou
com Sat an ás (“Se n os qu isessem d evorar/ D em ôn ios n ão con t ad os”), e
assim por dian te.

A Espiritualidade na História da Igreja Evangélica Brasileira


188 UNIDADE III

Au t ores con t em p orân eos 1 d est acam asp ect os m en os con h ecid os d a
espirit u alid ad e d o p rim eiro gran d e reform ad or qu e, em cart a a seu bar-
beiro, en sin ou-o a buscar n os D ez M an dam en tos, n a O ração D om in ical e
n o Credo dos Apóstolos “algo a apren der, algo pelo que se deve pedir per-
dão, um m otivo de louvor e gratidão a D eus e um a petição em favor de
alguém ”.2
Calvin o — tem peram en to diferen te, país diferen te, form ação diferen te
— com eçou cada edição de sua obra, Institutas da religião cristã, da seguin te
m an eira: “Q uase toda a sabedoria que possuím os, isto é, a sabedoria verda-

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deira e sã, con siste em duas partes: o con hecim en to de D eus e de n ós m es-
m os.” Já em 1537, ele defin ira a piedade com o “um zelo puro e verdadeiro
que am a a D eus plen am en te com o Pai, que o reveren cia verdadeiram en te
com o Sen hor, que abraça sua justiça, e que tem e ofen dê-lo m ais do que
tem e m orrer”. 3
N ão é de adm irar que Calvin o tivesse gran de in teresse n o tem a da san -
tificação com o fruto da justificação pela fé. Suas ên fases sobre a soberan ia
san ta de D eus, a seriedade do pecado e o m ilagre da un ião en tre o próprio
Cristo e o cren te con duziam in evitavelm en te à n ecessidade de um a vida
santa.
O tem po se en carregou de tran sform ar as con ceituações bíblicas e práti-
cas dos prim eiros reform adores em fé fria e estéril, que predom in ou duran -
te os séculos XVII e XVIII . A Bíblia cedeu lugar à racion alidade hum an a; a fé
viva cedeu lugar a um código de com portam en to sem vida, um m ero dever
religioso.
Foi n esse clim a que surgiu, n a Alem an ha, o m ovim en to pietista, um a
reação ao protestan tism o sem o Espírito e sem espiritualidade. Tratava-se
de um movimento focado na experiência religiosa, um tipo de devoção anti-
intelectual, embora seus líderes mais conhecidos — os bem-preparados Jacob
Spen er e August Fran cke — fossem tam bém m uito práticos em sua dedica-
ção à obra de D eus, fun dan do escolas, orfan atos, tipografias e até fazen das
para ajudar pobres. O forte do pietista Zin zen dorf era sua espiritualidade
m ission ária, con form e praticada pelos corajosos m orávios.

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
189

Esses são os elos que ligam esta base da Reform a à palavra “evan geli-
cal”, hoje usada para referir-se ao revigoram en to protestan te que se deu
com o avivamento encabeçado por João Wesley, de cuja conversão, em 1738,
os m orávios participaram .
En tre as con tribuições distin tas que Wesley, evan gelista in can sável, le-
gou à espiritualidade cristã está a in sistên cia n a segun da experiên cia da
graça de D eus, algo ocorrido após a con versão in icial a D eus por m eio da fé
em Cristo. Em sua percepção, tan to a justificação quan to a san tificação
resultam da fé, uma interpretação que marcou diversos movimentos do tipo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

holiness (san tidade) n o fim do século XIX.

Foi duran te aquele século que algo im portan te acon teceu n os Estados
U n idos: um a fusão quase total en tre parte con siderável das prin cipais tra-
dições da espiritualidade (e da teologia), alim en tada pelo zelo evan gelísti-
co e pela expect at iva de um avivam en t o. Est e fen ôm en o exerceu fort e
in fluên cia sobre a espirit ualidade t razida ao Brasil por m ission ários e
viven ciada pelas prim eiras gerações de cren tes.

SÉCULO XIX
Ashbell Green Sim on ton , pion eiro presbiterian o, foi fruto direto de um
avivam en to ocorrido n a sua região dos Estados U n idos, em 1855. Com o
resultado, ele en trou para o Sem in ário de Prin ceton , on de se preparou para
vir ao Brasil.

Às vésperas de ir para o sem in ário para estudar teologia, para m e preca-


ver das ten tações e possíveis derrotas, fiz algun s propósitos: 1) freqüên -
cia con stan te aos exercícios devocion ais do sem in ário e uso de todos os
m eios de graça que edificassem m in ha alm a; 2) vigilân cia con stan te sobre
m eu coração e sobre os pecados que m e rodeavam (o orgulho e a t eim osa
op osição às d ou t rin as d o Evan gelh o qu e m e h u m ilh avam ); 3 ) estudo
d as d ou t rin as d o Evan gelh o e leit u ra d e biografias d e crist ãos qu e se
distin guiram pela piedade sin cera; 4) com un hão con stan te e ín tim a com
D eus para crescer n a vida divin a; 5) o cultivo da graça da oração. Além
disso, m e dispus a cuidar da saúde física através de exercícios diários ao
ar livre e de um a alim en tação equilibrada. 4

A Espiritualidade na História da Igreja Evangélica Brasileira


190 UNIDADE III

Este últim o elem en to — algo raro em textos de origem protestan te — é


explicado: “O cuidado com a doutrin a e o cuidado com a vida abun dan te
n ão são opostos en tre si. Am bos procedem de um só D eus.”5
O depoimento, de conteúdo por sinal bem puritano,6 indica que Simonton
praticava as disciplinas centrais da espiritualidade cristã:7 disciplinas interi-
ores, com o m editação, oração e estudo; disciplin as exteriores, com o sim pli-
cidade, subm issão e serviço; e disciplin as corporativas, com o con fissão e
culto público.
N o m esm o século, as n ovas m issões in glesas de fé eram con seqüên cia

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direta do m ovim en to holiness e, n o que diz respeito à espiritualidade, bem
semelhantes ao fenômeno ocorrido nos Estados U nidos. Robert Reid Kalley,
pion eiro n a evan gelização de brasileiros em lín gua portuguesa, refletia as-
pectos daquela espiritualidade, em bora n ão perten cesse a n en hum a m is-
são. Após sua m orte, alguém recordou “seu am or in ten so para com o D eus
do céu”, en quan to sua esposa lem brou seus:

... son h os san t os [...] t ran sbord an d o d e pen sam en t os m aravilh osos d e
D eus [...] Ele sem pre falava dessas coisas celest iais [...] A pet ição fre-
qüen te de m eu querido esposo era: “Q ue con heçam os a D eus com o se o
estivéssem os ven do” [...] Acho que o ouvi pedir isso de seu Sen hor m ilha-
res de vezes, e sem pre com aquela profun da e san ta reverên cia. 8

N os docum en tos en con trados, há poucos detalhes precisos sobre a espiri-


tualidade pessoal de Kalley. M en cion a-se um “jejum parcial pela m an hã” e
um diário particular, n em sem pre bem utilizado, n o qual ele recordava sua
cam in hada cristã. Sua visão da espiritualidade, n o que se refere à igreja
local, in cluiu a afirm ação: “O don o de escravos é in im igo de Cristo; n ão
pode ser m em bro da Igreja de Jesus”. 9 Em 1862, a Igreja Evan gélica Flum i-
n en se 10 recebeu com o m em bro “Leopoldin a [...] Ain da é escrava, m as cre-
m os que ela é cren te verdadeira. Ela foi batizada e sen tou-se à m esa do
Sen hor”. 11
Algo bastan te com en tado (e até criticado) a respeito do m édico-m issio-
n ário foi o fato de ter traduzido, em 1856, seu “livro predileto”12 para a
lín gua portuguesa: O peregrino, de John Bun yan .13 Com o seria de esperar, a
espiritualidade e at é a lin gu agem d e Bu n yan in flu en ciaram Kalley, qu e

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
191

ch am ou os m em bros de sua igreja “m eus caros com pan heiros de viagem ao


m undo eterno”. Em outro m om ento, ele insistiu que “é preciso que sejam os
com o o Cristão [personagem principal do livro] n a gaiola da Feira da Vaidade:
cada vez m ais sábios e vigilantes para não dar ocasião algum a ao escân dalo”.
É quase desn ecessário recordar com o O peregrino, duran te an os o ún ico
livro devocion al em português, in fluen ciou n a espiritualidade evan gélica,
inclusive na decoração das casas. Ainda hoje, o quadro dos “dois cam inhos”
com põe a decoração da sala n as casas de cren tes evan gélicos em m uitos
lugares n o in terior do Brasil.
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M en os con hecida n a espiritualidade de Kalley é sua in sistên cia em ob-


servar da Sem an a de O ração, proposta pela en tidade in terden om in acion al,
a Alian ça Evan gélica. O utra atividade in terden om in acion al apoiada por
Kalley e por m uitos dos prim eiros evan gélicos do país foi a da Sociedade
Bíblica, cujos m étodos e m etas exigiam espiritualidade prática, aliada à fé
robusta e destem ida. A esposa de Kalley coorden ou todo o trabalho dos
colportores — todos hom en s, n os prim eiros tem pos. Algum as décadas de-
pois, M ulheres da Bíblia,14 obreiras brasileiras da Sociedade Bíblica Britâ-
n ica e Estran geira, deixaram tran sparecer sua espiritualidade n os relatórios
en viados a Lon dres:

Vin culada à M issão Con gregacion al, um a jovem m ulh er da Bíblia [...]
está trabalhando em Encantado, um subúrbio do Rio. D urante alguns me-
ses, houve um surto terrível de varíola n o Rio, e às vezes um as 50 pessoas
m orriam em um só dia [...] “N este m ês”, escreve a obreira, “ten ho visita-
do e ajudado a cuidar de um a m en in a com varíola, que, em bora filha de
pais n ão-cren tes, havia com eçado a freqüen tar a escola dom in ical, on de
apren deu as palavras ‘n o Sen h or con fio’. Aquelas t rês palavras, repet i-
das pela m en in a duran t e seus últ im os m om en t os de vida, im pression a-
ram m uito seus fam iliares e con hecidos. Ela dorm iu em Jesus, e esperam os
que essas palavras que ela deixou com seus pais os con duzam à Luz.”15

U m a cert a don a Am ália, que t rabalh ava em Pet rópolis, ligada à Igreja
M etodista Episcopal, visitou um a sen hora que já lia a Bíblia:

Eu tive a oportun idade de falar com ela sozin ha, e m e parece que, n aque-
le m om en to, ela sen tia m ais liberdade para abrir o coração e m e falar de

A Espiritualidade na História da Igreja Evangélica Brasileira


192 UNIDADE III

sua situação verdadeira. Ela disse que sabia que am ava a D eus, m as que
sen t ia que falt ava algo em sua experiên cia com D eus; seu coração n ão
est ava sat isfeit o. Pedia que eu m e un isse a ela em oração acerca d isso
[...] N a reu n ião d e oração n o m eio d a sem an a, oram os [...] pela fam í-
lia, pedin do que a m ãe en con trasse a verdadeira p az [...] E D eu s ou viu
est a n ossa oração. O coração d a m ãe est á p len am en t e sat isfeit o, ago-
ra qu e ela con h ece a C rist o com o seu Salvador.16

O utra obreira em Petrópolis en sin ava sobre a Bíblia n o Colégio Am erican o:

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... in tern ato [...] fun dado para a educação das filhas de brasileiros ricos.
D as 35 garotas sob m eus cuidados, a m aioria é de pais católicos, e algu-
m as das alun as n ovas n ão sabiam n ada da Bíblia, e exclam am , su rp re-
sas, qu an d o lêem p ela p rim eira vez o relat o d e com o Ped ro an d ou p or
cim a d as águ as [...] N u m a recen t e p rova, u m a crian ça escreveu que a
coisa prin cipal que se deve lem brar ao est udar a crucificação de n osso
Sen hor é “que ele sofreu tudo isso por m im — sim , por m im ”.17

A esposa do m ission ário batista Zacher y C. Taylor supervision ava as M u-


lheres da Bíblia n o Estado da Bahia: “N ossa obreira gosta tan to de seu
trabalho que n ão sabe falar de m ais n ada [...] Algun s dos cren tes que ela
trouxe para a igreja já foram batizados.” An tes de que o casal Taylor che-
gasse ao Brasil, em 1882, outro batista, Thom as J. Bowen , aqui esteve
trabalhan do en tre n egros e m arin heiros, e oran do: “Q ue eu possa ter forças
para orar e trabalhar com o fim de estabelecer o Evan gelho n este lugar de
in iquidade [...] O u, pelo m en os, que eu possa ser um hom em am ável, cheio
do Espírito San to e fé [...] Ten ho m uito que crescer até chegar à estatura da
perfeição hum an a em Cristo”. 18
U m con tem porân eo de Bowen , o ex-padre José M an oel da Con ceição, o
prim eiro pastor presbit erian o brasileiro a ser ord en ad o, t am bém orava:
“En tran do n a casa com a Bíblia n a m ão, abriu em João 3:16 e pediu licen ça
para ler a respeito do gran de am or de D eus por toda a hum an idade e sua
graciosa oferta de perdão pela fé som en te. D epois, esten den do n o chão de
terra batida um lenço colorido, derramou seu coração em comovente oração
pela fam ília.” 19

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
193

Em sua espiritualidade, José M an uel era bem diferen te dos colegas m is-
sion ários, pois n un ca deixou de ser m ístico, n em aban don ou seu estilo de
vida extrem am en te sim ples. “Sua frugalidade era tal que com qualquer coi-
sa se satisfazia duran te o dia in teiro.”20
En quan to José M an uel e tan tos outros estim ulavam a leitura da Bíblia
Sagrada e m ilitavam n a causa protestan te duran te o século XIX, m uitos bra-
sileiros foram se filian do às n ovas igrejas. O padrão de espiritualidade exi-
gido era alto. Por exem plo, em 1882, os m em bros da Igreja Evan gélica
Pernambucana 21 discutiram o caso de um certo H ipólito do Socorro, e “apre-
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sen taram testem un ho razoável, porém ain da n ão pôde decidir-se n ada a tal
respeito em con seqüên cia do seu em prego de guarda m un icipal, que o obri-
ga a trabalhar aos dom in gos”.22 U m tal João Fran cisco de Sousa foi excluí-
do em 1881. “[Ele] n ão tem an dado con form e os preceitos do Sen hor, m as
[...] em forn icação, sen do in fiel a sua m ulher.”23
Bem diferen te foi a situação dos im igran tes de origem alem ã, con form e
depoim en to de W ilhelm Klein gun ther, pastor luteran o em Porto Alegre de
1866 a 1873:

Q uan do ain da est ávam os em casa, n a Alem an h a, disse-m e um colon o,


ain da rezávam os de quan do em vez; desde que estam os n o Brasil, acaba-
m os com tudo isso [...] Assim en tram n a igreja. O pastor diz rapidam en te
a sua prédica horripilan te, e lá vai todo o m un do à ven da para can tar e
dan çar toda a tarde e duran te toda a n oite. O pastor acom pan ha tudo se
quer ser bom pastor, e quan to m aior a farra, tan to m elhor para os colo-
n os.24

Con form e sua tradição eclesiástica, a com un idade luteran a de Petrópolis


con seguiu colocar um crucifixo n o altar de sua igreja, apesar da ilegalidade
do ato an tes da Proclam ação da República. Porém , quan do E. Blackford,
presbiterian o e cun hado de Sim on ton , foi pregar n aquela cidade, “exigiu
que tirassem de lá o crucifixo. N ão tiraram ; n ão pregou m ais n o tem plo,
preferin do fazê-lo n a escola”.25
Com o é sabido, a proibição legal da cruz duran te aquelas décadas fez
crescer um a forte reação con tra o uso deste sím bolo da fé cristã en tre evan -
gélicos brasileiros. U m a só exceção parece ter sido seu uso em túm ulos.

A Espiritualidade na História da Igreja Evangélica Brasileira


194 UNIDADE III

Q uan do Joe W ildin g foi à Ilha do Ban an al, em 1960, para ver a sepultura
de seu pai, falecido em 1933, recordou: “É exatam ente com o vi nas fotogra-
fias. A cruz de madeira com a inscrição está lá. Junto à sepultura, dois carajás
estão en terrados.”26
Talvez seja p ossível sin t et izar as p rát icas d a esp irit u alid ad e q u e
p revaleceram duran te o século XIX com um exem plo sim ples: n ão foi sem
m otivo que os cren tes daquela prim eira geração receberam o apelido de
bíblias. Sen d o d as Escrit u ras Sagrad as a origem d a m en sagem qu e t ran s-
form ou-lhes a vida, através de um a experiên cia m arcan te de con versão,

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apren deram a estudar a Palavra de D eus ajudados pela gran de n ovidade: as
revistas de escola bíblica dom in ical. Eles descobriram com o can tar sobre
sua espiritualidade, a “pen sar n esse lar lá n o céu”, a recordar que “Cristo
em breve do céu virá”. Apren deram a orar, m as n ão o “Pai n osso” da tradi-
ção católica, deixado de lado junto com sím bolos tradicion ais, com o a cruz.

SÉCULO XX

Com a chegada do n ovo século, a espiritualidade evan gélica n o Brasil pas-


sou a apresen tar n ovas ên fases. O s relatos da viagem dos pion eiros da As-
sem bléia de D eus, D an iel Berg e Gun n ar Vin gren , den un ciam um forte
in teresse n a revelação através de son hos, com partilhado por n ão pen tecos-
tais. Stuart M cN airn descreveu com o um a m ulher pobre e an alfabeta n o
in terior de Goiás:

... son hou com um livro, um a gran de luz brilhan do sobre suas págin as, e
um a voz que lhe disse que o lesse. Ela ten tou — e con seguiu ler! Com eçou
assim um trabalho que con tin ua crescen do. M esm o paupérrim o, este ca-
sal dá seu dízim o e recen tem en te chegou ao m ission ário com um len cin ho
sujo, cheio de m oedas. 27

O pion eiro pen tecostal D an iel Berg tam bém “foi m uito hum ilde e sim -
ples”. Sem pre que surgia qualquer problem a, estas eram suas palavras: “Je-
sus é bom . Glória a Jesus. Aleluia! Jesus é m uito bom . Ele salva, batiza com
o Espírito San to e cura os en ferm os. Ele tudo faz por n ós. Glória a Jesus.
Aleluia!”.28

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
195

“Aleluia” foi a palavra que m arcou a prim eira reun ião do Exército de
Salvação, realizada em 1922, n o Rio de Jan eiro, n a presen ça do dr. Erasm o
Braga.

Após a leit ura da passagem da Bíblia, o ajudan t e Sjodin an un ciava um


coro, cu jas p alavras, d izia ele, t od os ap ren d eriam im ed iat am en t e [...]
Con sistia ele n um a só palavra, “Aleluia”, repetida um gran de n úm ero de
vezes n um a toada an im ada [...] En corajado pela an im ação do am bien te,
o coron el se arriscou a con vidar os que can tavam a acom pan har com o
bater de palm as [...] A experiên cia foi m aior do que a expectativa!29
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M esm o n a hora da m orte, o cren te con seguia louvar, com o tran sparece n a
descrição da m orte de Vin gren , em 29 de jun ho de 1933.

N o dia 27, en tre 5h e 6h da m an hã, ele recebeu a cham ada para o céu.
En tão, com os braços levan tados, exclam ou: “Jesus, com o tu és m aravi-
lh oso. Aleluia! Aleluia!”. En quan t o orava sob est e poder, leu os quat ro
prim eiros versos do salm o 84 [...] D epois dessa experiên cia, viveu ain da
por dois dias, quan do várias vezes disse que t in h a saudade de ouvir o
cân tico dos an jos [...] N a quin ta-feira [...] estava m uito fraco e quase n ão
falava. A ún ica coisa que disse foi: “Está can tan do n o m eu coração!” E
[...] part iu [...] Com eçam os en t ão a orar, e o poder de D eus veio sobre
nós, fazendo-nos pensar que também iríamos para o céu [...] U m a irm ã
viu , n aqu ele m om en t o, d u as m ãos t rasp assad as e est en d id as, p ron t as
para receber algum a coisa preciosa. 30

U m episódio parecido aparece n os relat os do presbit erian o N at h an ael


Cortez, que descreveu a m orte, em 1932, de um a jovem cearen se que “res-
pon deu, com fision om ia an gélica, ao ouvir que Jesus a esperava n o céu: ‘E
de braços abertos...’ E dorm iu! D orm iu nos braços do seu Salvador Jesus”.31
Além dessas ên fases, o n ovo século apresen tou um in teresse ren ovado
n a oração. Ben jam im L. Araújo César, outro pastor presbiterian o, chegou
n a Igreja Presbiterian a de Cam pos ( RJ) em 1928, e logo tratou de in iciar “a
sem an a de san tificação. N o prin cípio, com pareceram poucos irm ãos. M as,
ao passo que ele falava e in sistia em que com parecessem , as reun iões iam
m elhoran do [...] D ia a dia, m ais pessoas oravam , e orações m en os vazias.
Algun s tin ham coragem e con fessavam a D eus suas tran sgressões”.32

A Espiritualidade na História da Igreja Evangélica Brasileira


196 UNIDADE III

En quan to isso, a descrição de João Clím aco Xim en es, pion eiro con gre-
gacion al n a Paraíba após seu cham ado m in isterial, em 1922, é típica: “Ele
foi sem pre um hom em de m uita oração e jejum . Costum ava jejuar o dia
in teiro [...] O rava de joelhos, choran do”. 33
Isso n ão quer dizer, porém , que a Bíblia ten ha sido deixada de lado
com o base para a espiritualidade. Pelo con trário. A fun dadora do In stituto
Bíblico Betel Brasileiro (1968), Lídia Alm eida de M en ezes, descreveu a
espiritualidade que apren deu n a Paraíba de sua m en tora Ern estin e H orn e:

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D uran t e quat ro an os, [ela] m e en sin ou a con h ecer, am ar e obedecer à
Palavra de D eus. Apren di a m edit ar n ela [...] As leit uras e os est udos
in cessan tes que fiz da Palavra de D eus geraram a fé em D eus, que cum pre
o que prom ete [...] A origem da m in ha fé n a im plan tação do Betel Brasi-
leiro está baseada n o con hecim en to de D eus através de sua Palavra. 34

Q uan to a Lídia Alm eida, toda a “ên fase dada n a educação cristã volta-se
para a form ação de Cristo n o caráter da pessoa, en ten den do-se que a eficá-
cia da proclam ação do Evan gelho perm an ece à m edida que a vida cristã é
vivida segun do a doutrin a bíblica: ‘Cristo em vós, a esperan ça da glória’”.35
N ovam en te trata-se de ên fase n as disciplin as cen trais da espiritualidade
cristã, a partir da cen tralidade da Palavra de D eus. Sem elhan te valorização
d a Palavra m arcou u m t rabalh o evan gélico qu e n asceu en t re colon os
catarinenses de origem luterana alem ã durante a Segunda Guerra M undial.

Q uan do n ão se podia con tar com a presen ça de um m ission ário, [os cren-
tes] se visitavam [...] e liam um para o outro. Can tavam hin os, oravam e
fortaleciam -se n o discipulado do Sen hor.” [E m esm o em m eio a dificulda-
des diversas,] experim en taram a m ão de n osso Salvador, que salva, corri-
ge, carrega e auxilia. N aquele tem po, as “horas bíblicas” n ão n os pareciam
dem asiadam en te lon gas. O irm ão Graupn er lia um trecho proveitoso de
algum livro, e n ós dialogávam os sobre o assun to.36

En quan to isso, n a década de 1960, e tam bém n o sul do Brasil, a espiritua-


lidade de outros luteran os apresen tava ên fase distin ta:

U m h om em m iúdo est ava deit ado n um a cam a, exaust o e gem en do de


dor. N ós con versávam os em português sobre Jesus Cristo. Ele disse que

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
197

fazia an os que n ão ia à igreja; n em a Bíblia ele t in h a. Eu percebi que,


n aquele m om en to, ele queria sin ceram en te que Jesus perdoasse todos os
seus pecados, e queria a San t a Ceia. Eu can t ei dois h in os bast an t e co-
n hecidos em alem ão [...] N ós oram os jun tos e ele aceitou Jesus através do
pão e do vin ho. 37

O utros entenderam o “aceitar Jesus” como “quero entrar para a sua lei”, nas
palavras de um a ín dia da Ilha do Ban an al.

É desta m an eira sim ples que as pessoas costum avam expressar o seu dese-
jo de se torn ar cren tes em Cristo. Ela [...] an dava à procura da verdade,
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e disse que quan do chegou à sede da M issão sen tiu seu coração “abrir”.
Eu lhe falei de Cristo, e depois orei com ela. Ela orou tam bém fervorosa-
m en te, e foi assim que outra alm a passou das trevas para a luz, da m orte
para a vida et ern a. 3 8

D uran te décadas, porém , n ão foi fácil para m uitos brasileiros optar pela
“lei dos cren tes” devido à perseguição desen cadeada pela Igreja Católica
Rom an a, que, em regiões do in terior, persistiu até os an os 1940. M esm o
assim , o fervor e os exercícios espirituais n ão dim in uíram , com o se vê pelo
relato (1931) de H arr y Briault, obreiro con gregacion al n a Paraíba:

Em Brejo de Cavallos [...] foi a n oite da reun ião de oração, com [algo]
en t re 5 0 e 6 0 cren t es reu n id os n a p equ en a sala [...] N ad a d e p au sas
con st ran ged oras — u m ap ós ou t ro se levan t ava p ara n os con d u zir ao
tron o da graça, em petições que n ão eram m eras form alidades, e sim a
expressão dos desejos dos corações. N estes cultos, os cren tes recitam ver-
sículos bíblicos e é fascin an te ouvir pessoas que n ão sabem ler recitar, em
pé e sem n en h um problem a, un s cin co ou seis versículos da Cart a aos
Rom an os.3 9

D uran te o século XX, lições usadas n as in úm eras escolas bíblicas dom in icais
incentivaram crentes a decorar textos bíblicos. Tam bém passaram a circular
program as de leitura bíblica sistem ática, m uitos deles fun dam en tais para o
discipulado oferecido pelas m issões para-eclesiásticas que proliferaram a
partir da década de 1950. M uitas delas — M ocidade para Cristo, Alian ça
Bíblica U n iversitária,40 Palavra da Vida, Cruzada Estudan til, en tre outras
— se esm eraram em forjar um a espiritualidade para a juven tude brasileira

A Espiritualidade na História da Igreja Evangélica Brasileira


198 UNIDADE III

e, n a força m obilizadora de seus m uitos acam pam en tos, reforçaram disci-


plin as cen trais da espiritualidade: leitura bíblica, tem po a sós com D eus,
ética pessoal e serviço cristão.41
O trabalho da Alian ça Pró-Evan gelização das Crian ças im pactou a in -
fân cia de Ziel M achado (fim dos an os 1960 e in ício dos 1970):

Eu fui profun dam en te m arcado por histórias dos heróis da Bíblia con ta-
das n o flan elógrafo e n os cân ticos dos cultos in fan tis. Pela prim eira vez
[se abriam ] possibilidades para que as crian ças en t en dessem os cult os,
pois os cultos dos gran des só n os ajudavam a decorar os salm os e algun s

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h in os. O dem ais era com plet am en t e in in t eligível [...] Eu m esm o repre-
sen t ei a h ist ória d o Sam u elit o (m en in o m exican o qu e ven d ia lagart os
para susten tar m issões), e an os depois m e torn ei m ission ário 42 n o con t ex-
t o lat in o-am erican o.

U m trabalho diferen te, o dos clubes bíblicos, acon tecia aos sábados n o
Sem in ário Betel, n o bairro do Rocha (Rio de Jan eiro), dirigido por Tabita
Kraus, esposa de pastor batista. Segun do Ziel M achado:

Joven s de m uitas igrejas se reun iam para orar e ler a Bíblia de m an eira
m ais “livre”. Esta cham a se alastrou por todo o Rio n a década de 1970,
e surgiram vários ou t ros clu b es b íb licos: n a Igreja C on gregacion al de
Ben t o Ribeiro, n a Igreja Bat ist a de It acuruçá [...] D esses clubes saíram
m uitos pastores e m ission ários, m as sobretudo um a espiritualidade juve-
n il que n ão precisava de tern o e gravata para ser levada a sério.

Além de cobrar o uso de tern o e gravata, igrejas de todas as den om in ações


proibiam o cin em a, dan ças, fum o e assim por dian te, en ten den do tratar-se
de com portam en tos m un dan os in apropriados. Tais proibições perduraram
até a década de 1970, e con stituem aspecto im portan te da espiritualidade
evan gélica do século XX.

Poucos an os an tes, a situação de algum as den om in ações com plicara-se


graças à con trovérsia m odern ista-fun dam en talista e à fun dação de en tida-
des com o o Con selho M un dial de Igrejas (1948) e o Con selho In tern acio-
nal de Igrejas Cristãs (1949), de caráter mais fundamentalista. A conseqüente
crise n a espiritualidade evan gélica foi acen tuada quan do M an oel de M ello,

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
199

fun dador da den om in ação O Brasil para Cristo (1956), decidiu filiar-se ao
Con selho M un dial de Igrejas, con vidan do o secretário geral da organ ização
a pregar n a in auguração de seu m egatem plo, em 1962. D . Paulo Evaristo
Arn s, cardeal arcebispo de São Paulo, tam bém estava presen te. N os m o-
m en tos que an tecederam a chegada de D . Paulo à celebração, M an oel de
M ello havia an un ciado essa expectativa, levan do o povo a bradar em alta
voz, por três vezes con secutivas: “Eu am o m eu irm ão católico”.43 Para a
m aioria dos evan gélicos, porém , tratava-se de um a aberração.
N os an os 1960, a preocupação geral era outra: o m ovim en to da ren ova-
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ção espiritual, que teve forte im pacto n as igrejas e n a espiritualidade evan -


gélicas. São muitos os relatos registrados de fatos ocorridos em praticamente
t odas as den om in ações. Em 1964, Fred O rr, evan gelist a com base em
M an aus, foi pregar n um sem in ário batista de N atal:

Com eçam os a orar às 7h d a m an h ã. Eu h avia p assad o a n oit e an t erior


com o Senhor, e ele se encontrou comigo em poder. Lá pelas 8h da manhã,
preguei sobre o salm o 51, e depois com eçam os a orar de n ovo [...] D e
repen t e, o fogo caiu e o alun o que h avia causado graves problem as n a
escola levan tou-se para con fessar seu pecado [...] As lágrim as com eçaram
a rolar, e um após outro, os alunos confessaram seus pecados. Até os profes-
sores fizeram o mesmo. E devagar a alegria veio [...] Foram horas e horas
assim, e pareciam alguns segundos somente. Saí da sala para outro encon-
tro às 16h, e quan do retorn ei, às 17h, os alun os ain da estavam oran do. 44

Barbara Burn s descreve m om en tos sem elhan tes n um a escola de preparo


m in isterial em Cian orte, em 1972:

A m aioria dos estudan tes ain da alim en tava dúvidas e críticas à idéia de
m issões t ran scult urais. En t ão, um a m an h ã, duran t e o período de devo-
ção de um a classe de m issões, a idéia pegou fogo. U m dos est udan t es
céticos com eçou a orar. D e repen te, ele com eçou a chorar e se ajoelhou n o
chão de cim en to áspero [...] D en tro de segun dos, a classe in teira estava
oran do e choran do. O utras classes ouviram as orações e vieram se un ir à
prim eira. A com un idade escolar in teira orou até o m eio-dia.45

U m hin o m uito popular en tre as igrejas pen tecostais dizia: “N in guém de-
tém , é obra san ta.” N aturalm en te houve dificuldades, algum as oriun das de

A Espiritualidade na História da Igreja Evangélica Brasileira


200 UNIDADE III

im posições legalistas que passaram a ser adotadas com o sin ôn im os de espi-


ritualidade evan gélica, e outras resultan tes de en gan os teológicos. João
Q ueiroz, de Fortaleza, precavia-se devidam en te:

Se ch egava alguém com um a m en sagem em n om e do Sen h or, supost a-


m en te recebida por “revelação”, ele respon dia sem titubear: “M eu filho,
o Sen hor D eus é m eu am igo, e quan do ele quer falar com igo, n ão m an da
recado por porta de travessa. É bom você com eçar a descobrir quem é o
sen hor que está falan do com você.” Sen do um a visão com que, por dis-
cern im en to, n ão con cordasse, n um a situação em que n ão con stran gesse a

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
p essoa, levan t ava logo a qu est ão: “C u id ad o! Su a h ist ória t á m ais p ra
visagem do que pra visão.”46

Em décadas m ais recen tes, con gressos prom ovidos pela Visão N acion al de
Evan gelização ( VIN D E) e pelo Serviço de Evan gelização para a Am érica La-
tin a ( SEPAL) ofereceram con tribuições n otáveis à espiritualidade evan gélica,
prom oven do saudável vivên cia in terden om in acion al e boa literatura. N o
en t an t o, d evid o em gran d e part e às prát icas lit ú rgicas, d evocion ais e
eclesiológicas das n ovas igrejas n eopen tecostais, tam bém surgiram sin ais
de um a espiritualidade distorcida. U m exem plo é o fen ôm en o de mercanti-
lização da fé, que desem boca n o m isticism o expresso n a in clusão de sím bo-
los e subterfúgios, com o óleos bentos, “an éis de José”, bên çãos para copos
d’água, rosas especiais e m uitos outros. É o cam in ho para o divórcio en tre a
teologia e a espiritualidade. E quan do tal divórcio ocorre, am bas perdem .
Este cam in ho parece ser o preferido de evan gélicos de hoje. A solitude e
o silên cio sim plesm en te n ão fazem parte da história docum en tal de n ossa
espiritualidade. Em con trapartida, os futuros historiadores precisarão ex-
plicar um a espiritualidade evangélica que exalta celebridades e faz provoca-
ções ao D iabo, con tribuin do para rem over os “m arcos an tigos” postos por
n osso pais (Pv 22:28).
O fato, porém , de a m aioria das igrejas ter assumido (ao menos extra-
oficialm en te) a teologia e a espiritualidade pen tecostais n ão é o ún ico traço
de um a n ova din âm ica que m ove a espiritualidade evan gélica n acion al n a
atualidade. É preciso con siderar tam bém a revisão da própria agen da de
vários m in istérios e den om in ações. Se an tes as lições para a escola bíblica

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
201

dom in ical davam ên fase à doutrin a bíblica, aos erros das seitas e ao estudo
sistem ático dos livros da Bíblia, en tre outros assun tos, é cada vez m ais
freqüen te o en sin o sobre tem as com o estresse, relacion am en tos, corrupção,
solidariedade e m ídia.
N ão há com o n egar a n ecessidade e a im portân cia de discussões que
ultrapassam o un iverso evan gélico. Porém , é preciso cuidado para que n ão
substituam o en sin o e a vivên cia dos elem en tos fun dam en tais da fé, sob o
risco de secularizar a práxis da igreja, em detrim en to das disciplin as cen -
trais da espiritualidade cristã.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

É preciso evitar tam bém a negligência da própria história da Igreja Evan-


gélica. Este cuidado é fun dam en tal para preservar as m otivações con tidas
em depoim en tos com o a seguin te descrição da espiritualidade viven ciada
n o Colégio Evan gélico de Bom Sucesso ( M G ), em 1913.

[A m ission ária]... en sin ava gran des e pequen as coisas. D izia-n os com o
viver n a presen ça de D eus e sujeitar-n os a sua von tade. Todas as n oites,
term in ado o estudo, ela n os levava para o jardim e n os m ostrava o céu.
Falava sobre aqu ela est rela, est e p la n et a , a im en sid ã o d o u n iverso.
En ch ia-n os a alm a das gran dezas do Criador de todas essas m aravilhas.
En sin ava-n os com o deveríam os am á-lo e louvá-lo. M in ist rava-n os um a
religião prát ica. N un ca m e esqueci de um a vez quan do n os disse: “Se
vocês en con trarem um caco de vidro ou um a casca de ban an a caídos n a
rua, abaixem -se e apan hem , pois alguém poderá se cortar ou escorregar e
quebrar um a pern a.”4 7

Notas
1
Ver H O LT , Bradley P. Brief history of Christian spirituality [Breve história da espiritualidade
cristã]. O xford: Lion Publishin g, 1993; e T RO BISCH , Walter. Complete works of W alter Trobisch
[Obras completas de W alter Trobisch]. Illinois: Intervarsity, 1987.
2
H O LT , Bradley P. Op. cit., p. 91.
3
M C N EILL, John T. (ed.) Calvin: Institutes of the Christian religion [Calvino: institutas da religião
cristã]. Lon dres, SCM Press, 1961, v. 1, p. 40.
4
C ESAR , Elb en M . Len z. Entrevistas com A shbell G reen S imonton. Viçosa: U lt im at o,
1994, p. 98.
5
Id., p. 97.
6
Com parar as Resoluções de Jonathan Edwards.

A Espiritualidade na História da Igreja Evangélica Brasileira


202 UNIDADE III

7
Conforme Richard Foster em Celebração da disciplina.
8
KALLEY, Sarah P. Reminiscências, arquivo da Igreja Evangélica Fluminense.
9
R OCH A, João Gomes da. Lembranças do passado. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Publi-
cidade, v. 2, 1944, p. 79.
10
Igreja organizada por Kalley em Rio de Janeiro, em 1858.
11
G AM A, F. Carta a R .R . Kalley, 1862, arquivo da Igreja Evangélica Fluminense.
12
Conforme entendia sua meio-irmã.
13
O livro, de forte estilo alegórico, era m uito apreciado n o período. W illiam C. Burn s,
também missionário escocês, o traduziu para o chinês em 1853.
14
Em inglês: Biblewomen.
15
Relatório de 1909.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
16
Id.
17
Relatório de 1910.
18
O LIVEIRA, Betty Antunes de. Centelha em restolho seco. Rio de Janeiro: B.A. O liveira, 1985,
p. 79.
19
H AH N , Carl Joseph. H istória do culto protestante no Brasil. São Paulo: Aste, p. 192.
20
Id., p. 194.
21
O rganizada por Kalley em Recife, em 1873.
22
E VERY-C LAYTON , Joyce E.W. Grão de mostarda. Recife: Igreja Evan gélica Pern am bucan a,
1998, p. 75.
23
Id., p. 77.
24
H U N SCH E, Carlos H en rique. Protestantismo no sul do Brasil. Porto Alegre: EST /Sin odal,

1983, p. 59.
25
R IBEIRO , Boanerges. Protestantismo no Brasil monárquico. São Paulo: Pioneira, 1973, p. 141.
26
W ILD IN G , Rettie. S emeando em lágrimas. Anápolis: Casa Aplic, 1979, p. 86.
27
M C N AIRN , S TUART . True stories [H istórias verdadeiras]. Lon dres: Evan gelical U n ion of
South America, s/d, p. 24.
28
ALM EIDA, Abraão de (org.) H istória das Assembléias de D eus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD ,
1982, p. 21.
29
D avid M iche e os acontecimentos iniciais do Exército de Salvação no Brasil. São Paulo, s/d, p. 44.
30
ALM EID A, Abraão de. Op. cit., p.19.
31
V IAN A, Paulo (org.) N atanael Cortez, a sagrada peleja. Fortaleza: UFC , 2001, p. 297-8.
32
C ÉSAR , Elvira M agalhães, e ARAÚ JO , Ben jam in Len z de. N em sempre será. São Paulo:
Cultura Cristã, 1988, p. 79.
33
S O U ZA, C lau d in or G om es d e. João Clímaco X imenes. Belo H orizon t e: Bet ân ia, s/d , p .
1 1 -1 2 .
34
In Raio de Luz. Governador Valadares: Instituto Betel Brasileiro, an o 23, n o 91, p. 8.
35
Id., p. 7.
36
C LEBSCH , Arthur. S ob a graça de Jesus. São Ben to do Sul: M euc, 1997, p. 52.
37
T O LLEFSO N , O tto C., e S TEU ERN AGEL, Valdir. S emente em terra fértil. Curitiba: En con tro,
2000, p. 83.

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO
203

38
W ILD IN G , Rettie. Op. cit., p. 42-3.
39
BRIAULT , H . “The Cross – The touchstone of faith” (“A cruz: base da fé”), in South America.
Lon dres: Evan gelical U n ion of South Am erica, v. 12, n o 11, 1931, p. 171.
40
O impacto dos congressos da ABU é tratado em outro capítulo deste livro.
41
Os Vencedores por Cristo (1968) contribuíram muito para profundas alterações na hinódia.
42
D a Aliança Bíblica U niversitária.
43
R EILY, D un can A. H istória documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: Aste, p. 391.
44
M AXW ELL, Victor. W hen God steps in [Quando D eus entra]. Belfast: Am bassador, 2001, p.
158.
45
BURN S, Bárbara. “A M issão Antioquia: comunidade, espiritualidade e missão”, in T AYLOR ,
W illiam D . (org.) M issiologia global. Curitiba: D escoberta, 2001, p. 708.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

46
Q U EIRO Z , Carlos P. As faces de um mito. Brasília: M Z , 1999, p. 200.
47
C ÉSAR, Elvira M agalhães, e ARAÚ JO , Ben jam in Len z de. Op. cit., p. 26.

A Espiritualidade na História da Igreja Evangélica Brasileira


Nelson Bomilcar
Russell Shedd
Júlio Paulo Tavares Zabatiero

A ESPIRITUALIDADE E A

IV
UNIDADE
IGREJA

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ A espiritualidade e a adoração
■ A espiritualidade nas Escrituras
■ A espiritualidade e a formação pastoral
207

A VISÃO
A ESPIRITUALIDADE E ADO DEUS
IGREJA
TRIÚNO NA ADORAÇÃO
A VISÃO DO DEUS TRIÚNO NA ADORAÇÃO

�Nelson Bomilcar
Pastor, compositor,
músico e produtor, fez
seus estudos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

teológicos na
Faculdade Batista de
A nos atrás, passei pela experiência de um for­
São Paulo e no Regent
College, em Vancouver te estresse pessoal. Depois de 22 anos trabalhando
(Canadá). Foi como missionário, pastor, músico e ministro de lou­
missionário da Aliança vor, de ter conhecido a realidade da Igreja brasileira
Bíblica Universitária e em muitas viagens. senti-me desencorajado e desa­
da União Bíblica do nimado na obra local e itinerante.
Brasil. Trabalhou com
Naquela época, o Senhor abriu uma porta para
Vencedores por Cristo e
que, durante um período abático de dois ans, eu pu­
Grupo emente.
Pastoreou na Igreja desse tentar recuperar o cerne e a alegria da vocação
Batista do Morumbi, pastoral em meu coração. Foi uma jornada preciosa
na Cidade e cheia de desafios, que fiz com minha família. Opor­
Universitária tunidade única e graciosa da parte do Senhor para
(Campinas) e poder rever, reletir, restaurar e redirecionar a vida
no Projeto Raízes.
pessoal e ministerial, abrindo um novo ciclo.
Trabalha no Instituto
Aquele período (de 1997 a 1999). importantíssi­
Ser Adorador, é um dos
mo, foi desejado por mim, encorajado por minha es­
fundadores da
Associação de Músicos posa Carla e por irmãos e amigos queridos, como
Cristãos (Mc) e Armando Pompeu, Orvile Pompeu, Guilherme Kerr
professor do Seminário Neto, Ricardo Barbosa e Armindo Fontana. Nele
Teolóico Servo de surgiu a oportunidade de estudar sobre espirituali­
Cristo, em São Paulo. dade cristã e teologia pastoral no Regent College,
em Vancouver, Canadá. Lembro-me de ter ouvido
sobre esta escola quando era assessor estudantil

311
A Espiritualidade e a IGREJA
208 UNIDADE IV

d a Alian ça Bíblica U n iversitária en tre secun daristas. N aquela época, colo-


quei dian te do Sen hor, em um a oração sin gela, o desejo de passar um tem -
po lá, oração acolhida e respon dida por D eus.
N essa em preitada tran scultural, con heci u m ser h u m an o ext raord in á-
rio — dr. James H ouston, fundador da escola, que se tornou amigo e mentor
— e professores com o Eugen e Peterson , Paul Steven s e J. I. Packer, en tre
outros. Com suas aulas, reflexões e escritos, fizeram -m e rever e quebrar
paradigmas, encontrando um caminho de excelência para minha espirituali-
dade — cam in ho do coração, que n asce da vida e com un hão que existe e se

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
en con tra n o D eus Triún o, Pai, Filho e Espírito San to, a quem servim os.
Pude recolocar alicerces n a m en te e n o coração. En corajado pelo que
ouvi e apren di, pen so estar viven do hoje as con seqüên cias de assum ir um
cam in ho m ais discreto, n a con tram ão da visão de resultados, im pessoal,
secularizada, massificada e organizacionalmente engessada que tomou conta
de gran de parte das in stituições teológicas e da Igreja Evan gélica, em geral.
Foi um cam in ho fascin an te, desafiador e tran sform ador descobrir as ri-
quezas e os escritos dos pais da Igreja, de hom en s de D eus, com un s e san -
t os; rever a m en sagem d e Jesu s n o serm ão d o M on t e; p assear p ela
espiritualidade clássica e, n o retorn o ao Brasil, ten tar viver e con textualizar
prin cípios dessa espiritualidade n um a realidade com o a de São Paulo.
N o período que an tecedeu m in ha volta, perdi m in ha m ãe, vítim a de
cân cer. Acom pan hei seu estado term in al e sua perseveran ça em m eio ao
sofrim en to. Serva fiel e con sagrada desde a con versão, em 1965, an tes can -
tora profission al, dedicou-se ao testem un ho e à evan gelização dos fam ilia-
res e am igos, con struin do am izades por on de passou e exercen do seus don s
de m isericórdia e evan gelização en tre idosos e presidiárias. Torn ou-se m i-
n ha referên cia m aior em vida, tan to com o ser hum an o quan to com o cristã,
am iga e con selheira.
O que eu poderia dizer a ela toda vez que a en con trava n aquele difícil
processo? Poderia eu dizer com o achar fé e con solo e com o orar? M in has
palavras m uitas vezes eram tecn icam en te corretas, m as n ão m e sen tia apto,
e sim impotente para dar qualquer conselho como filho e como pastor. N o
en tan to, ela m e surpreen dia con stan tem en te com sua m aturidade, sen sibi-

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
209

lidade e con sciên cia cristã, com o n a pen últim a vez em que estive com ela
n o hospital:

Em Jesus Cristo tem os alguém que sabe tudo sobre dor, n o corpo e n a
alm a, pois ele foi hom em de dores, que sabia o que era padecer. Ele tem
estado com igo, e tam bém através de toda m in ha cam in hada de sofrim en -
to destes últim os an os. Estará tam bém em m in ha m orte e separação de
vocês, e serem os ressuscitados em seu poder. Ele está ouvin do o seu e o
m eu choro por fé e está respon den do. Em Cristo, n ós tem os alguém que
está oran do e in terceden do por todos n ós, filhos e am ados. O seu Espírito
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

sabe tudo sobre n ós e está levan do n ossos desejos, gem idos e an seios dian -
te do Pai. Ele está in terceden do por m im e por você, n ão se esqueça.

Sua con sciên cia e sua fé n a in tercessão e n a m ediação de Jesus eram im -


pression an te e visivelm en te gen uín as e refletiam in ten sam en te em sua vida
n aquele m om en to. D esejei com sin ceridade que esta pérola preciosa, esta
con vicção repercutisse tam bém em m in ha vida. Viver e con struir um a espi-
ritualidade de fato cristã e saudável tem sido busca e processo con tín uos.
M eu coração está m ais sin ton izado com o cham ado e a vocação pastoral, e
ao m esm o tem po in quieto com os desafios sem pre presen tes.
Con fesso que o preço tem sido alto para viver essas m udan ças, m as
ten ho paz n este n ovo cam in ho. N o en tan to, em m uitas ocasiões, sin to-m e
desin stalado e in adequado n o am bien te evan gélico, ten tan do viver m in ha
hum an idade, ser pastor e m in istro de louvor que busca con struir e crescer
n os relacion am en tos e n as disciplin as espirituais da oração, da con tem pla-
ção, da m editação, da com un hão e da adoração com o estilo de vida.
Percebo o am bien te eclesiástico atual com o clam an do som en te por este-
reótipos, por pastores que “toquem a obra”, por líderes que m an ten ham
ocupados seus m em bros n um ativism o m assacran te, realidade que tem fe-
rido e alijado t an t os quan t os t en t am correspon der a ela. Isso além da
con statação de que m eu coração con tin ua en gan oso e n ão desejan do as
coisas de D eus, precisan do sem pre da ação e da obra do Espírito San to
para in clin ar-m e às coisas espirituais e a sua Palavra.
Ten ho repen sado a form a de desen volver e viver um a espiritualidade
sim ples, um a adoração sincera e profunda, e isto tem afetado as prioridades

A Espiritualidade e a IGREJA
210 UNIDADE IV

e a agen da de m in ha vida. Estou en volvido com a adoração (pois abran ge


todas as dim en sões da vida) e com a m úsica e a arte desde a m in ha con ver-
são. N esta trajetória, pude con hecer pessoas que se torn aram referen ciais
para m im , que m e m en torearam quan to à com preen são bíblica e à vivên cia
das artes de m an eira geral.
D esde m eu batism o, n a Igreja Batista tradicion al, em 1972, até o m o-
m en to atual — passan do por experiên cias com o os m uitos an os n a m issão
Vencedores por Cristo, viajando, testem unhando, com pondo, produzindo e
fazendo música, como obreiro entre estudantes; participando em inúmeros

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
en con tros e congressos, como os promovidos pela Aliança Bíblica Universitá-
ria ( ABU ), pelo Serviço de Evan gelização para a Am érica Latin a ( SEPAL) e
pela Visão N acion al de Evan gelização ( VIN D E), ora com o ouvin te, ora com o
dirigen te da adoração con gregacion al — preocupo-m e com a adoração an -
tropocên trica que ten ho visto, e que gan ha espaço n os m odelos que chega-
ram em n osso país.
Além disso, m uitos pastores, líderes e m em bros de várias den om in ações
em todos os can tos do país ain da m an têm um a visão reducion ista, ligan do
a adoração apen as à m úsica can tada ou tocada — expressões hoje forte-
m en te in fluen ciadas pelo pan o de fun do com ercial que se in stalou. Algu-
m as in stituições teológicas de en sin o con tribuíram tam bém para esta visão
lim itada, oferecendo um conteúdo m uito raso sobre a teologia da adoração,
do culto e do louvor n o currículo de form ação.
O louvor, a pregação e a arte foram tam bém tran sform ados em produtos
de con sum o. Em vez de serm os con sideradas pessoas que precisam cum prir
o propósito existen cial de todos, sem exceção, e ser adoradoras de n osso
Criador, viram os apen as público con sum idor. Vida tran sform ada, in tegri-
dade e excelên cia n o que som os e fazem os para o Sen hor perderam m uito
de seu valor, e a im agem que aparen tem en te tran sm itim os ou veiculam os
ganha m ais im portância.
Jun ta-se a este quadro o fato de algun s líderes alegarem ter acesso a
revelações particulares e subjetivas, que n ão estariam dispon íveis a sim ples
ovelhas — m eros mortais, com o n ós. Con sideram -se deten tores de segre-
dos ou m odelos corretos de adoração, tran sm itin do ou in stilan do, quase
sem pre, um sen tim en to de culpa n os ouvin tes. Sob os auspícios da m ídia,

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
211

algun s desses líderes foram praticam en te tran sform ados em objeto de ado-
ração e culto pelas in fluên cias do marketing desen freado presen te n os basti-
dores da adoração e da m úsica cristã.
A ausên cia de um a espiritualidade claram en te cristã e a in fluên cia de
outras absolutam en te superficiais, além de práticas litúrgicas exteriores,
geralm en te con fusas e sem sign ificado, trouxeram in seguran ça ao coração
da sim ples ovelha e ao aspiran te a adorador. Tal adoração, via de regra, traz
fardo, e n ão refrigério. Aprision a, em vez de libertar. M ostra-se exigen te e
cheia de regras, cobran do “posturas” de adorador — com o se D eus se ilu-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

disse com os ritos extern os para expressar culto e adoração.


D eus con tin ua n ão suportan do os ajun tam en tos solen es, sacrifícios e
ofertas, festas fixas e celebrações rotin eiras que careçam de um coração
tran sform ado, sin cero, san tificado, resultado de um a vida que aban don a o
m al, o pecado, a m en tira e a opressão para praticar o bem e a justiça, con -
form e Isaías 1:11-20. O s que adotam un icam en te a heran ça hebraica, ape-
sar de im portan te e repleta de referên cias, n ão podem n egar n ovas possibi-
lidades de adoração, m an ifestações da m ultiform e graça e criatividade de
D eus em outras culturas. O Evangelho tem uma mensagem transformadora
e un iversal para todos os povos, raças, tribos e n ações. Can on izar culturas
é um gran de equívoco.
D ian te deste con texto e das questões até aqui citadas, fica claro que o
ser hum an o n ão é, e n ão pode ser, o ún ico agente da adoração, expressa
apen as por suas ações e in terven ções, dan do-lhe sign ificado ou legitim an -
do-a com o verdadeira e gen uín a. Em m uitos casos — e a história da Igreja
está repleta de exem plos —, m ais atrapalhou que con tribuiu.
Pen so que é hora de recuperar, n a Palavra de D eus, visão e con teúdo
m ais próxim os de um a espiritualidade saudável n a adoração. Ao olhar de
form a m ais teocên trica e m en os an tropocên trica, percebem os as ações de
adoração an teriores às n ossas, isto é, ações que refletem a própria essên cia
de D eus. São ações do próprio D eus n a Criação, n o tem po, n a história, n a
salvação, e que dão sign ificado às n ossas ações e rit os.
N ossas p rát icas d e ad oração n ão chegam n ecessariam en te ao coração
de D eus ou a legitim am . D eus fez, faz e con tin ua a fazer algo sign ificativo
para n os ajudar.

A Espiritualidade e a IGREJA
212 UNIDADE IV

É preciso recuperar, en sin ar, pregar e an un ciar profeticam en te o con vite


e o esclarecim ento que Jesus transm itiu à m ulher sam aritana, registrado em
João 4:20-24: o Pai con tin ua à procura de verdadeiros adoradores, e é es-
sen cial que esta adoração seja em espírito e em verdade. N este cam in ho,
desejo con siderar e refletir sobre algun s aspectos im portan tes em n ossa
con versa a respeito da espiritualidade n a adoração: a adoração com o res-
posta de am or, a m ediação de Jesus n a adoração e a doutrin a do D eus
triúno na adoração.

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ADORAÇÃO É RESPOSTA DE AMOR
“Am e o S EN H O R , o seu D eus, de todo o seu coração, de toda a sua alm a e de
toda as suas forças” (D t 6:5; N VI). Este versículo, jun to com Levítico 19:18,
nos chama para amar também ao próximo. Implica reconhecer que o funda-
m en to e con teúdo deste am or estão baseados n o coração e n a essên cia de
D eus, n o am or e n a iden tificação dele com seu povo. “N ós am am os porque
ele n os am ou prim eiro” (1Jo 4:19).
N o coração reside o cen tro das em oções e decisões. A adoração gen uín a
procede de um coração sin cero, tran sform ado pelo próprio D eus. U m co-
ração quebran tado, ren dido e con trito por ação e in iciativa do Sen hor. Tal
ação obviam en te pede n ossa resposta e n ossa decisão de ir em sua direção
a fim de n os subm eter a seu rein ado. Por isso, o con texto de D euteron ôm io
6 en fatiza a im portân cia de m an ter presen tes n a m en te os m an dam en tos
do Sen hor: lem bran do deles o tem po todo, podem os praticá-los e obede-
cer-lhes.
Isto n os ajuda a n ão con struir falsos deuses (D t 6:14) e a colocar D eus
em prim eiro lugar. O que im porta é sua von tade, sua alegria, seu prazer em
n ossa vida. Assim, não devemos deixar nada substituir a prioridade e o espaço
devidos ao Senhor. A família, o trabalho, a cultura, a form ação, a igreja, a
denominação, o ministério, os relacionam entos, o dinheiro, as posses, enfim ,
n ada deve ocupar o lugar do Sen hor em n ossa vida torn an do-se in devida-
m en te objeto de culto.
A verdade n o ín tim o, n o coração, con tin ua sen do a m otivação correta
para agradar a D eus, que son da o coração in in terruptam en te, corrigin do os

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
213

m aus cam in hos. “Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração,
pois dele procedem as fon tes da vida” (Pv 4:23).
Estou con ven cido de que, além de todas as din âm icas do dia-a-dia, n os-
so coração é m exido, provado e trabalhado profun dam en te por D eus quan -
do est am os em secret o, fech ados em n osso quart o em oração e busca,
absolutam en te desn udados dian te do Sen hor, e n ão quan do estam os m i-
n istran do à fren te de trabalhos, even tos, púlpitos, program as, com as luzes
focadas sobre nós. “M as quando você orar, vá para seu quarto, feche a porta
e ore a seu Pai, que está em secreto. En tão seu Pai, que vê em secreto, o
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recom pen sará” (M t 6:6).


N o secreto, quan do n ão preciso n em con sigo disfarçar o que realm en te
sou, on de n ão posso escon der m in has dúvidas n em m in ha fé, m eus peca-
dos, question am en tos sobre D eus e sua m an eira de agir, on de n in guém
está olhan do, posso abrir o coração. Ele se torn a terren o fértil para apresen -
tar m in has orações, m eus desejos e son hos, para que o n osso Pai das luzes,
doador de todas as bên çãos, con sidere e direcion e.
Trata-se de um a situação extrem am en te favorável para derram ar o co-
ração n a presen ça de um D eus am igo, pastor, con fiden te, que acolhe m i-
n has con tradições, quebran ta, con ven ce, corrige, con sola, an im a. N este
m om ento, posso chorar, clam ar, dizer tudo sem ser julgado e perceber clara-
m en te, pela in tercessão de Cristo e de seu Espírito San to, que sou acolhido.
Assim , m in ha com preen são de quem é D eus se aclara, saben do que ele vê o
que sou e o que apresen to em secreto. M ais ain da: segun do sua prom essa,
ele m e recom pen sará!

JESUS COMO MEDIADOR NA ADORAÇÃO


D eus criou hom en s e m ulheres a sua im agem e sem elhan ça para ser sacer-
dotes da Criação e expressar, em n om e de todas as criaturas, o louvor a
D eus. Afin al, fom os criados para sua glória (Is 43:7). Q uan do n ós, com o
criaturas das m ãos de D eus, adoram os seu n om e com o resultado de um
relacion am en to pessoal e in tran sferível com o Criador, estam os in tegrados
com a adoração de toda a Criação.
N ossa fin alidade prin cipal é a de glorificar a D eus e desfrutar de sua
presen ça. N o en tanto, falhamos nisto com a perda de sua imagem, resultado

A Espiritualidade e a IGREJA
214 UNIDADE IV

de n osso gran de fracasso in icial em m an ter com un hão com o Pai, de n ossa
experiên cia de pecado — basicam en te, a desistência de adorar o Criador, de-
cisão equivocad a e en gan osa d e t en t ar con d u zir n ossa vida, de achar que
n ão precisam os con hecer a D eus, an dar com ele e obedecer-lhe. A Criação
in teira gem e suas dores, e n ós passam os tam bém a gem er in teriorm en te
(Rm 8:22-23), esperan do a realização dos propósitos de D eus n a vida hu-
m an a com seu plan o reden tor, vida que deve voltar à con dição in icial e ao
propósito origin al, isto é, adorar a D eus jun to com toda a Criação.
A boa n otícia é que D eus veio a n ós em Cristo, através de seu plan o

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m aravilhoso de salvação e reden ção, para se levan tar por n ós e realizar seus
propósitos de adoração e com un hão. Jesus veio com o sacerdote da Criação
para fazer por n ós, hom en s e m ulheres, o que falham os em realizar: ofere-
cer ao Pai adoração e louvor; glorificar a D eus através de um a vida de am or,
con sagração e obediên cia; ser com o o verdadeiro Servo do Sen hor. N ele e
através dele som os ren ovados pelo Espírito, e assim a im agem de D eus é
restaurada em n ós e n a adoração a D eus, n um a vida de com un hão com par-
tilhada.
Jesus veio com o Servo Sofredor (Is 53), n osso Sum o Sacerdote, para
levar em seu corpo e em seu coração am oroso e com passivo as alegrias, as
dores, as orações e os con flitos de todas as criat u ras, recon cilian d o t od as
as coisas com D eus e in terceden do por todas as nações como nosso M edia-
dor e Advogado. Ele veio se levan tar por n ós n a presen ça do Pai, quan do,
em n osso fracasso e em n ossa perplexidade, já n ão sabíam os ouvir e discer-
n ir sua voz e sua von tade, n em orar com o deveríam os. Através da obra de
seu Espírito San to, ele n os en sin a a orar, além de in terceder por n ós, colo-
can do essas orações de m an eira correta n a presen ça do Pai, segun do sua
von tade (Rm 8:26-27).
Com o Cabeça de todas as coisas, através de quem e em quem elas fo-
ram criadas, Jesus n os fez seu Corpo e cham ou-n os para ser sacerdócio real,
oferecen do sacrifícios espirituais (1Pe 2:9). Pedro escreve: “Vós, porém ,
sois raça eleita, sacerdócio real, n ação san ta, povo de propriedade exclusiva
de D eus, a fim de proclam ardes as virtudes daquele que vos cham ou das
trevas para a sua m aravilhosa luz”.

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
215

Jesus n os cham a de tal m odo que devem os estar iden tificados com ele
através do Espírito, n ão som en te em sua com un hão com o Pai, m as tam -
bém em seu gran de trabalho sacerdotal e seu m in istério da in tercessão.
Sign ifica que n ossas orações da Terra devem ser a reverberação sin ton izada
das orações n o céu, apresen tadas pelo Espírito através de Jesus. Seja qual
for n ossa in ten ção ou form a de adoração, é legitimada de form a suficien te e
com pleta pela adoração de Cristo.
Jesus leva n ossas orações e as faz suas orações, e ele faz de suas orações
n ossas orações. Sabem os que n ossas orações foram ouvidas em con sidera-
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ção e am or por Jesus. O Espírito reflete tam bém o m in istério con tín uo de
Cristo n este m om en to do tem po, cronos e kairós, in terceden do à direita do
Pai pelos san tos. Esta é a vida n o Espírito, verdadeira n atureza trinitária de
toda verdadeira adoração e com un hão.
Adoração cristã é, portan to, n ossa participação, através do Espírito, n a
obra vicária de adoração e in tercessão de Jesus. Esta é n ossa oferta e n osso
sacrifício satisfatório para o Pai: tudo que é feito por n ós em Cristo. Esta é
n ossa oferta própria e correta n o corpo, n a m en te e n o espírito, em resposta
à ún ica oferta verdadeira feita por n ós em Cristo; é n ossa resposta de grati-
dão dian te da graça de D eus, n ossa porção através da graça n a in tercessão
celestial de Cristo.
En tretan to, n ada se pode dizer e fazer sobre adoração (form as, práticas
e procedim en tos) sem con siderar o con texto do Evan gelho do Rein o e da
graça. D evem os pergun tar-n os: N ossas form as de adoração tran sm item e
espelham a n atureza do Evan gelho, os valores e a cultura do Rein o? São
elas respostas apropriadas do Evan gelho, a verdade que crem os e abraça-
m os? Elas ajudam as pessoas a apren derem a adorar e a m in istrar com o
Cristo n os en sin a através do Espírito, isto é, n os con duzem rum o a um a
vida de com un hão com partilhada? O u elas im pedem as pessoas de apren -
der a trilhar este cam in ho? Elas fazem a presen ça de Crist o p reen ch er o
am bien t e d e ad oração, realçan d o sua pessoa e seu poder em n ossas vi-
das? O u as obscurecem , distorcem ou dim in uem ?
Para respon der essas questões, devem os olhar a cultura e os valores do
Rein o, além da doutrin a de D eus. Esta com preen são se refletirá n o sign ifi-

A Espiritualidade e a IGREJA
216 UNIDADE IV

cado e n o con teúdo da adoração, e a partir dela poderem os decidir se n os-


sas ações, tradições e posturas são adequadas.

A cultura e o s valo re s do Re ino


Estão explicitados e en sin ados n o con hecido, porém pouco praticado, Ser-
m ão do M onte (M t 5-7). N ele encontram os a essência da m ensagem cristã,
o cern e do coração de D eus, o projeto existen cial, relacion al, m oral e ético
para o ser hum an o. Estes valores n os levam a um a adoração n ão som en te
con tem plativa e pessoal, m as prática e com un itária, com repercussões n a

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sociedade de qualquer cultura.
Esses valores são, e devem ser, n osso estilo de vida: ser m an so e hum il-
de, pacificador, puro de coração, ter fom e e sede de justiça, cheio de m iseri-
córdia, ser perseguido por causa da justiça e alegran do-se n isto, ser sal e luz
da Terra, obedecer aos m andam entos, valorizar a fam ília, am ar os in im igos,
perdoar os que n os ofen dem , ajudar os n ecessitados e sem esperan ça, ser
gen te de oração e jejum , viver debaixo do sen horio de Cristo em san tifica-
ção, n ão servir e ajun tar riquezas, buscar o seu Rein o em prim eiro lugar —
en fim , ser pruden te, con struin do n ossa vida com alicerces n a Rocha, prati-
can do a Palavra a n ós revelada e en carn ada em Cristo.
O Rein o de D eus propõe, de fato, um a agen da desafiadora, com con teú-
do suficien te para um a jorn ada de vida, um a existên cia em com un hão com
o Criador, alegran do-lhe o coração, cum prin do seus propósitos e m an ifes-
tan do sua glória en tre as pessoas em todas as n ações.

A do utrina de De us
Ele é o D eus triún o, D eus da graça, que n os criou e redim iu para participar-
mos livremente em sua vida de comun hão e em seus propósitos para o m un -
do. N ão é o D eus engessado numa fôrma, cheio de regras, condicionando-nos
a um a adoração apen as pela prática da religiosidade. Se o ato de adorar
deve brotar do coração, ser in teligen te e in tegral (corpo, em oções, espírito),
com o expressão verdadeira e sign ificativa, oferecida alegrem en te n a liber-
dade do Espírito, precisam os olhar para as realidades que n os in spiram e
pedem de cada um de n ós um a resposta m adura, con scien te e sign ificativa.

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
217

O apóstolo Paulo escreve, em Rom an os 12:1, depois de expor o Evan ge-


lho da graça n os prim eiros 11 capítulos: “Portan to, irm ãos, rogo-lhes pelas
m isericórdias de D eus que se ofereçam em sacrifício vivo, san to e agradável
a D eus; este é o culto racion al de vocês” ( N VI ).
O escritor da carta aos H ebreus descreve n osso Sen hor com o “a verda-
deira e com pleta liturgia”, isto é, ofereceu o que era n ecessário e aceitável
com o líder de n ossa adoração. “Todo sum o sacerdote é con stituído para
apresen tar ofertas e sacrifícios, e por isso era n ecessário que tam bém este
tivesse algo a oferecer”, isto é, Jesus foi elevado ao n ível de m in istro do
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san tuário real (H b 8:2-3).


Sem elhan tem en te, a liturgia de Jesus é con trastada com a liturgia fin ita
de hom en s e m ulheres. A liturgia de Jesus é a adoração que D eus providen -
ciou para a hum an idade, a qual é, por si, aceitável para D eus.
A adoração dos sacerdotes de Israel som en te prefigurava a verdadeira
adoração e oferta própria e volun tária de Cristo em n osso favor. “Q uan do
Cristo veio com o sum o sacerdote dos ben efícios agora presen tes [...] ele
aperfeiçoou para sem pre os que estão sen do san tificados” (H b 9:11–10:14;
N VI ). N osso Sen hor é ain da “o Sum o Sacerdote acim a da casa de D eus”,
m in istro do San tuário, o ún ico Adorador verdadeiro que n os con duz em
n ossa adoração. D esta m an eira, a adoração de Cristo é a essên cia de toda a
adoração cristã.
Precisam os recon hecer que o real agen te de toda gen uín a e verdadeira
adoração é Jesus Cristo. É ele quem legitim a a verdadeira adoração dian te
do Pai, o ún ico que n os un e n ele m esm o através do Espírito, em um ato de
en trega am orosa, volun tária e vicária n a cruz, e que devem os relem brar
sem pre através da celebração da Ceia. Passam os a com un gar e adorar quan -
do o fazem os através de Cristo. Ele n os con duz pela Palavra e por sua
in term ediação e in tercessão rum o à vida triún a de D eus.
Este é o coração da teologia da adoração: Jesus é o M ediador de nossa ado-
ração. Portan to, n ão devem os superestim ar n ossas atitudes, fórm ulas, pos-
turas, liturgias, in ten ções e n ossos m odelos, com o se fossem fun dam en tais
para que n ossa adoração seja aceita pelo coração do D eus triún o. Trata-se
de um en gan o: eles n ão são fu n d am en t ais, p ois se caract erizam com o

A Espiritualidade e a IGREJA
218 UNIDADE IV

ad oração an tropocên trica, totalm en te baseada em n ossos ritos, n ossas ex-


pressões e n ossos atos. “Por m eio d e Jesu s, p ort an t o, ofereçam os con t i-
n uam en te a D eus um sacrifício de louvor, que é fruto de lábios que confessam
o seu n om e” (H b 13:15; N VI ).
Posso bater palm as, dan çar, chorar, ajoelhar, can tar hin os ou cân ticos
espirituais, usar guitarra ou órgão, acen der velas ou n ão, usar vestim en tas
específicas, tern o ou jean s, levan tar as m ãos, ter um culto público con tex-
tualizado ou n ão, m in istrar olhan do a con gregação ou n ão, dizer “aleluia”,
ficar em silên cio ou extravasar em alegria, dar ofertas, jejuar, adorar n o

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m on te, em fren te ao m ar ou n o cen tro da cidade, n um tem plo ou n ão, en -
fim , posso usar de toda a criatividade para adorar. N o en tan to, n ada disso
garan te que m in ha adoração será aceita dian te do Pai.
Em bora con stituam m an ifestações legítim as, n ossa adoração só é aceita
se adorarm os em Cristo, isto é, através da adoração com pleta, perfeita, sem
m ácula, gen uín a, verdadeira, que foi oferecida n a vida e n a obra de Jesus
Cristo, n osso Sum o Sacerdote. Ele que a si m esm o se ofereceu em am or
ágape, n a cruz, com o sacrifício de louvor por todos as pessoas e por toda a
criação. A cruz é o sím bolo do coração da teologia da adoração.

RECUPERANDO A VISÃO DO DEUS TRIÚNO NA ADORAÇÃO


H oje m uitas igrejas e grupos cristãos estão experim en tan do e desfrutan do
de significativas e relevantes form as de adoração no contexto de um mundo
secular de con stan tes m udan ças. M uitas delas, in felizm en te, n ão têm sido
avaliadas e avalizadas à luz da Palavra de D eus, e são violen tam en te in cor-
poradas, vin das de roldão através de m odelos que se in stalam em n osso
país. M uitas dessas form as e m an ifestações são baseadas em experiên cias e
revelações pessoais, ou em culturas de países diferen tes, ou em m ovim en -
tos específicos de diversas realidades e épocas n a história da Igreja.
Com o um a espécie de efeito da globalização, querem os usar tudo e legi-
tim ar tudo. A pressão da m ídia e do con texto com ercial que se in stalou em
torn o da adoração oprim e a todos, e se lhe resistim os, som os m argin aliza-
dos e acusados de n ão desejar as coisas do Espírito ou n ão com preen der a
n ova “un ção” ou “visão”.

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
219

É hora de question ar, de m an eira respeitosa e respon sável, a pregação, o


en sin o e a m in istração de louvor con gregacion al de algun s líderes de adora-
ção, assim com o m uitas práticas sem a devida base bíblica, m as justificadas
som en te em experiên cias pessoais. Algum as ên fases, absolutam en te estra-
nhas, agressivas e altam ente m anipuladoras induzem os adoradores da con-
gregação a ações in dividuais e m an ifestações coletivas que levam pessoas a
catarses, descon trole e destem pero.
N um con texto assim , os resistentes, que in sistem em adorar com a mente,
dentro de um conceito de culto racion al, geram e sen tem descon forto. So-
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m os con stran gidos a som en te repetir o que os líderes fazem do alto dos
altares. Q uan do vejo isto, con stato m ais um a vez que n os falta um fórum
adequado, além de disposição, para avaliar o con teúdo do que tem sido
en sin ado sobre as diferen tes visões da adoração, com hum ildade e abertura
de coração. O povo vai perecen do sem en sin o e profecia respaldada n a Pa-
lavra de D eus.
En tre as igrejas cristãs, as diferen tes form as de adoração têm com o fon -
te diversas tradições. As m ais presen tes são a visão un itarian a e a visão
trinitariana da adoração. A primeira é a mais difundida e comum, e enfoca o
que fazem os prin cipalm en te n os serviços de culto oferecidos n a igreja aos
dom in gos. Trata-se de um a heran ça, presen te prin cipalm en te n as igrejas
históricas, e que tem sua riqueza.
Freqüentamos igrejas locais, cantamos e usamos hinos, salmos musicados,
coros trein ados, gastam os tem po de in tercessão pelas pessoas e pelo m un -
do, ouvimos sermões de todas as formas, quase sempre didáticos, exortativos
ou evan gelísticos, dam os ofertas e dízim os e con sagram os talen tos para os
m in istérios da igreja, além de tem po para a obra. Precisam os da graça de
D eus para n os capacitar, e Jesus n os deixou exem plo disto. M as adoração
n ão é basicam en te o que eu faço, m as o que eu sou dian te do Sen hor.
D e fato, esta visão da adoração n ão valoriza a doutrin a da m ediação ou
sacerdócio ún ico de Cristo. É m ais antropocêntrica, não possui um a doutri-
n a do Espírito San to m ais abran gen te e com pleta, e é quase sem pre n ão
sacram en tal. Ficam os sen tados n o ban co da igreja, assistin do ao m in istro
ou sacerdote fazer seu trabalho ou exortar-n os a fazer o n osso, até que

A Espiritualidade e a IGREJA
220 UNIDADE IV

voltam os para casa e para o dia-a-dia, achan do que cum prim os n ossos de-
veres e n ossas obrigações. Podem os cham ar a isto de adoração “legal e
legalista”, isto é, a m an ifestada com a ajuda do m in istro de adoração, de
form a ritual.
Adoração “legal”, com o era cham ada pelos pais da Igreja, difere da ado-
ração evan gelical, que a Igreja an tiga cham aria “arian a”. N ão é um a visão
trin itarian a de adoração. O bservan do a realidade evan gélica n o Brasil, per-
cebo que, ao ouvirm os falar em D eus, n a m aioria das vezes n ão pen sam os
n a Trin dade, e isto se reflete de igual m odo n a adoração.

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A visão trin itária é fun dam en tal, e precisa ser resgatada em n ossa teolo-
gia. As Escrituras apresen tam a história da reden ção, um a n arrativa do que
D eus fez para salvar seu povo do pecado. À m edida que essa história pro-
gride, a Escritura esclarece gradualmente o ensino sobre a natureza trinitária
de D eus: ele é um em três pessoas: Pai, Filho e Espírito San to. A m esm a
essên cia em três pessoas.
Apren dem os sobre o D eus triún o porque isto é profun dam en te con cer-
n en te à salvação. N o tem po certo, a segun da pessoa da Trin dade torn ou-se
hom em para viver um a vida hum an a perfeita e m orrer com o sacrifício pelo
pecado. Após a ressurreição e a ascen são para o céu, o Pai e o Filho en via-
ram o Espírito San to, terceira pessoa da Trin dade, para capacitar a Igreja e
d ar-lh e au t orid ad e em su a m issão d e levar o Evan gelh o a t od a a Ter ra
(At 1:8).
O Espírito faz o trabalho de Cristo em n osso coração. Ele n os perm ite
en ten der e praticar a Palavra de D eus, pois distribui seus don s e n os preen -
che com eles, capacitando-nos para o ministério e para testemunhar de Cristo.
Q uan do Jesus disse à m ulher sam aritan a que “vem a hora e já chegou, em
que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade”
(Jo 4:23), n ão estava m eram en te predizen do um a adoração m ais sin cera
en tre seu povo. An tes, ele estava se referin do tam bém a coisas n ovas que
D eus estava preparan do para n ossa salvação.
A salvação que D eus n os oferece capacita-n os n ovam en te à adoração
sin cera, coeren te e racion al. Fom os salvos pela verdade para adorar, e n ão
apen as para escapar do in fern o. A verdade é a verdade do Evangelho, as boas

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
221

n ovas da salvação em Cristo (Jo 1:17). O Espírito é o Espírito da verdade


(Jo 14:17; 15:26), que vem testem un har poderosam en te do Evan gelho.
Con cluin do, con sidero fun dam en tal, para um cam in ho de espiritualida-
de n a adoração, a com preen são teológica que procura in tegrar e cultivar
n osso cham ado para amar a D eus in tegralm en te n um relacion am en to de
in tim idade e am izade, que repercute em tudo o que sou e faço; recon hecer
a m ediação de Jesus Cristo nesta adoração; e recuperar ou resgatar a doutri-
n a do D eus triún o, pois viem os à existên cia por plan ejam en to em com u-
n hão deles, com o propósito m aravilhoso, jun to com toda a Criação, de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

adorar.
Adorem os e celebrem os ao D eus Pai, Filho e Espírito San to! Q ue fique-
m os cada dia m ais parecidos com Cristo.

A Espiritualidade e a IGREJA
222 UNIDADE IV

EM BUSCA
A ESPIRITUALIDADE DA GENUÍNA
NAS ESCRITURAS
ESPIRITUALIDADE
EM BUSCA DA GENUÍNA ESPIRITUALIDADE

�Russell Shedd 1
Ph.D. em Novo
Testamento pela
Universidade de
Edimburgo, na Esccia,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
é missionário da Missão
Espiritualidade significa a busca e a própria
Batista Conservadora
no Sul do Brasil. experiência da comunhão com Deus. Inclui a ex­
Lecionou na Faculdade pressão dessa convivência a partir de práticas que
Teolóica Batista de São agradam o Criador. À medida que alguém se aproxi­
Paulo e viaja pelo Brasil ma de Deus, a espiritualidade torna-se mais intensa
e exterior fazendo e real. A distância e o descaso por Deus mitigam a
conerências em comunhão e subtraem o brilho e a cor da espirituali­
congresos, Igrejas,
dade. É por isso que o legalismo e a religião formal
seminários e escolas de
fincam suas raízes em uma espiritualidade defeituo­
Teologia. Escritor e
sa ou deficiente.
biblista, undou Ediçõs
Vida Nova e cordena a
Seria possível dizer que uma máquina sem rodas,
Shedd Publicaçes. motor, portas, vidros , bancos e volante seja um car­
ro? Claro que não. Da mesma forma, espiritualidade
que omite amor, fé, meditação nas Escrituras e expe­
riência do poder do Espírito Santo não deve ser con­
siderada bíblica. Durante séculos, a Igreja cultivou e
incentivou certos exercícios espirituais. No entanto,
se omitidos os componentes essenciais , tais exer­
cícios constituem apenas a casca da espiritualidade
autêntica.
As formas de exercícios mais recomendados no
passado eram:
• Leitura, especialmente a da Bíblia. Logo fo­
ram acrescentadas as obras que visavam a
37
A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
223

edificar os fiéis, com o Atos dos mártires, a vid a e os m ilagres d e


religiosos fam osos, além de leituras classificadas com o “edifican tes”.
• O s salm os conquistaram um a certa proem inência entre os livros m ais
eficazes n a prom oção da espiritualidade. Com os salm os, estabele-
ceu-se um a ên fase sobre vigílias, “horas de oração” e outras práticas
sem elhan tes.
• O rações, procissões, litan ias, estações e peregrin ações, en tre outros
rituais, foram gradativam ente incluídos entre os exercícios espirituais
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

m ais freqüen tes da Igreja in stitucion al.


• A con fissão do pecado dian te de D eus (Sl 32:6; 1Jo 1:9) e dos irm ãos
(Tg 5:16) está en tre os exercícios que prom ovem a espiritualidade.
“N ada”, disse um velho Pai do D eserto, “en fraquece o poder de Sata-
nás como revelar nossos pensamentos impuros para homens santos.”1
• A San ta Com un hão gan hou seu con hecido lugar de destaque com o
m eio de exercitar a espiritualidade.
• O auto-exam e (2Co 13:5) tam bém tem seu lugar en tre os exercícios
que marcam a espirit u alid ad e. N os m ost eiros d a Id ad e M éd ia, u m a
série de regras foi elaborad a p ara p erm it ir o exam e d a p róp ria
con sciência.
• M editação e con tem plação, isto é, “o esforço para afastar a alm a do
m un do sen sível”.2
• Silên cio. A passagem do salm o 39:1 (“Vigiarei a m in ha con duta e
n ão pecarei em palavras; porei m ordaça em m in ha boca en quan to os
ím pios estiverem n a m in ha presen ça”; N VI ) deu respaldo a esta práti-
ca espiritual, que elevaria a alm a até a própria presen ça de D eus.
Até que pon to esses exercícios con seguiram prom over espiritualidade é
m otivo de m uitas con jecturas. U m a observação, n o en tan to, se con firm ou
ao lon go da história da Igreja: a prática desses exercícios n ão pode ser
iden tificada com o a verdadeira espiritualidade — certam en te n ão n o sen ti-
do bíblico. Exercícios espirituais sem am or carecem de valor para D eus, e
oferecem um gran de risco de prejuízo e ilusão para seus pratican tes.

A Espiritualidade nas Escrituras


224 UNIDADE IV

O AMOR E O PERDÃO DE DEUS


Jesus confirm ou a centralidade do prim eiro m an dam en to citan do D eutero-
n ôm io 6:5 em três passagen s dos evan gelhos. O am or pelo Sen hor foi ele-
vado por Jesus à m ais alta posição en tre os deveres espirituais im postos
pelo próprio D eus. En volve todo o coração, toda a alm a, todo o en ten di-
m en to e todas as forças. D istin to de m uitos outros deveres bíblicos, o am or
por D eus — que vai m uito além de atos e práticas extern as — deve ser o
com pon en te prin cipal da espiritualidade. A m aior e m elhor afirm ação que
se pode dizer de alguém é que ele am ou ao Sen hor, e n ão que m an teve

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silên cio duran te trin ta an os, com o o abade Thom as, e n em que participou
da San ta Com un hão todas as vezes que tom ava um refeição. 3
Em certo m om en to, quan do Jesus foi hóspede n a casa de um fariseu
cham ado Sim ão, o Filho de D eus teve a oportun idade ím par de ilustrar
tan to o que gera am or com o o m eio pelo qual esse am or se expressa. D u-
ran te o jan tar, um a “pecadora” trouxe um frasco de alabastro com perfum e.
M olhou os pés de Jesus com suas lágrim as, para em seguida en xugá-los
com seus cabelos, beijá-los e un gi-los com perfume (Lc 7:37-38). As obje-
ções de Sim ão in citaram um a resposta in esperada. Jesus con tou a história
de dois hom en s em débito: o prim eiro, com um a dívida dez vezes m aior
que o outro. Sem n ada com que pagar o credor, am bos tiveram suas dívidas
perdoadas.
D epois deste breve relato, Jesus argüiu o fariseu sobre qual dos dois
hom en s seria capaz de am ar m ais o credor que tin ham em com um . “Supo-
n ho que será aquele a quem foi perdoada a dívida maior”, foi a resposta.
D epois de con trastar com o Sim ão o tratou e com o a “pecadora” agiu, Jesus
declarou que “os m uitos pecados dela lhe foram perdoados: pois ela am ou
m u it o. M as aqu ele a quem pouco foi perdoado, pouco am a” (Lc 7:47; N VI ).
Aos olhos de D eus, é possível que os pecados de Sim ão fossem m ais
graves que os da m ulher que chorara aos pés de Jesus. O auto-exam e da
vida daqueles que pecam con firm a que, um a vez perdoados, am am m ais a
D eus. A certeza da gravidade de seus pecados é proporcion al à força com a
qual se apegam ao Sen hor da m isericórdia. Certam en te, são os que m ais
apreciam o perdão recebido. Em seus delitos, eles en xergam e iden tificam

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
225

crim es com etidos con tra o próprio D eus. O que im porta para aum en tar o
am or é a in ten sidade da con vicção do pecado que D eus apaga com sua
m aravilhosa graça.
Agostin ho destacou-se por sua espiritualidade porque recebeu um a vi-
são m ais n ítida e profun da de seus pecados. En ten deu que sua vida sem
D eus foi subversão e rebelião con tra aquele que m ais m erecia seu am or e
sua lealdade. Suas con fissões ressaltam a in ten sidade do am or gerado n a
tristeza criada pelas tran sgressões praticadas e absolvidas. D isse ele: “Eu
odiaria m in ha própria alm a se descobrisse que ela n ão am a a D eus.” 4
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Im agino que a m ulher pecadora teve um contato prévio com Jesus, o que
levou à tran sform ação de seus m uitos pecados (n a dim en são da m en te) de
sim ples erros e deslizes m orais em terríveis in sultos, blasfêm ias e rebeldia
con tra D eus. D aí as lágrim as, os beijos e o derram am en to do perfum e,
expressan do a em oção do arrepen dim en to que sen tia. Trata-se do am or
genuín o que part e o coração do pecador culpado. D isse Joh n Piper: “N in-
gu ém ch ora p ela falt a d e san t id ad e se n ão t iver am or p or aqu ilo qu e
n ão tem .”
Sim ão n ão expressou n en hum am or m ais in ten so por Jesus porque n ão
se perm itiu um a visão crítica a respeito do próprio pecado, capaz de lhe
criar algum incômodo na alma. Achou que sua dívida era pequena. A parábola
põe em relevo o prin cípio: pouco pecado perdoado, pouco am or gerado.
A espiritualidade superficial de n ossos dias tem suas raízes n a falta de
con vicção de que n osso pecado é a m ais hedion da rebeldia e traição ao
Sen h or. C om ext rem a facilid ad e as p essoas d erram am lágrim as p or p er-
d as fin an ceiras, p or u m a boa rep u t ação m acu lad a, p elo falecim en t o d e
en tes qu erid os. En t ret an t o, qu em ch ora p elo cân cer d o p ecad o con t ra o
ú n ico e absolu t am en t e san t o e am oroso D eu s? Ped ro ch orou com am ar-
gu ra porque negou a Jesu s. Sen t iu a an gú st ia e a d or d a cu lp a d e m an eira
su ficien t em en t e con t u n d en t e p ara am ar a Jesu s m u it o m ais ap ós o p er-
d ão ou t orgad o (Jo 2 1 ). In st ru íd o p ela p róp ria exp eriên cia, Ped ro escre-
veu , an os d ep ois: “M esm o n ão o t en d o vist o, vocês o am am , e ap esar d e
n ão o verem agora, crêem n ele e exultam com alegria in dizível e gloriosa”
(1 Pe 1 :8 ; N VI ).

A Espiritualidade nas Escrituras


226 UNIDADE IV

N ós, evan gélicos, tem os barateado a graça, dim in uído a tristeza da con -
vicção do pecado e en ven en ado o solo que gera am or. “N ão existe a verda-
deira liberdade nem a alegria certa exceto no tem or de D eus, acom panhado
de um a con sciên cia lim pa. Feliz é aquele que sabe lan çar fora todos os
im pedim en tos que causam distração e con cen trar-se n o propósito ún ico da
con trição san ta. Feliz é aquele que sabe afastar de si tudo o que possa
poluir sua con sciên cia ou sobrecarregá-la.” 5
O afastamento da culpa pelo precioso sangue de Jesus intensifica o amor.
O perdão do pecado que pouco fere a con sciên cia desvaloriza o am or de

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D eus derram ado n o coração. Con seqüen tem en te, ele n ão con stran ge o pe-
cador (2Co 5:14), e a espiritualidade se tran sform a em liturgia e rituais
vazios.
D isse A.W. Tozer: “A razão p ela qu al m u it os ain d a est ão at ribu lad os
(e ven cidos), buscan do, m as fazen do pouco progresso, é que ain da n ão
chegaram ao fim de si m esm os.” O am or por n ós m esm os dificilm en te ren -
de espaço para o am or de D eus. Com isso, a espiritualidade se esvai. O
prim eiro passo n ecessário para seguir a Jesus é n egar a si m esm o e carregar
a própria cruz da culpa que Cristo levou por n ós em sua cruz. N en hum a
aflição n em flagelo pode apagar os delitos que n os m atam .
Tem os o hábito de destrancar o coração e subjugar os pensamentos diante
do D eus Todo-Poderoso? Estam os viven do n a con vicção de sua presen ça?
H averia em nós a capacidade de externar este testem un ho especial de que a
presen ça dele está estabelecida den tro de n osso coração para a salvação? 6
J.H . N ewm an con tin ua n os lem bran do de que n ossa alm a está repleta
de m anchas e corrupções — porém , invisíveis a nós. A presença de D eus em
n ós é com o o raio de luz vin do do sol que passa por um quarto escuro. Fora
da ilum in ação deste raio, n ão en xergam os as partículas de poeira que sem -
pre estão suspen sas n o ar. Falta a luz do sol para percebê-las. Q uan do a
presen ça de D eus clareia a con sciên cia com seu facho de luz, os pecados
aparecem , e podem os vê-los perm ean do o am bien te.
O dr. J.I. Packer faz o seguin te com en tário: “Parece que o próprio Paulo,
à m edida qu e avan çava em an os — e presum ivelm en te tam bém em san ti-
dade —, cresceu cada vez m ais para baixo, para um sen tim en to vívido e

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
227

hum ilhante de sua falta de m érito. Enquanto em 1Coríntios (c. 54 a.D .) ele
se diz o m en or den tre todos os apóstolos e, em Efésios (c. 61 a.D .), o
m en or de todos os san tos, em 1Tim óteo (c. 65 a.D .) ele descreve a si m es-
m o com o o pior dos pecadores.”7

O AMOR E A ADORAÇÃO
Surpreen den tem en te, ao escrever aos corín tios, Paulo afirm a que algum as
práticas nos cultos da igreja nada valem , pois lhes falta o amor. Como exem-
plo, ele afirm a que falar em lín guas dos hom en s (en sin o) ou dos an jos
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(glossolalia) sem am or torn a o adorador sem elhan te a um “sin o que ressoa


ou com o o prato que retin e” (1Co 13:1; N VI ). O s don s de profecia, de
con hecim en to e de fé — este capaz de m over m on tan has — que n ão são
acom pan hados do am or ou exercidos com ele, n ão possuem valor algum
para D eus, e n ada acrescen tam ao adorador que os pratica. N em m esm o a
doação dos próprios ben s em ben efício dos pobres ou o suprem o sacrifício
do m artírio acrescen tam algum proveito ao adorador, se n ão forem atos
resultan tes de um espírito que am a de fato (1Co 13:2,3). Espiritualidade
sem esse com pon en te essen cial é um a prática vã.
Eviden tem en te, é possível utilizar os don s que D eus con cede sem esta
qualificação essen cial. O exercício dos pneumatikoi (don s espirituais) pode
ou n ão agradar a D eus, depen den do do am or e da hum ildade que m otivam
e acom pan ham seu uso.

Aqueles que am am a Jesus por ele m esm o, e n ão por algum con forto pró-
prio esp ecial, ben d izem -n o em t od a t ribu lação e an gú st ia d e coração,
bem com o n o m ais alto con forto [...] Ah, com o é poderoso o am or puro de
Jesus que n ão se con fun de com in teresse próprio ou am or por si.8

É assim que Thom as à Kem pis m arca a diferen ça en tre os atos de culto
que se iden tificam com espiritualidade cristã. Q uan do há in teresse próprio
que sobrepuja o am or pelo Sen hor, ou deixam os de am ar a D eus pelo que
ele é, o culto perde sua pureza. A espiritualidade fica con tam in ada e desvir-
tuada.
Apen as três décadas após a m orte de Paulo, Clem en te de Rom a escre-
veu à igreja de Corin to:

A Espiritualidade nas Escrituras


228 UNIDADE IV

Q uem pode descrever o aben çoado vín culo do am or de D eus? Q ue ho-


m em é capaz de con t ar a excelên cia de sua beleza, com o é de fat o? A
altura para a qual o am or exalta é in dizível. O am or n os un e a D eus. Ele
cobre um a m ultidão de pecados [...] Pelo am or, todos os eleitos de D eus
são aperfeiçoados, e sem ele n ada agrada a D eus. Em am or, o Sen hor n os
levou a ele. Por causa do am or que tin ha em si, Jesus Cristo, n osso Se-
n h or, d eu seu san gu e p or n ós, p ela von t ad e d e D eu s; su a carn e p ela
n ossa, e sua alm a por n ossa alm a.9

A igreja de Éfeso perdeu seu prim eiro am or (Ap 2). N ão parou de trabalhar

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arduamente. Foi conhecida pela perseverança. Praticou a disciplina entre os
m em bros, excluin do os im postores. N ão fugiu do sofrim en to pelo n om e de
Cristo. M an teve a força e n ão desfaleceu. D iscern iu a m aldade das práticas
dos n icolaítas. In felizm en te, o en fraquecim en to do am or torn ou toda a ati-
vidade da igreja en fado, can saço e tradição rotin eira.
A seried ad e d est e est ad o d e frieza m ot ivou o Sen h or a d izer: “Lem -
bre-se d e on d e caiu ! Arrep en d a-se e p rat iqu e as obras qu e p rat icava n o
p rin cíp io” (v. 5 ; N VI ). Afast ar o am or (ágape) d o cu lt o e d o ser viço é
u m a at it u d e d ign a d e con d en ação. É p ecad o, qu e requ er, p ort an t o, arre-
pen dim en t o.
Eviden tem en te, o am or que arde n o in ício da fé pode perder o calor.
Cristãos que se un em a D eu s com en t u siasm o m u it as vezes p erd em o
p razer de adorar, ler as Escrituras e m editar n elas, participar n os cultos e
testem un har da tran sform ação qu e o Evan gelh o realiza. A alegria d o re-
lacion am en to com D eus, expressa em rotin as e repetições de atos religio-
sos, não empolga nem atrai. D a mesma maneira que, em alguns casamentos,
os côn juges trocam o rom an ce e a paixão por relações cordiais, cultos sem
en tusiasm o e gratidão oferecem um a espiritualidade seca e desgastada.
Apen as cum prem form alidades.
A espiritualidade deve un ir o coração, a m en te e a m ão, um a idéia am -
plam en te en corajada n a Palavra e m an tida desde os tem pos da igreja prim i-
tiva. As três dim en sões da vida — o afeto, o pen sam en to e a ação —, se
m an tidas em equilíbrio, con duzem a Igreja n o cam in ho seguro do Sen hor.
O en tusiasm o do am or, a disciplin a da m en te e a m in istração das m ãos

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
229

produzem harm onia entre os m em bros da Igreja dotados dos dons que con-
dizem com essas categorias. Porém , será o am or, o fruto de Cristo em seu
Corpo, que liberará a en ergia do Espírito e tran sform ará a religiosidade vã
em espiritualidade que agrada a D eus.

A FÉ

A cen tralidade da fé n a espiritualidade torn a-se eviden te e clara pois “sem


fé é im possível agradar a D eus” (H b 11:6; N VI ). Ao pen sar n o con ceito
bíblico de fé, em bora se devam con siderar vários aspectos, deve-se focar o
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sen tido básico da con fian ça em D eus. Fé, n o N ovo Testam en to, apresen ta
um sign ificado de con fian ça que se destaca dos dem ais elem en tos. “N o uso
do vocábulo n o sen tido verbal (crer), m uitas vezes aparece jun to à preposi-
ção en (“em ”) epi (“sobre”). Assim , apon ta para a con fian ça ou para a de-
pen dên cia da pessoa ou do objeto em que se deposita a fé.”10
Para que a fé possa ser dirigida à pessoa de D eus, é pressuposto fun da-
m en tal crer em fatos revelados n a Bíblia, os quais descrevem a n atureza
divin a, sua Palavra e sua obra. N ão é possível crer n o Sen hor Jesus sem ,
con tudo, recon hecê-lo com o o M essias, o filho de D eus en carn ado, crucifi-
cado e ressurreto.
Crer em D eus n ão pode prescin dir de algum con hecim en to de sua n atu-
reza e de seus atributos (Rm 1:19-21). Fé é elem en to essen cial à espiritua-
lidade porque en t en dem os que D eus é soberan o e pessoal, e deseja se
relacion ar com os seres h u m an os. A fé aceit a a verd ad e d e qu e, em rela-
ção ao m un do, o Criador dirige aten ção especial a seus filhos. É n atural
para D eus dar aten ção a cada um de seus filhos como se fosse o único no
mundo.
Em resposta ao am or de D eus, a busca pela espiritualidade in clui, em
seu cern e, a gratidão e a valorização da vida, assim com o o recon hecim en to
dos privilégios que D eus nos dá. D iz M ax M uller:

Com o devem os ser grat os a ele por cada m in ut o de n ossa exist ên cia e
porque tudo n os dá para gozar! Q uão pouco m erecem os esta vida feliz,
m uito m en os do que m uitos pobres sofredores, para quem a vida é um
fardo e um a provação dura e am arga. M as, en tão, quão m aior é a dívida

A Espiritualidade nas Escrituras


230 UNIDADE IV

e m ais sagrad o o d ever d e n u n ca d esp erd içar t em p o e poder, m as viver


em todas as coisas, pequen as e gran des, para a glória e louvor de D eus;
ter o Sen hor sem pre presen te con osco e estar pron tos a seguir sua voz, e
sua voz som en te!11

Foi este prin cípio que regeu a vida de Paulo e tam bém o que o m otivou
a exortar os corín tios: “Assim , quer vocês com am , bebam ou façam qual-
quer outra coisa, façam tudo para a glória de D eus” (1Co 10:31; N VI ).
Sem qualquer dúvida, o m aior presen te que D eus n os oferece é a justi-
ficação e a recon ciliação com ele. Assim , pecadores são tran sform ados de

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cativos de Satan ás em am igos de D eus. Esta dádiva, porém , pode ser rece-
bida un icam en te pela fé (Ef 2:8), isto é, cren do que D eus é real, que ele
en viou seu Filho, o etern o Logos que en carn ou para m orrer com o n osso
substituto, ressuscitou e foi en tron izado. Ele n os en via seu Espírito para
n os regen erar. Se est am os con vict os d e qu e est a h istória é verídica e
firm am os n ossa fé em Jesus Cristo, gan ham os paz com D eus e esperan ça
da vida etern a.
Q ualquer espiritualidade que valoriza obras que torn am D eus um deve-
dor n ão pode ser con siderada bíblica. A fé evan gélica cita o apóstolo Paulo:
“Sen do justificados gratuitam en te por sua graça, por m eio da reden ção que
há em Cristo Jesus [...] tem os paz com D eus, por n osso Sen hor Jesus Cris-
to, por m eio de quem obtivem os acesso pela fé a esta graça n a qual agora
estam os firm es” (Rm 3:24; 5:1-2; N VI ).
Fé salvadora requer m uito m ais que um a sim ples con cordân cia com os
fat os d o Evan gelh o. Q u an d o se oferece ap en as an u ên cia às verd ad es
salvadoras sem am or gen uín o, a espiritualidade deixa de ser cristã. A con fi-
an ça gen uín a em D eus exige com un hão. Q uan do a fé n ão é capaz de criar o
desejo de obedecer às orden s de D eus e guardar seus preceitos, deixa de ser
resultado da con fian ça autên tica e gerada pelo am or.
A obediên cia gerada pela fé n ão opera com o fon te de m érito, m as “atua
pelo am or” (Gl 5:6; N VI ). Este fato an ula qualquer pen sam en to que n ão
con diz com a m ais profun da hum ildade de espírito. Jesus deu ên fase espe-
cial a esta n ecessidade n a prim eira bem -aven turan ça.

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
231

O PODER DO ESPÍRITO
O terceiro com pon en te in dispen sável da espiritualidade gen uín a é o poder
do Espírito San to. Ele é o m eio de con tato que com un ica a presen ça divin a
aos que crêem . Ele é a fon te que vivifica a Igreja — a en ergia vital do Corpo
de Cristo. Em seu livro O desenvolvimento natural da Igreja, Christian Schwartz
afirma:
O s que defen dem o paradigm a da espiritualização n ão en ten dem que foi
D eus m esm o quem criou o m un do e o con siderou ‘m uito bom ’ (Gn 1:31).
Eles n ão en ten deram qu e a en carn ação é a p alavra qu e se t orn a carn e
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(Jo 1 :1 4 ). Eles n ão en t en deram que, de acordo com o t est em un h o da


Bíblia, o Esp írit o d e D eu s é a origem d a vid a e d a en ergia d a C riação
(Sl 104:30; Jó 34:14). 1 2

O salm ista ficou m aravilhado com a realidade da presen ça do Espírito.


“Tu m e cercas, por trás e pela fren te, e pões a tua m ão sobre m im [...] Para
on de poderia eu escapar do teu Espírito? Para on de poderia fugir da tua
presen ça?” (Sl 139:5,7; N VI ). Rufus Jon es assim com en tou a im an ên cia de
D eus pelo seu Espírito:

Por toda a lin ha do cristian ism o histórico, houve freqüen tes explosões de
fé pen t ecost al e fervor. Algo sem elh an t e ao que acon t eceu n o cen áculo
cin qüen t a dias após a crucificação t em alcan çad o gru p os p eq u en os e
m aiores de cren tes. E quan do esta experiên cia ocorreu, deu àqueles gru-
pos a seguran ça de que D eus estava lá com o Espírito, e n ão o Soberan o
rem oto n o céu.13

Paulo pede, em sua oração pelos efésios, “que o D eus de n osso Sen hor
Jesu s C rist o, o glorioso Pai, lh es d ê esp írit o d e sabed oria e d e revelação,
n o p len o con h ecim en t o d ele. O ro t am bém p ara qu e os olh os d o coração
d e vocês sejam ilu m in ad os, a fim d e qu e vocês con h eçam a esp eran ça
p ara a qu al ele os ch am ou , as riquezas da gloriosa herança dele n os santos
e a in com p arável gran d eza d o seu p od er p ara con osco, os qu e crem os”
(Ef 1 :1 7 -1 9 ; N VI ).

Em cultos n os quais a presen ça atuan te do Espírito n ão é prioritária,


falta sabedoria e revelação. À palavra pregada falta o elem en to profético e a

A Espiritualidade nas Escrituras


232 UNIDADE IV

relevân cia — portan to, n ão alcan ça seu propósito de pen etrar os corações
com o um a espada de dois gum es. Sem revelação, o culto n ão tem poder de
provocar a reação en tre n ão cren tes (“D eus realm en te está en tre vocês”)
que ocorre quan do o Espírito fala pela m en sagem (1Co 14:24,25). Sem a
iluminação dos “olhos do coração”, as realidades espirituais parecem etéreas
e ilusórias. Parece tratar-se de esperan ça apen as virtual, um a heran ça que
jam ais será n ossa. A “gran deza do poder” parece m ais um riacho do que o
rio Am azon as.
A m otivação que im pulsion ou Paulo em sua oração pelos efésios foi seu

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desejo de vê-los crescer espiritualm en te. Crescim en to espiritual, além de
tudo, é dom do Espírito San to. Lon ge da presen ça de n osso Ajudan te, os
exercícios espirituais podem ser m ortais. É preciso pedir ao Espírito San to
a orien tação n ecessária para que as experiên cias de culto, m editação, parti-
cipação n a ceia e tudo o m ais sejam úteis n o objetivo de alcan çar m aturida-
de espiritual.
Paulo lem brou aos tessalon icen ses que o Evan gelho chegou “n ão so-
m en te em palavra, m as tam bém em poder, n o Espírito San to, e em plen a
con vicção” (1Ts 1:5; N VI ). Aos corín tios, ele prom ete visitá-los em breve, e
en tão saberá que poder os líderes arrogan tes possuem : “Pois o Rein o de
D eus n ão con siste de palavras, m as de poder” (1Co 4:19,20; N VI ).
Se lerm os as en trelin has, con cluirem os que a justificativa do sucesso em
Tessalôn ica foi a m an ifestação do Espírito, produzin do con vicção acerca da
veracidade da m en sagem , tal com o acon teceu em Jerusalém n o dia em que
o Espírito desceu com poder. Em Corin to, era eviden te que Paulo tin ha
um a un ção da qual os m aus m estres n ão gozavam . Espiritualidade, om itin -
do a operação poderosa do Espírito nos corações, assemelha-se mais à sombra
que à substân cia.
O autor de H ebreus assim com para a adoração sob a Lei n a Velha Alian -
ça e a aproxim ação a D eus para adorá-lo após o derram am en to do Espírito
n os que crêem (H b 10:1). Pedro in troduziu sua m en sagem n o dia de Pen te-
coste, asseveran do que a profecia de Joel se cum pria (At 2). D eus derram a-
ra seu Espírito sobre toda carn e, in auguran do assim a N ova Alian ça e
form an do sua Igreja.

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
233

A vin da do Espírito torn ou possível a verdadeira espiritualidade. A che-


gada do Paracletos (o “En corajador”) gera seu fruto n os corações cristãos,
isto é, o am or e a m otivação para obedecer às in struções de Jesus. Em con -
seqüên cia, Jesus prom eteu, “m eu Pai o am ará, n ós virem os a ele e farem os
m orada n ele” (Jo 14:23; N VI ). A espiritualidade que surge a partir da vin da
do Espírito San to em poder deve fun dam en tar-se realm en te n a Bíblia.
É lastim ável perceber que a busca pelo poder do Espírito, em n osso país,
tem guardado um a relação pouco profun da com a espiritualidade. N ão é a
com un hão com o Sen hor que atrai a m aioria, m as os presentes que ele dá:
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saúde, em prego, proteção. A teologia da prosperidade valoriza o que pode-


m os con seguir de D eus, e n ão os preciosos m om en tos em que podem os
desfrutar de sua presen ça e com un hão.

MEDITAÇÃO NA PALAVRA
O utro com ponente fundam ental para legitim ar a espiritualidade bíblica é o
estudo e a m editação n as Escrituras in spiradas pelo Espírito. As palavras
que D eus pron un ciou a Josué — “N ão deixe de falar as palavras deste Livro
da Lei e de m editar n elas de dia e de n oite, para que você cum pra fielm en te
tudo o que n ele está escrito” (Js 1:8; N VI ) — oferecem a base veterotesta-
m en tária para susten tar o valor da m editação. A revelação prop osicion al
qu e D eu s ap resen t ou aos p rofet as p ela in spiração providen ciou o m eio
p elo qu al os san t os d o An t igo Test am en t o p u d eram con hecer a m en te de
D eus e en t rar em com u n h ão com ele.
N o prim eiro salm o, o hom em próspero (espiritualm en te falan do) m edi-
ta n a Lei do Sen hor de dia e de n oite. A pessoa que se dedica a essa disci-
plin a n ão o faz em vão se, por m eio desse exercício espiritual, con segue
comunhão com a Fonte inspiradora da Escritura. Essa prática não deve limi-
tar-se apen as a um esforço por seguir n orm as divin as alistadas n a Lei, sem
in teresse gen uín o por sua presen ça. Prosperidade espiritual n ão se iden tifi-
ca com farisaísm o, m as com com un hão.
O salm o 19 de D avi afirm a que a Lei do Sen hor é perfeita e capaz de
revigorar a alm a (v. 7). Q uan do o hom em de D eus m edita n as Palavras
reveladas pelo Sen hor, sua alm a gan h a força e in cen t ivo p ara segu ir os

A Espiritualidade nas Escrituras


234 UNIDADE IV

p receitos divin os. É com parável ao doen te que, auxiliado por rem édios,
vitam in as e alim en tos saudáveis, recupera a saúde — e, com ela, a en ergia,
a vitalidade e o en tusiasm o.
Pedro cita salm os 34 — “Provem , e vejam com o o Sen hor é bom ” —,
aplican do o texto a crian ças n a fé que “desejam de coração o leite espiritual
puro, para que por m eio dele cresçam para a salvação, agora que provaram
que o Sen hor é bom ” (1Pe 2:2,3; N VI ). Para os recém -con vertidos, torn a-se
clara a n ecessidade de se alim en tar da Palavra para con firm ar o fato de que
o Sen hor é bom e crescer em direção à m aturidade espiritual. Q ue outro

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m eio m ais seguro há de experim en tar com un hão real com D eus, além de
escutar sua voz por m eio das Escrituras?
Experiências m ísticas funcionam para alguns. Seria glorioso possuir uma
lin ha telefôn ica especial para a “sala do tron o de D eus”. Seria vergon hoso,
porém , descobrir que con fun dim os n ossos pen sam en tos com recados divi-
n os. Jerem ias apon tou o perigo de profetas que profetizam “m en tiras e as
ilusões de suas próprias m en tes [...] Eles im agin am que os son hos que
con tam un s aos outros farão o povo esquecer o m eu n om e” (Jr 23:26,27;
N VI ). D eus pode falar por son hos e visões, m as raram en te tran sm ite suas
m en sagen s por outros m eios além de sua Palavra in spirada. Ele n un ca fala
algo que con tradiga sua revelação autoritária, can on izada para orien tar to-
dos os cristãos.
Jerem ias desafiou os que desprezavam a palavra profética do Sen hor
com a pergun ta que deve ser repetida hoje para os que n ão têm tem po ou
in teresse de exam in ar a Palavra: “Q ual deles esteve n o con selho do Sen hor
para ouvir a sua palavra?” (Jr 23:17,18; N VI ). Toda espiritualidade que n ão
tem raízes p rofu n d as n o “con selh o d o Sen h or” an d a n a con t ram ão d os
sin aleiros d a Bíblia. Jesu s d isse a seu s con t em p orân eos: “Vocês est ão
en gan ad os p orqu e n ão con h ecem as Escrit u ras n em o p od er d e D eu s!”
(M t 22:29; N VI ).

D avi expressou seu desejo in ten so de um en con tro com D eus: “Todo o
m eu ser an seia por ti, n um a terra seca, exausta e sem água” (Sl 63:1; N VI ).
Esse con tato com o Sen hor era possível en quan to ele se deitava, se lem bra-
va de seu D eus e n ele p en sava d u ran t e as vigílias d a n oit e (v. 6 ). Tais

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
235

p en sam en tos só lhe eram possíveis p or m eio d o con h ecim en t o d as Escri-


t u ras. Esp irit u alid ad e d ep en d e d iret am en t e d a revelação escrit a. É o
galard ão d aqu eles qu e con t em plam e buscam in ten sam en te a água viva
que Jesus prom eteu à m ulher sam aritan a. Satisfaz os seden tos e purifica os
maculados.
Pedro n ão en ten deu com o o ato de Jesus lavar-lhe os pés proporcion aria
purificação e un ião espiritual com Cristo (Jo 13:8-10). Jesus disse: “Se eu
n ão os lavar [isto é, os pés do apóstolo], você n ão terá parte com igo.” M ais
tarde, falou aos discípulos: “Vocês já estão lim pos, pela palavra que lhes
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ten ho falado” (Jo 15:3; N VI ). Por m eio da fé, o pecador fin ca sua con fian ça
n o solo firm e das palavras registradas por profetas e apóstolos para ficar
lim po e un ido ao Sen hor. O apóstolo do am or disse: “Se con fessarm os os
n ossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar os n ossos pecados e n os
purificar de toda in justiça” (1Jo 1:9). M as esta prom essa serve un icam en te
para aqueles que, pela Palavra, reconhecem seus delitos a fim de confessá-los.
O autor do salm o 119 acreditava n a sin gularidade da Palavra para pro-
porcion ar um en con tro válido e efetivo com D eus. Con sidere o versículo 2,
em que a busca pelo Sen hor é iden tificada com a prática de seus estatutos:
“Com o são felizes os que obedecem aos seus estatutos e de todo o coração
o buscam ”, isto é, ao Sen hor.
Tan to o louvor a D eus quan to a busca sin cera e de todo o coração pelo
Sen hor são expressões de obediên cia e com un hão espiritual (Sl 119:10).
Sem raízes profun das n a Palavra de D eus, n ão há ben efícios: “O bedecerei
aos teus decretos; n un ca m e aban don es” (v. 8). “Tu és a m in ha heran ça,
Sen hor; prom eti obedecer às tuas palavras” (v. 57) é um a afirm ação que
con firm a essa verdade sobre a espiritualidade.
O fun dam en to que susten tou o relacion am en to de Israel com seu D eus
foi a alian ça que D eus firm ou com a n ação n o m on te Sin ai. M oisés foi
in tim ado a passar o recado de D eus aos escravos libertados da m ão opres-
sora do govern o do Egito.

D iga o seguin te aos descen den tes de Jacó e declare aos israelitas: Vocês
viram o que fiz ao Egito e com o os tran sportei sobre asas de águias e os
trouxe para junto de mim. Agora, se me obedecerem fielmente e guardarem

A Espiritualidade nas Escrituras


236 UNIDADE IV

a m in ha alian ça, vocês serão o m eu tesouro pessoal den tre todas as n a-


ções. Em bora toda a terra seja m in ha, vocês serão para m im um rein o de
sacerdot es e um a n ação san t a. Essas são as palavras que você dirá aos
israelit as.
Êxodo 19:3-6; N VI

A história posterior de Israel dem on strou com o o esquecim en to da pala-


vra divin a registrada n os Livros Sagrados apagou a espiritualidade do povo
escolhido. É in explicável este fen ôm en o: todos os privilégios que D eus ofe-
receu n a alian ça foram desperdiçados por desvalorizar o con tato vital com

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D eus. Josué e sua fam ília lideraram a n ação n o com prom isso de servir ao
Sen hor; porém , logo depois da m orte do gran de líder e de sua geração,
todos seguiram o próprio con selho. “O s israelitas fizeram o que o Sen hor
reprova e prestaram culto aos baalin s” (Jz 2:11).
Foi o perigo de receber a bên ção de ouvir a voz de D eus através das
Escrituras, por m eio da m editação, e logo perder este bálsam o que m otivou
Fran cisco de Sales (1567-1622) a declarar:

Acim a de t udo, am ado, esforce-se, quan do t erm in ar sua m edit ação, de


reter os pensamentos e as resoluções que assumiu como sua prática interior
duran te o dia. Este é o fruto real da m editação, sem o qual ela pode ser
desprovida de proveito, ou até prejudicial. Con cen trar a m en te em virtu-
des sem prat icá-las gera a t en dên cia de in ch ar-n os de irrealidades, at é
com eçar a im agin ar que som os tudo que tem os m editado e decidido ser. 14

COMUNHÃO DE FATO

É im possível buscar espiritualidade gen uín a sem pen sar n os com pon en tes
essen ciais: am or pelo Sen hor, fé e poder do Espírito San to, e m editação
sin cera n a Palavra de D eus. Estes elem en tos podem corrigir as distorções
que apóiam a espiritualidade de fachada. “Estou rico, adquiri riquezas e n ão
preciso de n ada” (Ap 3:17; N VI ) é a expressão de um a atitude que a Bíblia
condena com m uita propriedade. Busquem os sem pre nas Escrituras a capa-
cidade de distin guir a com un hão gen uín a da espúria.

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
237

Notas
1
C H EETH AM , Samuel. “Spiritual exercises” (“Exercícios espirituais”), in D ictionary of Christian
antiquities [D icionário de relíquias cristãs], Lon dres: John M urray, 1880, p. 1922.
2
Id.
3
Ibid.
4
Citado em BLAN CH ARD , John (ed.) Pérolas para a vida. São Paulo: Vida N ova, 1993, p. 19.
5
K EM PIS , Thom as à. A imitação de Cristo. São Paulo: Shedd, 2001, p. 39.
6
Pergun tas de J.H . N ewm an , citado em BAILLIE, John (org.) A diary of readings [D iário de
leituras]. N ova York: Charles Scribner’s, 1955, p. 111.
7
P ACKER , J.I. N a dinâmica do Espírito. São Paulo: Vida N ova, 1991.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

8
K EM PIS , Thom as à. O p. cit., p. 75.
9
K EPLER , Thom as S. (org.) T he fellowship of the saints [A fraternidade dos santos]. N ova York:
Abingdon-Cokesbury, 1948, p.20.
10
BROM ILEY, G.W. “Faith”, in T he international Bible encyclopedia [Enciclopédia bíblica interna-
cional]. Gran d Rapids: Eerdm an s, 1982, v. II , p. 270.
11
BAILLIE, John . O p. cit., p. 124.
12
S CH W ART Z , C h rist ian . O desenvolvimento natural da Igreja. C u rit iba: Esp eran ça, 1 9 9 6 ,
p. 90.
13
K EPLER , Thom as S. Op. cit., p. 653.
14
Id., p. 300.

A Espiritualidade nas Escrituras


238 UNIDADE IV

A ENCRUZILHADA
A ESPIRITUALIDADE A FORMAÇÃO PASTORAL
DA EDUCAÇÃO TEOLÓGICA
A ENCRUZILHADA DA EDUCAÇÃO TEOLÓGICA

Üúlio Paulo Tavares Zabatiero

Escritor, pastor da
Igreja Prsbiteriana
Indeendente do

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Brasil, é professor de
Bíblia na Escola
Espiritualidade e seminário teológico. Duas rea·
Suerior de Teologia,
em São Leopoldo. tidades que, aparentemente, não se coadunam. As
Também leciona na queixas de muitas igrejas que enviam seus membros
Faculdade Teológica para seminários levam à constatação de que as cha­
Sul-americana e no madas "escolas de profetas" são consideradas por
Seminário Teológico muitas pessoas cemitérios da espiritualidade. Esta
Servo de Cristo. É
sensação é reforçada pelo discurso de muitos estu­
presidente da
dantes, segundo os quais o tempo de seminário é de
Fraternidade Teológica
deserto espiritual. Tal constatação não é incomum.
Sul-americana - Setor
Brasil. Bacharel em Tome-se o exemplo do pastor presbiteriano norte­
Teoloia pela americano Eugene Peterson:
Faculdade Teológica
Eu cresci cercado de advertências contra o pe­
Batista de São Paulo, é
rigo dos seminários. A tradição intolerante na
mestre e doutor em
qual eu cresci não via utilidade em aprender.
Teologia pelo Instituto
Pensar sobre Deus não l evava a nada, a não ser
Ecumênico de Pós­
encrenca. Somente crer - era o que diziam. E
graduaão em
Teoloia da Escola louvar! O cérebro era mais ou menos ignorado,

Suerior de Teologia. enquanto o Espírito Santo enchia os corações de


bênçãos. 1

Como professor de seminários há mais de vinte anos,


minha reação diante dessas atitudes é ambígua. Por
um lado, devo reconhecer que, em muitos casos, elas
refletem a realidade; por outro, há uma certa dose
257
A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
239

de in justiça n essa visão tão n egativa dos sem in ários. Em m in ha experiên -


cia, ten ho en con trado escolas de teologia que realm en te m erecem ser cha-
m adas de “cem itérios da espiritualidade”, m as estão lon ge de con stituir a
m aioria. D e fato, quem con versar com dirigen tes de escolas teológicas des-
cobrirá que praticam en te todos desejam que suas escolas sejam can teiros
de espiritualidade e reflexão teológica.
Se o desejo das igrejas e dos educadores é este, en tão por que a vida
espiritual de est u d an t es d e t eologia n ão é t ão fecu n d a qu an t o se esp era-
ria? O que precisa m udar n a vida deles para que o tem po do sem in ário seja
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rico para seu crescim en t o esp irit u al? O qu e é p reciso corrigir n as igrejas
que en viam estudan tes aos sem in ários? O qu e é p reciso corrigir n a ed u -
cação teológica para que a espiritualidade in tegre e priorize a form ação
discente?

MAPEANDO UMA HISTÓRIA RICA E TENSA


O prim eiro passo para corrigir os erros, em qualquer área da vida, é desco-
brir suas raízes. N o caso do objeto deste capítulo, tais raízes se en con tram
n a atitude do protestan tism o para com a m odern idade. Esta últim a pode
ser caracterizada com o o período da história ociden tal em que o ser hum a-
n o assum e sua auton om ia em relação a D eus, à n atureza e ao Estado.
Essa auton om ia é baseada n o uso plen o da razão que, segun do filósofos
modernos, traz o ser humano à maioridade e o coloca no centro do universo
e da história.
Em suas form as m ais radicais, o pen sam en to m odern o estabeleceu um
abism o en tre a razão e a fé, en tre o in telecto e o espírito. Este abism o teve
tam bém a sua versão eclesiástica. En quan to a m odern idade valorizava a
razão em detrim en to da fé, as igrejas faziam o oposto, descon fian do da
razão e ten tan do subordin á-la à fé.
N os am bien tes radicais, de am bos os lados, fé e razão passaram a ser
in im igos in con ciliáveis. A con seqüên cia foi que a espiritualidade passou a
ser entendida com o contrária à razão. Enquanto isso, n os am bien tes m enos
radicais, fé e razão passaram a viver em um a ten são perm an en te n a busca
de acordos que perm itissem um a con vivên cia saudável.

A Espiritualidade a Formação Pastoral


240 UNIDADE IV

Essa relação ten sa en tre fé e razão afetou profun dam en te a form ação
teológica. O s cursos de teologia faziam parte das un iversidades e precisa-
vam disputar espaço e prestígio com os dem ais cursos superiores criados ao
lon go da m odern idade (séculos XVII a XIX). A pressão para que a teologia se
afirm asse com o ciên cia foi m uito forte n os países da Europa e n a Am érica
do N orte, in fluen cian do decisivam en te n a relação en tre espiritualidade e
form ação teológica. Em várias escolas foram desenvolvidas formas de subor-
dinação da fé à razão a fim de m an ter o prestígio in telectual da teologia.
M otivadas pelo in teresse de dem on strar a validade da fé cristã em um

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am bien te cultural racion al, que valorizava a ciên cia acim a de tudo, sem in á-
rios con struíram um a form a radicalm en te racion alista de com preen são e
prática da fé. N essa ótica, o est u d o t eológico t orn ou -se qu est ão d e trei-
n am en to in telectual profun do, baseado n o dom ín io da filosofia e do racio-
cín io crítico. O s currículos privilegiavam a teologia sistem ática e a exegese,
subordin an do e tratan do de form a ligeira os tem as ligados à prática m in is-
terial e à vida cristã.
A Escritura passou a ser lida com o um con jun to de fon tes históricas, e
assim subm etida à m esm a crítica que qualquer outra fon te. As doutrin as
foram subm etidas ao exam e da razão, e as n ão com patíveis com con ceitos
racion ais deveriam ser aban don adas ou m odificadas n os com pên dios de
teologia sistem ática.
N a busca de um espaço dign o para a fé cristã n o m un do, o racion alism o
cristão subordin ou a exegese e a teologia à racion alidade cien tífica m oder-
n a, e seu prin cipal fruto teológico foi o liberalism o.
N o cam po da vida cristã, ocorreu um processo sim ilar. A espiritualidade
era vista com o um “reto com portam en to”, com o um agir ético baseado em
princípios racionais e situacionais. N ão mais se poderia seguir a Lei de D eus
literalm en te, m as era n ecessário buscar n a Escritura os prin cípios m orais
por trás das leis. Tais prin cípios deveriam ser caracterizados pela auton o-
m ia em relação às autoridades in stitucion ais e pela subordin ação à razão
prática. D escon siderava-se, assim , em gran de m edida, a ação do Espírito
San to n a pessoa com o a fon te da espiritualidade.
O prin cípio do am or foi o m ais destacado n o racion alism o cristão, e foi
quase iden tificado com a prática do bem aos n ecessitados. Lado a lado com

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
241

o liberalism o teológico se desen volveu um rigor que descon fiava da ética


baseada na obediência a regras e pregava um a am pla liberdade em relação a
toda e qualquer form a de m oralism o. Iron icam en te, n este am bien te a pala-
vra-chave da espiritualidade era “obediên cia” — n ão a obediên cia a autori-
dades extern as ao in divíduo, m as a obediên cia aos ditam es da razão e da
liberdade in dividual. D esta form a, ser espiritual era ser profun dam en te ra-
cion al e autôn om o, e a form ação teológica deveria levar os estudan tes à
plen a in dividualidade e racion alidade.
Em reação a esse racion alism o radical, várias igrejas se refugiaram em
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outro extrem o, o do dogmatismo. Criaram os próprios sem in ários e in stitu-


tos bíblicos, n os quais a form ação teológica veio a ser en ten dida com o um
processo exclusivam en te “espiritual”, em que a razão e o intelecto deveriam
ser completam ente subordinados à vida de oração, à meditação na Palavra e
à prática do serviço a D eus n a Igreja.
Estudar teologia se torn ou um a atividade apologética, ten do com o um
de seus prin cipais objetivos dem on strar a rebeldia da razão e sua in capaci-
dade de chegar ao con hecim en to de D eus, e o caráter herético e n efasto do
liberalism o teológico. A espiritualidade passou a ser m edida com base n a
reta doutrin a, e n ão n a da prática cotidian a.
D e fato, na atitude dogm ática, ter a doutrin a correta era o cam inho para
a espiritualidade. Esta passou, portan to, a ser praticada com o um a ativida-
de prim ariam en te in telectual de subordin ação e defesa dos con teúdos dou-
trin ários da fé cristã. Baseada em um a san ta m otivação, a subordin ação da
razão à fé gerou efeitos in esperados e con trários aos desejados: o dogm a-
tism o e seu irm ão gêm eo, o fundamentalismo, em sua luta radical con tra a
razão, acabaram inadvertidamente tornando-se formas igualmente raciona-
listas de fé cristã.
Além da ên fase doutrin ária, a espiritualidade n as form as dogm áticas de
cristian ism o tam bém passou a ser defin ida em term os éticos. R eta doutrina
e reto comportamento torn aram -se ban deiras espirituais em gran de n úm ero
de in stituições de en sin o. A ética passou a ser vista com o o com portam en to
baseado em n orm as etern as e in violáveis. N ão m ais cen trada n a graça de
D eus, m as n o com p rom isso h u m an o, a vida reta passa a ser um a qu est ão

A Espiritualidade a Formação Pastoral


242 UNIDADE IV

de obedecer a regras, especialm en te a regras n egativas, que visavam m os-


trar a diferen ça radical en tre os cristãos e o “m un do”.
N essa perspectiva, a palavra-chave da espiritualidade tam bém é a “obe-
diên cia”. Para ser espiritual é preciso obedecer: obedecer à Escritura, subor-
din an do a razão à doutrin a e o in telecto à autoridade da Bíblia; obedecer à
von tade de D eus, subordin an do o com portam en to à lei de D eus, que se
en con tra n a Escritura; e obedecer à autoridade eclesiástica, pois ela é a
garan tia de fidelidade à Escritura e à von tade de D eus.
Essas posições extrem as n ão con tam toda a história, é claro, m as foram

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
determ in an tes n a criação de atitudes e expectativas em relação à educação
teológica e à espiritualidade dos sem in ários. N o Brasil, o protestan tism o só
chegou n o século XIX, quan do esse processo já estava am plam en te desen -
volvido. Com o em n ossas terras a educação teológica n un ca foi parte do
sistem a un iversitário, m as sem pre esteve vin culada às igrejas e organ iza-
ções para-eclesiásticas, o racion alism o radical n ão en con trou espaço. Por
aqui, os sem in ários n asceram m ais parecidos com a ten dên cia dogm ática,
em bora o gran de in im igo n ão fosse o racion alism o cristão, m as a doutrin a
católica romana.
Com raras exceções, as escolas teológicas brasileiras seguiram o m odelo
am erican o dos in stitutos bíblicos e dos sem in ários den om in acion ais, com
forte ên fase n o estudo doutrin ário e n a defesa da fé cristã con tra seus in i-
m igos. D ada a n ecessidade de crescim en to e afirm ação social das igrejas, a
educação teológica em n ossas terras tam bém deu m ais espaço aos tem as da
prática ministerial, e o critério principal de qualidade de um seminário era a
eficiên cia do alun o form ado já n o m in istério pastoral.
Em bora sem o extrem ism o de várias escolas do Prim eiro M un do, boa
parte dos sem in ários n o Brasil desen volveu um a atitude de descon fian ça
relativam en te à razão e ao estudo crítico da Bíblia e da teologia. Algum as
escolas den om in acion ais, porém , valorizavam o estudo crítico e o aprofun -
dam en to teológico, descon sideran do essa descon fian ça que perm eava n os-
sa educação teológica.
Aos poucos, por aqui t am bém vim os o desen volvim en t o da at it ude
racion alist a, em bora t am bém sem ext rem ism os. At u alm en t e, p od em os
dizer que as escolas de teologia n o Brasil viven ciam a ten são en tre razão e

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
243

fé, seguin do os dois pólos, do racion alism o e do dogm atism o, m as sem


chegar a n en hum dos dois extrem os.
As escolas t eológicas brasileiras se localizam en t re as p osições d o
con servadorism o e do progressism o teológicos,2 n as quais as ten sões en tre
fé e razão se m an ifestam de form a um pouco m ais diluída que n os extre-
m os. N as escolas progressistas, com m aior ên fase n o estudo crítico da Bí-
blia e da teologia, a espiritualidade é a dim en são que m ais sofre:

É tam bém verdade que a racion alidade do discurso teológico e o caráter


cien tífico da Exegese m odern a parecem n ão deixar lugar para o que cha-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

m am os “d im en são espirit u al” (...) Por ocasião d o est u d o cien t ífico d a


Bíblia, por exem plo, os textos são an alisados para fora (para o estudo, ou
para os m em bros da igreja). O exegeta sai fora do objeto de seu estudo ou
de seu en sin o. A espiritualidade, n o en tan to, é um cam in ho para den tro,
para a pessoa, n a direção de sua m ais ín tim a experiên cia com D eus para
o seu fortalecim en to. 3

N as escolas conservadoras, porém, a espiritualidade tende a ser identificada


com a reta doutrin a e com o com portam en to m oral adequado. N essas esco-
las, há um a séria descon fian ça em relação ao estudo crítico da Bíblia e da
teologia, por tem er cair n o liberalism o m oral e teológico. A dim en são espi-
ritual é quase iden tificada com a irracion alidade e quase reduzida apen as à
m ística cristã da oração e da com un hão com D eus, perden do sua dim en são
de conhecim ento e discernim ento.
A con form idade doutrin ária e m in isterial é in dício suficien te da espiri-
tualidade de estudan tes e docen tes, e sua con firm ação se dá n o m in istério
bem -sucedido das pessoas form adas n a escola. N esse caso, porém , é im por-
tan te afirm ar que “a verdadeira fon te da espiritualidade n o processo da
educação teológica é precisam en te o estudo crítico da Bíblia e da teologia
(...) O estudo crítico da Teologia e da Bíblia é ato espiritual (para o estu-
dan te e para o professor) n o sen tido em que prom ove e en riqu ece a ex-
p eriên cia pessoal e com un itária de D eus”. 4
U m a caract eríst ica p ecu liar, em n osso caso, t em sid o o foco n o con -
flito en tre teoria e prática, em lugar de focar n o con flito en tre fé e razão.
Grosso m odo, espera-se que os sem in ários preparem pessoas capazes de
realizar o m in istério com eficiên cia — portan to, a espiritualidade é vist a

A Espiritualidade a Formação Pastoral


244 UNIDADE IV

com o a ad equ ação do estudan te às n ecessidades e perspectivas pastorais


de sua igreja. D escon fia-se de escolas teológicas cujos form ados n ão sejam
capazes de desen volver um bom m in istério pastoral e evan gelístico, e isto
passa a ser sin al de que falta “espiritualidade” n a form ação.
Se n as form as radicais do racion alism o e do dogm atism o a palavra-cha-
ve da espiritualidade era “obediên cia”, n o caso brasileiro é a “con form ida-
de”. Ser espiritual é ser conforme as expectativas m in isteriais da igreja ou da
com un idade que se pastoreia. D ada a diversidade den om in acion al, esta
con form idade tem várias faces, pois diversas são as expectativas das den o-

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m in ações quan to à qualidade de seus m in istros e ministras. Se, do ponto de
vista da prática ministerial, a conformidade tem seu valor, do pon to de vista
da espiritualidade ela m ais atrapalha que ajuda, pois a vida espiritual é um a
cam in hada em n ovidade de vida.
Esse quadro dos dilem as en tre espiritualidade e form ação pastoral, en -
tretan to, está passan do por sign ificativas tran sform ações provocadas pela
cham ada pós-m odern idade. N ossa aten ção, portan to, deve ser dirigida a
essa n ova realidade e seus desafios.

NOVOS DESAFIOS NA PÓS-MODERNIDADE

A segun da m etade do século xx tem sido descrita por m uitos estudiosos


com o o período in icial da pós-m odern idade. As prin cipais m udan ças em
relação ao período an terior da m odern idade são assim apon tadas:

• D escon fian ça gen eralizada n a capacidade da razão e da ciên cia de


resolver os problem as da hum an idade.
• Gran de valorização da experiên cia em ocion al e até m esm o m ística,
tan to n a vida cotidian a quan to n a dim en são religiosa.
• Revalorização da experiên cia religiosa in dividual, acom pan hada de
descon fian ça em relação às in stituições religiosas.
• Con strução da iden tidade pessoal a partir do con sum ism o, que atin -
ge todas as dim ensões da vida humana, inclusive a religiosa (abrangen-
do o surgim en to de várias form as religiosas que tiram proveito desta
atitude, com o o caso de den om in ações que surgem e crescem vertigi-
nosamente, aproveitando esta nova atitude religiosa de consumismo).

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
245

• U m a atitude de relativa indiferença quanto às transform ações sociais,


um certo con form ism o com a realidade econ ôm ica e política que tem
dim in uído a solidariedade social e a participação política das pessoas
em geral, estas con fian do cada vez m ais n o “m ercado” para viver.

Essas grandes mudanças afetaram a vida cotidiana e religiosa das pessoas


em todo o m un do ociden tal, em bora com diferen tes graus de in ten sidade.
N o que se refere à espiritualidade cristã, as seguin tes palavras de Jam es
H ouston dão o tom da presen ça da pós-m odern idade en tre as den om in a-
ções protestan tes em geral:
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Gran de parte de n ossa vida hoje, e até m esm o de n ossa fé religiosa, está
distorcida pelo fato de en cararm os a vida ora com o um sistem a de pen sa-
m en t o que requer explicação e argu m en t ação, ora com o u m a agen d a
repleta de atividades organ izadas. O resultado é a criação de um a perso-
n alidade m ovida pelos valores do m ercado, pouco con hecedora da “am i-
zade-da-alm a” ou da n at ureza pessoal de D eus. 5

Q uanto ao ministério cristão, em particular, essas mudanças têm provocado


um a crise profun da de iden tidade. O s m od elos modernos d e m in ist ério,
d ian te da acirrada con corrên cia en tre igrejas e do uso da m ídia em geral
pelas den om in ações n eopen tecostais (e, m ais recen tem en te, pelo próprio
catolicism o rom an o), já n ão têm con seguido ser eficazes. N as gran des cida-
des surgem as gran des e as m ega-igrejas, que forn ecem o padrão para todas
as dem ais igrejas locais e para o próprio m odelo de m in istério pastoral.
Tudo isso, é claro, afeta a espiritualidade cristã e a form ação teológica.
Por exem plo, n as in stituições de en sin o con sideradas “con servadoras”, em
que a eficácia dos form ados qualifica a espiritualidade, a crise do m odelo
m odern o tem efeit os d evast ad ores. As n ovas exigên cias d o m ercado reli-
gioso — com petição en tre igrejas, n ecessidade de rápido crescim en to, uso
de m eios de com un icação de m assa, valorização d as exp eriên cias em ocio-
n ais — n ão com bin am com o p ad rão d a form ação p ast oral d as escolas
t eológicas. Con seqüen tem en te, as pessoas por elas form adas n ão con se-
guem alcan çar a eficácia m in isterial esperada pelas igrejas.
Sem essa eficácia, as igrejas passam a descon fiar da espiritualidade das
in stituições de en sin o e de seus próprios m in istros. En tre os sin ais dessa

A Espiritualidade a Formação Pastoral


246 UNIDADE IV

desconfiança estão a ordenação ao m inistério de um número cada vez maior


de pessoas sem form ação teológica; a criação de um gran de n úm ero de
n ovos sem in ários teológicos de pequen o porte, m ais próxim os da visão das
igrejas em um a dada cidade ou região; o surgim en to de m ovim en tos que
visam separar radicalm en te a preparação ao m in istério da form ação teoló-
gica escolar; a busca de cursos com m en or duração e com m ais ên fase n a
gestão e n a adm in istração, em lugar da teologia.
Q uan to às in stituições ditas “progressistas”, os efeitos da pós-m odern i-
dade n ão são m en os devastadores. A descon fian ça quan to à razão coloca

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em xeque o próprio m odelo de estudo crítico da Bíblia e da teologia, que se
desenvolveu na modernidade. A distância entre a teoria e a prática aumenta
cada vez m ais, à m edida que as habilidades transm itidas aos estudantes nas
escolas já n ão aten dem a dem an da do m in istério pastoral com petitivo.
O declín io do com prom isso político-social e a quase extin ção da espe-
ran ça em tran sform ações da estrutura sócio-econ ôm ica con feriram ao dis-
curso progressist a um t om an t iquado e saudosist a. A fort e ên fase n as
experiências emocionais, especialmente no culto, torna ineficaz e ininteligível
a lin guagem e a estrutura da pregação e da liturgia n orm alm en te en sin adas
n este ram o das escolas teológicas — as quais acreditam , em geral, que “a
form ação espiritual precisa se expressar na vida com um de adoração, prepa-
rada e dirigida tan to por estudan tes quan to pelo corpo docen te”.6
Se já havia descon fian ça com relação à qualidade espiritual do m odelo
progressista de teologia e ed u cação t eológica, agora essa d escon fian ça só
ten de a aum en tar sign ificativam en te.
H á sign ificativas reações aos n ovos desafios da pós-m odern idade. Após
um primeiro m om ento de incerteza e de uma certa paralisia, as igrejas estão
buscan do n ovos m eios de organ ização e de m in ist ério para n ão serem
en golidas pela religiosidade con sum ista pós-m odern a. Algun s sin ais:

• A revalorização da com un hão e do estudo n o âm bito da igreja local,


seja através de células, pequen os grupos, grupos fam iliares ou n ovas
propostas de discipulado.
• O surgim en to de n ovas form as de espiritualidade, que con jugam o
afeto e o com prom isso com D eus e com a m issão n o m un do (por

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
247

exem plo, a publicação e a gran de distribuição de livros de Jam es


H ouston , Ricardo Barbosa, Eugen e Peterson e H en ri N ouwen ).
• A revalorização da reflexão teológica, em um a perspectiva prática e
crítica, que se pode ver em vários en con tros de pastores e líderes
eclesiais.
• N o caso específico da educação teológica, o in vestim en to de várias
in stituições teológicas (con servadoras e progressistas) n a capacita-
ção de seu corpo docen te, em n ível de pós-graduação, assim com o n o
aum ento de suas bibliotecas, e a busca do reconhecim ento dos cursos
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pelo M in istério da Educação.


• O número crescente de pastores, m issionários e líderes cristãos em cur-
sos de pós-graduação teológica, n ão com vistas a se torn ar professo-
res ou professoras, mas a buscar o aperfeiçoamento de seus ministérios.
• A publicação de um n úm ero crescen te de obras teológicas especiali-
zadas por editoras evan gélicas tradicion ais e por n ovas editoras bra-
sileiras.
• O surgim en to de sem in ários e faculdades de teologia — den om in a-
cion ais ou n ão — com a visão da m issão in tegral da Igreja e a busca
de n ovos m odelos de teologia e espiritualidade.

Agora que já m apeam os o terren o das relações en tre a espiritualidade e


a form ação pastoral, n ossa tarefa será propor cam in hos e altern ativas para
que essas relações sejam cada vez m ais in tensas. Fazer proposições para que
a form ação pastoral-teológica em n ossa terra seja m ais capaz de preparar
in tegralm en te pessoas para servir a D eus e seu Rein o com elevada capaci-
dade in telectual, com petên cia e ética n a realização de seus m in istérios.
Pessoas que m an ten ham um a vida espiritual m ais sadia e din âm ica, que
desafie o povo de D eus a buscar e am ar o Sen hor de todo o coração.

FORMAÇÃO PASTORAL E ESPIRITUALIDADE: E AGORA?

Em prim eiro lugar, é n ecessário que se recon heça que:


• O crescim en to espiritual n ão é prom ovido por n en hum a in stituição
hum an a, n em m esm o pela Igreja. É D eus quem dá o crescim en to —

A Espiritualidade a Formação Pastoral


248 UNIDADE IV

de fato, D eus usa as situações históricas e as in stituições hum an as n o


seu relacion am en to con osco, m as é ele quem dá o crescim en to espiri-
tual (con cordo com a descoberta de Eugen e Peterson : “D esisti de
esperar que pessoas ou instituições m e proporcion assem aquilo que já
estava bem ali, n o m eu quin tal”). 7
• a prim eira pessoa respon sável pelo próprio crescimento espiritual é o
estudan te, pois é n ele que habita o Espírito San t o, qu e faz fru t ificar
o am or e a espiritualidade.
• a igreja local e a escola são co-respon sáveis, solidariam en te, n o de-

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senvolvimento espiritual de estudantes — à medida que criam e man-
têm um am bien te propício a tal desen volvim en to.
• a m aturidade espiritual que todos desejam os n ão é um lugar fixo ao
qual se chega depois de um certo tem po de carreira n a vida cristã,
m as um lugar conflitivo, de perm an en te con fron to da pessoa — n a
com un idade a que perten ce e n a que estuda — con tra o m un do, o
pecado, a carn e e o D iabo.

Este prim eiro passo é fun dam en tal, pois coloca a questão em um a pers-
pectiva m ais correta. N ão se pode julgar a igreja ou o sem in ário pela espiri-
tualidade de seus m em bros ou de seus estudan tes. O que se pode avaliar é
se a igreja e a escola teológica proporcion am um ambiente saudável e propí-
cio para que cada pessoa, no poder do Espírito, cresça espiritualm ente. N ão
se pode julgar a escola teológica isoladam en te n o tocan te a esse am bien te,
pois igreja (local ou den om in ação) e escola teológica são co-respon sáveis
n a criação desse am bien te. Críticas un ilaterais a sem in ários ou a igrejas
sem pre serão in justas, pois a form ação teológico-pastoral é um em preen di-
m en to m in isterial em parceria tríplice: igreja, escola e estudan te.
Precisam os, tam bém , destacar que é n a vida com un itária e m ission ária
da igreja local que encontramos o ambiente mais propício para o crescimen-
to espiritual dos cristãos. É n a igreja, n ão n os sem in ários, que o exercício
m útuo dos don s, a adoração com un itária, a ação m ission ária e a com un hão
com D eus e en tre os irm ãos e irm ãs criam o espaço para que cada pessoa
chegue à m aturidade cristã.

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
249

Cabe às igrejas, portan to, selecion ar bem as pessoas que envia para a
educação t eológica form al. N ão deveriam m an dar n eófit os n a fé, n em
pessoas que n ão ten ham exercido m in istérios recon hecidos pela com un ida-
de, n em pessoas cujo testemunho não seja digno. M uito menos deveriam
en viar pessoas problem áticas, n a esperan ça de que o sem in ário as conserte.
Se um a pessoa chega ao sem in ário com problem as sérios de espiritualida-
de, o m ais provável é que ela piore, pois sem in ários n ão são hospitais espi-
rituais, m as cen tros de preparação m in isterial e t eológica, n os qu ais só
d everiam estudar pessoas já em processo de am adurecim en to espiritual.
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N ão basta, en fim , que a igreja m an de o estudan te. Precisa con tin uar
oran do por ele, acolhen do-o com o irm ão (e n ão com o “projeto de pastor”)
e recon hecen do-o com o alguém em preparação, por D eus, para assum ir
respon sabilidades m in isteriais m aiores.
Com isto em m en te, podem os descrever o am bien te que as escolas teo-
lógicas podem criar para que seus estudan tes obten ham ajuda a fim de
crescer espiritualm ente.

U m a esco la teo ló gica precisa ter um a visão clara de seu m inistério.


D eve ter clareza quan to ao tipo de pessoas que preten de form ar. É in dis-
pen sável que a visão declare seu cam in ho de espiritualidade. Em um a das
escolas em que lecion ei, a visão declara um a espiritualidade cristocêntrica e
solidária. 8 Sign ifica que:

• O alvo do crescim en to espiritual é n os torn arm os m ais e m ais sem e-


lhantes a Jesus Cristo em sua fidelidade ao Pai, em seu amor contextual
e en carn ado pelo m un do, em sua subm issão e en trega ao Espírito
San to n a realização de sua vida e m in istério terren os e em sua in dig-
n ação crítica e profética con tra todas as forças, pessoas e in stituições
que se opõem ao Rein o de D eus e à dign idade da vida da Criação
(espero que esta seja um a sín tese fiel do que os Evan gelhos n os en si-
n am sobre a vida de Jesus Cristo). Em Efésios 4:7-16, a “m edida da
estatura da plen itude de Cristo” é o padrão da espiritualidade cristã.
• Em um a sociedade em que a relação in terpessoal tem se fun dam en -
tado cada vez m ais n a com petição e n o con sum ism o, o am or fratern o
e solidário de Jesus Cristo é n egligenciado e até abandonado, inclusive

A Espiritualidade a Formação Pastoral


250 UNIDADE IV

por igrejas cristãs. A compaixão (solidariedade) deve ser a marca prin-


cipal do cristão que hoje serve a D eus, a m esm a com paixão que m o-
veu Jesus a m orrer pela Criação do Pai.
Com o gosta de dizer Ricardo Barbosa de Souza, precisam os redescobrir
a espiritualidade do afeto, e o afeto cristão autên tico é o am or solidário,
com o se vê n a descrição do fruto do Espírito em Gálatas 5:22s. A solidarie-
dade se m an ifesta con cretam en te por m eio de um m in istério de serviço à
igreja e ao m un do, por m eio de um a lideran ça que n ão usa n em abusa do
poder, m as o coloca a serviço do bem -estar do próxim o por m eio de um

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con hecim en to teológico que ajude as pessoas a se aproxim arem de D eus e,
con seqüen tem en te, se torn arem m ais solidárias.

Co m um a visão clara de seu m inistério, a esco la po de m o ntar um a


equipe do cente e funcio nal afinada co m ela. Q uem dá o crescim en to
espiritual é o próprio D eus, e n ossa parcela com o educadores é a do teste-
m unho, ou do exemplo. Esta era a visão paulina, por exem plo, ao convocar os
cristãos de seu tem po a serem im itadores dele, com o ele era im itador de
Cristo (1Co 11:1, cf. 1Co 4:6; Ef 5:1; Fp 3:17). Ajudam os pessoas a crescer
espiritualm en te quan do n ós m esm os som os exem plos de cristãos que bus-
cam o crescim en to espiritual.
As pessoas que trabalham n a in stituição de en sin o, m ais especialm en te
n o corpo docen te, devem ter o com prom isso de testem un har um a vida es-
piritual autên tica. A escola, por sua vez, precisa proporcion ar-lhes m om en -
tos sign ificativos e freqüen tes de oração, de estudo con jun to, de partilha e
adoração a D eus, tem pos de silên cio, tem pos de busca, tem pos de com pro-
m isso m útuo. Precisam de m om en tos de estudo e reflexão sobre a própria
espiritualidade. Alim en tar a dispon ibilidade espiritual de seu corpo docen -
te é con dição in dispen sável para a escola que valoriza a formação espiritual.

A partir desses passo s, passa a fazer sentido a ado ração co m unitária


na esco la. U m culto sem an al, pelo m en os, deveria ser parte regular das
atividades escolares — sem n otas, sem avaliações, sem con teúdos curricu-
lares. U m culto de fato. Q uem atua em sem in ários sabe com o são com plica-
das as relações quan do o culto é parte do program a de avaliação dos estu-
dantes. Quando muito, apenas a freqüência poderia ser um item obrigatório.

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
251

A organ ização e a lideran ça desse período de adoração com un itária de-


vem ser partilhadas en tre a escola e os estudan tes. N a m edida do possível,
o culto deve ser o m ais sem elhan te ao das igrejas de on de provêm os estu-
dan tes. H á um a ten são n este pon to, pois é relativam en te com um que em
in st it uições de en sin o se deseje en sin ar um padrão lit úrgico h ist órico,
con fession al ou erudito. Isto se pode fazer n as disciplin as ligadas à liturgia.
O culto, porém , deve ser o m ais próxim o possível da experiên cia litúrgica
das igrejas, por m ais que tal experiên cia possa ser avaliada criticam en te
pelos padrões litúrgicos form ais.
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H á várias m an eiras de fazer isso e tam bém de realizar cultos diferen tes,
m ais form ais, m ais participativos, con form e o con texto de cada escola.
Criatividade é parte da ação do Espírito, que faz n ovas todas as coisas. É
possível con vidar pessoas para testem un ho pessoal ou m in isterial; realizar
cultos que destaquem o projeto pedagógico da escola, m ostran do sua base
bíblica e cristã, e propor experiên cias com sím bolos, n ovas form as m usi-
cais, artísticas etc.
Para o bem -estar espiritual da form ação das pessoas é preciso que elas
participem do culto e o façam em “Espírito e em verdade”, sob o risco de o
culto n ão ser usado por D eus para a edificação dos participan tes.
Com o culto, m om en tos form ais e in form ais de oração precisam ser pra-
ticados n a escola, con form e as possibilidades estruturais. A m aioria das
escolas teológicas atuais n ão é m ais residen cial. O ferecem o curso n oturn o
ou apen as em um período do dia. N esses casos, é in dispen sável in iciar as
aulas com um a breve e sign ificativa devocion al. N ela, m ais que ensinar Bí-
blia, a prioridade deve ser a oração com os estudan tes, ouvin do suas n eces-
sidades, partilhan do de suas vitórias e passan do tem po jun tos em oração e
silên cio n a presen ça de D eus.
Reu n iões d e oração fora d os h orários d e au la p od em ser realizad as e
d evem ser est im u lad as. Ret iros esp irit u ais com a com u n id ad e d ocen t e e
d iscen t e são ou t ra form a d e criar t em p o e esp aço p ara a oração com u n i-
t ária.

Co m o o currículo po de participar nessa dim ensão da fo rm ação espi-


ritual? Em prim eiro lugar, ele deve estar a serviço da visão da escola, e n ão
se restrin gir à tradição acadêm ica m odern a, um a vez que “a fin alidade da

A Espiritualidade a Formação Pastoral


252 UNIDADE IV

educação teológica é educar n ossa pessoa por in teiro para a crescen te con -
form idade com o pen sam en to de Cristo, a fim de que n osso cam in ho de
oração e de cren ça seja um só”.9
Além disso, o projeto pedagógico da escola deve priorizar a m ais am pla
seriedade e a m aior qualidade acadêm ica e pedagógica de reflexão e estudo,
cen trados n o desen volvim en to de um pen sam en to crítico a partir da práxis
cristã de serviço a D eus e ao próxim o. O projeto pedagógico da escola pre-
cisa ser in ovador o suficien te para superar os dilem as da m odern idade e
en fren tar os n ovos desafios da pós-m odern idade. Sem in ários são in stitui-

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ções educacionais, e a m elhor contribuição que podem dar à form ação espi-
ritual é desen volver a m aior qualidade educacion al possível.
Particularmente, considero ruim haver uma disciplina na escola que trate
da “espiritualidade”. É preferível que todas as disciplin as do currículo se-
jam vistas com o con tribuição para o crescim en to espiritual, e n ão apen as
com o disciplin as “acadêm icas”. U m a form a de torn ar isto um a realidade,
além da devocion al n as aulas, é focar com o um dos objetivos de cada disci-
plin a o relacion am en to direto com a atitude, ou a con exão com a formação
espiritual.
Esses objetivos podem ser con struídos coletivam en te, pelo corpo do-
cen te, ou in dividualm en te — n ão faz diferen ça. In dispen sável é que esse
objetivo exista, seja declarado aos estudan tes e faça parte do program a
oficial da disciplin a. Assim , docen tes e estudan tes sem pre se pergun tarão,
em cada disciplin a, qual é a con tribuição daquela m atéria para a form ação
espiritual de todos.
O utro recurso in teressan te é a seleção e o estudo de literatura sobre
espiritualidade pelo corpo docen te a fim de sugeri-la ao corpo discen te.
Parte dela deveria m esm o fazer parte das leituras obrigatórias das m atérias
do currículo.
Projetos de in iciação cien tífica, com foco n a espiritualidade, tam bém
podem ser criados para estim ular a reflexão crítica e tentar reunir fé e razão,
reflexão e devoção. Isto não invalida as disciplinas acadêmicas que tematizam
a espiritualidade. O que n ão se deve fazer é vin cular a form ação espiritual a
um a disciplin a específica do currículo — o que só aprofun daria o abism o
en tre fé e razão.

A ESPIRITUALIDADE E A IGREJA
253

DISCERNIMENTO, A MATÉRIA-PRIMA
N ão existe fórm ula fixa, defin itiva, in falível e academ icam en te con sisten te
para reun ir form ação espiritual e form ação teológica. O divórcio en tre fé e
razão está in stalado n a cultura ociden tal, e refazer o casam en to é um pro-
cesso con títuo e desgastan te, que deve ser in ten cion al e in ten cion ado. Q ue
m atéria-prim a poderia servir de pon te para essa reun ião n a educação teoló-
gica? Creio que é o discernimento. A escola trabalha com con hecim en tos,
m as seu objetivo n ão é, pura e sim plesm en te, produzir saber. Sua fun ção é
ajudar a desen volver o discern im en to espiritual.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O estudo crítico da Bíblia, da teologia, da realidade da Igreja e de sua


m issão é a tarefa da escola teológica. Ela é lugar de estudo e produção de
conhecimentos — mas de conhecimentos a serviço do discernimento espiri-
tual. “D iscern im en to” deveria ser a palavra-chave da form ação teológica
que valoriza a espiritualidade. Colossen ses 1:9-14 é m eu texto de cabeceira
para a formação espiritual na instituição de ensino teológico. Vivenciá-lo na
prática acadêm ica e pedagógica é m eu desafio pessoal, que reparto com
você, em oração e esperan ça.

Notas
1
P ETERSON , Eugene H . “The seminary as a place of spiritual formation” (“O seminário como
um lugar de form ação spiritual”), in T heology, news and notes, 1993, p. 44.
2
Uso os termos “conservador” e “progressista” sem conotação de valor, apenas para simplifi-
car a exposição.
3
C ROATTO , José S. “Fé e estudo crítico”, in M ARASCH IN , Jaci (ed.) Q ue é formação espiritual?
São Paulo: ASTE , 1990, p. 33.
4
O p. cit., p. 34,39.
5
H O U STO N , Jam es. A fome da alma. São Paulo: Abba Press, 2000, p. 303.
6
AM IRTH AN , Samuel. “Formação espiritual em educação teológica (convite à participação)”,
in M ARASCH IN , Jaci (ed.) S impósio. São Paulo: ASTE , vol. 6 (3), n ° 31, edição de dezem bro de
1988, p. 287.
7
P ETERSO N , Eugen e H . Op. cit., p. 47.
8
Faz parte da visão da Faculdade Teológica Sul-Am erican a, em que trabalho desde 2000.
Boa parte do que apresento aqui construí em discussão com colegas na FTSA, e a eles e elas registro
minha dívida pessoal.
9
N OU W EN , H en ri. A espiritualidade do deserto e o ministério contemporâneo: O caminho do
coração. São Paulo: Loyola, 2000, p. 42.

A Espiritualidade a Formação Pastoral


Ednaldo Michellon
Taís Machado
Marco Davi de Oliveira

A ESPIRITUALIDADE E

V
UNIDADE
OUTROS ASSUNTOS

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ A espiritualidade e as inanças
■ A espiritualidade e o feminino
■ A espiritualidade e a identidade negra
257

fONEYCENTRISMO E O
A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS
LOUVOR AO DEUS DINHEIRO
MONEYCENTRISMO E O LOUVOR AO DEUS DINHEIRO

�Ednaldo Michellon 1
É doutor em Ciências
Econômicas pela
Universidade Estadual
de Cmpinas (uNIMP) e
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

pela Universidade da
Neste exato momento, você stá precupado com
Calióia; mestre em
Economia e pós­ sua vida financeira ou espiritual? A maioria das
graduado em pessoas está dividida entre essas duas paixões. São
Desenvolimento e tentadas a se inclinar aos ditames do dinheiro quan­
Planejamento Agrícola do sabem que deveriam buscar mais a Deus. Como,
pela Universidade então, a humanidade chegou a depender tão drama­
stadual de Maringá, ticamente do dinheiro em nossos dias? A tarefa
onde atua como instigante e intrigante que de imediato se coloca é a
professor, e engenheiro de trilhar entre a ingenuidade de fazer algo sem o
agrônomo pela
dinheiro e o cinismo de crer em sua neutralidade.
Universidade Federal de
O dinheiro, que surgiu há apenas 2500 mil anos
Mato Groo. É
em forma de moeda metálica, e que depois virou
prsbítero, membro
fndador e presidente papel-moeda e, mais recentemente, dinheiro eletrô­
do Conselho nico, a cada metamorfose foi submetendo mais e
Missionrio da 1ª Igreja mais a natureza humana a sua lógica dominante.
Presbiteriana Assim, o ser humano também mudou seu enfoque
Indeendente em sobre o centro do universo.
Maringá. Antigamente, Deus era o centro de todas as coi­
sas; depois, com o advento do humanismo, o ser
humano passou a ser o foco de tudo; finalmente, na
pós-modernidade, o dinheiro passou a ser a medida
de todas as coisas. Ele está de tal forma imbricado
na cobiça, inerente à natureza humana. que engen­
drou um sistema para lhe dar guarida: o capitalismo.
149
A Espiritualidade e Outros Assuntos
258 UNIDADE V

É con ven ien te um a breve explicação a respeito dos três paradigm as eco-
n ôm icos. Para en t en d er esse processo e m ost rar com o o m ercad o foi
cooptan do os seres hum an os e subjugan do-os aos in teresses do din heiro,
afastan do-os de D eus. A econ om ia, en quan to disciplin a organ izada, em er-
ge com o m un do m odern o, n os séculos XVII e XVIII . Ela faz parte da cham a-
da “revolução filosófica”, em que os en sin am en tos tradicion ais da cristan -
dade, com o o am or ao próxim o, ain da que n ão totalm en te repudiados, são
en carados com o in aplicáveis às atividades com erciais. 1
O s defen sores do paradigm a do equilíbrio acreditam que os in divíduos,

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agin do por seus in stin tos egoístas de procurar o m elhor gan ho para si, pro-
m overiam fatalm en te o bem com um . Já está bastan te provado que isto n ão
ocorreu pelo desequilíbrio gritan te en tre os países e as pessoas, em bora os
profetas do n eoliberalism o con tin uem desejan do um m ercado sem regula-
ção, em que o din heiro t em liberd ad e d e fazer o qu e bem qu iser. Por isso,
o sist em a vencedor est á em r u ín as, p ost o q u e b asead o n o egoísm o,
poten cializado pelo am or ao din heiro, em vez do am or ao próxim o.
O padrão bíblico segue n a con tram ão do egoísm o que caracteriza esse
m odelo. “Lan ça o teu pão sobre as águas, porque depois de m uitos dias o
acharás. Reparte com sete, e ain da com oito, porque n ão sabes que m al
sobrevirá à terra” (Ec 11:1-2). O prin cípio de repartir foi paulatin am en te
substituído pela idéia do acúm ulo individual, acelerado em nossos dias com
a fábrica do en dividam en to.
É preciso esclarecer que, an teriorm en te, a ética cristã im pedia a existên -
cia de dívidas, com base n o seguin te prin cípio: “A n in guém fiqueis deven do
cousa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros” (Rm 13:8).
En tretan to, a partir do in ício de século XX já n ão era dívida e, sim , “crédito
para o con sum o” — ou seja, os m ercadores de ilusões fizeram um a m ágica
para tirar o peso do pecado da dívida e transformá-la em virtude, pois quem
n ão se orgulha de ter bom crédito n a praça?
Esta é a form a m ais terrível de dom in ação do din heiro: a dívida. A busca
para saldar as con tas m an tém o capitalism o em fun cion am en to, seja pelas
form as m ais espúrias de agiotagem , até aquelas m ais sutis, seja pelas com -
pras n o cartão de crédito e sim ilares. Est a foi a form a in ven t ad a p ara

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


259

m an ter a pressão consumista ligada ao máximo. N a outra ponta, a indústria


da propagan da garan te que o n egócio é com prar, m esm o n ão ten do din hei-
ro, pois o sistem a n ão pode parar.
O corre que a vida espiritual é afetada n esta ciran da fin an ceira, e o in di-
víduo vira refém do din heiro possuído e do din heiro desejado. N ão pára de
pen sar em com o arran já-lo, e se subm ete a lon gas horas de trabalhos exte-
n uan tes, com sacrifícios pessoais, da fam ília e dos am igos, o que o leva à
solidão, tran sform an do, assim , essas dívidas n a pós-m odern a form a de es-
cravidão. A advertên cia é an tiga: “Q uem pede din heiro em prestado é escra-
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vo de quem em presta” (Pv 22:7; BV). Porém agora é dívida em dinheiro, que
se torn ou um fim em si m esm o.
N o segun do paradigm a, o da din âm ica con traditória, percebe-se que a
busca pela acum ulação m áxim a de capital acaba geran do um a con tradição
disparatada em que o próprio din heiro se torn a o sujeito autôn om o do
processo, e o preten so possuidor tran sform a-se em seu objeto, súdito ou, o
que é pior, escravo. Com ete-se, com isso o equívoco, n ão existen te n a for-
m u lação t écn ica, ap on t ad o p elo com u n ism o. Ign oram -se as con t rad i-
ções in eren tes à n atureza hum an a em qualquer regim e, o que tran sform a a
m aioria das pessoas em recursos da econ om ia, a serviço da m in oria que
está n o poder. N os m eios filosóficos, cien tíficos e religiosos, form am -se as
vítim as de fato corriqueiro: de tão preocupados com a hum an idade, esque-
cem os seres hum an os.
Este erro aparece explicitam en te n a form ulação segun do a qual “a reli-
gião é o ópio do povo”, que descon sidera a ten dên cia n atural do ser hum a-
n o de buscar algo que lhe dê seguran ça, recon hecim en to e sen tido. N essa
busca, n ovas form as de pen sar e agir são en gen dradas. En tre outras razões
an alisadas,2 o din heiro vem ocupan do esse espaço por colocar até a religião
a seu serviço e por se apresen tar com o um a espécie de deus que tudo supre,
levan do a hum an idade a um a alien ação sem preceden tes, dada toda sorte
de artificialidades que se têm produzido n a esteira da in dústria da fam a.
O terceiro paradigm a, o da in stabilidade, m ostra que as pessoas estão
sem pre apostan do em qual será a m elhor aplicação do din heiro, geran do
in stabilidades an te as in certezas dos n egócios n o futuro. Todos estão a ser-

A Espiritualidade e Outros Assuntos


260 UNIDADE V

viço do capitalism o, e assim todos querem o m áxim o de gan ho e de lucro,


pois o que dom in a é a in fern al lógica do din heiro, seja n a esfera privada,
seja n a área pública. Trata-se de um a terrível con tradição, pois quem adere
às im placáveis leis do din heiro-m ercado subm ete-se a toda sorte de in stabi-
lidades.
Talvez o prim eiro a en xergar o paradigm a da in stabilidade ten ha sido
Paulo:

Exorta aos ricos do presen te século que n ão sejam orgulhosos, n em depo-


sitem sua esperan ça n a in stabilidade da riqueza, m as em D eus, que tudo

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n os proporcion a ricam en t e para n osso aprazim en t o; que p rat iq u em o
b em , sejam ricos d e b oas ob ras, gen erosos em d ar e p ron tos a repartir;
que acum ulem para si m esm os tesouros, sólido fun dam en to para o futu-
ro, a fim de se apoderarem da verdadeira vida.
1 T im ót eo 6 :1 7 -1 9

Essa advertên cia precisa ser con textualizada para en ten derm os aon de esta-
m os chegan do. Afin al, quem n ão quer ficar rico em n ossos dias? Sem pre
querem os gan har um pouquin ho a m ais, e o trabalho também se torna um fim
em si mesmo. N esse sen tido, se o texto de 1Tim óteo 6:9 fosse reescrito n a
pós-m odern idade, ficaria assim : “Q uerendo todos ficar ricos, caíram em ten ta-
ção, em arm adilhas e em m uitos desejos descon trolados e n ocivos, que leva-
ram os seres humanos a mergulhar na ruína e na destruição.”
Parece claro que há m uitos séculos a hum an idade vem corren do atrás do
din heiro, apesar de ele n ão garan tir estabilidade duradoura, m as in stabili-
dade perm an en te desde an tes daqueles tem pos em que Paulo com batia o
bom com bate. Aliás, é ele o autor da célebre frase: “Porque o am or do
din heiro é raiz de todos os m ales; e algun s, n essa cobiça, se desviaram da fé
e a si m esm os se atorm en taram com m uitas dores” (1Tm 6:10).
H oje, parece que n ão são apen as algun s que se desviaram da fé e das
virtudes colocadas pelos valores m orais da sociedade de tradição judaico/
cristã, m as m ultidões, abarcan do tam bém os das dem ais religiões e seitas
ao redor do mundo. São bilhões de pessoas atormentadas com muitas dores.
O am or ao próxim o é substituído pelo am or ao din heiro do próxim o, pois
quan to m ais din heiro se tem , m ais se é amado n esta sociedade monetária.

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


261

Portan to, dadas essas lim itações colocadas pela n atureza hum an a, per-
cebe-se que ela se assem elha à n atureza do din heiro, em bora haja m om en -
tos em que se iden tificam plen am en te n esse desfile fan tasm agórico de
im agen s, fica fácil revelar quem está com an dan do quem , ou quem é o m o-
cin ho e quem é o ban dido. N um a situação desse tipo, é possível en ten der
por que o m un do está se tran sform an do à im agem e à sem elhan ça do di-
n heiro. Ele é a form a m ais visível e m ais desejada de capital, agora volátil,
in visível e im pessoal, que reduziu o ser hum an o a um robô a seu serviço.
M ais do que n un ca é preciso den un ciar o erro crasso que se com ete com
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relação ao m ito da n eutralidade do din heiro, pois tan to pelo prism a da eco-
n om ia política quan to pela perspectiva da econ om ia de D eus, o din heiro
n ão é n eutro. Pela abordagem divin a, o din heiro é M am om , um falso deus,
um a potestade, con form e o próprio Jesus Cristo m ostrou: “N in guém pode
servir a dois sen hores; porque ou há de aborrecer-se de um , e am ar ao
outro; ou se devotará a um e desprezará ao outro. N ão podeis servir a D eus
e ao din heiro” (M t 6:24). Para a econ om ia política, ele é um fim em si
m esm o, e n ão um m eio de troca, já que as form as an tigas de trocar m erca-
dorias por m ercadorias n ão m ais existem .
D aí toda a confusão criada pelo neoliberalism o, que deixou a hum anida-
de n um beco sem saída: ou se acata esse prin cípio ou se faz propagan da
ideológica sobre a n eutralidade do din heiro. Jun to com esta con fusão apa-
recem outros mitos, como o da neutralidade da ciência, das religiões, das in s-
tituições e, para en curtar a con versa, o m ito da n eutralidade da n atureza
hum an a, quando estão todos sob a dominação do dinheiro, que não é neutro.
O lhan do o texto acim a, parece que se pode con cordar com Jerem ias,
quan do afirm a: “En gan oso é o coração, m ais do que todas as coisas, e de-
sesperadamente corrupto; quem o conhecerá?” (Jr 17:9). A corrupção gene-
ralizada n ão é a causa básica da m aioria das m azelas que se abate sobre os
seres hum an os?
Blaise Pascal deu tom poético a esta sen ten ça, ao dizer: “O coração tem
razões que a própria razão desconhece.” E aprofundou a discussão ao afirmar:

Q ue quim era é en tão o hom em ? Q ue n ovidade, que m on stro, que caos,


que m otivo de con tradição, que prodígio! Juiz de todas as coisas, im becil

A Espiritualidade e Outros Assuntos


262 UNIDADE V

verm e da terra, depositário da verdade, cloaca de in certeza e erro; glória


e escória do un iverso. Q uem desfará essa con fusão?3

D e fato, esse descon hecido coração hum an o está espiritualizan do o din hei-
ro que, por sua vez, está se desm aterializan do. Ao m esm o tem po, ele m ate-
rializa a natureza humana, que está sendo gradativamente desespiritualizada.
Esse afastam en to de D eus, con hecido com o secularização, n ão ocorreu
do dia para a n oite. Ele é fruto, grosso m odo, da Ren ascen ça, da Reform a e
do Ilum in ism o; do prim ado da ciên cia com o explicação para todas as coi-
sas; do socialism o e do capitalism o, que perm itiram a crítica aos sistem as

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an teriores de dom in ação, m as que levaram o hom em a proclam ar-se o cen -
tro de todas as coisas; e, n a atualidade, chegou-se ao din heiro com o a m e-
dida de todas as coisas, pela posição hegem ônica que ocupa no coração e na
mente.
N esse con texto, as pessoas estão m ais preocupadas com o progresso
m at erial d o qu e espirit u al, e para isso d ed icam u m a verd ad eira vid a
devocion al ao din heiro, às form as de com o gan har e acum ular riquezas
m ateriais e posses. Esta dedicação, em qualidade e quan tidade de tem po,
com todas as forças e m otivações centralizadas na m oeda, contamina a vida
social, pois a única comunidade que o dinheiro permite é a comunidade do dinheiro.
Assim , o sistem a capitalista, com sua capacidade de reprocessar tudo a
seu favor, con seguiu pen etrar com profun didade em todas as esferas da
vida, enraizando-se até os porões m ais escon didos do ser hum ano, tran sfor-
m an d o-o em u m ser m at erialist a por d efin ição, o qu e p rom oveu su a
desespiritualização. N este sen tido, pen sar n um a reação con trária ao siste-
m a que cultua a sacrossan ta in iciativa privada com o se ela tivesse o rem é-
dio para todos os m ales da Terra é tan to um problem a quan to um desafio,
pois o capitalism o ao m esm o tem po san tifica e seculariza o din heiro, pela
obra daqueles que suportam o regim e.
In teriorm en te, o ser hum an o tem a cobiça e extern am en te, o capitalis-
m o, que é quase seu sin ôn im o, um a espécie de som atório de cobiças in divi-
duais. Q uer m atar um a com un idade? Coloque din heiro n ela para educá-la
a seu m odo! Por exem plo, ao in vés de am or, aten ção, dedicação e carin ho,
dê presen tes a seus filhos. Pague toda sorte de sessões de terapias para

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


263

resolver os dram as deles. N ão é isso o que a civilização m aterial tem feito


ao depositar con fian ça n as soluções propostas pelo din heiro? D etalhe: as
sessões n ão são gratuitas, são realizadas a peso de ouro, para se ten tar
resolver os dram as de relacion am en tos voláteis, in visíveis e im pessoais, tí-
picos de um rebanho eletrônico, seja produzido pela televisão seja pela internet.
Igualm en te, fala-se m uito m ais em fim do m un do que n o fim do capita-
lism o. A n aturalização do sistem a chegou a tal pon to que o liberalism o o
apresen ta com o um sistem a etern o, escam otean do suas con tradições e em -
perran do a con strução m ais solidária e dem ocrática d a organ ização social.
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N esse sen tido, a m orte do capitalism o é sem pre adiada, talvez até o dia do
juízo fin al, pois esse con luio de burguesias in tern acion al e n acion al será
capaz de dar suporte à besta, se for preciso, para manter o domínio mundial
n as m ãos — n a verdade, ele já o faz com os atos bestiais do din heiro.
A m utação desejada seria colocar n o san gue o D N A da solidariedade e da
com preen são hum an a, que torn aria as pessoas m ais sen síveis e com prom e-
tidas com as n ecessidades do próxim o. M as com o isso pode ser possível
num m om ento em que a hum anidade está im pregnada de D N H (D inheiro +
N atureza H um an a)?
A tran sform ação in clui n ecessariam en te um processo de m udan ça de
valores, de con versão do ser hum an o. Q uem se con verte coloca o din heiro
em seu devido lugar, pois in variavelm en te quan to m ais se cresce sob a ótica
m aterial, m ais se dim in ui do pon to de vista espiritual. “O hom em n atural
n ão aceita as coisas do Espírito de D eus porque lhe são loucura, e n ão pode
en ten dê-las, porque elas se discern em espiritualm en te” (1Cor 2:14).
Este processo está con substan ciado n o resum o de n ossa cam in hada his-
tórica: criação-queda-reden ção. Isto é, de acordo com as Escrituras, o ho-
m em e a m ulher foram criados à im agem e à sem elhan ça de D eus, para o
louvor de sua glória. A natureza hum ana, no entan to, foi corrom pida com a
queda n o Éden , quan do Adão e Eva preten deram ser iguais a D eus, con he-
cen do o bem e o m al, e autôn om os, para se autogovern ar e atrair a glória
para si. Todavia, a n atureza hum an a corrom pida foi redim ida pela m orte e
ressurreição de Jesus Cristo, que in augurou um a n ova form a de relacion a-
m en to en tre a criatura e o Criador, libertan do-a das vaidades a que fora
subm etida e recon cilian do-se com todas as coisas.

A Espiritualidade e Outros Assuntos


264 UNIDADE V

D esse modo, a transform ação do ser humano poderia produzir um mun-


do com estes valores: “Am or, paz, alegria, paciên cia, am abilidade, bon dade,
fidelidade, m an sidão e dom ín io próprio” (Gl 5:22-23; N VI). Seria a im plan -
tação da econ om ia de D eus, ao in vés da m on etária. É o estilo de vida sim -
ples con tra o ven en o do con sum ism o.
Com isso, m ais um a con tradição se n os apresen ta: se o din heiro con sti-
tui um obstáculo in stran spon ível, será n ecessária sua m orte espiritual, o
que só é possível com a con versão do ser hum an o. O am or ao din heiro é,
cada vez m ais, a raiz de todos os m ales porque “os que estudam o fen ôm e-
n o da gen eralização das práticas ilícitas e ilegais n ão têm n en hum a dúvida

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em apontar com o causa m ais im portante a infiltração corrosiva da lógica do
din heiro em todas as esferas da vida social”. 4
O din heiro alterou até o ritm o determ in ado por D eus para sua Criação:
tendo trabalhado por seis dias, descansou um , e o dinheiro não dá descanso
para n in guém . H á apen as algun s an os, as pessoas poderiam gan har o pão
trabalhan do, grosso m odo, oito horas por dia. N o en tan to, com o adven to
das m odern as tecn ologias de com un icação, esse tem po social len to foi para
o espaço. A liquidação da fatura veio com a globalização fin an ceira, que
in terligou o plan eta em um só cassin o de apostas. H oje, os especuladores
m un diais têm à disposição 86,4 m il segun dos diários para agir. Seus repre-
sen tan tes estão de tal form a espalhados por vários países que, ao abrir um a
bolsa de apostas em um local, em outro ela acabou de ser fechada, e assim
sucessivam en te.
N a sociedade m aterialista, m ais que n un ca tem po é din heiro — literal-
m en te. O m ovim en to len to da Terra ao redor do Sol agora está poten ciali-
zado n a velocidade de m ilésim os de segun dos, que é o tem po do din heiro
tran sferir-se de um a praça para outra.

O DEUS DINHEIRO

Todo esse processo m ais parece a secularização dos atributos de D eus, em


proporção direta com a sacralização do m un dan o. O din heiro torn ou-se
on ipresen te: está em toda parte, sim ultan eam en te. Pode-se m ovim en tá-lo
pela in tern et, pelos cartões de crédito, pelo telefon e, en fim , dia e n oite,

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


265

n oite e dia, n a velocidade de frações de segun do. Pelo que ele perm ite aos
que possuem e aos que o desejam , o din heiro prom ete ser on ipoten te.
Fin alm en te, o din heiro torn ou-se on iscien te, pois são tan tos os servos,
cada vez m ais m an ipulados pelas cabeças m ais in teligen tes n a ótica do sis-
tem a, que o dom ín io foi estabelecido a partir da sociedade do con hecim en -
to com o um saber absoluto, em que o m ercador-din heiro é o feiticeiro que
sabe de todas as coisas. Em sua im an ên cia à n atureza hum an a, conhece os
desejos e in cita a toda sorte de com petições.
N essa con cepção, m ais um a área em que o din heiro com pete com D eus
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está em seu poder aparen te de rem issão dos pecados. Q uan do a pessoa
acumula muito capital, seus pecados — inclusive, e sobretudo, a forma como
adquiriu sua fortun a — são esquecidos, e ela passa a gozar de prestígio e a
ser bajulada por todos os segm en tos da sociedade. Esta fábrica de rem issão
é um a afron ta aos prin cípios de D eus.
O m egaespeculador m un dial George Soros defin iu a que pon to o feitiço
da m oeda chegou: “A adm in istração do din heiro exige um a dedicação ob-
sessiva à causa de gan har din heiro, requeren do a subordin ação de todas as
dem ais con siderações [...] O s m elhores cérebros do m un do foram atraídos
para os m ercados fin an ceiros.” Ele reit era o alert a: “U m a coisa é cert a: os
m ercad os fin an ceiros são in t rin secam en t e in st áveis. N ecessitam de su-
pervisão e regulam en tação.” A partir dessas con statações, Soros propõe
com o solução que essa tarefa “deve ser o objetivo explícito da política pú-
blica”.5
Com o fazer isso, con sid eran d o qu e os agen t es est ão con t am in ad os
p elo d in h eiro? Rest a ap en as d izer: só n a p len it u d e d o Esp írit o San to é
possível desarm ar esse sistem a que está levan do ao lim ite a corrosão da
natureza humana. Para o cientista M ilton Santos, “a tirania do dinheiro e a
t iran ia d a in form ação são os p ilares d a p rod u ção d a h ist ória at u al d o
cap it alism o globalizado. S em o controle dos espíritos seria impossível a regulação
pelas finanças”.6 São as pedras clam an do!
N ão por acaso, já n o século XVI M artin ho Lutero observava astutam en te
que “três con versões são n ecessárias: a con versão do coração, a da m en te e
a do bolso”.7 Parece que a últim a está cada vez m ais difícil, por tratar-se de

A Espiritualidade e Outros Assuntos


266 UNIDADE V

assun to proibido pelas regras do m ercado. Saben do desta artim an ha, n um a


época pré-capitalista, “Jesus falou acerca do din heiro com m aior freqüência
do que sobre qualquer outro assun to, com exceção do Rein o de D eus”. 8 Se
o seu an cestral, José, foi ven dido por 25 siclos de prata, há m ais de 3500
an os, Jesus foi traído por trin ta m oedas, tam bém de prata, há aproxim ada-
m en te dois m il an os. Q uan to se paga por um ser hum an o n os dias atuais?
Assim , surge a m arca de san gue do din heiro: arrepen dido de seu ato de
traição, Judas joga as m oedas n o san tuário, e os prin cipais sacerdotes deci-
dem que n ão se deve aceitá-las, p orqu e é p reço d e san gu e, e com p ram

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com elas o Cam po do O leiro para servir de cem itério de forasteiros, que
passou a ser “cham ad o at é o d ia d e h oje d e C am p o d e San gu e”. 9 D aí
reafirm ar-se a sen ten ça: “Sem derram am en to de san gue n ão há perdão”
(H b 9:22; N VI ). Em busca da aparen te rem issão pela via do din heiro, po-
rém , m uitos derram am o san gue alheio para gan har a salvação prom etida
pelo m ercado, seja pela m orte direta, seja pela exploração do outro.

A VIA ESPIRITUAL

Em m eio a esses em bates m essiân icos, tem -se m ultiplicado o n úm ero dos
que en xergam que a saída para um a vida susten tável passa pela m udan ça
in terior, con form e a Palavra: “Andai no Espírito e jamais satisfareis à concupis-
cência da carne. Porque a carn e m ilita con tra o Espírito, e o Espírito, con tra a
carn e, porque são opostos en tre si; para que n ão façais o que, porven tura,
seja do vosso querer” (Gl 5:16-17; grifo do autor).
Santo Agostinho já enxergava o cam inho da vitória: “Porque nos criastes
para Vós, e o n osso coração vive in quieto en quan to n ão repousa em Vós.”
Partin do do prin cípio de que “só é justa a sociedade que obedece a D eus”
— pois “ele é o ún ico in corruptível, já que, se o fosse, n ão seria D eus”, e
que “todos, absolutam en te todos, querem ser felizes”, con dição que n ão
tem sido garan tida —, livrar-se do jugo do din heiro é o desafio para aqueles
que não se conform am com este m undo. En tretanto, com o parece claro que
a via m aterial n ão con duz ao êxito, é preciso en carar seriam en te a via espi-
ritual, através da tran sform ação da m en te, e assim experim en tar qual seja a
boa, agradável e perfeita von tade de D eus. 10

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


267

Após um a m etam orfose desta m agn itude, é possível repetir a célebre


frase da an tropologia agostin ian a: “D ai-m e o que m e orden ais, e orden ai-
m e o que quiserdes”. 11 O m ercado tem orden ado o que quer. Porém , dife-
ren tem en te de D eus, poucos têm acesso a todos os ben s oferecidos, devido
aos processos de con cen tração e cen tralização do capital. D aí a in quietação
gen eralizada que se abate sobre as pessoas, resultado do desen can tam en to
produzido pela secularização dos con teúdos da religião. O din heiro n ão
satisfaz os reais an seios hum an os.
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Com efeito, as discussões sobre a volta de D eus gan ham m ais e m ais
espaço, part icu larm en t e d ian t e d a d em ora n o cu m prim en t o d as p rom es-
sas de liberdade, igualdade e fratern idade pelos dois sistem as que foram
fort alecid os n o ilu m in ism o: o cap it alism o e o socialism o. O s d ois, cad a
u m a seu m odo, ban iram ou colocaram D eus em segun do plan o, e a volta
para D eus poderá recom por o sen tido da vida, cada vez m ais escasso n esta
sociedade dom in ada pelo n ervosism o próprio de um a filosofia especulativa
de m ercado.
Esse m ovim en to n ão é n ovo, e n ão ocorreu som en te n o discurso de
H aberm as, n o in ício de 2002. H á m ais de dez an os, a revista Time n oticiou:
“Por m eio de um a revolução silenciosa nos pen sam en tos e argum en tos, que
dificilm en te alguém teria previsto há apen as duas décadas, D eus está res-
surgin do. O m ais in trigan te é que está acon tecen do (...) n o restrito círculo
in telectual dos filósofos”. 12
Com efeito, Pascal reafirm ara que “a con cupiscên cia e a força são as
fon tes de n ossas ações: a con cupiscên cia faz as volun tárias; a força, as
in volun tárias”.13 Percebe-se, por esses aspectos sociológicos, por que o di-
n heiro exerce tal dom ín io. Ele prom ove toda sorte de cobiça, gan ân cia, am -
bição, lascívia, luxúria e osten tação dos ben s m ateriais, in volun tariam en te;
e, pela força do m ercado, exerce o con trole volun tário.
Esse aspecto tam bém foi observado por Pascal: “Assim , sem a Escritura,
que tem Jesus Cristo por objeto, n ada con hecem os, e só vem os obscuridade
e con fusão n a n atureza de D eus e n a própria n atureza”.14 Ele recon ciliou
con sigo todas as coisas (Cl 1:20). M ais tarde, D ostoievski sin tetizou: “Se

A Espiritualidade e Outros Assuntos


268 UNIDADE V

n un ca um hom em foi D eus, ou D eus foi hom em , Jesus foi am bos.” Logo,
só D eus pode libertar o ser hum an o do am or ao din heiro.
A partir desse prin cípio, tudo aquilo que estiver fora do Rein o de D eus,
isto é, estiver n o rein o das trevas, será en cabeçado por M am om , e n ão por
D eus. Portan to, esta é um a esperan ça con creta para a red en ção d a cam -
balean te hum an idade, con tra toda sorte de desesperan ça que tem surgido
n a pós-m odern idade, pois som en te o Espírito de D eus é capaz de derrotar
o espírito do din heiro.
N esse sen tido, o adestram en to que a dupla din heiro-capitalism o vem

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fazen do sobre a n atureza hum an a tam bém a torn a desn atural pela m odifi-
cação cultural dos seres hum an os, com o objetivo de torn á-los à im agem e
sem elhan ça do din heiro. Sign ifica que o capitalism o é um a m áquin a de
fazer pessoas iguais. E o desastre é que seu porta-voz, o dinheiro, potencializa
a ban da podre da n atureza hum an a, torn an do-a dom in an te sobre os valo-
res éticos e m orais que n ão sejam aqueles do in teresse desse sistem a.
Em bora se con heçam os m ales do sistem a, faz-se apologia dele, com o se
pode perceber n a declaração de Bill Em m ott, diretor de redação da revista
T he Economist, a publicação que m ais in flui n a econ om ia do plan eta: “S em-
pre suspeitaremos do capitalismo, por ser baseado em ganância, egoísmo e explora-
ção. Suas virtudes torn am o sistem a din âm ico e dão vigor ao seu im pulso
criativo, m as aí m esm o reside a suspeita — e essa suspeita é saudável.”15
Assim, em tempos de corrupção generalizada, de becos sem saídas, quanto
m ais o din heiro se torn a hegem ôn ico, m ais

(...) os hom en s serão egoístas, avaren tos, presun çosos, arrogan tes, blasfe-
m os, d esobed ien t es aos pais, in grat os, ím pios, sem am or pela fam ília,
irrecon ciliáveis, calun iadores, sem dom ín io próprio, cruéis, in im igos do
bem , traidores, precipitados, soberbos, m ais am an tes dos prazeres do que
am igos de D eus.
2Tim ót eo 3:2-4; N VI

Por isso, é preciso dom ar o m ercado e seu agen te destruidor: o din heiro.
Parafrasean do Jesus de N azaré, é preciso proclam ar bem alto que o dinheiro
foi feito para o homem, e não o homem para o dinheiro. Pois o desprezo in gên uo
ao din heiro alien a o ser hum an o tan to quan to o abuso cín ico dele. É a luta

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


269

pelos valores da Cidade de D eus, de que fala Agostin ho, con tra os valores
da Cidade dos H om en s, organ izada pelo din heiro. N a prim eira, D eus é o
sen tido de todas as coisas; n a outra, o din heiro gan hou essa posição. É a
rem issão de todas as coisas tem porais. N a Cidade dos H om en s, quem n ão
tem din heiro n ão é n ada, n ão existe n a ótica do m ercado.
D epreen de-se daí que há dois tipos de seres hum an os: os que am am a
D eus e submetem o dinheiro (os da Cidade de D eus) e os que amam o di-
n heiro até o pon to de desprezar a D eus (os da Cidade dos H om en s). En -
tretan to, com o o din heiro n ão dá real sen tido a todas as coisas, pois ele é
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tudo e n ada ao m esm o tem po, haja disposição e esperan ça para rein ven tar
form as de vida que superem esse paradigm a dom in an te.
Em outras palavras, está em curso a luta para superar a econ om ia m ecâ-
n ica do lu cro p elo lu cro p ela econ om ia solid ária. Est a p rod u zirá os fru -
t os esperados n um a dem ocracia igualm en te solidária, n a qual o din heiro é
visto com o ferram en ta para chegar ao próxim o m en os favorecido e dar-lhe
con dições de vid a d ign a, e n ão p ara exp lorá-lo ao lim it e. Embora se trate
de gestos sim ples, baseados m ais n a gratuidade das ações que n a recom -
pen sa fin an ceira, podem tran sform ar os seres hum an os — tan to os que
recebem quan to os que se doam em prol de causas n obres n a direção do
outro. A dem ocracia solidária en fatiza a respon sabilidade social, o com pro-
m isso ético e o diálogo. O prin cípio é que a partilha gera prosperidade para
m uitos.
O din heiro foi con struin do um m un do a sua im agem e sem elhan ça, su-
prim in do os valores religiosos e m orais. Em seu lugar, in stala-se um vazio.
N a esteira deste, gan ha força a ética do desem pen ho, e, com ela, um a visão
utilitarista do m un do, com o avan ço da utilidade sobre o dever. Em seu
lim ite, tal con cepção decretou a “m orte de D eus” para essa sociedade que
ten ta viver com o se o din heiro fosse um fim em si m esm o, que tem am pli-
ado a solidão e o isolam en to das pessoas.
Se “D eus está m orto, tudo é perm itido”, 16 pois já n ão há critérios obje-
tivos, com con teúdo m oral forte, que façam a distin ção en tre o bem e o
m al. Resta apenas o triunfo da m oral da utilidade e o rastro de suas vítim as,
sejam as do materialismo conquistado, por se tornarem escravos das posses,

A Espiritualidade e Outros Assuntos


270 UNIDADE V

sejam as do m aterialism o desejado, por sofrerem e m atarem , se preciso for,


para atin gir o padrão m aterial do m un do idealizado pela propagan da.
Se n as sociedades rurais as relações eram pessoais, n a in dustrial con -
tem porân ea são relações im pessoais m ediadas pelo capital fin an ceiro, que
busca a valorização m áxim a do din heiro, e n ão dos seres hum an os. Em
outras palavras, as pessoas se reún em n ão m ais m ovidas pelo am or ao pró-
xim o, m as pelo in teresse n o din heiro que o próxim o possui, ou osten ta
possuir, já que esse m un do está se tran sform an do em pura fan tasia e desfi-
le de im agen s fan tasm áticas.

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O gran de cen ário em que se tran sform aram os Estados U n idos está se
espalhan do pelo m un do. N este sen tido, a últim a solução que surge para
regular a vida n o plan eta é a criação de um Govern o Cen tral, que terá con -
trole sobre o din heiro e o com ércio, sobre o que ven der e o que com prar,
com o aval da religião hegem ôn ica. Este cen tro político-com ercial-religioso
deverá san cion ar tal m odelo prostituído e corrupto, com suas desigualda-
des, até o dia da queda da gran de Babilôn ia, con form e m ostra apocalipse
18. Para Russel Shedd, “o m aior golpe de Satan ás é escravizar a própria
alm a hum an a à con cupiscên cia, à cobiça e à gula por ben s m ateriais”. 17
Logo, é preciso passar da depen dên cia do din heiro para a depen dên cia de
D eus.
Com o objet ivo d e facilit ar o en t en d im en t o, p od em os rad icalizar a
qu est ão e, assim , en xergar o m odelo de com portam en to da hum an idade.
Até por volta do século xv, D eus tin ha auton om ia sobre a vida das pessoas,
já que elas buscavam a salvação divin a. Era o teocen trism o. D epois, até
1989, passaram a con fiar n o ser hum an o com o o deten tor de solução para
seus dram as, graças ao progresso da ciên cia em todas as áreas do con heci-
m ento. O u seja, os hum anos se autodecretaram autônom os para conduzir a
própria vida, colocan do D eus de lado. O an tropocen trism o dom in ou essa
época.
N os últim os an os, especialm en te, a partir da falên cia das idéias socialis-
tas, proclam ou-se a vitória do capitalism o, e o din heiro passou a ter auto-
n om ia em t od as as p raças, cu n h an d o-se o t erm o moneycentrismo p ara
represen tar essa era. O u seja, n a pós-m odern idade, o din heiro colocou de

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


271

lado os seres hum an os à m edida que se torn ou autôn om o n as relações so-


ciais de trocas. N esta era con tem porân ea, pessoas n ão têm valor, já que são
vistas com o m ercadorias que valem quan to têm .
N o passado, n o período do teocen trism o, houve abusos e m ais abusos
em n om e de D eus. N a m odern idade, n a época do an tropocen trism o, apri-
m orou-se o dom ín io do h om em sobre o hom em por m eios dit os m ais
civilizatórios, mas continuou existindo a desigualdade, traduzida na expres-
são “o hom em é o lobo do hom em ”. Por últim o, n a pós-m odern idade, che-
gou-se ao moneycentrismo, a era em que o din heiro torn ou-se cen tro de todas
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as coisas, colocan do em segun do plan o tan to o ser hum an o quan to D eus,


aprofun dan do a desigualdade en tre ricos e pobres de form a jam ais vista. É
urgen te libertar-se dessa prisão do din heiro, que en jaulou os seres hum an os
n a precariedade de sua con dição sobre a face da Terra.
A dificuldade para alcançar vida espiritual isenta de mundanismo é gran-
de, já que a própria Igreja tem sido im pregn ada dos m esm os con ceitos que
regem a sociedade orien tada pelo capital. A teologia bíblica, aquela que vê
o con jun to da Palavra de D eus, se creden cia para ser teocên trica, m as n a
avalanche de correntes antropocentristas surgiram grupos que colocam D eus
em segun do plan o, com o a teologia da libertação, que prega a alforria sócio-
econ ôm ica dos seres hum an os, baseada m ais n o m arxism o do que n o poder
de D eus.
Por últim o, chegou-se ao moneycentrismo tam bém n a esfera espiritual,
com o surgim en to da teologia da prosperidade e todas suas crias. Agora, são
hom en s e m ulheres determ in an do que D eus faça isto ou aquilo, n um a ex-
plícita in clin ação an tropocên trica, m as que n ão passa de um a escan carada
form a de acum ulação de din heiro em n om e da fé. Logo, seria m ais adequa-
do cham á-la “teologia moneycentrista”. São n ulidades duplam en te afetadas:
pelo desejo de ser igual a D eus, repetin do o feito do Éden de querer a
auton om ia do hom em , esta m oída pela auton om ia do din heiro.
N o que diz respeito ao en te que com an da a vida das pessoas e prom ove
as m udan ças, parece que a história cam in hou lado a lado en tre os cristãos e
n ão-cristãos: D eus — H om em — D in heiro. É possível perceber, até pela
form a com o se fala com D eus, se um a oração é teocêntrica, antropocêntrica

A Espiritualidade e Outros Assuntos


272 UNIDADE V

ou moneycêntrica. Bast a an alisar o cen t ro da pet ição: adoração a D eus,


exaltação pessoal ou busca de bên çãos m ateriais?
N a realidade, m uitos estão em adultério com D eus, pois o buscam para
con seguir din heiro, para en con trar algum tipo de prazer n ele, já que n ão
con seguem en con trá-lo em D eus. O processo histórico, portan to, ten de a
ficar assim : D in heiro — D eus — M ais D in heiro. O u seja, sob a égide do
moneycentrismo, busca-se a D eus para con seguir m ais din heiro, e n ão para se
aproxim ar do Criador.
Em sum a: se n o teocen trism o o ser hum an o foi criado à im agem e à

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sem elhan ça de D eus, n o an tropocen trism o o ser hum an o criou D eus a sua
im agem ; e n o moneycentrismo, o ser hum an o virou a im agem do din heiro.
Logo, passou-se da com pleta depen dên cia de D eus para a depen dên cia do
dinheiro. É o espírito do dinheiro que está m ovendo a sociedade contem po-
rân ea. É a desvalorização do ser hum an o e a valorização do din heiro. Logo,
o moneycentrismo é a colocação do din heiro com o cen tro do un iverso, fazen -
do dele a m edida de todas as coisas. É o din heiro pelo din heiro e para o
din heiro, e o ser hum an o a seu serviço — em n om e de D eus. N ão está
escrito n o dólar “In God we trust” (“Em D eus con fiam os”)?

AFETIVIDADE VERSUS NEUTRALIDADE AFETIVA

Vale repisar que n este m un do con tem porân eo, cheio de profun das con tra-
dições, con vivem as visões teocên trica, an tropocên trica e moneycêntrica. To-
davia, an te a perda de sen tido e propósito n a vida, provocada pelas duas
últim as cosm ovisões, só a volta a D eus, através de Jesus Cristo, pode dar
sen t ido e propósit o à exist ên cia. Est a, por sua vez, passa é claro pela
rein auguração da ética cristocên trica: “Am ai-vos un s aos outros”, a força
m ais revolucion ária que já existiu n a história hum an a, a regra n úm ero 1
para que haja relacion am en tos sadios, solidariedade e dem ocracia.
A Igreja prim itiva n ão teve con tin uidade, m as rein augurou o projeto de
vida em com un idade: “Todos os que creram estavam jun tos e tin ham tudo
em com um ” (At 2:42-47). É in teressan te observar que n ão se tratava de
m odelo im posto, e eles contavam com a simpatia do povo. Portan to, em bora
n ão ten ha prosseguido, aquele m odelo de socialismo primitivo ron da a cabe-
ça dos cristãos pela etern idade.

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


273

O s pequen os grupos de con vivên cia ten tam recuperar o sen tido de co-
m un idade que as forças do m ercado debilitaram ou destruíram . É o prin cí-
pio da afetividade con tra a n eutralidade afetiva; do particular con tra o
un iversal; das soluções sim ples con tra as soluções tecn ológicas para proble-
m as com un s, e assim por dian te.
N ão é verdade que se busca m ais a D eus e aos am igos quan do se está
sem dinheiro, em algum a crise ou quando um a doen ça? Pois, quan to m ais a
hum anidade se volta para o dinheiro, m ais triste se torna; e quanto m ais ela
se volta para D eus, m ais alegre devido à ren ovação da esperan ça — produ-
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zida pela perseveran ça n a m ilit ân cia en gajad a d a t ran sform ação d est a
sociedade de n egócios n um a sociedade de relacion am en tos.
É preciso reapren der que o ser hum an o é um ser social, e n ão um ser
capital. Q ue desen volvim en to susten tável18 se faz com pessoas, e n ão com
din heiro, pois ain da que ele acabe an te algum a crise m on etária sem prece-
den tes, o ser hum an o sobreviverá. N o en tan to, se os seres hum an os acaba-
rem , o sistem a tam bém desaparece.
Fin alm en te, deve-se alim en tar a esperan ça de que, um dia, o din heiro e
seus possuidores já n ão terão o poder de oprim ir tan to os seres hum an os
como tem ocorrido hoje. A sociedade se encontra dominada e un iversalizada
p or esse íd olo, fon t e d e t od a sort e d e m azelas sociais. “Ah ! t odos vós os
que ten des sede, vin de às águas; e vós os que n ão ten des din heiro, vin de,
com prai, e com ei; sim , vin de e com prai, sem dinheiro e sem preço, vin h o e
leit e” (Is 5 5 :1 ; grifo d o au t or).
É a esp eran ça d e qu e h averá “n ovos céu s e n ova t erra, n os qu ais
h abit a ju st iça” (2 P e 3:13) que deve n os an im ar. Crer é preciso, pois D eus
está vivo; logo, tudo é possível.

Notas
1
BIAN CH I , An a M aria. A pré-história da economia — D e M aquiavel a Adam S mith. São Paulo:
H ucitec, 1988, p. 13.
2
Estes assun tos estão aprofun dados n o livro O dinheiro e a natureza humana (M ichellon ,
2 0 0 4 ).
3
P ASCAL, Blaise. “Pensamentos”, in coleção Os pensadores. São Paulo: N ova Cultural, 1999,
p. 22,145.

A Espiritualidade e Outros Assuntos


274 UNIDADE V

4
BELLUZZO , Luís Gonzaga. “Poder e dinheiro”, in Folha de S. Paulo, edição de 24 de março de
2002, p. B2.
5
S O RO S , George. A crise do capitalismo: as ameaças aos valores democráticos — As soluções para
o capitalismo global. Rio de Jan eiro: Cam pus, 1998, p. 86,252,257,236.
6
S AN TOS, M ilton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de
Janeiro: Record, 2001, p. 35 (grifos do autor). M orto em 2001, aos 75 anos de idade.
7
BAUM AN (1980:74), in FOSTER , Richard. D inheiro, sexo & poder. São Paulo: M undo Cristão,
1988, p. 17.
8
FO STER , Richard. Id.
9
M ateus 27:1-10. Alusões ao campo do oleiro estão em Jeremias 18:1-4 e 19:1-3 (627-585
a.C.). Além disso, sobre o preço de um sim ples escravo, ver Êxodo 21:32 (1450-1410 a.C.) e

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Zacarias 11:12-13 (520-518 a.C). Bíblia An otada.
10
S AN TO AGO STIN H O . “Vida e obra”, in coleção O s pensadores. São Paulo: N ova Cultural,
1999, p. 37,93,176,281; Rom an os 12:2 e Efésios 2:10.
11
Esta frase aparece quatro vezes no capítulo 10 de Santo Agostinho, já citado.
12
Citado por P ALAU , Luís. D eus é essencial — Encontrando força e paz no mundo de hoje.
Campinas: U nited Press, 2001, p. 100.
13
P ASCAL, Blaise. Op. cit., p. 119.
14
Id., p. 194,201,143,169.
15
EM M OTT , Bill. “Uma janela para o mundo”, in República, ano 4, n o 39, edição de janeiro de
2000, p. 54 (grifo do autor).
16
Frase do person agem Ivan de Os irmãos Karamazov (1879), de Fyodor M ikhailovich
D ostoievski. É esse m ovim en to de an ulação dos valores a que N ietzsche cham ou “m orte de
D eus”. Com ele, o niilismo que, para N ietzsche, é o triunfo da moral da utilidade.
17
Bíblia V ida N ova. São Paulo, 1998:305 N T.
18
M ICH ELLO N , Edn aldo. “A Bíblia e a ecologia”, in O Luzeiro, an o 9, edição n o 2, 1990.

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


275

A ESPIRITUALIDADE E O FEMININO
ABENÇOADA MARIA
ABENÇOADA MARIA

�Taís Machado
Psicóloga, Já atuou
como consultora de

E
empresas, em clínica
e lcionou em vários
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seminários
teológicos. Desde
dificil imaginar, hoje em dia, algum tipo de dis­
1996, é asessora cussão que prescinda de uma abordagem pelo viés
com dedicação eminino. Política, economia, ciência, sociedade, arte
exclusiva na misão - não há disciplina ou área do conhecimento hu­
urbana Aliança mano em que seja atribuído desprezo à figura da
Bíblica Universitária
mulher. E não poderia ser diferente quando se fala
do Brasil. Mais
em teologia, mais especiicamente em espiritualida­
reentemente,
de. Dos registros escriturísticos à própria participa­
dedicou-se a escever.
ção feminina na organização das comunidades
cristãs, a questão do gênero está presente.
Para uma abordagem eetiva sobre a relação en­
tre a espiritualidade e a mulher, porém, algumas per­
guntas iniciais se fazem necessárias. Afinal, a qual
mulher estmos nos referindo? À mulher no contex­
to do Antigo ou do Novo Testamento? À mulher da
Antigüidade, dos tempos modernos ou da socieda­
de pós-moderna? À mulher de qual contexto cultu­
ral? Que queremos dizer com espiritualidade? Há
diferença entre a espiritualidade do homem e a da
mulher?
A espiritualidade, por si, é um assunto comple­
xo. A discussão é ampla e ganha força polêmica
quando, por exemplo, ouvimos o filósofo francês

209

A Espiritualidade e o FeminINo
276 UNIDADE V

Luc Ferr y cham ar a Europa de laboratório de um m un do que busca suas


referên cias além da religião. Ele ain da acrescen ta que “o que m ais caracteri-
za a época con tem porân ea, pelo m en os n as dem ocracias ociden tais, é a
con vicção, alegre ou n ostálgica, con form e o caso, de que o êxito ou o fracas-
so de um a vida n ão p od eria m ais ser avaliad o com base n u m a t ran s-
cen dência”.1
Aos olhos de m uitos estudiosos, portan to, D eus n ão é e n ão deve m ais
ser con siderado referên cia para um a avaliação pessoal — se vivem os bem
ou n ão, se n ossas vidas podem en con trar satisfação e paz, e assim por dian -

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te. En tão, qual seria o pon to para n ortear a ética, os valores, os ideais? Q ue
acon tece se D eus for excluído da pauta? O livro de Eclesiastes an tecipa tal
crise ao afirm ar: “A m elhor coisa que alguém pode fazer é com er e beber e
se divertir com o din heiro que gan hou. N o en tan to, com preen di que m es-
m o essas coisas vêm de D eus. Sem D eus, com o teríam os o que com er ou
com que n os divertir?” (Ec 2:24-25; N TLH ).
Ilusões, bobagen s, vaidades parecem dom in ar o pen sam en to hum an o
atualm ente. Ao mesm o tempo em que há uma certa abertura para experiên-
cias n ovas, através das quais a espiritualidade pode ser desen volvida e
viven ciada de m an eiras diversas e criativas, sen do aceitas praticam en te to-
das as possibilidades, há tam bém um a resistên cia e um a n egação fortes em
relação a outras. Vem os, com o à época do apóstolo Paulo, que “o deus
deste século cegou o en ten dim en to dos in crédulos” (2Co 4:4), que n ão
con seguem perceber a resplan decen te luz do Evan gelho da glória de Cristo,
im agem de D eus.
Isso sign ifica que fom os ilum in ados pelo gen uín o Evan gelho, através da
ação do Espírito do próprio D eus em n ós. Sabem os e crem os que, olhan do
para Jesus, que n os m ostra quem D eus é, podem os descobrir a verdadeira
espiritualidade — ou n os verm os com o seres espirituais que, con form e su-
gere Ariovaldo Ram os, é a m aneira de resgatar nossa hum anidade. Afinal, o
pecado nos arrancou boa parte da humanidade e dignidade, que só em Cristo
pode ser refeita.
Cabe recorrer aqui às palavras do memorável pensador cristão Francis
Schaeffer, que ao com en tar sobre a verdadeira espiritualidade diz:

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


277

A vida espirit ual aut ên t ica, a verdadeira vida crist ã, n ão sign ifica ape-
n as que n ascem os de n ovo. D eve in iciar-se aí, m as sign ifica m uito m ais.
N em significa apenas que vamos para o Céu. Significa muito mais (...) A
vida espiritual autên tica (...) é algo positivo. N ão é só estar m ortos para
cert as coisas, m as t am bém que devem os am ar a D eus, viver para ele e
m an ter com un hão com ele n este presen te m om en to da história. E deve-
m os am ar os n ossos sem elhan tes, viver com o seres hum an os para os seres
hum an os e m an ter com un icação com eles em n ível verdadeiram en te pes-
soal (...) A últim a verdade em n ossos pen sam en tos e em n ossas vidas n ão
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pode ser outra que n ão D eus. O recurso últim o, o derradeiro pon to de


n osso pen sam en to, n ão con sta apen as de coisas sobre D eus; con siste em
relação pessoal com o Criador. A m esm a coisa h á de ser verdadeira n o
que diz respeito à form a com o pen sam os n os seres hum an os. O últim o
recurso n ão pode ser n ada m en os do que a relação pessoal e in dividual,
em am or e em com un icação. O m an dam en to é para am ar a D eus, e n ão
som en te pen sar n ele ou fazer coisas para ele.2

D e m odo geral, hoje há m uita con fusão, ign orân cia e superficialidade a
respeito de n ossa espiritualidade. Ain da que n ão se trate de prerrogativa
exclusiva desta geração, o con ceito de Evan gelho in tegral3 corre o risco de
se perder em m eio a um processo doen tio de crescim en to n um érico a todo
custo. As loucuras que se pode fazer usan do o n om e de D eus assustam . A
história, in clusive a recen te, está repleta de m aus exem plos. Com o, n este
con texto, in serir um a reflexão sobre a m ulher e a espiritualidade?
Aprecio o exercício de olhar para o texto bíblico e observar os prin cípios
que perm an ecem para além de qualquer con texto. Gosto de fazer pon tes
com n ossos dias, a fim de que o en sin am en to bíblico fique cada vez m ais
claro para os que vivem este tem po que cham am os “hoje”.
Parece n ão haver in dicações bíblicas de um a espiritualidade exclusiva
para a m ulher, ou um m odo adequado de a m ulher experim en tá-la, diferen -
tem en te do hom em . Con tudo, vale a pen a lan çar um olhar sobre a vida
espiritual de um a m ulher, na tentativa de iden tificar nela um a referência de
espiritualidade fem in in a: M aria, a m ãe de Jesus, a partir da n arrativa do
doutor (apóstolo) Lucas sobre a situação e reação dessa person agem dian te

A Espiritualidade e o FeminINo
278 UNIDADE V

de um a ocasião m uito especial, n o prim eiro capítulo do Evan gelho que re-
gistrou (Lc 1:46-55).

MARIA E A SURPRESA

M aria é um a jovem n oiva, virgem , que vive n a periferia de um a cidade


pequen a, a Galiléia, que por sua vez já era con siderada in culta pelos judeus
sofisticados da Judéia. Seu cotidian o é com pletam en te tran storn ado pela
aparição de um an jo. Se isto n ão bastasse, seu com un icado é ain da m ais

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perturbador.
In icialm en te, um a saudação sim pática, m as estran ha. Por que um an jo
viria até ela in sistir n a alegria, dizer-lhe que ela era agraciada, favorecida,
aben çoada? Por que lem brá-la da presen ça do Sen hor? Ela n ão con segue
aceitar o con vite-afirm ação do an jo porque n ão en ten de o que está acon te-
cen do. Uma certa desconfiança paira no ar. Suspeitas, surpresas, impressões,
desarranjos, inquietações, tudo em questão de segundos. Arrancada inespe-
radam en te de sua rotin a, ela se põe a pen sar n o sign ificado de tudo aquilo.
É interessante observar que o evangelista não apenas salienta como M aria
ficou m obilizada, adm irada, in trigada ou preocupada, m as tam bém que se
deteve para pen sar n o in usitado da situação, question an do-se para ten tar
en ten der o que estava acon tecen do.
Este é um aspecto particularmente importante, pois confronta a linha de
pen sam en to de um a cultura m achista, segun do a qual “m ulher n ão pen sa”
ou “é só em oção”. H á os que ten tam aten uar o efeito do ran ço cultural,
dizen do tratar-se de um jeito “diferen te” — em outras palavras, “in ferior”
— de a m ulher pen sar.
Lucas n ão diz que M aria com eçou a gritar, a se descabelar, a pedir socor-
ro. Con ta que ela ficou perturbada, de fato, e rapidam en te se pôs a ten tar
decifrar o en igm a. Esta característica de um a reflexão profun da, aliás, é
acen tuada por Lucas, m ais adian te, quan do n arra a visita dos pastores e a
adm iração de todos ao ouvi-los. O evan gelista faz questão de registrar a
reação diferen ciada de M aria: “guardava todas estas palavras, m editan do-
as n o coração” (Lc 2:19; ARA), ou, com o en con tram os em outras traduções:

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


279

“ela retin ha os acon tecim en tos, procuran do-lhes um sen tido” ( TEB); “guar-
dava todas as coisas n o coração e pen sava m uito n elas” ( N TLH ); “con serva-
va os fatos e m editava sobre eles em seu coração” (Edição Pastoral); e a
Bíblia de Jerusalém, que destaca que ela o fazia “cuidadosam en te”.
Tudo isso leva a crer que M aria pode e deve ser um m odelo de espiritua-
lid ad e a ser segu id o p or h om en s e m u lh eres. Ao con sid erar a rot in a
estressan te de quem , com o eu, vive em São Paulo ou em outra gran de m e-
trópole, percebe-se quão fácil é esquecer isso t u d o e sim p lesm en t e con t i-
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n uar a vida, esperan do que D eus con tin ue falan do e explican do tudo —
um a m an eira côm od a e con ven ien t e d e t ran sform ar a revelação d ivin a
em at ividade de um a só via. Em bora seja n atural que o Criador possa falar
e con tin ue a fazê-lo quan do acha n ecessário, isso n ão pode justificar a n e-
gligên cia ao exercício da aten ção e da reflexão m ais profun da, reten do por
m ais tem po aquilo que D eus oferece e revela, e perm itin do que seus en si-
n os criem raízes.
O question am en to pode ser um a atitude positiva, para descobrir n ossa
reação e relação com D eus (com o verem os m ais adian te, n o cân tico que
M aria en toa com júbilo) e com o próxim o.
U ma pressa contínua e crescente não nos permite desfrutar e aprofundar
o que de D eus recebem os, particularm en te em n ossos dias, em que é en or-
m e a ten tação de con sum ir serm ões, livros, palestras e m úsicas, geralm en te
com pouco discern im en to sobre aquilo que se assim ila — quan do algum a
coisa é assim ilada, n aturalm en te. M uitos que saem de gran des en con tros
de adoração e oração em que viven ciam m om en tos de êxtase correm o risco
de se deixar tom ar por outras tan tas sen sações fugazes, que n em n a m em ó-
ria produzem m arcas peren es.
Rich ard Fost er, em seu livro Celebração da disciplina, afirm a qu e “a
su p erficialid ad e é a m ald ição d e n osso t em p o”. 4 D escon fio qu e u m a boa
perspectiva de m udan ça poderia surgir do cultivo de um a espiritualidade
cuja reflexão fosse m ais séria e p rofu n d a — n ão n ecessariam en t e au st e-
ra ou legalista, m as repleta de pergun tas geradas de algo recebido do Se-
n hor e guardado n o coração. É possível que m uita coisa ficasse clara n a
Igreja Evan gélica brasileira, n o que se refere à espiritualidade cristã, e alguns

A Espiritualidade e o FeminINo
280 UNIDADE V

absurdos fossem rap id am en t e d escart ad os e d escon sid erad os, ao in vés


de estim ulados.

MARIA E OS ESCLARECIMENTOS

Apesar de refletir sobre tudo o que seus olhos viam e seus ouvidos ouviam ,
o m edo de M aria é eviden te, ou m esm o n atural. En tão o an jo trata de
acalm á-la: “N ão ten ha m edo, M aria e en tão passa a detalhar o que estava
prestes a acon tecer, ou seja, um a gravidez in édita e ún ica n a história da

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hum anidade. H avia m ais. Aquela jovem seria portadora do M essias prom e-
tido, sobre o qual tan tos profetas falaram ao lon go da história de Israel;
aquele que seria a esperan ça do povo. Após séculos de espera de toda um a
raça, um anjo está diante da humilde M aria para anunciar que o nascimento
do Filho do Altíssim o, aquele que rein ará para sem pre sobre seu povo e
cujo rein ado jam ais terá fim , está chegan do, e ela será o in strum en to desse
m ilagre.
Por m ais que n os esforcem os para im agin ar a situação e a gran diosidade
dessa n otícia, jam ais chegaremos perto. O impacto deve ter sido enorme em
M aria. Batim en tos cardíacos acelerados, extrem idades geladas, suor repen -
tin o, palidez, uma confusão de pensam en tos cruzan do-se no m esm o instan -
te, lembranças, implicações, esperanças, crenças, planos e muito mais. Lucas
registra apenas um a frase de M aria: “Com o acontecerá isso, se sou virgem ?”
M aria pen sa em sua relação con jugal, sua sexualidade, seu organ ism o e
em sua situação. Preocupa-se com tudo isso. Seria “coisa de m ulher”? U m
hom em reagiria de form a diferen te? O texto destaca apen as que ela faz
questão de esclarecer que n un ca se deitara com hom em algum . Com o se
daria? E o m edo de cair na boca do povo? Por que a necessidade de mencio-
n ar sua pureza? N ão podem os saber exatam en te as m otivações de tal per-
gun ta, m as podem os ver que D eus n ão se im porta em esclarecer algum as
coisas. N a verdade, ele fala de um a paren ta de M aria, crian do um con texto
m ais fam iliar, m ais próxim o, e con clui: “N ada é im possível para D eus”.
N um a espiritualidade sadia, as pergun tas e os question am en tos surgem
de form a quase n atural, com o resultado da lim itação hum an a de pen etrar
os desígn ios divin os. Relatos bíblicos como o do episódio envolvendo M aria
A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS
281

revelam que D eus n ão se ofen de n em se escan daliza com as pergun tas.


An tes, pacien tem en te, esclarece, oferece dicas ou pistas, fala de suas an te-
cipações e m ovim en tos, en via pessoas, an jos, en fim , lem bra quem ele é e
do que é capaz.
Precisam os disso em n osso dia-a-dia. Lem bro-m e de frei Betto dizer
que ficam os com a cabeça cheia de discursos sobre D eus, e que sabem os
falar de D eus e sobre D eus, até m esm o falar com D eus. En tretan to, som os
an alfabetos quan do se trata de deixar D eus falar em nós.
N os dias de M aria, o Sen hor falou através do an jo, reforçou sua m en sa-
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gem através de Isabel, con firm ou-a através de João Batista e de suas m an i-
festações desde o ven tre m atern o, e reafirm ou-a de várias outras m an eiras,
pela in strum en talidade de m uitas pessoas — ora discretam en te, sem m ui-
tos saberem ; ora m ais disfarçadam en te aos olhos, n o oculto, n o secreto.
D eus, porém , sem pre fala. Ele tom a in iciativas com o o fez desde o prin cí-
pio. Em toda n ossa história, D eus sem pre veio ao n osso en con tro, buscou
com un icar-se con osco, tom ou providên cias, agiu poderosam en te, fez m ui-
tos m ilagres, tudo para que en ten dêssem os um pouco de seu in teressado
am or por n ós.
Com o n os lem bra o autor de H ebreus (1:1,2), D eus sem pre foi criativo
e in sisten te, e hoje é ain da m ais claro, m ais explícito. H oje D eus n os fala
em Jesus, n aquele que n asceu de M aria. Isso acon teceu porque houve um a
reação obedien te, um espírito pron to, um a alm a disposta, um corpo aberto
à Palavra de D eus, um ser desejoso em servir.

MARIA E ALGUNS ENCONTROS

M aria teve um en con tro com um an jo. N o en tan to, m ais do que se en con -
trar com um an jo, ela se en con trou ain da m ais com D eus. D escobriu n ovos
propósitos para sua vida, um a n ova m an eira de servir, um a relação n ova
com paren tes e m uito m ais. É esta a m ulher que respon de ao an jo: “Sou
serva do Sen hor, que acon teça com igo con form e a tua palavra”.
U m a espiritualidade sadia resgata em n ós um a iden tidade perdida. M a-
ria esboça sua reação a partir da con sciên cia e da seguran ça de quem era e a
quem servia. Verdade seja dito, isso n ão é n atural em n ós — n ão após a
A Espiritualidade e o FeminINo
282 UNIDADE V

queda do ser humano, quando tudo se tornou confuso, inclusive nossa iden-
tidade. Pelo exem plo de M aria, n o en tan do, podem os n os an im ar e perce-
ber que, quan do n ossa iden tidade é en con trada em D eus, tudo m ais pode
acontecer.
Por m ais estran ho que pareça aos olhos da sociedade, às lin has psican a-
líticas, às con clusões da psicologia, da sociologia e de tan tas outras discipli-
n as, é possível perceber que, quan do se sabe quem é, é m ais fácil descobrir
aon de se vai — n ão n ecessariam en te n o sen tido im ediato e con creto, m as
n o que se refere à certeza de que, com o m in ha vida e m in ha iden tidade

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estão ligadas ao sen horio de D eus, en tão sei aon de isso vai dar: n o m elhor
para m im .
H á qu e se con sid erar qu e, em n osso con t ext o, o in d ivid u alism o é
acen t u ad am en t e m ais fort e qu e n os d ias d e M aria e em seu am bien t e
cu lt u ral. Im agin o que, ao receber a n otícia do an jo, ela n ão estivesse pen -
san do apen as se aquilo seria bom para ela, ou o que ela poderia gan har com
tudo aquilo. À luz dos relatos bíblicos, este n ão parece ter sido seu critério,
n em su a lin ha de raciocín io, até porque a sit u a çã o seria m u ito con stran -
gedora. O que viria pela fren te era, n o m ín im o, aterrorizan te, falan do de
forma bem prática. Afinal, como ela daria aquela notícia asua família? Como
reagiria seu n oivo, as dem ais pessoas ao seu red or? A p artir daquela visita
an gelical, M aria est ava n u m a en rascad a, em sérias d ificuldades.
Atualm en te, n o exercício de n ossa espiritualidade, n ão n os dam os con ta
do crescen te processo de desum an ização. A alien ação alcan ça proporções
in éditas, e o in dividualism o se torn a ban al, um com portam en to con sidera-
do quase n atural. O s cân ticos cristãos con tem porân eos m ostram claram en -
t e est a realid ad e, com let ras qu e ressalt am as bên çãos in d ivid u ais, a
valorização do “eu” em detrim en to da com un idade. O raciocín io é m uito
próxim o ao da fam osa Lei de Gerson: “Se o que é bên ção pra m im pode
prejudicar o outro, só lam en to”. O u: “Se eu puder lucrar com a situação, os
outros que se garan tam ”.
O ministério é in dividual, com lideran ças procuran do afirm ar suas “vi-
sões” ou “revelações” extraordin árias. São, n a prática, form as (travestidas
de religiosas) de con struir e assegurar o con trole e os in teresses próprios.

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


283

Q ue trem en do con traste com a resposta de M aria: “Eu sou um a serva de


D eus, cum pra em m im con form e a tua palavra”.
Isso m e faz recordar as palavras do livro do reveren do Ricardo Barbosa,
cuja leitura se faz n ecessária para os in teressados em aprofun dar a questão
da espiritualidade:

N egar a com un hão, optar pelo in dividualism o, é n egar a n atureza essen -


cial de D eus e n ossa vocação cristã [...] Sen d o a n at u reza de D eu s p es-
soal e relacion al, o prin cípio da am izade abre n ovas fron teiras para um
en con t ro m ais pessoal, afet ivo e relacion al com D eu s. G eralm en t e, as
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pessoas que en con t ram dificuldades em est abelecer vín culos afet ivos e
pessoais com am igos ten dem a tran sform ar sua relação com D eus em algo
tão im pessoal quan to suas relações hum an as. A form a com o tratam os os
out ros é a form a com o t rat am os a D eus. Se m an ipulam os os out ros e
n ossas relações são, basicam en t e, d e n at ureza polít ica, est a t orn a-se a
form a com o n os relacion am os com D eus.
Se apren dem os a utilizar pessoas e coisas, terem os um a relação tam -
bém utilitária com D eus. A verdadeira espiritualidade é algo qu e t ran s-
cen d e a n ó s m esm o s, é in t erp esso a l, é rela cio n a l. A a m iz a d e e o s
relacion am en t os qu e con st ru ím os são cam in h os qu e n os con duzem a
D eus [...] A im agem de D eus n ão é refletida n o isolam en to hum an o, m as
n a com un h ão. N a Bíblia, n osso am or para com D eus é est abelecido a
partir do am or que tem os para com o próxim o. Se não am am os o p róxi-
m o , n ã o p o d em o s afirm ar q u e am a m o s a D eu s (1 Jo 4 :2 0 ). N ão h á
com o est abelecer qualquer relação com D eus desvin culada das relações
h u m an as. 5

Através do texto do Evan gelho de Lucas, cada vez m ais é reforçada a idéia
de que um a boa espiritualidade in icia-se n um en con tro com D eus e com
sua Palavra. Segue-se um en con tro con sigo, fazen do rever n ossa iden tida-
de, e que desem boca em n ovos en con tros com o próxim o.
Passados algun s dias de m uitas in quietações e pen sam en to acelerado,
M aria vai apressadam en te ao en con tro de Isabel. A prim eira im pressão é a
de que, depois daquela gran diosa n otícia do an jo, ela precisava de algum
tem po para colocar a cabeça n o lugar e os pés n o chão — ou, com o se diz,
“assen tar a poeira”. Porém , ao fazê-lo, relem bran do seu en con tro com o

A Espiritualidade e o FeminINo
284 UNIDADE V

an jo, cada palavra que ele disse, pensando e repensado o que estava vivendo,
deu-se con ta de que havia um a dica preciosa em com o viver os próxim os
dias. Afin al, fora o próprio an jo que dissera a M aria que Isabel, até en tão
estéril, estava grávida. É com o se, en fim , ela tivesse con seguido m atar a
charada. En tão, corre para lá.
Trata-se de um en con tro aben çoado desde o in ício. D eus já o havia pre-
parado. O texto n os con ta que, ao ouvir a voz de M aria, Isabel sen tiu o
bebê se m over n o ven tre. En tão foi cheia do Espírito San to e proferiu pala-

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vras aben çoadoras, recon fortan tes, con soladoras para aquela joven zin ha.
Q uan to capricho de D eus fazer Isabel en cher-se de seu Espírito! O Pen -
tecoste ain da estava lon ge, m as Isabel experim en tou o que era estar cheia
do Espírito de D eus para aben çoar a serva do Sen hor. Isto, sim , produz
um a espiritualidade sadia: en con tros en tre pessoas, ocasiões que podem
provocar a plen itude do Espírito. Tais en con tros podem aben çoar, acalm ar,
fortalecer o outro em suas lutas, an gústias, dúvidas ou alegrias. N um a ver-
dadeira espiritualidade, o outro recebe com igo. H á espaço para dividir. H á
o ato de sair em direção ao outro, locom over-se em busca do outro e um
profun do sen so de partilhar.
É pruden te descon fiar de um a espiritualidade que se isola — lam en ta-
velm en te, algo m uito freqüen te em n osso tem po. Ao deparar com esse tre-
cho bíblico de M aria e Isabel, D ouglas Connelly afirma: “Às vezes eu pensava
que, quan to m ais m e aproxim ava do Sen hor, m en os precisava das pessoas
à m in ha volta. O exato oposto é verdade. Q uan to m ais perto an dam os do
Sen hor, m ais precisam os do apoio de outros”. 6
É verdade. Precisam os dos outros — e m ais, precisam os criar espaços
em n ós para ir ao en con tro e receber o outro. H en ri N ouwen , referên cia n a
área da espiritualidade, classifica esse en con tro com o “n ecessário” e um
dos três m ovim en tos da vida espiritual, que den om in a “da hostilidade à
hospitalidade”. U san do suas belas e certeiras palavras:

N ossa sociedade parece cada vez m ais cheia de pessoas tem erosas, defen -
sivas e agressivas, agarran do-se an siosam en te às suas propriedades, in cli-
n adas a olhar ao redor com suspeitas, sem pre à espera de que um in im igo
de repen te apareça e cause algum dan o. M esm o assim , essa é n ossa voca-

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


285

ção: con vert er o h ost is em h ospes, o in im igo em con vid ad o, e criar o


espaço livre e sem m edo, n o qual a irm an dade pode form ar-se e ser expe-
rim en tada em sua plen itude [...] A hospitalidade é oferecer am izade sem
am arrar o hóspede e liberdade sem aban don á-lo [...] H ospitalidade n ão é
m u d ar as pessoas, m as oferecer a elas u m espaço n o qu al a m u d an ça
pode acon t ecer.7

Vem os parte disso n o en con tro de M aria com Isabel. D epois de três m eses,
M aria estava pronta para voltar para casa. A expressão da espiritualidade se
deu, com o se dá ain da hoje, n os en con tros. A com un idade fatalm en te será
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sua testem un ha, e poderá ver e ouvir a respeito do que descobrim os de


D eus para que seja aben çoada e levada a um a adoração m ais profun da.

MARIA E O CÂNTICO

Ao ser aben çoada por Isabel e en con trar um a san ta hospedagem , M aria
vibra e com eça a com por aquele que ain da hoje é um dos cân ticos m ais
bon itos n a história cristã. A poesia e a teologia se en trelaçam de m odo
m aravilhoso. A profun didade é im pression an te, um a vez que expressada
por um a m ulher... e jovem ... e de N azaré! Ela n ão havia cursado um a escola
de profetas, n em um a faculdade de teologia. N o en tan to, se os sem in aristas
de hoje tivessem a m esm a profun didade teológica de M aria, descon fio que
a qualidade do en sin o em n ossos púlpitos seria outra.
Ela com eça declaran do a gran deza do Sen hor e sua alegria n ele. M as
quem é esse que ela en gran dece e adora. Q uem é esse D eus? N a con cepção
expressa de M aria, trata-se de um D eus que é seu Sen hor e Salvador, pode-
roso, santo e m isericordioso. Sim , sua percepção é correta e rica em teologia
de prim eira lin ha, assem elhan do-se à dos gran des hom en s de D eus n a his-
tória de seu povo. É expressada em poesia, em can to, con seqüên cia da ale-
gria de crer e de ter um D eus assim . É a con vicção em verso, o coração em
festa, a m en te delician do-se em m elodia, o espírito exercitan do a fé que vai
além da realidade virtual, um a fé que é histórica e con creta. E em n ossa
espiritualidade, com o vem os a D eus?
M aria, utilizan do-se da espon tan eidade poética que surge em m eio à
adoração, reforça su a id en t id ad e d ian t e d e D eu s e revela com o vê a si
A Espiritualidade e o FeminINo
286 UNIDADE V

m esm a: serva (n o grego, doule, escrava). O lha para si a partir do propósito


divin o, e percebe-se con tem plada, privilegiada, pois sabe de sua con dição.
Por poder contribuir e participar na concretização da H istória, na plenitude
dos tem pos, se sen te bem -aven turada. E em n ossa espiritualidade, com o
n os vem os?
Jesus en sin a o paradoxo e in siste n ele: quem quiser salvar sua vida, vai
perdê-la (Lc 9:24), en sin am en to com plexo para seus discípulos. Porém ,
parece que já vem os in dícios disso n a vida de M aria, an tecipan do a lição
que tem os de apren der.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
N ossa gran de descon fian ça e dificuldade sobre esse en sin am en to m an i-
festa-se n o m om en to em que vam os colocá-lo em prática. O uvim os o que
Jesus disse, e até en sin am os a respeito, m as, n o dia-a-dia, en con tram os
den tro de n ós o m edo da en trega, a resistên cia à auto-ren ún cia, o pavor da
auton egação. N ossa iden tidade sen te-se am eaçada, e assim rapidam en te
levantam os as defesas, procuram os justificativas, racion alizações, tentando
segurar aquilo que acham os que som os. O resultado é um estrago en orm e.
M aria n os ajuda a perceber que, quan do m e vejo com o serva-escrava,
quan do ren un cio a m eus plan os e desejos, quan do m e en trego para que
D eus cum pra em m im seu querer, quan do m in ha iden tidade passa a estar
n ele, n essa m in ha relação com ele, en tão, n a verdade, n ão m e perco: m e
en con tro. Q uan to m ais m e n ego, m ais em D eus m e descubro, m e torn o
m ais eu, a ten são vai dim in uin do à m edida que a seguran ça da m in ha iden -
tidade n ele se fortalece.
A serva n os diz tam bém um pouco a respeito da ação de D eus n a histó-
ria. O que m e faz pen sar que a boa espiritualidade pode m e fazer apren der
da história de D eus, estim ulan do-n os a estudá-la. O ro para que, com o con -
seqüên cia, eu m e en con tre cada vez m ais in teressada, curiosa e dedicada ao
estudo da história e do D eus da história.
N este sentido, M aria pode ser fonte de inspiração. Ela afirma, acertada e
con victam en te, que D eus age com poder, am para seu povo e cum pre suas
prom essas. Este D eus é atuan te em n ossa história. Ele in tervém em todos
aqueles que guardam e alim en tam a soberba n o m ais ín t im o d e seu co-
ração, derruban do a arrogân cia d os p od erosos, d est ron an d o aqu eles qu e

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


287

se sen tem con fortáveis em seus rein ados. Ele despede os ricos de m ãos
vazias, m as en che de coisas boas os fam in tos, assim com o exalta os hum il-
des. M aria con segue, sucin tam en te, lem brar da m isericórdia de D eus, que
se esten de de geração em geração, e das gran diosas realizações dele n o
decorrer da história desde Abraão, como manifestação concreta de tal amor.
Refletir sobre o con teúdo que M aria expressa n as circun stân cias em que
se en con tra leva a m uita reflexão, à lem bran ça de fatos e à con statação de
que, n a cam in hada com D eus, fazem os descobertas con tín uas a respeito de
quem ele verdadeiram en te é.
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O filósofo M on taign e já dizia que crer em D eus é prim eiram en te saber


que n ão se con hece D eus. Isto seria verdade se D eus n ão tivesse en carn a-
do. M as o Pai en viou o Filho. M aria aceitou con tribuir. É assim ao lon go da
história: som os sem pre privilegiados em participar dos propósitos divin os.
Agora tem os a Cristo, referên cia de todo n osso viver, e o Espírito da verda-
de, que n os guia em toda verdade (Jo 16:13).
Apesar disso tudo, como conseguimos viver uma espiritualidade que mais
adoece que produz san idade? Por que os hospitais psiquiátricos estão re-
pletos de religiosos — em sua m aioria, evan gélicos? Por que, m esm o sa-
ben d o qu e D eu s d isp ersa os soberbos, ain d a alim en t am os em n ossa
espiritualidade um a arrogân cia assustadora, que provoca cada vez m ais di-
visões n o Corpo de Cristo? Por que, m esm o saben do que D eus despede
vazios os ricos, ain da buscam os a prosperidade terren a com o sin al en gan o-
so de espiritualidade sadia? Ain da que, com o M aria, saibam os que D eus
derruba os poderosos de seus tron os, por que ain da buscam os com avidez
os t ron os d est a Ter ra? Será qu e, com o d isse Jesu s, referin d o-se aos
sam aritan os, tam bém adoram os o que n ão con hecem os? Se Cristo n ão é a
base da espiritualidade, en tão tudo está perdido.

ESPIRITUALIDADE NO FEMINISMO

Apesar de tan tas dificuldades e barreiras culturais, a m ulher sem pre teve
seu espaço privilegiado, à luz das Escrituras Sagradas. N a Bíblia, en con tra-
m os m ulheres que foram fun dam en tais para a realização e para o cum pri-
m en to das prom essas do Pai. A partir de Jesus, com seus en sin am en tos e

A Espiritualidade e o FeminINo
288 UNIDADE V

relacion am en tos com elas, com o estabelecim en to da n ova alian ça, a m u-


lher é fin alm en te resgatada em sua dign idade ferida pela queda.
N este processo de restauração plen a, len to a n ossos olhos, os cristãos
têm apren dido a ouvir e a respeitar as m ulheres, e a apren der com elas.
Cresce a abertura para um a espiritualidade no fem in in o (diferen te de um a
espiritualidade feminina, que acredito n ão haver), isto é, que pode se expres-
sar n as diferen ças características do hum an o, n o âm bito do gên ero.
O n de a discrim in ação dim in ui, esta expressão de espiritualidade gan ha

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espaço. O pecado ain da provoca tragédias, violên cias, repressões e um a
série de atitudes que já deveriam ter sido transform adas pela encarnação do
Evan gelho. N o en tan to, acho que n en hum a outra geração pôde desfrutar
privilégios e progressos com o os que hoje en con tram os.
O psiquiatra cristão Paul Tourn ier, fam oso por seus livros e por sua vi-
são profética, falan do a respeito das m ulheres, diz que apren deu a “com -
preen dê-las um pouco m elhor, particularm en te n o que diz respeito a essa
busca da presen ça de D eus — busca que, m ais que qualquer outra, faz de
n ós pessoas”.8 É justam en te esse o resultado da busca e do con seqüen te
encontro com D eus: resgata nossa hum an idade, n os regenera, n os dá a pos-
sibilidade de voltar a ser im agem e sem elhan ça daquele que n os criou.
O exercício da espiritualidade deve n os levar sem pre a ver com m aior
clareza quem D eus é, quem n ós som os, hom em e m ulher, e quem é o n osso
próxim o, alvo do am or de D eus.
O filósofo fran cês An dré Com te-Spon ville, um dos m elhores pen sado-
res con tem porân eos, é um ateu con victo e assum ido. Porém , duran te um a
en trevista, quan do lhe pediram para escolher um sím bolo, ele escolheu a
cruz, e esclareceu: “U m hom em m orreu n um a cruz em n om e do am or. O ra,
o am or é o ún ico valor que vale, ou pelo m en os aquele que m ais vale; é o
ún ico que dá sen tido e coerên cia a todos os n ossos valores. A cruz sim boli-
za o am or, m as n ão o am or on ipoten te: o am or sofredor, o am or frágil, o
am or m ortal”.9
N ossa espiritualidade será m uito m ais saudável se, con cretam en te, esse
am or dem on strado n a cruz, que a tan tos im pression a, vier a ser expressado

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


289

em n ossas relações, sem diferen ças de gên ero, reforçan do, assim , a un idade
em Cristo (Gl 3:28).
Em presto as palavras do ren om ado teólogo e carin hoso pastor Ren é
Padilla para fin alizar este en saio:

A m ulher n ecessita ser liberada da opressão que tem assum ido o m achism o.
Isso é certo. M as tam bém é certo que n ecessita ser liberada de seu próprio
m ach ism o in t ern alizado ou de seu fem in ism o reacion ário: ser libert ada
para assum ir o lugar que lhe correspon de com o co-herdeira do Rein o. N a
realidade e verdade, a n ecessidade é que t an t o a m ulh er quan t o o h o-
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m em sejam libertados de toda form a de egoísm o, a fim de estabelecer um a


n ova relação com seu próxim o (hom em ou m ulher) e desfrutar a “vida em
abun dân cia” pela qual Jesus Cristo m orreu e ressuscitou. N em o m achism o
n em o fem in ism o são realidades últ im as: a ún ica realidade últ im a é o
propósito de D eus de fazer n ovas todas as coisas por m eio de seu Filho
Jesu s Crist o. E n essa realid ad e, qu e se m an ifest a an t ecipad am en t e n a
fam ília e n a igreja que vivem segun do os valores do Rein o, radica n ossa
esperan ça. 1 0

Notas
1
F ERRY, Luc. O que é uma vida bem-sucedida? Rio de Jan eiro: D IFEL, 2004, p.17.
2
S CH AEFFER , Fran cis. Verdadeira espiritualidade. São Paulo: Fiel, 1989 (3ª edição), p. 25.
3
Para maiores esclarecimentos, recomendo a seguinte leitura: D ’ARAÚJO FILH O , Caio Fábio.
U m projeto de espiritualidade integral. Brasília: Sião, 1988.
4
F O STER, Richard. Celebração da disciplina. São Paulo: Vida, 1988, p. 9.
5
S O U SA, Ricardo Barbosa de. Caminhos do coração. Curitiba: En con trão, 1996.
6
C ON N ELLY, D ouglas. M aria: Um modelo bíblico de espiritualidade. Viçosa: Ultimato; São Paulo:
Editorial Press, 2002, p. 27.
7
N OUW EN , H enri. Crescer: Os três movimentos da vida espiritual. São Pau lo: Pau lin as, 2 0 0 0 ,
p. 63, 69.
8
T O U RN IER , Paul. A missão da mulher. São Paulo: Vértice, 1988, p. 115.
9
C OM TE-S PON VILLE, André. O alegre desespero. São Paulo: U nesp; Belém: U niversidade Esta-
dual do Pará, 2002, p. 58.
10
P AD ILLA, Ren é. D iscipulado y M isión — Compromiso con el R eino de D ios. Edicion es Kairós,
1997.

A Espiritualidade e o FeminINo
290 UNIDADE V

ESPIRITUALIDADE,
A ESPIRITUALIDADE E A IDENTIDADE NEGRA
IDENTIDADE E CULTURA
ESPIRITUALIDADE, IDENTIDADE E CULTURA

�Marco Davi de Oliveira


Graduado em Teoloia
e Filosoia, é pastor
da Igreja Batista de
Vila Mariana, onde

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exerce o ministério em
Nada ma5 oportuno nos dias de hoje que discu­
Misses Urbanas. É
coordenador da tir a temática da espiritualidade, pois nunca se falou
organização não tanto dela. Com freqüência a concepção de espiri­
governamental tualidade nos leva aos caminhs mais distintos e ines­
Simeão, o Níger. perados. Tal discussão, via de regra, direciona-se para
Coordenador do crenças estranhas, contemplação exacerbada, afas­
Movimento Negro
tamento social e cultural ou até, em alguns casos, o
Evangélico e do Fórum
êxtase da busca existencial. A espiritualidade tam­
de Lideranças Negras
Evangélicas, compõe bém tem sido encarada como algo que acontece ora
a Comissão da do indivíduo, que vem de forma sobrenatural. num
Negritude da momento específico, e que paira sobre aqueles que
Associação são mais sensitivos ou "espirituais".
Evangélica Brasileira Uma forma de conceituar a espiritualidade é as­
(AB). É autor do livro
sumir que, através dela, se chega ao encontro de si
A religião mais nera
mesmo, ao "eu" primordial etc. Desta maneira, pen­
do Brasil, publicado
sa-se na espiritualidade, muitas vezes, sem levar em
pela editora Mundo
Cristão. conta a história dos indivíduos. Daí surgir todo tipo
de espiriualidade desconexa com a realidade de cada
um. Fala-se de espiritualidade longe da história, das
dores, do choro ou do riso.
Outra maneira de se pensar a espiritualidade é
concebê-la fora do arcabouço cultural e étnico do
indivíduo. Entretanto a cultura deve ser avaliada

241
A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS
291

com o prin cipal in strum en to de leitura da espiritualidade. A etn ia, ou raça,


deve ser en carada com o o cern e, a m atriz das respostas en quan to vivên cia
da espiritualidade in dividual e coletiva.
N a prim eira parte deste capítulo, vam os jun tos refletir — n ão com o um
pacote fechado e un iform e — sobre os cam in hos da espiritualidade que se
identifica com a identidade. Vamos pensar como a identidade (especificidade)
dos n egros n o Brasil pergun ta e respon de sobre a espiritualidade que se
propaga n este in ício d e sécu lo, e d e q u e m a n eira ela se coadun a com a
realidade do n egro evan gélico brasileiro.
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Tratarem os da n atureza hum an a, da im agem e sem elhan ça de D eus, da


graça in fin da que a todos e a todas as culturas dom in a. M as, sobretudo,
trarem os à luz que a espiritualidade cristã tem com o prin cípio o ser igual a
Jesus de N azaré, exem plo de espiritualidade m ais profundo, dando sua vida
por n ós, n egros e bran cos pecadores.
A p rin cíp io, d evem os d efin ir ou ap en as p en sar a esp irit u alid ad e
con ceitualm en te. Q uan do falam os de espiritualidade, o que vem à m en te?
Q ue im agem fazem os de alguém que decidiu (se isto é possível) viven ciar
sua espiritualidade n o que há de m ais profun do? O bviam en te, pen sam os
n aqueles que con sideram os espirituais, ou seja, que tran sm item a todos a
im agem de um a vida con ectada com o Espírito San to.
Q uando a Bíblia fala do Espírito Santo, usa as expressões ruah (hebraico)
e pneuma (grego). Am bas en fatizam um a realidade presen te. É o Espírito de
D eus que se relacion a com a pessoa, que in terage com ela, gem en do por
suas dores (Rm 8:26).

UMA TENTATIVA DE DEFINIÇÃO

O que é espiritualidade? Esta é a questão prim ária para dar con tin uidade à
reflexão deste capítulo. N a ten tativa de defin ir o term o, podem os chegar ao
seguin te: espiritualidade é a consciência do espírito do ser humano caído com a
magnífica presença do Espírito de D eus revelado em Jesus de N azaré. N esta ten ta-
tiva de defin ição, devem os d izer qu e viver a esp irit u alid ad e é t er a con s-
ciên cia d e que som os pecadores, com a n atureza caída e deform ada pelo
pecado que invadiu a hum anidade, retirando do ser humano a qualidade de

A Espiritualidade e a Identidade Negra


292 UNIDADE V

ser um com D eus e com o outro. O pecado retirou da pessoa a espiritualida-


de existen te an tes n a relação com D eus. N o Jardim , vivia em con form idade
com D eus e com a n atureza. A espiritualidade do ser hum an o con sistia em
cuidar da Criação. Era voltada para o relacion am en to com as coisas criadas:
as árvores, as plan tas, os an im ais e as flores, que recebiam , a cada m an hã,
o n om e dado pelo hom em .
A espiritualidade tam bém era direcion ada para o outro — ou m elhor,
para a outra. Era n o relacion am en to heterossexual, de hom em e m ulher,
que o hom em dizia coisas do ín tim o, da alm a. N o relacion am en to com a

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m ulher, o hom em pôde expressar o sen tim en to pelo outro com o um ser
fora dele, m as igual a ele. Por isso, foi capaz de dizer: “Essa (...) é osso dos
m eus ossos e carn e da m in ha carn e” (Gn 2:23).
Finalm ente, m as de m aior im portância, a espiritualidade do ser hum ano
n o Jardim era pautada pelo relacion am en to com D eus: um D eus que fala-
va, in teragia e n utria am izade com ele. D eus que procurou o hom em após a
queda e pergun tou: “O n de estás?”. U m D eus que procurava o ser hum an o,
a quem queria bem , a quem am ava. U m D eus que pôs n o hom em o desejo
por etern idade, in teração espiritual e con tato com os céus, com o divin o.
N o Jardim , o hom em era espiritual e tin ha um a identidade que o diferencia-
va dos outros seres, e por isso os dom in asse, apesar de tam bém con stituir
n atureza com eles. Era n esse Jardim que o hom em era coletivo sen do un i-
dade, sen do alm a viven te.
A queda foi um a trágica m anifestação contrária ao bem . Foi o m al que se
colocou en tre o ser hum an o e D eus, in vadin do a relação da criatura com o
Criador. O m al desfez a harm on ia en tre o hom em -n atureza e o restan te
dela. In trom eteu-se en tre o hom em e a m ulher, quebran do a un idade en tre
eles. Trouxe cardos e espin hos à Terra. Fez o hom em m orrer, quebran do sua
iden tidade prim ária. Já n ão um a só raça. Agora é raça decaída pelo m al que
se apoderou da hum an idade. U m am bien te con trário ao bem , à vida e a
D eus. O hom em se perdeu de D eus.
Q uan do o hom em saiu do Jardim , sua descen dên cia voltou-se con tra si,
m ostran do que estava rom pido o laço que fazia o ser hum an o viver a espi-
ritualidade que o iden tificava com o criado à im agem e à sem elhan ça da

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


293

Trin dade. A imago D ei, que fazia do hom em um ser produtor de vida, foi
m anchada pela suposição hum ana de ser igual ao Criador. Ao hom em cabia
ser livre, bon doso, racion al, am oroso. Após a queda, coube-lhe ser o objeto
con tín uo da graça de D eus.
O ato de fazer o ser hum an o a sua im agem e sem elhan ça m ostra a preo-
cupação de D eus em trazer à Criação a possibilidade da espiritualidade. Ao
ser criado segun do a im agem de D eus, o hom em foi dotado da esfera espi-
ritual que se com un ica, relacion a e in terage com o Pai. O sopro de D eus foi
o sopro da vida e da espiritualidade hum an a. É a vida, em seu espírito, que
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faz do hom em um ser que busca e an seia pelo sagrado, pelo divin o.
O hom em é um ser espiritual: esta é a gran de diferen ça em relação aos
outros an im ais. O fato de ser espiritual lh e p erm it e en con t rar a beleza, a
estética e o prazer. Existe espiritualid ad e ao con t em p lar u m a flor, ao d e-
parar com um belo quadro e ao ouvir um a can ção. E, prin cipalm en te, a
espiritualidade hum an a leva o hom em a sen tir D eus.
Q uan do pen sam os n o hom em com o ser social, vem os que ele n ecessita
de relações profun das com os outros. Esta participação em com un idade
gera a jun ção de an seios e desejos m útuos. A cultura n ada m ais é que esta
in teração de desejos, an seios e vivên cias, quan do os seres hum an os se rela-
cion am, u t ilizan d o a m esm a lin gu agem e exp erim en t an d o os m esm os
con flitos, os m esm os prazeres; quan do têm as m esm as categorias de pen -
sam en tos n as questões m ais corriqueiras da vida; quan do question am , rei-
vin dicam , buscam e sofrem as m esm as coisas. N ão tem os um a classe social,
tem os um a cultura. U m jeito de ser e existir.

FÉ COMO ELEMENTO CULTURAL

N ós, brasileiros, possuím os um a iden tidade cultural própria. Tem os carac-


terísticas essen ciais e ún icas. Som os con hecidos em todo o m un do n ão só
pelo futebol — em que, aliás, som os os m elhores —, m as som os cham ados
“brasileiros”, iden tificados com o n ação peculiar. Isto m ostra que tem os um
jeito próprio de olhar a vida, de en fren tar os problem as e de viver. N o
entanto, no Brasil a cultura é uma grata mistura de um conjunto de culturas

A Espiritualidade e a Identidade Negra


294 UNIDADE V

de outras n ações. Todas as culturas se en trelaçaram , produzin do o que te-


m os hoje. Em bora a in fluên cia de diversos povos seja perceptível, tem os
um jeito ún ico de ser gen te.
N ão há com o refletir sobre espiritualidade sem n os debruçar sobre n os-
sa cultura. Apesar de iden tificarm os n elas várias facetas, d evemos encará-la
como instrumento para avaliação de nossa espiritualidade. O brasileiro con -
segue ser m ístico e racion al, cético e cren te, fan ático e in diferente. N o en-
tanto, é sobretudo, um povo que tem fé. Aliás, muitas formas de fé.
A fé do brasileiro se con fun de com a m ística que cerca este povo cheio

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d e cren ças. N a Bíblia, a fé é en t en d id a com o o qu e se crê e n ão se vê
(H b 11:1). En tretan to, para o povo brasileiro, a fé deve se m aterializar n as
ações e atitudes de quem afirm a tê-la. Por isso, m uitos são objeto de reve-
rên cia e adoração.
Para um povo tão ávido pelo sagrado, a espiritualidade tem seu con teú-
do próprio e é demonstrada através de uma mística particular — a experiên-
cia do encontro com o Outro, que perpassa a racionalidade e vaza os sentidos,
produzin do un idade, com un hão e presen ça. O que se percebe é o que se
experim en ta, e n ão razão, reflexão e con ceito da realidade religiosa.

As palavras “m ist icism o” e “m íst ico” (mystikos; mystes) vêm d o m esm o


radical grego myein a que perten ce a palavra “m istério”, e que quer dizer
“fechar”, “estar fechado”, especialm en te para os órgãos da percepção ou
da com un icação, sign ifican do “fech ar a boca”, “guardar silên cio”. Q uer
d izer t am bém aqu ilo qu e est á escon d id o, “secret o”, “segred o”, “sacra-
m en to”, “sagrado”. N o N ovo Testam en to, o term o aparece sem pre con -
t en d o d ois sen t id os d ist in t os. Refere-se a u m con h ecim en t o d e coisas
escon didas, que requer com un icação, acesso especial. Tal con h ecim en t o
que a fé possui. O u en tão refere-se àquilo que é retirado do con hecim en -
to, que é escon dido e que só perten ce a D eus m esm o.1

Q uan do o hom em en tra n o am bien te do sagrado, do escon dido e do secre-


to, se en con tra com um m un do diferen te de sua realidade. Por isso se adm i-
ra com a m agn it ude da m an ifest ação do que se t orn a sua experiên cia
particular e o tom a com toda sua hum an idade, sua cultura e seu acervo
social. N o m om en to do en con tro com o m un do m ístico, só há este m un do:

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


295

o da experiência individual. Cada encontro, m esm o num a grande m ultidão,


revela-se ún ico para cada in divíduo.
Esta m ística do encontro com aquilo que nos tom a incondicionalm en te2
é diversa num m undo de várias culturas e lín guas. N o m un do europeu, essa
realidade do sagrado terá sem pre a percepção dos bran cos. En tre os ín dios,
essa m an ifestação sagrada ou do sagrado será sem pre absorvida de form a
am arela ou bron zeada. En tre os negros africanos, essa percepção será n egra.
É por isso que vem os os europeus se relacion arem com D eus e com a
religião de form a tão diferen te dos n egros e asiáticos. Aliás, é bom salien tar
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que isso tam bém se dá porque os europeus estão sem pre em busca da con -
quista. O s bran cos europeus n ão ficavam satisfeitos com o espaço adquiri-
do, m as com a con quista, en quan to os n egros e asiáticos valorizavam os
espaços on de eram e se torn avam livres.
N a m ística do povo brasileiro são observados os traços da cultura e da
origem n egra. A cultura dos n egros african os se m istura a outras m atrizes
culturais, produzin do um a espiritualidade que se con fun de com a m ística
(ou m isticism o) do povo. O n egro n o Brasil se susten ta através da cultura
religiosa. As religiões de m atizes african as con stituem a base para a form a-
ção da espiritualidade n egra brasileira. M esm o n ão haven do un an im idade
sobre esta opin ião, reafirm o a im portân cia das religiões de m atizes africa-
n as para a resisten te luta dos valores de justiça e igualdade racial n o Brasil.
Foram essas religiões que m an tiveram acesas as questões con cern en tes
às dores do povo n egro, através de um a m ística que tin ha por objetivo a
liberdade. O s n egros criaram com un idades revolucion árias que m ostravam
o valor dos vários hom en s e m ulheres que sofriam o descaso social, político
e econ ôm ico da época. Era um a espiritualidade que acen ava com a liber-
tação do espírito hum an o. U m a espiritualidade libertária, n ão só da alm a,
m as das opressões sofridas n as fazen das herdadas, subsidiadas pelo gover-
n o, e t am bém n as t er ras rou bad as d aqu eles qu e aqu i viviam , n o espaço
livre, an tes da chegada dos “con quistadores” — estes, sim , sem m ística e
sem m istérios.
O s n egros, en tão, fugiam para lugares distan tes, on de podiam viver a
espiritualidade que lhes era com um , viven ciada n a n atureza. O sagrado era

A Espiritualidade e a Identidade Negra


296 UNIDADE V

experim entado no cosm o, na vida e com a vida. N a realidade, essa é a busca


de todo hom em que vive a espiritualidade. Ele procura retornar ao Éden, ao
Jardim de sua espiritualidade.3
O s quilom bos eram , e ain da são, os lugares do en con tro com a história
dos n egros que foram escravizad os. É lá qu e a h ist ória se t orn a sagrad a,
escon d id a e m íst ica. M ais de 1,2 m il com un idades rem an escen t es de
quilom bos ain da resistem , m an ten do a história daqueles que para esta ter-
ra foram con duzidos. 4
Essa resistên cia reflete a espiritualidade dos n egros que vivem n essas
com un idades. Q uan do pen sam os sobre o processo histórico dos n egros n o

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Brasil, n ão podem os esquecer que o sofrim en to con stan te orien tou o tipo,
a form a e a in ten sidade de sua espiritualidade. Foi o sofrim en to que levou
os n egros a buscarem um jeito de adorar seus deuses african os, escon den -
do-os n os san tos da Igreja Católica.
A espiritualidade dos n egros n o Brasil está, ain da hoje, baseada n um a
luta diária por sobrevivên cia. A m aior parte deles vive n a pobreza e n a
escassez. Viver um a espiritualidade em circun stân cias adversas con duz a
pessoa à possibilidade da total con fian ça n o D eus que con trola todas as
coisas. Viver um a vida lim ítrofe n as questões sociais deveria trazer tran s-
torn os em ocion ais, físicos e até espirituais. E, de fato, os tran storn os apare-
cem sob a vida de quem sofre as m azelas sociais. N o en tan to, tam bém traz
a força e a resistên cia que vêm do in terior, proven ien te da fé.
O povo n egro sabe o que sign ifica precisar de um a força in tern a que
resista às m azelas próprias do sofrim en to. Por isso é possível en con trar um
gran de con tin gen te de cidadãos n egros n as igrejas evan gélicas, em particu-
lar n as pen tecostais. N elas, os n egros se sen tem livres para expressar seus
an seios e suas esperan ças em dias m elhores, m esm o que experim en tados
apen as n o céu. M as há tam bém a con fian ça de que aqui se vive m elhor sob
o auxílio do D eus etern o.

OS NEGROS E O PENTECOSTALISMO

Em A religião mais negra do Brasil, 5 procuro revelar os cam in hos que levaram
os negros brasileiros a identificar-se sobretudo com o pentecostalismo. D entre

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


297

várias razões, gostaria de ressaltar a questão m ística. A m ística dos n egros


leva a um a espiritualidade m ais direcion ada à participação, à utilização do
corpo, à dan ça e à m úsica, que falam m ais da cultura de seus an tepassados.
Q uan do an alisam os os pen tecostais, n otam os a participação m ais efetiva
dos n egros n a liturgia. É n elas que os n egros podem ser en carados com o
gen te cheia do Espírito, com poderes espirituais que os qualificam para
vários cargos e m in istérios.
É na igreja que os negros participam ativam ente n os cultos, en volven do-
se diretam en te n as atividades. H á algum tem po, havia n a liturgia da igreja
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pen tecostal um m om en to con hecido com o “oportun idades” em que todos


podiam falar ou can tar, pois se acreditava que o Sen hor D eus falava livre-
m en te n este período. Isto ain da acon tece em algum as com un idades. Esta
oportun idade iguala todos, e é um a característica im portan te en tre os pen -
tecostais de lin ha m ais clássica: a igualdade. N esse m om en to, os n egros são
vistos com o parte de um todo.
Esse sen tim en to de participação ativa, expan siva, atrai os n egros para
igrejas pen tecostais porque, duran te m uitos an os, eles foram excluídos das
decisões. H oje já faz parte da espiritualidade das pessoas n egras a partici-
pação ativa e decisiva. As igrejas pen tecostais perceberam que a m ística
n egra traz em si os traços da origem e da cultura. Pelo tem po que n ão
tiveram sua identidade reconhecida neste país, os negros procuraram, e ain-
da procuram , expressar-se com o povo através de sua espiritualidade.

COM MÚSICAS E DANÇAS

U m aspecto extrem am en te im portan te para avaliar a espiritualidade dos


n egros e a clara escolha pelas igrejas pen tecostais é a utilização do corpo.
Em toda a história dos n egros, o corpo é visto com o in strum en to que ex-
pressa o que o coração sen te. As religiões de m at izes african as t êm n o
corp o o veícu lo d e com u n icação d os deuses. N a igreja pen tecostal, a m ís-
tica da utilização do corpo com o um m odo de D eus falar ao povo con tin ua
sen do um sin tom a da espiritualidade dos n egros.
U m a avaliação corajosa leva à con statação de que a liturgia de m uitos
cultos em igrejas evan gélicas n ão diferem de outras religiões, con sideradas,

A Espiritualidade e a Identidade Negra


298 UNIDADE V

n a m aioria das vezes, pelos próprios evan gélicos. Isto acon tece porque n ão
con seguim os dissociar a espiritualidade da cultura. Algum as expressões
litúrgicas que falam daquilo que o povo an seia e sen te m uitas vezes se
assem elham em várias religiões. D aí verm os o que iden tifica os n egros bra-
sileiros, que, m esm o em religiões diferen tes, expressam igualm en te a espi-
ritualidade ou o desejo de adorar ao D eus etern o.
Q uan do crian ça, duran te os cultos dos quais participava com m eu pai
n um a igreja pen tecostal, eu percebia que a m úsica era voltada para a cultu-
ra do lugar. M uitos cultos eram en riquecidos com in strum en tos corriquei-

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ros, com o o pan deiro, o chocalho, o triân gulo, o atabaque, as san fon as e
coisas afin s. As celebrações eram alegres e cheias de ritm os que in vadiam a
m en te e o coração das pessoas, pois falavam daquilo que elas já estavam
habituadas a ouvir. Eram m úsicas sim ples, com letras fáceis de apren der,
com postas sob um a teologia correta — ain da que, às vezes, escatológica
dem ais.
Esse estilo de m úsica, com ritm os con duzidos pela percussão e letras
sim ples, fala de com o os n egros se relacion am com o sagrado. A oralidade
fazia parte da cultura dos n egros que vieram para esta terra. N a cultura
brasileira, in fluen ciada pela dos african os, a oralidade está presen te de for-
m a abran gen te. M uitas histórias, can tigas de roda, len das passaram de ge-
ração a geração. Fazem parte da tradição de m uitas fam ílias e com un idades
duran te várias gerações. Até hoje can to m úsicas que m eus pais can tavam ,
m esm o sem saber de on de vieram e há quan to tem po existem . Isto é refle-
xo das in fluên cias im portan tes em n ossa cultura brasileira. A oralidade faz
parte de n ós e ain da hoje in fluen cia n osso m odo de viver a espiritualidade.
N os cultos pen tecostais esta in fluên cia é m ais n otável. A oralidade e a
sim plicidade são cúm plices. O s n egros são atraídos por essa liturgia que
en fatiza o que é sim ples, quase oral. A m úsica que traduz ou os rem ete a
sua ancestralidade absorve-lhes a aten ção. En quan to can tam , os n egros dan -
çam . A dan ça foi m argin alizada en tre os evan gélicos duran te m uito tem po.
Até hoje, há m uita resistên cia quan to à utilização da dan ça n a liturgia, m as
com un idades evan gélicas fun dadas m ais recen tem en te e algum as an tigas
têm percebido a im portân cia da dan ça para n osso povo.

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


299

Ao lon go da história da Igreja brasileira, é possível observar o uso da


dan ça n as igrejas pen tecostais clássicas. O s ritm os de percussão m otivavam
os participan tes dos cultos n aquilo que era cham ado “dan ça n o Sen hor”,
com pessoas em êxtase espiritual dan çan do e can tan do m úsicas “n outras
lín guas”. N ão se trata exatam en te de n ovidade, pois m uitos cultos já evi-
den ciavam essas m an ifestações. A dan ça faz parte da liturgia de vida do
brasileiro, e os n egros in fluen ciam e são in fluen ciados por ela.
Em várias com un idades pen tecostais é eviden te a im portân cia dela n a
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espiritualidade dos negros: a m an ifest ação de um am bien t e espirit ual on de


sen tem a presen ça do gran de D eus, presen ça essa percebida n um a m úsica
com um , que eleva o espírito hum an o e os faz dan çar n o espírito.
Para falar da iden tidade (especificidade), é n ecessário abordar questões
im portan tes, com o o desejo de participação, de espaço, de oralidade, de
utilização corporal, de m usicalidade, de relação com a n atureza e com a
vida, e de m ística. N o en tan to, só é possível falar de iden tidade n egra n o
Brasil a partir da defin ição da própria iden tidade brasileira. É preciso en -
ten der a brasilidade existen te em cada n egro que vive n este país.
O s n egros brasileiros são m arcad os p ela h ist ória, p ela resist ên cia,
p ela presen ça m arcan te n a sociedade e n a Igreja. Sua história apresen ta
dois períodos m arcan tes. O prim eiro é o da escravidão, que legou aos des-
cen dent es o est igm a d a in feriorid ad e, d o d esp rezo e d a m argin alização.
A sociedade n ão lhes oferecem espaço para u su fru ir su a cu lt u ra e su a
religiosidade, o que in fluen ciou profun dam en te a espiritualidade dos n e-
gros n o Brasil.
O s adeptos das religiões de m atizes african as m an tiveram o espírito das
revoltas n ascidas dos sofrim en tos do passado, en quan to os n egros evan gé-
licos foram absorvidos pelo processo de embranquecimento promovido pelas
den om in ações históricas e pen tecostais. M argin alizados, tam bém se torn a-
ram m otivo de an edotas cruéis, m esm o den tro das igrejas evan gélicas. Essa
m argin alização obviam en te in fluen ciou a espiritualidade dos n egros, que
tin ham n a religiosidade um a form a de alívio das lutas que en fren tavam n o
dia-a-dia.

A Espiritualidade e a Identidade Negra


300 UNIDADE V

A escravidão in culcou certos traços à espiritualidade dos n egros, pren -


den do-os a um certo sen tim en to de tim idez e vergon ha que dilacerou os
valores culturais dos an tepassados. M uitos adequaram -se ao tipo europeu
de espiritualidade, tom ado com o o padrão de adoração. Em casos m ais ex-
trem os, esses m esm os negros acom panham algun s brancos, principalm ente
evan gélicos, n a dem on ização de tudo que tem origem n a história dos n e-
gros que foram escravizados. O resultado deste processo é baixa auto-esti-
m a, e m uitos n ão se con sideram n egros por sen tir vergon ha e por desprezar

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o que receberam com o fruto da história.
Todo este arcabouço histórico con duziu a outro pon to da discussão: a
exclusão social sob a qual os n egros do Brasil vivem ou querem viver a
espiritualidade. É n a relação com um a realidade que en volve desigualdade,
opressão e luta por respeito n a sociedade que a espiritualidade é experi-
m en tada pelos n egros — algun s, com in dign ação; outros, com resign ação.
O s prim eiros, con scien tes de que a luta por igualdade racial, desen volvi-
m en to social e distribuição de ren da m ais justa se torn a cada dia m ais ur-
gen t e; os ou t ros, esp eran d o d ias m ais p rop ícios p ara os p acíficos e
obedien tes n egros que vivem em busca das coisas m elhores dos céus, on de
D eus é Sen hor.
D e um jeito ou de outro, m esm o n um a situação de exclusão, os n egros
brasileiros resistem através da religiosidade, da vivência do divino, da busca
espiritual. Esta busca se dá tan to n as religiões de m atizes african as quan to
n as igrejas evan gélicas, on de um a gran de porcen tagem de n egros en con tra
a razão m aior da existên cia: o Sen hor Jesus Cristo.
U m a das m arcas da especificidade dos n egros do Brasil é sua sim ilarida-
de cultural com os n egros african os que vieram para esta terra. Isto n ão
sign ifica que som os african os ou que devem os voltar à África. Som os brasi-
leiros, e n osso batuque, em bora da m esm a origem , é diferen te. M as, tem os
um a especificidade em com um : som os n egros.
N o en tan to, ser n egro n o Brasil é diferen te de ser n egro n a África. Aqui,
houve escravidão e ain da há exclusão. M esm o que n em todos os n egros
brasileiros sejam vítim as da exclusão, todos são m arcados por um a história
que resultou n o desejo de um a espiritualidade en gajada n a realidade —

A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


301

um a espiritualidade que, n a Igreja brasileira, foi n egligen ciada através de


um a liturgia distan ciada da vida dos n egros e dos brasileiros.

ESPONTÂNEO, EXPANSIVO E ABNEGADO

H á três aspectos da espiritualidade dos n egros brasileiros que m erecem


destaque: espon tan eidade, expan sividade e abn egação. A liberdade de ex-
pressão con fere espon tan eidade, que é dem on strada n a espiritualidade. Ao
un ir essa espon tan eidade à fé, o m odo de ser do n egro aproxim a-se do
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modus vivendi de seus an tepassados, pois para aqueles n egros e os que ain da
vivem em suas terras ou em com un idades quilom bolas, a espon tan eidade é
elem en to in tegran te da adoração. U m a coisa n ão exclui a outra.
Até certo pon to, isso explica o m ovim en to m assivo de n egros n a direção
das igrejas pen tecostais, caracterizadas pela espon tan eidade n a adoração.
Trata-se, aliás, de um a prática cada vez m ais com um com un idades evan gé-
licas a adoção de liturgia m ais liberal e espon tân ea. Para os n egros, sign ifica
um en con tro com suas características m ais caras e rem otas, em term os de
etnia.
O u t ro asp ect o im p ort an t e qu e com p õe a esp ecificid ad e n egra é a
expan sividade, ou seja, aproveitar todas as oportun idades para ser autên ti-
co. M esm o quan do é tím ido, o n egro gosta da festa, da alegria e da brin ca-
deira. Para os n egros brasileiros, este fato é reforçado pela in fluên cia dos
ín dios, um povo peculiar que ain da m an tém suas origen s m ilen ares n a cul-
tura, n os costum es e n a religiosidade. Essa in fluên cia, m isturada com a
cultura oriun da dos n egros do passado, trouxe um a expan sividade ain da
m aior. Ser expan sivo é um traço dos brasileiros porque an tes foi e ain da é
um traço dos n egros.
O últim o aspecto relacion ado à especificidade dos n egros brasileiros é a
abn egação (segun do o D icionário H ouaiss da língua portuguesa, “dedicação
extrem a”, “altruísm o”, “despren dim en to”, “ren ún cia”). O s n egros são ab-
n egados desde m uito tem po em sua história. É claro que tam bém possuem
an seios, com o qualquer outra etn ia, en tretan to observa-se que, n o Brasil,
apren d eram o sign ificad o d o d esp ren d im en t o, ain d a qu e p ela op ressão.

A Espiritualidade e a Identidade Negra


302 UNIDADE V

D aí a facilid ad e d as igrejas p en t ecost ais d e at rair os n egros com u m


d iscu rso de abn egação, ren un cian do ao m aterial e preferin do os tesouros
espirituais.
É na dim ensão étnica que a espiritualidade se m anifesta e se propaga em
todas as religiões. N osso in teresse é rever essa especificidade dos n egros
evan gélicos. Com o im agem e sem elhan ça de D eus, eles devem experim en -
tar a espiritualidade que tem Jesus de N azaré com o objetivo m aior. Ser
parecidos com o Jesus que n asceu e cresceu n o en tron cam en to da África
com a Ásia é con tin uar sen do n egros, fazen do da espiritualidade a realida-

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de n a vida, e da realidade da vida a espiritualidade.
N ós, n egros, estam os agarrados a Jesus Cristo com n ossa cultura, n ossa
origem e n ossa brasilidade. D evem os retom ar n ossa história e valorizá-la.
En ten den do que o cam in ho da espiritualidade dos n egros n o Brasil passa
pelo recon hecim en to de quem som os e com o n os vem os com o cidadãos
n um país com o o n osso, em que a população n egra segue à m argem da
possibilidade de viver a sua espiritualidade con creta.

Notas
1
S ILVA, Pereira da. Pastoral e mística, 1995, Instituto M etodista de Ensino Superior/Ciências
da Religião, p. 49
2
T ILLICH , Paul. D inâmica da fé. São Leopoldo: Sin odal, 1985.
3
ELIAD E, M ircea. O sagrado e o profano — A essência das religiões. São Paulo: M art in s Fon tes,
2001, p. 61.
4
S U N D FELD , Carlos Ari. Comunidades quilombolas: direito à terra. Sociedad e Brasileira d e
D ireito — Centro de Pesquisas Aplicadas — Fundação Cultural Palmares, p. 7.
5
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A ESPIRITUALIDADE E OUTROS ASSUNTOS


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