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Juiz de Fora, 7 de julho de 2015

Análise da Ode I, 11 de Horácio

Produzido por Vinícius Moraes Tiago


viniciusmoraes@eternodevir.com

Embora seja bastante popular o emprego da expressão carpe diem, em geral, sua
abordagem restringe-se a uma leitura isolada da expressão, em que o próprio poema e seu
contexto perdem espaço ante a leitura precoce e simplista de uma postura hedonista.
Contudo, diferente do que se tornou viés popular, o poeta Horácio parece oferecer uma
perspectiva diferente. Portanto, em primeiro lugar, este trabalho busca estabelecer u ma
breve reflexão sobre o contexto histórico-filosófico em que o poeta se encontrava para só
então, em seguida, avaliar a ode I,11.
As Odes de Quintus Horatius Flaccus possuem uma forte influência da tradição lírica
grega, representada principalmente nas figuras da poeta Safo e do poeta Alceu, ambos da
ilha de Lesbos. Stephen Harrison, em A companion to Latin literature, escreve:

A primeira coleção das Odes de Horácio (livros 1 a 3), provavelmente publicada em


23 a.C., apresenta claramente a si mesma como um reavivamento da tradição lírica
grega; em seu poema de abertura o poeta inacreditavelmente solicita [sua] inclusão
no cânone helenístico de poetas líricos (1.1.35). A alegação de Horácio alguns anos
depois (Epístolas, 1.19.32-3) era de que ele tinha sido o primeiro a apresentar Alceu
em latim, e é Alceu que f ornece o modelo primário para a lírica horaciana,
combinando o simpósio, o amor e a política, os três maiores temas de sua coleção
– o que f ica explícito na ode 1.32. 1

Contudo, a influência da tradição grega não estava só presente em sua lírica, mas
também em seus posicionamentos filosóficos. Harrison continua:

A ética e a moralização (proeminentes nas Odes Romanas e no livro 2) são


caracteristicamente elementos horacianos que devem pouco à trad ição lírica grega:
as visões geralmente epicuristas de Horácio não são impingidas ao leitor com a
apaixonada convicção de um Lucrécio, mas servem nitidamente à sua ideologia
simpótica [relativa ao simpósio] de prazer resumida no carpe diem, 'colha o dia'
(1.11.8); as visões estoicas podem ser expressas quando se f ala sobre alta coragem
moral (Odes, 3.3.1-4) e quando se remete a alguém com interesses estoicos (Odes,
2.2), e mais tarde nas suas Epístolas, ainda que ref erindo -se comicamente a si
mesmo como Epicuri de grege porcum (um porco do rebanho de Epicure, Epístolas,
1.4.16, Horácio pode também proclamar que é um eclético e adepto de escola
alguma Epístolas, 1.1.13-15). Em geral Horácio f az uma grande promoção da prosa
f ilosófica do período helenístico, ref letindo sobre a importância da f ilosofia grega na
cultura romana contemporânea. 2

1 HARRISON, Stephen. Lyric and Iambic: a companion to Latin literature. Oxf ord: Blackwell, 2005. Tradução
de Daniel da Silva Moreira; p. 5.
2 HARRISON, Stephen, op. cit., p. 7.

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Esta característica eclética de Horácio – transitando principalmente entre o


estoicismo e o epicurismo – é um reflexo do contexto em que o poeta se encontrava. Ocorre
que, à época, Roma se caracterizava pela convivência de vários movimentos filosóficos
distintos, provenientes da difusão da cultura helena: como o Epicurismo (fundado em
Atenas por Epicuro), o Estoico (também fundado em Atenas por Zenão de Cício) e o Cético
(fundado por Pirron). Para compreendermos melhor esta pluralidade filosófica, e
consequentemente de forma mais profunda a proposta de Horácio adiante, faço um breve
relato de como esta diversidade romana veio a se confrontar com a proposta cristã, cerca
de trezentos anos depois. A partir do século III, o movimento de expansão do cristianismo
e a sua nova concepção existencial, não só diferiu, como também rivalizou com estes
movimentos filosóficos. Esta dificuldade de entendimento entre as diferentes concepções
existenciais no mundo antigo pode ser observada no livro do novo testamento Atos dos
Apóstolos, em que Paulo é convidado ao Areópago por filósofos estoicos e epicureus para
responder a seguinte questão: “Podemos então saber qual é essa nova doutrina que estás
pregando? Coisas estranhas chagam aos nossos ouvidos, por isso queremos saber do que
se trata”3. O historiador brasileiro Miguel Spinelli, em Helenização e recriação de sentidos,
resume bem esta divergência.

Essas coisas estranhas, para os estóicos e para os epicuristas, diziam respeito ao


próprio conceito cristão de Deus e da destinação humana. Visto que os estóicos e
os epicuristas procuravam a perf eição humana no âmbito da vida presente, para
eles o homem era o protagonista de seu próprio destino . E era também assim que
eles buscavam a beatitude, ou seja, independente da existência e da presença
constringente de um Deus soberano. Os cristãos, por sua vez, achavam estranho
alguém almejar uma destinação f eliz para a própria vida, sem Deus. Para eles a
vida presente era tão-somente um meio para se alcançar a perf eição restrita à vida
f utura. Todos queriam (os estóicos, os epicuristas, os cristãos), de algum modo, dar
sentido ao que supunham ser a própria realidade. Mas isso, em geral, é
problemático, e por uma simples razão: porque às vezes não há remédio para a
realidade, nem sequer a f antasia é capaz de curá-la. 4

Por mais que Horácio não possa ter presenciado estas tensões por uma questão
temporal, elas se destacam frente aos acontecimentos que ocorreram posteriormente –
colocando o estoicismo e o epicurismo à margem do pensamento ocidental. Contudo, este
âmbito da vida presente e o homem protagonista de seu próprio destino são dois aspectos
fundamentais para analisarmos a ode I, 11.

3Atos dos Apóstolos, 17, 16-21.


4SPINELLI, Miguel. Helenização e recriação de sentidos: a f ilosofia na época da expansão do cristianismo –
séculos II, III e IV. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002; p. 13.

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Ode I, 11

Tu ne quaesieris (sciere nefas) quem mihi, quem tibi


finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios,
temptaris numeros. Vt melius quicquid erit pati!
Seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare 5
Tyrrhenum, sapias, uina liques et spatio breui
spem longam reseces. Dum loquimur, fugerit inuida
aetas: carpe diem, quam minimum credula postero.

Tradução de Heloisa Penna

Não indagues (é nefasto saber) qual para mim, qual para ti


o fim que os deuses tenham reservado, Leuconoe, nem os babilônicos
cálculos busques. Que melhor será suportar o que vier!
Se Júpiter destinou muitos ou o último inverno,
que agora debilita, com rochas opostas, o mar
Tirreno, estejas atenta, filtres os vinhos, e em um prazo curto
abandones a longa esperança. Enquanto falamos, já terá fugido o invejoso
tempo: colhe o dia, quão menos possível confiada no futuro.

Tradução de Paulo Martins

Não procures – ímpio é saber – que fim


deuses te darão e a mim também, Leucônoe,
nem consultes babilônios números,
tanto melhor será tudo sofrer!
Ou porque Jove deu vários invernos
ou último que já fere o Tirreno em opostas rochas.
Sê sábia, vinhos filtra e suprime em breve espaço longa espera.
Ao falar, vida foge ínvida: Colhe o dia e pouco crê no futuro.

Tradução de David Mourão Ferreira

Não procures, Leucónoe – ímpio será sabê-lo –,


que fim a nós os dois os deuses destinaram;
não consultes sequer os números babilônicos:
melhor é aceitar! E venha o que vier!
Quer Júpiter te dê indo muitos Invernos,
quer seja o derradeiro este que ora desfaz
nos rochedos hostis ondas do mar Tirreno,
vive com sensatez destilando o teu vinho
e, como a vida é breve, encurta a longa esperança.
De inveja o tempo voa enquanto nós falamos:
trata pois de colher o dia, o dia de hoje,
que nunca o de amanhã merece confiança.

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A ode I, 11 trata-se de um poema curto em 8 versos, em que o poeta parece nos falar
através de aforismos tamanha é a concisão e a densidade semântica. O poema se dirige a
uma mulher, Leuconoe, cujo nome é derivado das palavras gregas λευκóς (branco) e νούς
(mente). O poema, portanto, atinge um caráter universal ao se dirigir a uma mente branca
(vazia). Owen Lee relata que este nome também foi “dado por Higino a uma irmã de Netuno
e esposa de Apolo e, por Ovídio, a uma das irmãs de Mínias” 5. O tema do poema é
desenvolvido em torno da perspectiva de uma vida voltada para o âmbito presente, no carpe
diem, que como Heloisa Penna lembra em sua tese de doutorado, Implicações da métrica
nas Odes de Horácio, texto base para este trabalho, trata-se de um tema recorrente em
muitas outras odes de Horácio. Contudo, nesta é um tema exclusivo, “não um ponto de
partida para um convite amoroso, para uma comemoração ou para um repouso no campo,
nem argumento para uma consolatio”6. Ao longo do poema é notável a forma como o poeta
constrói seu pensamento em busca de persuadir o leitor, para tanto Horácio faz o uso da
estrutura retórica. Primeiro ele adverte, não indagues (é nefasto saber), depois argumenta
com elementos religiosos e naturais, se Júpiter destinou muitos ou o último inverno,
posteriormente cede uma dica da sua visão existencial entre o asceticismo e o hedonismo,
filtres os vinhos, e então indica os perigos da esperança e de não se valorizar o presente,
em um prazo curto abandones a longa esperança / enquanto falamos, já terá fugido o
invejoso tempo, para só então concluir seu poema através do aforismo, colhe o dia, que
sintetiza com maestria seu posicionamento existencial epicurista.
No que diz respeito à métrica, Horácio demonstra todo seu zelo em conciliar forma
e conteúdo. A ode é composta em metro asclepiadeu maior.

O asclepiadeu maior é um logo verso eólico (dezesseis sílabas) empregado por


Horácio e em conf ormidade a Lex Meinekiana (divisível em estrof es de quatro
versos). Três odes f oram compostas nesse metro, I, 11; I, 18; IV, 10, destinadas
respectivamente a Leuconoe, Varo e Ligurino e de tom moralista, já que contém
advertências sobre a velocidade do tempo, que não se deixa controlar […] (I, 11, 7-
8) e surpreende com seus ef eitos […] (IV, 10, 2), e sobre a inconveniência do
excesso de bebida […] (I, 18, 8). (…) A impressão rítmica geral do asclepiadeu, com
sua dicção interrompida por três vezes e movimento descendente de suas unidades
métricas, é soturna, grave e ref lexiva. Daí sua “vocação” para poemas de conteúdo
admonitório e conselheiro, como o das três odes escritas por Horácio, nesse metro,
I, 11; I, 18; IV, 10. O verso inicial da I, 11, tu ne quaesieris (scire nef as) quem mihi,
quem tibi e da I, 18, nullam, Vare, sacra uite prius seueris arborem es tão carregadas
de advertência indicando o tom de toda a ode. 7

5 OWEN LEE, M. Word, Sound, and Image in the Odes of Horace. Ann Arbor: The University of Michingan
Press, 1969; p. 72.
6 PENNA, Heloisa. Implicações da métrica nas Odes de Horácio. São Paulo: Universidade de São Paulo,
2007; p. 300.
7 PENNA, Heloisa, op. cit., p. 296-297.

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Para uma análise mais minuciosa de cada conjunto de versos lançarei mão da
tradução realizada pela Heloisa Penna, por manter aspectos sintático-semânticos mais
próximos do texto original. Nos três primeiros versos Horácio inicia a ode com uma
advertência, marcando uma das principais características do poema.

1. Tu ne quaesieris (sciere nef as) quem mihi, quem tibi


2. f inem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios,
3. temptaris numeros. Vt melius quicquid erit pati!

1. Não indagues (é nef asto saber) qual para mim, qual para ti
2. o f im que os deuses tenham reservado, Leuconoe, nem os babilônicos
3. cálculos busques. Que melhor será suportar o que vier!

O poema começa destacando o tom em que o poeta se dirige a sua destinatária: “o


registro grave já é anunciado logo na primeira palavra, tu”8. Horácio adverte com
intensidade, pois os mais ingênuos (mente branca) buscam as mais diversas formas de
esperança, ante a insustentabilidade de se prever o futuro. Ora, aqui trata-se de uma
questão de posicionamento existencial. Não basta apenas viver a vida no presente, mas
também conseguir suportar o que vier. Colocar-se diante da vida, aceitando-a em toda sua
totalidade, incluindo todo o acaso que o futuro reserva. Buscar cálculos babilônicos, isto é,
saber o que o futuro reserva, qual fim os deuses tenham reservado, demonstra um
escapismo ante a afirmação da vida em sua totalidade, por não se afirmar o acaso – trata-
se da busca de um conforto que nunca se realiza no presente. Afinal, diante da insatisfação
com seu presente, o ingênuo busca encontrar este conforto no futuro, distanciando-se cada
vez mais do agora, impedindo a si mesmo de agir no tempo e na situação real. No que diz
respeito à forma, Horácio cria uma situação interessante em relação ao posicionamento da
sua destinatária, Leuconoe, no poema. O nome encontra- se no centro do segundo verso,
entre o aspecto da morte, finem di dederint, e o nome do povo que busca fazer previsões
do futuro, Babylonios. Leuconoe encontra-se entre uma ligação da morte com o futuro,
talvez em uma tentativa de explicitar que a única relação certa que temos com o futuro é a
morte. Outro fato interessante é a relação mútua entre poeta e destinatária no primeiro
verso: “o poeta refere-se a si mesmo e à destinatária, num sonoro e simétrico trecho, quem
mihi, quem tibi, revelando um 'olhar mútuo'”9, uma mesma condição existencial a ambos –
sem negar qualquer alteridade.

8 ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar comum: alguns temas de Horácio e sua presença em português. São
Paulo: EDUSP, 1994; p. 89.
9 PENNA, Heloisa, op. cit., p. 302.

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4. Seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,


5. quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare

4. Se Júpiter destinou muitos ou o último inverno,


5. que agora debilita, com rochas opostas, o mar

No quarto e quinto versos, Horácio introduz dois novos argumentos para embasar
suas afirmações dos primeiros versos. Para reafirmar a ideia de suportar o que vier, o poeta
lança mão de elementos divinos, na figura de Júpiter, e de elementos naturais, na imagem
do mar agitado pelos ventos invernais se chocando contra as rochas – tanto um argumento
religioso como um da ordem da natureza. “Na paisagem marítima, as corrosivas ondas são
elas próprias destruídas nas pedras-pomes, e as três pesadas palavras coriâmbicas
sugerem que sempre será assim”10. Ou seja, o poeta coloca o leitor diante do aspecto de
finitude da vida e do acaso do futuro, afinal, a onda em que determinado momento corrói a
pedra, também é destruída por ela.

6. Tyrrhenum, sapias, uina liques et spatio breui


7. spem longam reseces. Dum loquimur, f ugerit inuida
8. aetas: carpe diem, quam minimum credula postero.

6. Tirreno, estejas atenta, f iltres os vinhos, e em um prazo curto


7. abandones a longa esperança. Enquanto f alamos, já terá f ugido o invejoso
8. tempo: colhe o dia, quão menos possível conf iada no f uturo.

Nos últimos versos do poema, Horácio conclui seus conselhos à Leuconoe,


buscando atentá-la por ter seu pensamento voltado sempre para o futuro, para o fim das
coisas. O poeta inicia advertindo sobre a necessidade de se filtrar os vinhos. Isto é, reflete
novamente seu posicionamento diante da vida, negando qualquer forma de asceticismo e
hedonismo, propondo que se saiba filtrar (dosar) o vinho para melhor apreciá-lo e, assim
como vinho, também é necessário saber filtrar a vida. É preciso saber separar o futuro (a
ilusão) da realidade, a escassez e o excesso do proveitoso. Em seguida, e em curto prazo
abandones a longa esperança, Horácio retoma a necessidade de voltar-se para o presente,
sem se entregar às formas de esperança que nos colocam em um tempo ilusório (como a
dos cálculos babilônicos). Por fim, o poeta sintetiza o conselho do poema em seu famoso
aforismo, colhe o dia, quão menos possível confiada no futuro.

10 OWEN LEE, M., op. cit., p. 75.

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