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"Näo podes descer duas vézes nos mesmos rios; pois novas åguas mitem conhecer-lhe os caracteres especfficos:
correm sempre sÖbre ti. Descemos e näo descemos nos mesmos rios;
somos e näo somos." "Deuses e homens honram os que tombam na batalha. Os maiores
mortos ganham as maiores porcöes."
Ser e näo ser, eis o incessante devir; e, nesse fluxo uni-
versal, séres e coisas mudam de lugar eternamente: Do fato de a alma humana ser identificada com a förga
animadora do universo, veio a idéia de inferir que seu destino
'E säo em n6s a mesma coisa o que é vivo e o que é morto, o é voltar ao principio ordenador do universo e que o ser hu-
que estå desperto e o que dorme, o que é jovem e o que é velho; aque- mano nada mais é quando o fogo, sabedoria do mundo que
les mudam de lugar e se tornam nestes, e éstes, por sua vez, mudam
lhe confere a razäo, o deixou:
de lugar e se tornam naqueles."
E como os contrårios coexistem em töda parte, transfor- Se a consciéncia da complexidade dos problemas envol-
mando-se uns nos outros, o pr6prio homem é teatro de con- vidos pelo que os modernos chamaräo "teoria do conhecimen-
tradigöes permanentes: to" estå forgosamente ausente em Heråclito, näo se
poderia
atribuir-lhe, sem risco de érro, uma visäo do mundo
obnubi-
"Näo é bom para os homens obter tudo quanto desejam. doenga lada por materialismo ingénuo, pois, se, para éle, tudo é ma-
é que torna agradåvel a saide; mat, bem; fome, saciedade; fadiga, téria embora fösse necessårio saber exatamente o que en-
repouso."
tende Heråclito por Logos(l) —
trata-se de matéria em movi-
O fogo e a ågua näo podem equilibrar-se por muito tem- mento, a tal ponto que näo dissocia os dois térmos. E seu
po numa alma e, quando um dos dois elementos af adquire sentimento profundo, e até trågico, do mundo como sistema
demasiada predominåncia, a morte sobrevém: eterno de relagöes onde nada estå em repouso levou-o, certamen-
te, a pensar que o que chamamos sensibilidade e razäo, como
"Para as almas é morte tornar-se ågua, e morte para a ågua é tor- produto de uma relacäo, näo pertence exclusivamente mais ao
nar-se terra. Mas a {gua provém da terra e a alma, da ågua." sujeito do que ao objeto —
para dizer as coisas em linguagem
moderna. Näo poderfamos, porém, estender-nos em conjeturas
A morte pela ågua espreita as almas que se deixam do- sem forgar as coisas. Por outro lado, é licito observar que a esco-
minar pelo prazer:
Iha do fogo como elemento primordial assinala progresso re-
"É prazer para as almas tornarem-se imidas", lativamente äs especulacöes anteriores, pois, a {gua e o ar näo
entram em tödas as mudanqas da natureza.
enquanto o fogo. manifestado pela tensäo interior, lhes confere
valor moral singular.
(1) "S6 existe uma sabedoria: conhecer o Pensamento que dirige tddas as
coisas por meio de t6das as coisas."
"A alma séca é a mais såbia e a melhor." ' 'As fronteiras da alma näo poderås atingi-las, por mais longe que, por todos
os caminhos, te conduzam teus passos: täo profunda é a Palavra que a habita."
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Conhece-se a importåncia que a filosofia hegeliana e o mais pode desaparecer completamente; e o pr6prio cadåver
materialismo dialético voltaram a dar visäo heraclitica do
experimenta o frio, o siléncio e a obscuridade. Parmenides
parece haver atribuido a diversidade das sensagöes a eflüvios
mundo, com sua preocupagäo comum de ultrapassar o quadro,
considerado por demais estreito, das evidéncias fundadas numa que trazem aos poros as imagens dos objetos, e parece ter
rfgida aplicagäo do principio de identidade. ( * )
admitido que o sujeito também é, de certo modo, ativo, consi-
derando que o ölho, por exemplo, emite raios que entram em
contato com os objetos exteriores. O que parece certo é que
3 . Parmenides e o Ser im6veI a alma, enquanto principio motor, foi despojada, por Parmé-
nides, de töda consisténcia ont016gica, em proveito da alma
Enquanto Heråclito fundara sua concepgäo do mundo entendida como sujeito de conhecimento. Pois sua dignidade
na das mudangas qualitativas que nos oferece a
verificagäo
percepgäo sensfvel, dissolvendo tödas as formas do real no
näo estå na Vida —
que é movimento e näo-ser e sim no —
pensamento, que coincide com a existéncia absoluta.
eterno devir, Parménides é o autor de uma doutrina que cons-
titui a primeira reivindicacäo intransigente do pensamento ra-
cional, com a exigéncia da identidade como ünico fundamento e 4. Alcmeäo de Crotona
critério da Verdade. Segundo éle, uma coisa é, ou näo é. Para
salvaguardar a permanéncia, requerida pelo exercfcio do pen- O motivo de inspiragäo em Pitågoras revestia duplo aspec-
samento através das variagöes dos dados sensoriais, féz do de- to: mfstico e cientffico. Um homem eminente, Alcmeäo,
vir pura aparéncia, sem consisténcia possfvel nessa realidade desenvolveu de tal maneira o ültimo déles, que pode ser sau-
una e idéntica a si mesma, tomada pela sua razäo como evi- dado como fundador da psicofisiologia experimental. Ligado a
déncia 16gica irrecusåvel. Pois um objeto, a fim de mover-se, escola médica de Crotona —
anterior, talvez, confraria pi-
deve, ao mesmo tempo, estar e näo estar em dado lugar. É
impensåvel, porque é contradit6rio; e, uma vez que é contra-
tag6rica nessa cidade —
e discfpulo de Pitågoras, era ainda,
a crer em Arist6te1es, apenas um jovem bem jovem quando o
dit6rio, é falso. Como o pensamento exige isto: o que é (to mestre atingia idade avangada. Anatomista e fisiologista, dedi-
eon), é absolutamente, mister se faz afirmar que näo hå senäo cou-se disseccäo de inümeros cadåveres de animais. Permi-
uma realidade, incriada e indestrutfvel, cuja unidade, plena e tiram-lhe essas experiéncias descrever duas espécies de vasos
indivisfvel, exclui todo movimento real, isto é, t6da mudanga no corpo humano: as veias (phlebes), que conduzem o sangue,
real. Fora dessa verdade absoluta, näo pode haver senäo apa- e as artérias, que encontrou vazias de sangue. Essa distinqäo
réncias, opiniöes sujeitas ilusäo e ao érro. Por isso, näo se se perdeu depois, e por muito tempo se confundiram todos os
pode admitir nem geragäo, nem destruiqäo, nem devir. vasos. Alcmeäo se entregou, igualmente, a pesquisas söbre o
A
escassez das fontes e seu caråter duvidoso näo permitem funcionamento dos 6rgäos sensoriais. Neste campo, parece
saber que destino essa doutrina töda 16gica reservava ao do- ter-se dedicado a investigaqöes sistemåticas, indagando, princi-
minio da psicologia, necessäriamente colocada do lado da ilu- palmente, a prop6sito da visäo, qual o papel desempenhado
säo pr6pria äquela opiniäo que Parmenides subordina ver- pelo pr6prio 61ho e pela imagem néle refletida; e, a prop6sito
dade. Pensa éle que o homem saiu do limo da terra e que a
do ouvido, que papel se poderia atribuir ao ar. Levaram-no
alma, enquanto principio de Vida, é um composto de calor e
seus trabalhos a descobrir certos canais ou "passagens" (os
de frio em equilibrio. A
proporgäo désses elementos num in-
nervos ainda näo se consideravam como tais) que unem os
dividuo Ihe determina o caråter do pensamento, e a velhice
diferentes 6rgäos ao cérebro, e a reconhecer no cérebro uma
decorre de uma perda de calor. A
sensaqäo, enquanto é, ja-
fungäo de primeira importåncia, descobrindo que, por meio de
lesöes de certas "passagens", poderia impedir-se que certas
(i) V., a respeito da influéncia de HERKCLITO: Félicien CHALLAYE* Pequena näo se
hist6ria das grandes filosofias, trad. port. de Luiz Damasco Penna e J. B. Damasco
sensagöes lhe chegassem. Parece ter feito distingäo
Penna, vol. 86 destas "Atualidadcs Pedag6gicas", Säo Paulo, 1966, pågs. 19-20.
sabe, porém, como —
entre as sensagöes e o pensamento. De
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qualquer modo, teve o mérito de ver que o cérebro desempe- pureza e ascetismo. Empédocles acredita lembrar-se de suas
nhava papel privilegiado, uma vez que, antes déle, se admitia existéncias anteriores: "Jå fui, outrora, menino e menina, moi-
que o sensorium commune era o coragäo. Hip6crates e Platäo ta e ave, mudo peixe do mar". (Frag. 117.) Estende a metem-
lhe conservaräo a importante descoberta, mas Empédocles, psicose também
äs plantas, primeiras criaturas vivas surgidas cå
Arist6teles, e os est6icos retornaräo ä idéia antiga. embaixo, e invoca a lei da transmigragäo das almas para con-
Alcmeäo, que realizou também pesquisas embri016gicas, denar o sacriffcio dos animais, quer para oferenda aos deuses,
investigou a natureza do sono e as condigöes que presidem quer para alimentacäo. Esta concepgäo mfstica da alma, con-
safide. Alguns de seus pontos de vista parecem integrar as vocada a täo alto destino, vem acompanhada de visäo muito
doutrinas hipocråticas. Pois considerava que a Dike, a justiga, naturalista do mundo, mistura de quatro elementos: o fogo, o
representa o estado normal do mundo, que a saüde se deve ao ar, a terra e a ågua. Ésses elementos, "rafzes" de tödas as coi-
equilfbrio das poténcias (isonomia) e äs justas proporgöes das sas, ao mesmo tempo materiais e dotados de consciéncia, se
6rgäos afetos a essa fungäo. Para explicar que o ar penetra säo, para éle, täo corp6reos quanto os demais componentes do
pelos poros ao retirar-se o sangue para o interior do corpo, e universo: o fogo, o ar, a terra e a ågua. O
indivfduo é gerado
é expulso quando o sangue retorna periferia, recorre Empé* pela uniäo transit6ria de tais elementos, daf resultando que a
docles analogia com uma clepsidra mergulhada em ågua. dosagem déles explica suas qualidades particulares. Vé-se as-
Esta, quando o tubo superior estå fechado, näo pode entrar pe- sim como que o rudimento de uma caracterologia: a idéia de que
los pequenos oriffcios de baixo, mercé da presenga do ar; mas, o corpo, sua estrutura e seu funcionamento influenciam a Vida
assim que o dedo obstrutor do tubo se ergue, a ågua penetra psfquica e mental.
medida que o ar escapa. Desempenham os poros importante A teoria de Empédocles, sob seu aspecto hilozofsta e al-
papel na concepgäo de Empédocles. Pois, é por éles que se
quimista, exerceu, por certo, grande influéncia. No
plano mé-
transmitem as partfculas que se destacam dos objetos para sus-
dico, voltamos a encontrå-la na escola hipocråtica, sob a dupla
citar a percepgäo. Os 6rgäos sensoriais correspondem a Csses
objetos, em virtude da afinidade que une seus elementos co-
forma do principio homeopåtico: similia similibus curantur, e da
muns. Pelos eflüvios emanados e captados, uma porgäo da t;oria dos quatro temperamentos.
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nümero infinito. Suas mültiplas transformagöes bastam para deva muito obra de Di6genes, ela pr6pria uma retomada,
explicar os fenömenos variados do universo. Di6genes teve mais elaborada, da teoria de Anaximenes. E provåvel tam-
claramente essa idéia, que Leibniz desenvolverå: hå sempre bém que as idéias de Di6genes de Apolönia (por intermédio
entre as coisas um elemento diferencial, por menor que seja, e de Diocles de Caristo, contemporaneo de Zeno de Citio) iräo
sua semelhanga jamais constitui identidade perfeita: influenciar o fundador do estoicismo, para quem a doutrina do
pneuma adquire importåncia essencial.
näo é possfvel ås coisas ... serem exatamente iguais umas ås
.
A
alma dos viventes é composta de um ar mais quente que
o da atmosfera ambiente, mas muito mais frio do que o que
envolve o sol,