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Artigo

RIBEIRO, Vítor Eduardo Alessandri


CONFLUÊNCIAS
BARRICADAS, TRAFICANTES
A ORDEME FAVELAS:
É MATAR
Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito
ISSN 1678-7145 || EISSN 2318-4558

A ORDEM É MATAR: UMA ANÁLISE


DA PRODUÇÃO DA SOCIABILIDADE
VIOLENTA NA FAVELA

Ionara dos Santos Fernandes


Universidade Federal Fluminense.
E-mail: ionarafernandes@id.uff.br

RESUMO
Este trabalho tem por objetivo refletir sobre a produção de assassinatos em favelas
do Rio de Janeiro cometidos por policiais e traficantes, a partir de uma leitura de
crianças e adolescentes pobres e moradoras desses espaços. A análise se associa
ao contexto de reedição do suplício de Foucault (2014), no sentido de fazer re-
lações com os corpos estirados nestes locais e sua ostentação num contexto que
evidenciar o poder de gestão com base na prerrogativa de soberania dos grupos
de controle armado nos territórios favelados.
Palavras-chave: Morte violenta; Favelas; Práticas policiais; Juventude.

ABSTRACT
This work aims to reflect on the production of murders in Rio de Janeiro favelas
committed by police and traffickers, based on a reading of poor children and
adolescents living in these spaces. The analysis is associated with the context of
the reissue of Foucault’s death (2014), in the sense of making relations with the
bodies stretched in these places and their ostentation in a context that shows
the power of management based on the prerogative of sovereignty of the armed
control groups in the favelados territories.
Keywords: Violent death; Shanty towns; Police practices; Youth.

23 CONFLUÊNCIAS
CONFLUÊNCIAS
| Revista Interdisciplinar
| Revista Interdisciplinar
de Sociologia e Direito.
de Sociologia
Vol. 16,
e Direito.
nº 3, 2014.
Vol.pp. nº 1, 2017. pp. 23-47 23
19,60-85
FERNANDES, Ionara dos Santos

INTRODUÇÃO ca de ensino e moradoras de favelas e


Em 11 de outubro de 2017, diversos espaços populares da cidade de Niterói.
meios de comunicação brasileiros vei- As atividades são extracurriculares, ou
cularam uma imagem e houve grande seja, fora do currículo da educação for-
debate em jornais, telejornais e redes mal, são atividades culturais e esporti-
sociais sobre a cena. Eram crianças no vas divididas em 14 oficinas (capoeira,
caminho para a escola tendo que passar dança, teatro, esporte, artesanato, gi-
por corpos expostos em via pública, na nástica, entre outras) e ocorrem du-
favela da Rocinha no Rio de Janeiro. rante horário contrário a matricula em
Este artigo analisa como a exposi- unidade escolar externa.
ção dos corpos das vítimas é uma prá- Como metodologia, realizei uma
tica de govermentalidade do exercício pesquisa qualitativa a partir da parti-
do poder da polícia e dos “traficantes” cipação-observante do cotidiano das
sobre a sociedade nesses contextos. A crianças e adolescentes na instituição,
naturalização da violência contra os grupos com adolescentes e de entre-
corpos será entendido como a produ- vistas livres. O primeiro contato foi de
ção do suplício, descrito por Foucault. observação cotidiana das interações
O suplício é uma técnica de exercício produzidas entre as crianças e adoles-
do poder cuja finalidade normaliza não centes, bem como, com os funcionários
apenas sua prática, mas enseja justifi- do projeto e seus familiares. O acesso ao
cações e estranhamentos sobre a legiti- campo me foi franqueado enquanto as-
midade do exercício do poder, que não sistente social do projeto. Isso favoreceu
se orienta pela ideia do monopólio we- também as entrevistas individuais livres
beriano. O suplício se torna assim uma e três sessões de um grupo informativo
política que governa a relação entre os e reflexivo sobre as ações da segurança
diferentes atores nesses contextos. pública, com cerca de 30 adolescentes,
Este trabalho é um desdobramen- entre 15 e 16 anos de idade.
to da minha pesquisa de mestrado Através dos conflitos e brincadeiras,
(xxxx,xxxx) sobre o ponto de vista de as crianças e adolescentes relatam como
crianças e adolescentes num projeto so- eles associam a morte na favela como
cial, mantido por uma grande congre- uma forma de administrar os conflitos
gação da Igreja Católica, localizado em nesses contextos. As reflexões sobre a
um dos acessos a uma favela da zona legitimidade da morte diante do corpo
sul de Niterói. Esse projeto social não do condenado (FOUCAULT, 2014) ou
tem fins lucrativos e atende cerca de do indigno de vida (ZACCONE, 2015)
250 crianças e adolescentes, entre 8 e 16 são problematizadas também, com
anos de idade, oriundas da rede públi- base na ostentação da morte e como as
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crianças e adolescentes se situam nesse - De morrer lentamente e


período entre retirada do corpo e a ex- agonizando (masculino, 14 anos).
posição na mídia e nas redes sociais. - De covardia (masculino,
Dessa forma, abordarei o exercício 15 anos).
do poder pela polícia e pelos “trafi- - É mesmo covardia, dá maior
cantes”, na medida em que, o contexto medo. (masculino, 14 anos).
produz uma pedagogia sobre os limites - De escuro (risos do gru-
dessa prática para as crianças e adoles- po), po maior breu, e do nada
centes. E posteriormente, refletir sobre começa, pá,pá, pá (risos do
como a exposição dos corpos vítimas grupo) e tu na rua, ta louco.
de mortes violentas é organizado pelas (masculino, 14 anos).
crianças e adolescentes por meio de re-
latos desta experiência. A morte e a forma da morte é algo
muito dramatizado nos relatos dos ado-
A VIOLÊNCIA PARA AS lescentes, sobretudo, nas falas dos me-
CRIANÇAS E ADOLESCENTES ninos. Misse (2006) apresenta quatro
Os relatos das crianças e adoles- conceitos importantes e que se faz ne-
centes moradores de favelas descrevem cessário nessa interlocução. O primei-
como eles convivem cotidianamente ro diz respeito à criminalização, que é
com a exposição ao suplício, e também o ato de inscrever determinado evento
com os furos de bala nas paredes das ca- em lei promovendo sua criminalização.
sas e nos corpos presentes em seus re- É o caso do tráfico de drogas que é cri-
latos. A morte violenta apareceu como minalizado, pois uma lei que o define
um tópico logo na primeira sessão do dessa forma, em contrapartida, temos a
grupo de adolescentes durante a pes- descriminalização do consumo de dro-
quisa. Numa atividade com os adoles- gas com a lei 11.343 de 2006.
centes, pude questioná-los sobre o que Já a criminação é relativo ao ato em
eles temiam: si, quando se traduz o evento em uma
categoria penal. Enquanto a incrimi-
Você tem medo de quê? nação diz respeito à pessoa, ou seja, é
- De ser torturado. (mas- quando se atribui o fato a um culpado.
culino, 15 anos) E por fim, a sujeição criminal que é o
- De morrer (feminino, 14 anos) ato de percebem alguém como “bandi-
Com sua fala, seus pares do”, mesmo que este não seja. É o caso,
começaram a rir e falar que to- por exemplo, dos moradores de fave-
dos iriam morrer, até que ou- la, que são classificados em virtude do
tro adolescente disse: local de residência, cor e situação eco-
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nômica. Com isso, vale dizer que nem tiça Criminal relativo à ineficácia de sua
todas as pessoas que são incriminadas atuação. Essa conjuntura aponta para
sofrem a sujeição criminal, como os a ampliação dessas atividades, consoli-
jovens da classe média distribuidores dando assim, o modos operandi, que in-
de drogas. E ainda, há pessoas que co- dependente das leis se mantém, violento
mentem crime e sequer são incrimina- e arbitrário das instituições policiais.
das, como os assassinatos arbitrários
executados por policiais. Bem como, Os “autos de resistência”
há pessoas que sofrem a sujeição cri- parecem não apenas classifi-
minal sem nunca ter cometido um cri- car as mortes de indivíduos
me. Incorrendo com mais frequência, que resistem à prisão ou à
portanto, da seguinte forma: sujeição ação da polícia, mas também
criminal influência a criminalização, é uma categoria que pretende
criminação e incriminação das pes- resolver essa contradição en-
soas. Percebamos, então que, são cri- tre uma lógica policial com-
minalizados os tipos de condutas mais pletamente embebida em su-
praticados por pobre, logo, são esses jeição criminal e uma lógica
que sofrem mais vigilância repressiva. igualitária do Estado Demo-
Nesse contexto, são os pobres e mo- crático. (MISSE, 2011, p. 131)
radores de favelas que mais vivenciam a
prática do assassinato, ora configurado Essa conjuntura é resultado também
pelos traficantes, ora pela polícia. E o do investimento estatal em material bé-
auto de resistência, forma de matar le- lico com vasto poder de destruição ao
gitimada pelo Estado, produzido pela grupo de policiamento ostensivo. Jus-
polícia é a forma que originalmente se tificados inclusive pelo clamor do dis-
mata essa população. curso da classe média por ações mais
Dialogando com a pesquisa rea- “firmes” que incidam numa maior sen-
lizada por Michel Misse (2011) sobre sação de segurança. Pois os “homicídios
os autos de resistência, o autor aponta contra “bandidos” não é apenas possível
que a ação letal por parte da polícia se ser cometido sem implicar em crime,
configura em uma política pública de mas também desejável, consistindo em
enfrentamento à criminalidade. Cons- obrigação moral” (Misse, 2011, p. 131).
truído através das declarações de apoio É muito claro que, na favela, o
empreendido pelo Governo Estadual do direito à vida e à integridade física
Rio de Janeiro as operações policiais que não é garantida pelos agentes estatais.
resultam em mortes, obtem a cumplici- Os integrantes da favela contam com
dade das instituições do Sistema de Jus- um outro grupo de controle social, a
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população armada, que detem o poder Esse quadro sofre uma


e controla as ações ou exerce a punição profunda transformação
nem sempre de maneira reconhecida quando as favelas passam a ser
como legítima por todos. Traficantes e tematizadas na linguagem da
policiais cometem assassinatos, a ques- violência urbana. Nesse mo-
tão que diferencia suas práticas está no mento, o perigo imputado a
objeto de punibilidade jurídica que a elas deixa de ser uma questão
produção da morte pode ter a partir de urbanística, relacionada ao
cada um desses atores, apenas. fortalecimento de uma catego-
As favelas no imaginário social estão ria social em franco processo
relacionadas puramente ao contexto de de incorporação socioeco-
pobreza e violência. Historicamente, sua nômica e política. As favelas
construção é mediada pela segregação passaram a ser vistas – pouco
dos trabalhadores em locais distintos dos importa o quão errônea possa
outros espaços da cidade, desde o século ser essa compreensão – como
XIX, fato que mobiliza tais estereótipos. o valhacouto de criminosos
Machado da Silva (2004; 2010), que interrompem, real ou po-
desenvolve um estudo sobre favelas e tencialmente, as rotinas que
propõe uma categoria analítica relativa constituem a vida ordinária
a sociabilidade violenta. Para o sociólo- na cidade. Em resumo, como
go, a sociabilidade violenta não é carac- efeito da consolidação da vio-
terizada pela ausência do Estado e sim lência urbana, modificaram-se
pela convivência entre o aparato legal e profundamente os conteúdos
institucional frente à violência. Embora que, na perspectiva dominan-
todo o corpo esteja regido por essa for- te, definem as favelas como um
ma de sociabilidade, as áreas populares problema urbano. Sem qual-
são afetadas diretamente. O uso da for- quer intervenção de sua parte
ça é um elemento crucial na forma de que justificasse essa revisão,
organização social das relações. os moradores foram crimi-
A favela, desde sua gênese, é encara- nalizados justamente quando
da como um problema. Seja geográfica, pareciam bem sucedidos no
seja no âmbito da criminalidade e vio- esforço de participar do deba-
lência. A convivência de dois conjun- te público. (MACHADO DA
tos diferentes, mas que não são opostos SILVA, 2010, p.297)
ameaça a organização social da cidade.
Quando a violência se torna o centro das Há ética, há moral, existem costu-
atenções, temos a sociabilidade violenta. mes e principalmente há leis. Não digo
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necessariamente sobre as normas e re- No entanto, nem por isso


gras codificadas, mas na favela há leis conseguiram desvencilhar-
sociais que não são escritas, mas são de -se de uma imagem negativa,
conhecimento amplo de seus morado- cheia de clichês, que por muito
res: desobedeceu, tem sanção e e os li- tempo marcou a maneira de as
mites das penalidades é o fim da vida. elites nacionais conceberem a
O Rio de Janeiro possui uma tra- pobreza e os pobres: pobreza
jetória peculiar de construção territo- igual a vadiagem, vício, sujei-
rial, da dinâmica da vida social e da ra, preguiça, carregando ainda
gestão e implementação da Política de a marca da escravidão; pobre
Segurança Pública nas favelas. Geo- igual a negro e a malandro.
graficamente, a capital e a região me- (VALLADARES, 2000, p.18)
tropolitana possuem diversas áreas
com grandes elevações e afastadas de Assim, a favela como espaço da po-
grandes centros urbanos. A partir de breza na cidade, se transforma em ter-
uma política higienista de governo, no ritórios controlados por alguns grupos
início do século XX, a população tra- detentores da força e do controle social:
balhadora, que a época trabalhava em a) a polícia, com as práticas institucio-
industrias, e as favelas (VALLADARES, nalizadas; b) o grupo armado do co-
2005) foram sendo deslocadas para as mércio varejista de drogas; e c) a milí-
vias de acesso à cidade. Esses locais fo- cia, na conjuntura do Rio de Janeiro.
ram chamados de favelas. Porém, a po- A polícia é uma instituição da segu-
lítica de controle não se encerrou nessa rança pública. No Brasil, em âmbito esta-
conjuntura habitacional. dual, a polícia possui um modelo biparti-
A construção social da favela foi do, divididos em militar e civil. A polícia
uma forma de contribuir para ou- militar é responsável pela prevenção e
tras estratégias que seriam executadas combate ao crime, numa forma de polícia
posteriormente. Dessa forma, a favela administrativa e a polícia civil tem a atri-
apresenta-se hoje como um espaço de buição de repreender e investigar o crime
segregação territorial, econômica e ra- numa espécie de polícia judiciária.
cial. Afinal, desde sua elaboração, estes Os comerciantes varejistas de drogas,
locais foram pensados para os pobres é um grupo armado que vende substân-
oriundos do processo de escravidão do cias ilícitas e para proteção dessas mer-
século passado, como descreve a Licia cadorias, bem como, a continuidade da
Valladares (1991; 2000; 2005) no que atividade constrói essa defesa a partir de
tange a dificuldade de não associação materiais bélicos e outras formas de vio-
entre favela, pobreza e negatividade. lência. A venda dessas substâncias tem
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na favela sua ação mais criminalizável, disputa de território entre traficantes,


embora o consumo de drogas esteja pre- tornou ainda mais violenta as opera-
sente em todos os espaços da cidade. En- ções policiais de repressão e combate ao
tretanto, os conflitos ficam centralizados tráfico de armas e drogas, o que cola-
nos pontos de venda de drogas a varejo. bora para o aumento da corrida arma-
E, é sobre os moradores da favela mentista dos traficantes para também
que incide, obrigatoriamente, a modi- se defenderem das incursões policiais.
ficação da rotina em relação a ativida- Por outro lado, o grupo que controla
de estabelecida entre esses dois grupos a venda de drogas não é o único grupo
armados, uma vez que, suas ações são armado a habitar este território. De for-
baseadas no poder e na violência ma mais esporádica, a polícia também
Segundo Misse (2002) cada socie- habita a favela como um grupo arma-
dade enfrenta as tensões dos merca- do que se configura em controle social.
dos ilegais, informais e ilícitos a sua Entretanto, é comum separar esses dois
maneira. A designação criminal de grupos, e colocá-los em posição perma-
determinada mercadoria depende do nente de enfrentamento e disputa, mas
significado que ela tem na moralidade não é isso que de fato lhes caracteriza.
da sociedade, logo a criminalização é Feltran (2012) explica as tensões, ambi-
relativizada. Temos assim, por exem- guidades e aproximações que estes dois
plo, a transformações de: grupos gestam na cidade de São Paulo.
Segundo ele, governo e crime possuem
[…] Policiais em traficantes uma íntima relação, a ponto de ser um
de armas e drogas apreendidas dispositivo comum da gestão das vidas
[…] Completando o processo e da produção da ordem social, uma vez
através do qual a sobreposição que o crime também se apresenta como
inicial dá lugar a uma estrutu- uma instância de poder.
ração de redes cuja organização,
como no caso das organiza- Governo e crime são, por-
ções criminais de tipo mafioso, tanto, esferas que conferem os
dependerá de que se alcance a sentidos – existenciais, políticos,
oligopolização do mercado e o morais – da vida e da morte de
controle político dos principais diferentes sujeitos e grupos. Tan-
operadores dessas redes e de seus to a alteridade que distingue e
territórios. (MISSE, 2002, p. 18) opõe radicalmente governo e cri-
me nos discursos de um e outro,
O que é evidente, é que o acesso a quanto à contiguidade funcional
esses materiais bélicos, por conta da entre eles na gestão da ordem,
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podem igualmente ser captadas em posições antagônicas por determi-


em situações etnográficas. A re- nada situação. Nem sempre a admi-
lação entre ambos, portanto, só nistração de conflitos se dá por vias
pode ser entendida como par- institucionais, como as que recorrem
tilha – algo que divide absolu- por meios formais de tratamento e en-
tamente as partes e, ao mesmo caminhamento de denúncias pelas ins-
tempo, as institui num todo co- tituições de segurança pública ou do
mum (FELTRAN, 2012, p. 235) Poder Judiciário. Nesses contextos, o
grupo armado local gere a maior parte
Há uma relação profunda entre os de conflitos e crimes que envolvem os
dois grupos, numa espécie de plano moradores e/ou o território dominado.
governamental dos territórios. A mor- Por sua vez, a polícia costuma operar
te e sua iminência torna-se a principal sobre a gestão territorial e ilegal desses
forma de administrar esses territórios, comerciantes varejistas de drogas. Ou
eliminando os conflitos, ou seja, o as- seja, polícias e moradores locais admi-
sassinato é um instrumento para ad- nistram os conflitos em territórios fave-
ministrar os conflitos. Adquirir o di- lados. A questão é, como são essas prá-
reito de matar é parte de uma gestão ticas de administração dos conflitos?
compartilhada da vida. A morte torna-se a principal forma
No Rio de Janeiro, por exemplo, a de administrar os conflitos presente nos
existência do tráfico de drogas é uma contextos das favelas. Adquirir o direito
parceria estatal, onde o Estado estabelece de matar é parte de uma gestão com-
uma profunda relação de gestão com os partilhada da vida. No Rio de Janeiro,
demais agentes de controle social. A au- por exemplo, a existência do tráfico de
toridade estatal ao mesmo tempo em que drogas é uma parceria estatal, onde o
é presente e atuante, se faz distante e am- Estado estabelece uma profunda relação
bígua. No sentido de que há uma aliança de gestão com os demais agentes de con-
na execução da morte, favorecendo que trole social, que neste caso, pode vir a
agentes estatais desprezem as legislações ser os comerciantes varejistas de drogas.
em nome de uma “lei maior”. Essa não é Nessa perspectiva, os relatos de
codificada, mas amplamente legitimada. crianças e adolescentes pobres, mora-
doras de favelas, percebi que o fim da
A MORTE COMO INSTRUMENTO vida nos limites da favela só tem como
DE ADMINISTRAÇÃO DOS ser compreendida a partir da exposi-
CONFLITOS ção do suplício sobre os corpos. O cor-
Os conflitos são uma forma de en- po que fica para ser espetacularizado é
frentamento entre pessoas ou grupos o do morador. E quando me refiro ao
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morador, não estou fazendo menção, ao grupo “dava nisso” diante da interrup-
“cidadão de bem”, como a mídia tende a ção bruta, irritante e sem sentido.
colocar, estou falando do habitante da Na verdade, seu papel foi funda-
favela, envolvido ou não com a crimi- mental ao grupo. Mas, só após ouvir a
nalidade. Do ponto de vista das crian- primeira gravação pude perceber isso.
ças e adolescentes, a morte na favela Durante as três reuniões, este adoles-
torna-se de alguma forma, legítima na cente se sentou no mesmo lugar, no
medida em que as crianças e adolescen- lado esquerdo da roda, de frente pra
tes relatam as diferenças de tratamento mim. Eu não estava sentada, ficava em
entre “moradores”, que, para eles, é o “ci- pé, próximo a mesa da sala, e ao colo-
dadão de bem” e os “bandidos”. car a sua frase, sempre direcionava seu
“Vai morrer!” Essa foi um frase uti- olhar pra mim, seguido de um sorriso.
lizada repetida muitas vezes por um Passei então a perceber, que a sua
adolescente de 14 anos de idade, negro, frase só era colocada quando falavámos
morador de uma favela de onde provin- sobre a polícia. Surgiam as palavras polí-
nham o maior número de crianças que cia, policial, bope, caveira, P2 (o policial
relatavam suas experiências com me- militar à paisana), os homens, ele canta-
tralhadoras e fuzis. As crianças tinham va: “— Vai morreeeer, pá, pá, pá, pum”.
entre 9 e 11 anos de idade. Um deles Ao escrever sobre as situações que pude
contou que precisava ficar sentado para vivenciar com as crianças e adolescen-
segurar o fuzil, que me chamou de tia tes do projeto social e os discursos nos
carinhosamente e falou que eu era bo- grupos, percebi que, em momento algum,
nita, sem nenhuma malícia. falamos sobre as mortes dos agentes de
Durante as três reuniões do grupo segurança pública nas favelas. Talvez
com os adolescentes, a sua participação porque eles não tivessem presenciado,
se limitou a essa frase, falada em tom de não porque não tivesse ocorrido, mas
música, seguida da imitação de som de porque a gestão dos corpos dessas pes-
tiros, onde ele falava com as mãos na soas ocorrem de forma diferenciada.
boca com o intuito de fazer progredir Para eles, quando um morador é alveja-
o som do que falava em tom musical: do na favela, ele demora a ser socorrido,
“Vai morrer hein, pá, pá, pum”, imitan- e quando ele é morto, o corpo fica ex-
do o som dos tiros. No primeiro grupo, posto por muito tempo. Mas, quando o
eu cheguei a repreender, porque sua fala policial é alvejado, o socorro é imediato,
era alta, incomodavan e a princípio era se ele chega a óbito no mesmo instante,
desconexa com o debate que fazíamos. o corpo é retirado rapidamente.
Uma adolescente de 15 anos chegou a É com esse cenário que associei
dizer que a presença de “crianças” no o assassinato na favela com a técnica
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de reedição do suplício em Foucault polícia mata e os “traficantes” também.


(2014), na sua obra ‘Vigiar e Punir’, Mas, neste momento eu quero cha-
escrita originalmente em 1977. mar atenção para a relação da popula-
Onde o autor remonta a evolução ção local com o ‘corpo dos condenados’
histórica dos métodos e técnicas e a legitimidade da morte, bem como, a
de punição e controle social. Nesse ostentação do suplício, como uma “ló-
sentido, as reflexões seguintes, estão gica instrumental que utiliza os símbo-
relacionadas a primeira técnica que los da condenação e do sofrimento para
ele expõe em sua obra, o suplício, transmitir a sua mensagem” (Foucault,
compreendendo este como uma 2014, p.34), a mensagem do soberano e
tática punitiva de exposição do corpo a certeza do espetáculo.
à humilhação e como instrumento “Tia, tia, tia.... minha mãe pediu para
positivador de construção de saberes cancelar a visita domiciliar hoje. Teve
e produção de individualidades. operação lá no morro e ela está resolven-
Dialogar com Foucault, Mbembe do o enterro do meu padrasto.”1 Essa foi
e Garland pressupõe a utilização do a fala de uma criança de 11 anos numa
cenário descrito por Foucault para manhã de terça-feira. Chamei-a para
pensar os mecanismos utilizados his- conversar na minha sala. Perguntei se
toricamente e os procedimentos na ela estava triste, ela não tinha expressão
atual conjuntura. Não necessariamen- facial, mas disse que sim. Eu perguntei
te debater a partir dos seus conceitos, como a mãe dela deu a notícia para ela,
mas remontar as formas de aplicação mas, ela disse que foi o contrário, ela deu
da técnica e a forma como os concei- a noticia para a mãe, pois ela viu tudo.
tos propostos pelo primeiro autor são O suplício para Foucault (2014) era
mobilizados para entender a realidade uma técnica de extração da verdade e
contemporânea. E utilizar a realidade parte do processo judiciário. O suplício
atual africana e americana para discor- pode ser realizado desta maneira a par-
rer sobre o contexto brasileiro. tir das práticas de tortura para obtenção
O poder reestrutura a guerra. E o de confissões e para a extorsão feitas
assassinato é um exercício prático em pelos policiais e bandidos na favela,
determinado espaço geográfico e para práticas extrajudiciais que acabam por
um determinado sujeito. Que habi- serem legitimadas legalmente.
tualmente vem punir de forma fun- 1
A narrativa é produzida em situações diversas, com atores
cional, não pelo que o sujeito fez, mas distintos, em meio ao tempo de observação compreendida
pelo que ele representa na favela. Vale entre maio de 2015 a fevereiro de 2016. Logo, são ações em
tempo e espaço geográfica diferentes e que estão corrobo-
dizer que essa representação é perce- rados nesse artigo, por conta da delimitação do tema, sendo
bida e aplicada não só por policiais. A assim, existe um contexto em cada história aqui relatada.

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A extorsão é caracterizada como gais2. Existem etapas que muito se as-


“o arrego” na conjuntura da favela. É semelham a produção da verdade por
um instrumento, não só de negocia- meio da técnica de suplício de Foucault.
ção, mas, de controle das ações dos O esculacho é uma delas. Lenin
dois grupos. A duplicidade da atua- Pires (2006) aponta que a categoria
ção, quem paga e quem recebe, ofe- esculacho é uma prática social, onde
rece uma sensação de segurança para a ética, ou a falta dela, é carregada de
ambas as partes (GRILLO, 2013). Do moralidades por parte dos agentes da
ponto de vista dos traficantes, pa- lei contra um sujeito “suspeito”, inci-
gar o arrego, é garantir a continuida- dindo em ações cujas diversas formas
de de seu trabalho em segurança, ou de violência controlam a situação.
seja, manter as atividades do tráfico A tortura também é uma técnica
e até mesmo seu momento de lazer, minusciosamente regulada para a pro-
como o baile funk, a salvo de qual- dução da verdade. Esta verdade não é
quer intervenção violenta na área. É jurídica num primeiro momento, como
o que Misse (2003), chama de “redes no suplício, mas ela é operacional para
horizontais de proteção mútua”, neste se prestar à finalidades jurídicas. As
caso especifico a utilização do dinheiro únicas testemunhas nos processos são
como “arrego” com a finalidade de os próprios policiais e eles não explici-
garantir o funcionamento do comércio tam os meios de obtenção da confissão
sem surpresas institucionais. Do pon- a partir da tortura. Porém, se esta não
to de vista policial, além de onerar sua atinge seus objetivos, a execução final é
ação, garante também sua segurança, uma saída para os tempos modernos.
uma vez que a abordagem será inter- Entende-se o suplício como penali-
rompida. Logo, o arrego além de per- dade, não é uma maneira de reprimir
mitir a presença do tráfico na favela, os delitos, uma vez que “elas estão li-
também pode ser uma das variáveis gadas a toda uma série de efeitos posi-
que compõe algumas operações na fa- tivos e úteis que elas tem por encargo
vela, quando não paga. É o caráter in- sustentar” (Foucault, 2014, p. 22). O
discriminado da atuação policial. corpo é sempre o alvo do poder, seja
Por sua vez, os assassinatos na fave- por sua utilidade, docilidade, reparti-
la por agentes do Estado, ocorrem so- ção ou submissão, é nele que se esgo-
bre duas vertentes, a primeira para dar tam todas as forças do soberano, e além
uma resposta satisfatória ao público e a da sua função econômica, o corpo se
segunda para eliminar os sujeitos que 2
Refiro-me a ilegalidade das operações, quando o seu sen-
possam atrapalhar o “bom andamento” tido não está direcionado aos crimes tipificados nas legisla-
das operações policiais legais ou ile- ções, como por exemplo, o recebimento do “arrego”.

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FERNANDES, Ionara dos Santos

estende no campo político. Afinal, “as A atrocidade é em primei-


relações de poder tem alcance imediato ro lugar um caráter próprio a
sobre ele; elas o investem, o marcam, o certos grandes crimes: ela se
dirigem, o supliciam” (Foucault, 2014, refere ao número de leis na-
p. 27). No corpo, estão expostos as re- turais e positivas, divinas ou
lações de poder e dominação. humanas, que violam, à osten-
tação escandalosa ou, ao con-
“Meu padrasto era envolvi- trário, à esperteza secreta com
do tia, e quando começou o tiro que foram cometidos, ao nível
ele saiu de casa, pois os meni- social e ao status dos que são
nos foram chamar ele, logo na seus autores e vítimas, à desor-
escadaria lá de casa ele levou dem que implicam ou ocasio-
um tiro. Dois policiais viram nam, ao horror que suscitam.
meu pai caído e ligaram para al- (2014, p. 56)
guém, eu fiquei na janela escon-
dida, vendo e tentando ouvir.
Estava sozinha. Eles falaram no O suplício é uma técnica e “não
telefone que tinha um bandidodeve ser equiparado aos extremos de
ferido, mas não tava morto, euma raiva sem lei (Foucault, 2014, p.
perguntou se era para levar pro
36)”. É uma ação pensada e arquitetada
hospital, eu não sei o que a pes-
para produzir e reproduzir, não apenas
soa que tava no outro lado falou,
a força repressiva e punitiva do poder,
mas quando ele desligou, ele deu
mas para produzir as individualidades
mais dois tiros no meu pai, um
em meio ao processo de interação. Ele
na barriga e outro na cabeça.produz necessariamente uma quanti-
“Meu pai morreu.” As lágrimasdade de sofrimento, “o suplício repou-
chegaram aos olhos, mas não sa na arte quantitativa do sofrimento.
escorreram. Era padrasto, masMas não é só: esta produção é regulada”
ela considerava como pai, o seu
(Foucault, 2014, p. 37). O suplício é um
genitor já era falecido.” ritual que deve cumprir duas exigências
significativas. No corpo do condenado
A atrocidade é uma categoria que deve-se ter a marca e na memória da
Foucault também traz em seu trabalho, população, a lembrança do suplício.
quando fala sobre o suplício. A cena O fato narrado pela criança conse-
descrita acima ilustra como os agentes gue expor a garantia do suplício, mesmo
estatais detêm o poder de deixar e fazer com suas especificidades em virtude do
morrer. Foucault (2014) fala que: tempo e espaço. Porém, os elementos
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A ORDEM É MATAR

principais seguem na atualidade, a ne- te no rosto, no ombro, exposto


cessidade da marca no corpo, neste caso, vivo ou morto, dado como es-
os orifícios produzidos pelos três tiros e petáculo. Desapareceu o corpo
a lembrança na memória dessa criança. como alvo principal da repres-
A soberania possui três elementos são penal (Ibidem, p. 13)
centrais a discussão, o sujeito, o poder
e a legitimidade da lei. Essa última é um De fato, não mais com o corpo em
instrumento técnico do governo que praça pública, com executores que pu-
permite a estabilização da técnica. Or- xam os membros do condenado, nem
lando Zaccone (2015), traz os elemen- fogueira ou decapitação. Com o proces-
tos atuais da realidade do Rio de Janeiro so de humanização da pena e os avanços
em relação ao auto de resistência. tecnológicos, os instrumentos da técni-
ca do suplício ganham novos contornos.
A condição de criminoso- As punições são realizadas longe dos
-inimigo em territórios segre- olhos do público em territórios circuns-
gados passa a ser justificativa critos como a prisão, com a expectativa
da presenção da legitima defesa de implementar meios visando dimi-
dos policiais, sendo todos os nuir a dor física. No entanto, observa-
pareceres da Assessoria Crimi- mos que este útimo aspecto em nosso
nal, nos casos de indeferimento contexto deixou de ser implementado.
dos pedidos de arquivamento Não temos prisões disciplinares e,
pelo juiz, aceitos pelo Procura- portanto, assistimos a muitas revoltas
dor Geral da justiça, que insiste contra o corpo nas prisões, pela falta de
nos arquivamentos dos inqué- condições de higiene, ausência de água
ritos, agora obrigatoriamente e alimentação adequada, superlotação e
observados pelo magistrado” ausência de espaço para dormir, outras
(ZACCONE, 2015, p. 194) formas de desrespeito a direitos, torturas
e mortes ocorridas por agentes do estado
Foucault (2014) trabalha com um e por grupos rivais dentro deste espaço.
possível desaparecimento do suplício, Também observamos que outras formas
entretanto, vislumbro sua reedição. Se- de suplício ainda ocorrem em espaço
gundo Foucault (2014), geográfico limitado: os becos das favelas.
Tem nova forma de matar: com arma e
Em algumas dezenas de munição. A exposição não tem público
anos, desapareceu o corpo su- convidado, tem publicado obrigado a
pliciado, esquartejado, ampu- conviver com a realidade, até a espera
tado, marcado simbolicamen- dos meios legais de locomoção do corpo.
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FERNANDES, Ionara dos Santos

Certa vez, fazendo visita domiciliar, de extermínio dos inimigos da cida-


em companhia de um menino de 12 de, em uma guerra declarada às dro-
anos, chegamos em uma parte de favela, gas, onde “a polícia intervirá por meio
que me lembrou a morte de quatro jo- de regulamentos de forma disciplinar,
vens, sendo dois deles, ex-beneficiários atuando no ordenamento da cidade
do projeto social. E então perguntei ao com mecanismos distintos do poder
adolescente que nos acompanhava: judiciário, embora se utilize de meca-
nismos jurídicos. A polícia exercará
— Onde seus colegas mor- um poder jurídico com força de lei sem
reram? lei.” (ZACCONE, 2015, 48). É evidente
— Aqui, tia! que a reedição do suplício não consiste
— Aqui onde? como parte de um processo jurídico de
— Exatamente nessa esca- extração da verdade jurídica. Todavia,
daria, ali naquele poste! também não é uma ação impensada
Cerca de 4 degraus abaixo, do policial, o autor deixa evidente que,
de onde estavamos. Seguimos embora não seja parte constitutiva
para outros locais e por duas do aparato legal, sua ação apesar de
vezes ele me surpreendeu, com extrajudicial, acaba sendo legitimada
outros apontamentos: legalmente. Por isso, tem força de lei.
“— Tia, você lembra de A humanização das penas, na ver-
‘Carlos’? dade, foi a suavização delas enquanto
— Acho que sim! técnica legal. O assassinato na favela
— Então, agora você está não é uma diretriz da legislação. Não há
pisando no sangue dele, ele uma lei clara e objetiva que utilize a po-
morreu bem aqui.” lícia como um agente capacitado para
Mais a frente, num local operar na favela, executando pessoas.
com aparência de esgoto a céu Na favela a guerra é declarada oficial-
aberto, ele expõe outra situa- mente como sendo uma guerra contra
ção: “— Sabe aqui, com esse as drogas e não como uma guerra con-
cheiro estranho, foi um banho tra pessoas. Entretanto, há um fetiche
de sangue que ocorreu aqui, legislativo e uma determinação social,
mataram muita gente”. “bandido bom, é bandido morto”, cons-
— A polícia? truído para dar legitimidade à guerra. É
— É claro, tia! o surgimento da construção do inimi-
go, seguido da política de extermínio e
Zaccone (2015) constrói uma li- dos autos de resistência, amparado pela
nha argumentativa expondo a política extensa rede de poder soberano.
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A ORDEM É MATAR

O discurso da população local dá le- der soberano de vida e morte.


gitimidade as marcações do corpo supli- (ZACCONE, 2015, 94)
ciado, apontando que o sujeito escolheu
aquele caminho, garantindo de alguma Não há uma substituição das técni-
forma o poder do soberano sobre seus cas, do suplício para prisão, da prisão
súditos. E uma vez que a realidade é di- para o extermínio, há uma sobreposi-
nâmica e se transforma de tempos em ção das tecnologias. O assassinato nas
tempos, na realidade brasileira temos favelas, não é parte de um processo
observado o declínio da proposta da jurídico como era o suplício, porém,
prisão, como técnica de corrigir as pes- ainda é uma efeito de uma infração,
soas que cometeram ilicitudes. Logo, os partindo do pressuposto que homicí-
discursos moralistas da classe média ga- dio é crime. Todavia, o arquivamento
nham grandes dimensões, impetrando rotineiro dessas infrações, dá legitimi-
sua voz na opinião pública e pautando dade a ação, nomeada de legítima defe-
novas politicas públicas. Assim, toda sa, que também é um dispositivo legal.
vez que se pede mais policiamento, pe- Atualmente, segundo Zaccone (2015),
de-se mais ação do estado. Essa via de “a chamada guerra as drogas passa a ser
mão dupla, reativa e reforça o poder e o um recrutador eficaz de clientela para
vínculo do soberano com seus súditos. a letalidade do nosso sistema penal”
(2015, 89). Embora a morte não seja
O poder de punir do Es- parte constitutiva do processo jurídico, a
tado se configura assim como legítima defesa dos policiais funda e mo-
permanência do estado da na- tiva o processo jurídico na contempora-
tureza no próprio âmago do es- neidade, como excludente de ilicitude.
tado de direito. Por isso, existe O poder transita pelo corpo dos in-
uma reciprocidade contínua divíduos, sendo o corpo uma superfí-
entre o Estado de Direito e o cie e o poder se torna a maneira de se
estado de policia, pois o estado inscrever o poder no outro corpo. Uma
de direito carrega a violência vez que um corpo recebe a marca do
do Estado policial, que nunca poder e esta rede de poder é ostentada.
cessa, pois se encontra presen- A reedição do suplício produz outros
te no exercicio do proprio po- efeitos nos corpos, não mais o estira-
der punitivo estatal, naturali- mento dos membros, mas o sangue no
zado atraves do tão propalado chão, a exposição dos órgãos internos,
monopólio do uso legitimo da as munições e suas perfurações e o tem-
força, da violência, confomre po da retirada do corpo. Enquanto isso,
o direito. No exercicio do po- uma população a sua volta por vezes
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FERNANDES, Ionara dos Santos

não assistiu a morte, mas comprovam O suplício penal tem uma particu-
seu resultado. Para Foucault (2014), os laridade: é um ritual organizado que
indivíduos são produtos e efeitos na produz sofrimento e marca a vítima e
construção do poder. manifesta o poder que pune. A morte
não é a perda do controle, é o seu exer-
O suplício deve ser osten- cício, “a força soberana de que se origi-
toso deve ser constatado por na o direito de punir não pode em caso
todos, um pouco como seu algum pertencer à multidão” (Foucault,
triunfo. O próprio excesso das 2014, p. 42). Quanto o assassinato
violências cometidas é uma ocorre por pessoas sem a legitimidade
das peças de sua glória: o fato de execução, este é preso, condenado
de o culpado gemer ou gritar e julgado com base nas legislações vi-
com os golpes não constitui gentes, mas quando o assassinato é re-
algo de acessório e vergonho- sultado dos operadores estatais, não há
so, mas é o próprio cerimonial prisão, tem até julgamento com destino
da justiça que se manifesta em certo, o arquivamento em virtude da
sua força. Por isso sem dúvida legítima defesa dos policiais3. O único
é que os suplícios se prolon- condenado é o assassinado.
gam ainda depois da morte: No corpo exposto se vê o poder
cadáveres queimados, cinzas positivador, não como normativo, mas
jogadas ao vento, corpos ar- como a produção de uma pedagogia.
rastados na grade, expostos Em 23 de julho de 2015, a polícia
à beira das estradas. A justi- militar realizou uma operação na favela
ça persegue o corpo além de em que se localiza o projeto citado, sob
qualquer sofrimento possível. a orientação do novo comandante do
(FOUCAULT, 2014, 37) batalhão da área, conhecido por lograr
grande êxito nos batalhões que coman-
Dessa forma, a atualização do “es- dou anteriormente. Esta operação resul-
petáculo” se expressa na exposição das tou na morte de quatro pessoas e feri-
mortes em vídeos disseminados pelas mento de mais uma pessoa, que estavam
redes de conexão mundial potenciali- trabalhando no mercado varejista de
zado pelo uso cada vez mais comum drogas ilícitas da região. Um dos mortos,
dos aparelhos celulares. Assim, de al- já fizera parte do projeto, durante sua in-
guma forma, os corpos expostos pro- fância e adolescência. Por isso, a narra-
duzem um processo de naturalização, tiva segue com foco neste menino que,
no que tange ao tratamento dado aos naquela data, contava 19 anos de idade.
corpos nesses contextos. 3
Zaccone, 194.

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A ORDEM É MATAR

Durante o percurso até o campo de coordenadora do projeto não queria ver


pesquisa, acessei as redes sociais e lá de jeito algum, dizia que preferia lem-
estava a notícia. Nos perfis online dos brar dele vivo, bem, mas a cozinheira,
moradores locais. Cheguei ao local e a que reside nesta comunidade, queria
equipe veio se pronunciar sobre a morte ver todas as fotos. Ela tinha algumas no
do jovem. Ouvi tudo calada, entrei na celular e me ofereceu para mostrá-las.
minha sala e tornei a acessar as redes so- Rejetei. Mas depois as vi.
ciais, e encontrei um video que alguém Analisei as fotos, como pesquisa-
gravou. Provavelmente um policial que dora, com a emoção retraída. Quatro
participou da operação, digo isso, por- jovens, três negros e um pardo, todos
que durante a gravação aparecia parte caídos na mesma direção escada abai-
do uniforme da PMERJ, bem como, o xo. Em uma foto notava-se que todos
mesmo uniforme das pessoas do entor- estavam no mesmo local, mortos no
no. As imagens mostravam uma escada- mesmo momento, na mesma situação.
ria com os quatro mortos, todos de tênis, Sangue e partes do cérebro no chão.
boné, camisa e bermuda ou calça, todos Aparentemente, os tiros foram todos
negros. A pessoa que filmou mostrou na região da cabeça, o resto dos cor-
bem de perto o rosto dos executados, e pos permaneciam intactos.
o jovem de quem falamos levou um tiro Um ou mais corpos negros estendi-
na cabeça. Sua boca estava estraçalha- dos naquele contexto, garante ao grupo
da. Ele tinha uma boca grande e parece policial que executou a ação bem suce-
que estourou, no chão havia muito san- dida condecorações e reconhecimento
gue e parte do cerebro. Vi o vídeo. Não da sua autoridade. Afinal, “um suplício
o salvei, nem mostrei a ninguém. Calei- bem sucedido justifica a justiça, na me-
-me e parecia que não havia mais nada dida em que publica a verdade do crime
na minha cabeça naquele momento. no próprio corpo do supliciado”. (Fou-
Durante todo o dia, não paravam de cault, p. 46). A legitimidade que a morte
chegar crianças com as fotos dos assas- produz na sociedade, autoriza sua con-
sinados no celular. Disputavam, quem tinuação, principalmente se isso ocorre
tinha a “melhor foto”, quem queria ver. nos limites físicos de uma favela, onde
As reações não eram em relação a si- obrigatoriamente é gerido o tráfico de
tuação que as imagens evidenciavam, drogas, uma vez que há corpos estendi-
riam das fotos de baixa qualidade, não dos nesses locais. A “verdade” se dissipa,
de seu contéudo. Alguns falavam que os as drogas como um dos maiores mal da
jovens executados eram bons meninos, sociedade atual; “da tortura a execução,
“o moleque era bom”, outros falavam em o corpo produziu e reproduziu a verdade
covardia em relação a ação policial. A do crime” (Foucault, 2014, p. 48).
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FERNANDES, Ionara dos Santos

No dia posterior, a ação foi capa de disse que a abordagem policial


jornais locais, no jornal O São Gonçalo, poderia ser menos violenta.
o título era: “Efeito Salema4, quatro mor- (Jornal O Fluminense)6
tos e dois baleados em confronto na zona
sul de Niterói”,5 seguida da foto de um Em outro veículo de comunica-
dos feridos (o chefe do tráfico de drogas ção, a página de uma reporter criminal
local) mais a foto da escadaria com três, no facebook, ela recorta a foto e faz uma
dos quatro mortos e os policiais subin- montagem só com os corpos, retirando
do a escada. Vale salientar que nessa foto a dimensão do local e momento em que
do jornal, os corpos já estão em posição foram alvejados. Na primeira foto que
diferentes das fotos que eu vi nas redes vi, era possível pensar numa execução
sociais, totalmente diferente. realizada no momento em que os me-
No jornal O Fluminense, a chamada ninos não pudessem ver os policiais no
principal é: “ Quatro mortos em ação local “pelas costas”. Essas fotos eram de
da PM em Santa Rosa”. A foto e a ma- moradores. Passado cerca de 3 meses,
téria é diferente de todas as outras, na foi tentar ter essas fotos novamente,
foto consta um dos corpos, o de pele mas todas as pessoas que tinham essas
mais clara, com dois policiais ao lado, fotos, já tinham excluído dos seus apa-
um deles aparentemente tirando foto relhos celulares, uma delas, chegou a di-
e a população local em volta, olhando zer: “— Se os caras, me pegam com essas
atentamente para o corpo. Na matéria, fotos no celular, vão me bater muito”.
o repórter apresenta a fala de um dos Diante dessa narrativa, retornarmos
pais dos meninos, expondo que a ação a Foucault, que diz que “a execução pú-
poderia ter sido menos violenta e um blica é vista então como uma fornalha
dos policiais narra como foi a operação. em que se acende a violência (2014, p.
14), por isso, o fim do suplício, mas nes-
Parentes e amigos foram sa narrativa, muitas questões se aproxi-
ao local fazer o reconheci- mam com a reedição do suplício.
mento dos corpos. O pai de
um deles, muito abalado após Os rituais modernos da
ver o corpo de seu filho caído execução capital dão teste-
na escada, precisou ser am- munho desse duplo proces-
parado e, muito emocionado, so – supressão do espetáculo,
4
anulação da dor ... para todos
Coronel Salema, era o comandante do 12º Batalhão da
PMERJ na época da pesquisa.
uma mesma morte, sem que
5 6
http://www.osaogoncalo.com.br/policia/7525/quatro- http://www.ofluminense.com.br/pt-br/cidades/quatro-
-mortos-e-dois-baleados-durante-confronto-em-niteroi -mortos-e-dois-baleados-em-comunidade-de-santa-rosa

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A ORDEM É MATAR

ela tenha que ostentara mar- crime e ênfase das existentes. A execução
ca especifica do crime ou o dos suspeitos permanece nessa emprei-
estatuto social do criminoso; tada. Não há eliminação das outras técni-
morte que dura apenas um cas de repressão, a prisão continua sendo
instante e nenhum furor há de também uma das formas de punir.
multiplica-la antecipadamente
ou prolonga-lá sobre o cada- As mudanças verificadas
ver, uma execução que atinja no campo do controle do cri-
a vida mais do que o corpo. me consistem principalmente
(FOUCAULT, 2014,17) na redistribuição e no redire-
cionamento das práticas das
Ao invés da narrativa foucaultiana, instituições existentes. Con-
o espetáculo se traveste de cenas pró- sistem não na invenção de
prias. David Garland (2008), afirma que instituições ou na criação de
o gesto do soberano agora é para recon- novas práticas, mas na rede-
fortar o público, pois o que é central na finição daquelas que existem,
atualidade é a construção de um novo conferindo-lhes força e sig-
ideal penal é a proteção do público e a nificado distintos e utilizan-
expressão de seus sentimentos, durante do-as de maneiras diferentes.
o processo de santificação das vítimas. (GARLAND, 2008, 375)
Ressaltando que essa proteção não é para
os moradores da favela, mas um discur- O que temos apontado são refle-
so público colocado pela classe média ao xões sobre a forma última de produção
se ver ameaçada com a possibilidade de e reprodução do controle e do saber
crimes violentos e patrimoniais. das individualidades, o assassinato, a
execução da vida paralela ao slogan de
Elas são apoiadas pelo pú- guerra. O suplício não desapareceu,
blico, para quem este processo ganhou novos contornos, sólido, frio e
de condenação e punição serve cruel, limitado a um cenário, a um pú-
como uma válvula de escape ex- blico: a favela e aos favelados.
pressiva das tensões e como mo- Todavia, a segurança não é uma ca-
mento gratificante de coesão, tegoria executada por apenas um poder
em face do crime e da insegu- estatal. Toda vez que penso em seguran-
rança. (GARLAND, 2008, 315) ça, aliada a ela está à questão do poder
que controla determinados indivíduos
Esses discursos tendem a potenciali- em determinado tempo e espaço. Nes-
zar a criação de estratégias de combate ao se sentido, existem diferentes modali-
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 19, nº 1, 2017. pp. 23-47 41
FERNANDES, Ionara dos Santos

dades de controle. Uma delas é o que é que se apresenta como a segunda forma
executado pelo grupo armado que ven- de incerteza da normatividade favelada,
de drogas á varejo na favela. que é o processo de juvenilização dos
Assim, não cabe apenas a polícia grupos armados. Jovens mudam rapi-
o papel de promover a morte violenta damente de opinião, o que prejudica o
em territórios favelados. O poder na entendimento dos moradores sobre a
favela também é compartilhado com objetividade das regras.
os responsáveis pelo mercado varejis- Durante um roubo realizado na fa-
ta de drogas, que por sua vez, exercem vela por um adolescente do projeto, o
as ações de morte violenta de forma chefe do tráfico recebeu a denuncia pela
cruel, atroz e com tortura. vitima, julgou o caso e operacionalizou
Assim sendo, o grupo armado da a sentença com base nas suas regras. O
favela também é responsável pela se- adolescente roubou um aparelho de som
gurança dos moradores da área em que da casa de um vizinho, foi denunciado
estão situados. Construído também ao tráfico, que por sua vez, trouxe o me-
numa perspectiva de direito coletivo, a nino e “martelou” suas duas mãos com
segurança na favela não está codificada, a finalidade de fazê-lo compreender que
mas as ações contrárias ao pensamento na favela sobre o domínio daquele che-
do grupo que controla o território são fe, não poderia haver roubo de materiais
perceptíveis para os seus moradores. dos moradores naquele território.
Não é clara e objetiva, mas sua constru-
ção é histórica e acaba culturalmente Embora os moradores bus-
sendo evidenciada. Entretanto, existem quem, antecipar o que seriam
dois movimentos que prejudicam o en- as “regras” que devem seguir
tendimento quanto ao “ordenamento” para evitar a violência, o que
da favela e a potencialização do senti- efetivamente vigora é o arbí-
mento de incerteza dos moradores. trio dos traficantes que do-
O primeiro diz respeito à rotativida- minam naquele momento. A
de dos indivíduos que compõe o grupo chamada “lei do tráfico”, nos
armado da favela. Não se sabe a quem termos como tem sido pensa-
deve obedecer. Fora que, dependendo da e interpretada não tem exis-
da situação, de tomada de poder do tência real. (MACHADO DA
território, todo um grupo pode ter sido SILVA, 2008, p.22)
retirado do local, seja por conquista do
local, seja por extermínio dos partici- Durante uma das sessões da pes-
pantes. Essa mudança brusca da cultu- quisa em grupo, alguns adolescentes
ra violenta local pode contribuir para o iniciaram uma conversa sobre o que
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A ORDEM É MATAR

um bandido pode fazer com alguém dimensão final comum. Bandido e fa-
que “vacila”. Eles discorreram ampla- mília se aproximam por manter uma
mente sobre as condutas: por exemplo, relação de proximidade e convivência
para uma pessoa morrer e ter o corpo diária. A polícia não. Ela ocupa um
descartado em local público ela deve papel de invasão do território, e, por
ter feito as seguintes ações: “ter rouba- conseguinte, da rotina dos moradores
do na favela, ou ter comido mulher de da favela, procurando estabelecer a “or-
bandido, ou ter estuprado, matado ou dem” em um local que não habita.
sumido com a carga (drogas)”. Come- Pouco antes da realização do último
çaram a dar exemplos, falaram sobre o grupo, uma mãe nos trouxe a nóticia de
caso de um “fogueteiro”7. Segundo os que um ex-educando teria sido assassi-
meninos, em uma favela próxima, um nado durante o feriado. Ele não tinha
menino na função de fogueteiro soltou envolvimento com o comércio varejista
fogos na hora do gol do flamengo du- de drogas e namorava uma menina há
rante uma transmissão pela televisão três anos. Ele viu algumas fotos da me-
da partida de futebol, em virtude do nina em poses sensuais e semi nua no
seu entusiasmo. Os meninos revelaram celular, e ela tinha enviado essas imagens
que “os caras (os traficantes) saíram a outros homens. Em contrapartida, ele
tudo correndo e depois que souberam gravou um vídeo trasando com ela a for-
a verdade, pegou e matou o menino”. ça, como forma de se vingar. Ela junto a
Vargas (2012) discorre que o crime seu irmão mais velho entregou o vídeo
também governa a partir da tortura, de aos meninos da boca de fumo da favela
forma autoritária na gestão dos confli- em ela morava. Com isso, esses meni-
tos. A tortura não é aplicada apenas por nos foram até a casa do namorado dela
agentes legais, pelo contrário, ela tam- para retirá-lo a força de casa. Levaram-
bém se configura como um aparelho in- -no para a favela deles, cortaram suas
terventivo de outros grupos violentos, pernas, seu pênis e descarregaram uma
como o que assume a cena descrita. arma nele, resultando em sua morte.
A tortura foi um instrumento que Foi uma atrocidade. Nas falas das
também apareceu nas práticas poli- pessoas que vi reproduzir essas histó-
ciais. Não obstante aparece também na rias, percebia em suas construções a
gestão do tráfico. As ações punitivas ênfase do rito atroz que trazia a narra-
da família, do tráfico ou de policiais tiva. Um grupo armado de favela dife-
se equivalem, mas não alcançam uma rente, mas da mesma facção, o retirou
7
de casa, o conduziu ao território deles
A função é equiparada aos “aviãozinho” e “atividades”, no
sentido, de avisar aos demais sobre a entrada na favela de
e iniciou o ritual de tortura e mutila-
um grupo de traficantes rivais ou da policia. ção. Segundo as falas (des)encontradas
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FERNANDES, Ionara dos Santos

sobre este caso, os responsáveis pelo cias mais ou menos drásticas de


tráfico de moradia do menino tentou sua falta. (LYRA, 2013, p. 52)
intervir, um pastor tentou intervir, os
familiares tentaram. Enfim, houveram O autor avança com as construções,
diversas tentativas de sustar a morte do pensando os termos “vacilação” e “co-
jovem. Mas nada alcançou a moralida- brança” a partir das falas expostas por
de do grupo executor que fizessem com adolescente em um dos seus trabalhos.
que eles impedissem a execução. Não Segundo ele, a:
só o assassinaram, como ainda em vida
amputaram seus membros inferiores e Vacilação é uma conduta
seu órgão genitor, que simbolicamente, reprovável e sobre ela pode
consumou o crime sexual. incidir a punição que varia
Mas, pensando pelo lado da ação de coerções morais a fisi-
do jovem em forçar o ato sexual com cos...Para que a vacilação seja
sua então namorada, em tese ele deve- apontada é necessário um
ria saber que pagaria pelo ato feito. Os processo de apuração sobre a
estupros são os atos mais condenados responsabilidade do envolvi-
entre os próprios bandidos. Isso é o do... O vacilão conhece o certo
que se percebe pelos relatos sobre estu- e o errado, infringe a regra por
pradores que ao serem presos, que são vontade própria e, com isso,
estuprados por outros detentos e, por invoca seu fim derradeiro.
isso, devem ser separados em celas in- (LYRA, 2013, p. 54-56)
tituladas como “seguros” para que não
corram risco de morte. A contraparti- A cobrança, por sua vez, “é um ato
da pelo ato feito também é avaliada em punitivo de caráter coletivo e ritualís-
outros trabalhos. É o que discorre Dio- tico” (p. 55). A cobrança além de cole-
go Lyra (2013) na construção do “sujei- tiva, é publica. A cobrança não é fruto
to-homem”, onde esta é a pessoa capaz de uma vingança particular. Vacilação
de assumir a responsabilidade de seus e cobrança estão intimamente ligadas,
atos e aguentar a carga que sobrevem a traduz a causa e efeito de um ato.
partir de suas escolhas. Isso me faz lembrar uma brincadeira
constante que ocorre entre os meninos
O sujeito-homem, assim do projeto social, independente da idade.
concebido, é tanto aquele que Ocorre da seguinte forma: quando um
se mantém fiel aos seus deveres dos meninos “vacila”, comete um desli-
quanto àquele que assume e su- ze qualquer, fala ou faz algo que não tem
porta, sozinho, as consequên- nada a ver, um dos meninos que consta-
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A ORDEM É MATAR

tou o “vacilo” esbraveja: dois, dois! E aí ção dos corpos é para ficar de exemplo
todos os meninos que tiverem próximos de sucesso das medidas. Um policial no
vão até o vacilão e dão dois tapas de leve chão é exemplo de falha, de derrota e
na cabeça do menino que vacilou. Este isso não deve ser ostentado.
tem que aceitar sem revidar. Porém, se Todavia, a ostentação dos cor-
alguém ultrapassa os “limites” da força, a pos de um morador produz dor, e a
punição é convertida contra ele. dor gera revolta, e talvez, essa seja
Portanto, qual seria a noção de justiça a maior prerrogativa para que seja
que opera nas ações dos grupos armados ecoado o “vai morrer” do adolescen-
da favela? Vingança e justiçamento apa- te. Isso quer dizer que a morte, na era
recem como sinônimos na perspectiva da Política de Extermínio dos inimi-
de julgamento do tráfico. O processo de gos, ressalta apenas uma estrutura
cobrança que ocorre no interior das re- comum, onde o inimigo pode ser
lações violentas no espaço favelado não qualquer um, o traficante ou o poli-
parte de um parâmetro de justiça estatal, cial. A construção do inimigo possui
mas da concepção de vingança e justiça- variantes que estão condicionadas ao
mento moral. Os atos contrários a cul- lugar que o sujeito ocupa na guerra.
tura do tráfico de drogas na favela, não Conforme Mbembe (2003), pensar o
reproduz a construção social do crime assassinato como o exercício do poder so-
tampouco a inscrição do ordenamento berano do Estado, significa refletir sobre
juridico. Por ser um grupo considerado quem pode morrer e quem pode viver.
violento, a construção que eles têm de
violência depende do ponto de vista de Hacer morir o dejar vivir
quem vai julgar a conduta. constituye, por tanto, los limi-
Nesse sentido, cobrar por esse ato tes de Ia soberanía, sus princi-
não significa fazer justiça na forma ju- pales atributos. La soberanía
rídica da concepção, mas vingar o des- consiste em ejercer um control
respeito cometido contra o regramento sobre la mortalidad y definir
que o grupo instituiu. É como se fosse Ia vida como el despliegue y
uma afronta a soberania do controle la manifestacion del poder
local exercida por eles. (MBEMBE, 2003, p. 20)
Retornando a ideia inicial do tra-
balho, a gestão dos corpos na favela é Essa forma de dominação consiste
parte inerente ao espetáculo que a so- em exercer o controle sobre a morte e
berania se dispõe a executar. O corpo a definição de vida como a manifesta-
do policial morto na favela não pode ser ção do poder em fazer morrer e deixar
parte desse momento, onde a ostenta- viver. O soberano tem o poder de matar
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FERNANDES, Ionara dos Santos

a qualquer momento e de qualquer ma- duzidas pelos grupos armados na favela


neira, como numa guerra. Importante pela perspectiva infanto-juvenil.
é pensar a construção do soberano no
contexto brasileiro. Ele não se limita REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
a força estatal institucional. Há uma FELTRAN, Gabriel de Santis Gover-
aliança entre essas forças que garante a no que produz crime, crime que produz
gestão da morte como espetáculo. governo . Rev. bras. segur. pública | São
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dos. Essa é a pedagogia de administra- GARLAND, David. A cultura do
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no. Na medida em que, circula o poder, dade contemporânea. – RJ: Revan, 2008.
ninguém mais o detém inteiramente. GRILLO, Carolina Christoph Coi-
Dessa forma, a circulação do poder é a sas da Vida no Crime: Tráfico e rou-
garantia que a reprodução de um gover- bo em favelas cariocas. Rio de Janeiro:
no é reconhecida por todos. UFRJ/IFCS, 2013. 280 p.
O suplício se torna assim uma po- LYRA, Diogo. Autônomos do 157
lítica que governa a relação entre os e assalariados do 12: sobre meios e fins
diferentes atores. O corpo marcado os- de um começo de vida. In: A República
tenta o poder e por isso a morte é um dos Meninos: juventude, tráfico e virtu-
instrumento para a administração dos de. Ed. Mauad X, Rio de Janeiro, 2013.
conflitos pelo soberano. A intensidade MACHADO DA SILVA, Luiz An-
desse poder possibilita e reforça o uso tonio. Sociabilidade violenta: por uma
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a soberania estão em disputa constante temporânea no Brasil urbano. Revista
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produz uma organização na dinâmica ___________________________
do entendimento das crianças e adoles- _______. Violência urbana, segurança
centes, que expressa a naturalização e o pública e favelas - o caso do Rio de Ja-
estranhamento desse exercício do poder, neiro atual. CADERNO CRH, Salvador,
corroborado pela exposição midiática e v. 23, n. 59, p. 283-300, Maio/Ago. 2010.
nas redes sociais. Ou seja, há um pro- MBEMBE, Achille, Necropolitique
cesso de normalização das práticas pro- em traverses, diásporas, modernités, nº
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A ORDEM É MATAR

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resistência”: um análise dos homicí- Possui graduação em Serviço So-
dios cometidos por policiais na cidade cial, mestrado em Sociologia e Direito
do Rio de Janeiro (2001-2011). NEC- e é doutoranda pelo mesmo progra-
V-UFRJ. 2011. http://www.pm.es.gov. ma, ambos na Universidade Federal
br/download/policiainterativa/Pesqui- Fluminense. Atualmente é Professora
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