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RESUMO
Este trabalho tem por objetivo refletir sobre a produção de assassinatos em favelas
do Rio de Janeiro cometidos por policiais e traficantes, a partir de uma leitura de
crianças e adolescentes pobres e moradoras desses espaços. A análise se associa
ao contexto de reedição do suplício de Foucault (2014), no sentido de fazer re-
lações com os corpos estirados nestes locais e sua ostentação num contexto que
evidenciar o poder de gestão com base na prerrogativa de soberania dos grupos
de controle armado nos territórios favelados.
Palavras-chave: Morte violenta; Favelas; Práticas policiais; Juventude.
ABSTRACT
This work aims to reflect on the production of murders in Rio de Janeiro favelas
committed by police and traffickers, based on a reading of poor children and
adolescents living in these spaces. The analysis is associated with the context of
the reissue of Foucault’s death (2014), in the sense of making relations with the
bodies stretched in these places and their ostentation in a context that shows
the power of management based on the prerogative of sovereignty of the armed
control groups in the favelados territories.
Keywords: Violent death; Shanty towns; Police practices; Youth.
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CONFLUÊNCIAS
| Revista Interdisciplinar
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de Sociologia e Direito.
de Sociologia
Vol. 16,
e Direito.
nº 3, 2014.
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19,60-85
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nômica. Com isso, vale dizer que nem tiça Criminal relativo à ineficácia de sua
todas as pessoas que são incriminadas atuação. Essa conjuntura aponta para
sofrem a sujeição criminal, como os a ampliação dessas atividades, consoli-
jovens da classe média distribuidores dando assim, o modos operandi, que in-
de drogas. E ainda, há pessoas que co- dependente das leis se mantém, violento
mentem crime e sequer são incrimina- e arbitrário das instituições policiais.
das, como os assassinatos arbitrários
executados por policiais. Bem como, Os “autos de resistência”
há pessoas que sofrem a sujeição cri- parecem não apenas classifi-
minal sem nunca ter cometido um cri- car as mortes de indivíduos
me. Incorrendo com mais frequência, que resistem à prisão ou à
portanto, da seguinte forma: sujeição ação da polícia, mas também
criminal influência a criminalização, é uma categoria que pretende
criminação e incriminação das pes- resolver essa contradição en-
soas. Percebamos, então que, são cri- tre uma lógica policial com-
minalizados os tipos de condutas mais pletamente embebida em su-
praticados por pobre, logo, são esses jeição criminal e uma lógica
que sofrem mais vigilância repressiva. igualitária do Estado Demo-
Nesse contexto, são os pobres e mo- crático. (MISSE, 2011, p. 131)
radores de favelas que mais vivenciam a
prática do assassinato, ora configurado Essa conjuntura é resultado também
pelos traficantes, ora pela polícia. E o do investimento estatal em material bé-
auto de resistência, forma de matar le- lico com vasto poder de destruição ao
gitimada pelo Estado, produzido pela grupo de policiamento ostensivo. Jus-
polícia é a forma que originalmente se tificados inclusive pelo clamor do dis-
mata essa população. curso da classe média por ações mais
Dialogando com a pesquisa rea- “firmes” que incidam numa maior sen-
lizada por Michel Misse (2011) sobre sação de segurança. Pois os “homicídios
os autos de resistência, o autor aponta contra “bandidos” não é apenas possível
que a ação letal por parte da polícia se ser cometido sem implicar em crime,
configura em uma política pública de mas também desejável, consistindo em
enfrentamento à criminalidade. Cons- obrigação moral” (Misse, 2011, p. 131).
truído através das declarações de apoio É muito claro que, na favela, o
empreendido pelo Governo Estadual do direito à vida e à integridade física
Rio de Janeiro as operações policiais que não é garantida pelos agentes estatais.
resultam em mortes, obtem a cumplici- Os integrantes da favela contam com
dade das instituições do Sistema de Jus- um outro grupo de controle social, a
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morador, não estou fazendo menção, ao grupo “dava nisso” diante da interrup-
“cidadão de bem”, como a mídia tende a ção bruta, irritante e sem sentido.
colocar, estou falando do habitante da Na verdade, seu papel foi funda-
favela, envolvido ou não com a crimi- mental ao grupo. Mas, só após ouvir a
nalidade. Do ponto de vista das crian- primeira gravação pude perceber isso.
ças e adolescentes, a morte na favela Durante as três reuniões, este adoles-
torna-se de alguma forma, legítima na cente se sentou no mesmo lugar, no
medida em que as crianças e adolescen- lado esquerdo da roda, de frente pra
tes relatam as diferenças de tratamento mim. Eu não estava sentada, ficava em
entre “moradores”, que, para eles, é o “ci- pé, próximo a mesa da sala, e ao colo-
dadão de bem” e os “bandidos”. car a sua frase, sempre direcionava seu
“Vai morrer!” Essa foi um frase uti- olhar pra mim, seguido de um sorriso.
lizada repetida muitas vezes por um Passei então a perceber, que a sua
adolescente de 14 anos de idade, negro, frase só era colocada quando falavámos
morador de uma favela de onde provin- sobre a polícia. Surgiam as palavras polí-
nham o maior número de crianças que cia, policial, bope, caveira, P2 (o policial
relatavam suas experiências com me- militar à paisana), os homens, ele canta-
tralhadoras e fuzis. As crianças tinham va: “— Vai morreeeer, pá, pá, pá, pum”.
entre 9 e 11 anos de idade. Um deles Ao escrever sobre as situações que pude
contou que precisava ficar sentado para vivenciar com as crianças e adolescen-
segurar o fuzil, que me chamou de tia tes do projeto social e os discursos nos
carinhosamente e falou que eu era bo- grupos, percebi que, em momento algum,
nita, sem nenhuma malícia. falamos sobre as mortes dos agentes de
Durante as três reuniões do grupo segurança pública nas favelas. Talvez
com os adolescentes, a sua participação porque eles não tivessem presenciado,
se limitou a essa frase, falada em tom de não porque não tivesse ocorrido, mas
música, seguida da imitação de som de porque a gestão dos corpos dessas pes-
tiros, onde ele falava com as mãos na soas ocorrem de forma diferenciada.
boca com o intuito de fazer progredir Para eles, quando um morador é alveja-
o som do que falava em tom musical: do na favela, ele demora a ser socorrido,
“Vai morrer hein, pá, pá, pum”, imitan- e quando ele é morto, o corpo fica ex-
do o som dos tiros. No primeiro grupo, posto por muito tempo. Mas, quando o
eu cheguei a repreender, porque sua fala policial é alvejado, o socorro é imediato,
era alta, incomodavan e a princípio era se ele chega a óbito no mesmo instante,
desconexa com o debate que fazíamos. o corpo é retirado rapidamente.
Uma adolescente de 15 anos chegou a É com esse cenário que associei
dizer que a presença de “crianças” no o assassinato na favela com a técnica
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não assistiu a morte, mas comprovam O suplício penal tem uma particu-
seu resultado. Para Foucault (2014), os laridade: é um ritual organizado que
indivíduos são produtos e efeitos na produz sofrimento e marca a vítima e
construção do poder. manifesta o poder que pune. A morte
não é a perda do controle, é o seu exer-
O suplício deve ser osten- cício, “a força soberana de que se origi-
toso deve ser constatado por na o direito de punir não pode em caso
todos, um pouco como seu algum pertencer à multidão” (Foucault,
triunfo. O próprio excesso das 2014, p. 42). Quanto o assassinato
violências cometidas é uma ocorre por pessoas sem a legitimidade
das peças de sua glória: o fato de execução, este é preso, condenado
de o culpado gemer ou gritar e julgado com base nas legislações vi-
com os golpes não constitui gentes, mas quando o assassinato é re-
algo de acessório e vergonho- sultado dos operadores estatais, não há
so, mas é o próprio cerimonial prisão, tem até julgamento com destino
da justiça que se manifesta em certo, o arquivamento em virtude da
sua força. Por isso sem dúvida legítima defesa dos policiais3. O único
é que os suplícios se prolon- condenado é o assassinado.
gam ainda depois da morte: No corpo exposto se vê o poder
cadáveres queimados, cinzas positivador, não como normativo, mas
jogadas ao vento, corpos ar- como a produção de uma pedagogia.
rastados na grade, expostos Em 23 de julho de 2015, a polícia
à beira das estradas. A justi- militar realizou uma operação na favela
ça persegue o corpo além de em que se localiza o projeto citado, sob
qualquer sofrimento possível. a orientação do novo comandante do
(FOUCAULT, 2014, 37) batalhão da área, conhecido por lograr
grande êxito nos batalhões que coman-
Dessa forma, a atualização do “es- dou anteriormente. Esta operação resul-
petáculo” se expressa na exposição das tou na morte de quatro pessoas e feri-
mortes em vídeos disseminados pelas mento de mais uma pessoa, que estavam
redes de conexão mundial potenciali- trabalhando no mercado varejista de
zado pelo uso cada vez mais comum drogas ilícitas da região. Um dos mortos,
dos aparelhos celulares. Assim, de al- já fizera parte do projeto, durante sua in-
guma forma, os corpos expostos pro- fância e adolescência. Por isso, a narra-
duzem um processo de naturalização, tiva segue com foco neste menino que,
no que tange ao tratamento dado aos naquela data, contava 19 anos de idade.
corpos nesses contextos. 3
Zaccone, 194.
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ela tenha que ostentara mar- crime e ênfase das existentes. A execução
ca especifica do crime ou o dos suspeitos permanece nessa emprei-
estatuto social do criminoso; tada. Não há eliminação das outras técni-
morte que dura apenas um cas de repressão, a prisão continua sendo
instante e nenhum furor há de também uma das formas de punir.
multiplica-la antecipadamente
ou prolonga-lá sobre o cada- As mudanças verificadas
ver, uma execução que atinja no campo do controle do cri-
a vida mais do que o corpo. me consistem principalmente
(FOUCAULT, 2014,17) na redistribuição e no redire-
cionamento das práticas das
Ao invés da narrativa foucaultiana, instituições existentes. Con-
o espetáculo se traveste de cenas pró- sistem não na invenção de
prias. David Garland (2008), afirma que instituições ou na criação de
o gesto do soberano agora é para recon- novas práticas, mas na rede-
fortar o público, pois o que é central na finição daquelas que existem,
atualidade é a construção de um novo conferindo-lhes força e sig-
ideal penal é a proteção do público e a nificado distintos e utilizan-
expressão de seus sentimentos, durante do-as de maneiras diferentes.
o processo de santificação das vítimas. (GARLAND, 2008, 375)
Ressaltando que essa proteção não é para
os moradores da favela, mas um discur- O que temos apontado são refle-
so público colocado pela classe média ao xões sobre a forma última de produção
se ver ameaçada com a possibilidade de e reprodução do controle e do saber
crimes violentos e patrimoniais. das individualidades, o assassinato, a
execução da vida paralela ao slogan de
Elas são apoiadas pelo pú- guerra. O suplício não desapareceu,
blico, para quem este processo ganhou novos contornos, sólido, frio e
de condenação e punição serve cruel, limitado a um cenário, a um pú-
como uma válvula de escape ex- blico: a favela e aos favelados.
pressiva das tensões e como mo- Todavia, a segurança não é uma ca-
mento gratificante de coesão, tegoria executada por apenas um poder
em face do crime e da insegu- estatal. Toda vez que penso em seguran-
rança. (GARLAND, 2008, 315) ça, aliada a ela está à questão do poder
que controla determinados indivíduos
Esses discursos tendem a potenciali- em determinado tempo e espaço. Nes-
zar a criação de estratégias de combate ao se sentido, existem diferentes modali-
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dades de controle. Uma delas é o que é que se apresenta como a segunda forma
executado pelo grupo armado que ven- de incerteza da normatividade favelada,
de drogas á varejo na favela. que é o processo de juvenilização dos
Assim, não cabe apenas a polícia grupos armados. Jovens mudam rapi-
o papel de promover a morte violenta damente de opinião, o que prejudica o
em territórios favelados. O poder na entendimento dos moradores sobre a
favela também é compartilhado com objetividade das regras.
os responsáveis pelo mercado varejis- Durante um roubo realizado na fa-
ta de drogas, que por sua vez, exercem vela por um adolescente do projeto, o
as ações de morte violenta de forma chefe do tráfico recebeu a denuncia pela
cruel, atroz e com tortura. vitima, julgou o caso e operacionalizou
Assim sendo, o grupo armado da a sentença com base nas suas regras. O
favela também é responsável pela se- adolescente roubou um aparelho de som
gurança dos moradores da área em que da casa de um vizinho, foi denunciado
estão situados. Construído também ao tráfico, que por sua vez, trouxe o me-
numa perspectiva de direito coletivo, a nino e “martelou” suas duas mãos com
segurança na favela não está codificada, a finalidade de fazê-lo compreender que
mas as ações contrárias ao pensamento na favela sobre o domínio daquele che-
do grupo que controla o território são fe, não poderia haver roubo de materiais
perceptíveis para os seus moradores. dos moradores naquele território.
Não é clara e objetiva, mas sua constru-
ção é histórica e acaba culturalmente Embora os moradores bus-
sendo evidenciada. Entretanto, existem quem, antecipar o que seriam
dois movimentos que prejudicam o en- as “regras” que devem seguir
tendimento quanto ao “ordenamento” para evitar a violência, o que
da favela e a potencialização do senti- efetivamente vigora é o arbí-
mento de incerteza dos moradores. trio dos traficantes que do-
O primeiro diz respeito à rotativida- minam naquele momento. A
de dos indivíduos que compõe o grupo chamada “lei do tráfico”, nos
armado da favela. Não se sabe a quem termos como tem sido pensa-
deve obedecer. Fora que, dependendo da e interpretada não tem exis-
da situação, de tomada de poder do tência real. (MACHADO DA
território, todo um grupo pode ter sido SILVA, 2008, p.22)
retirado do local, seja por conquista do
local, seja por extermínio dos partici- Durante uma das sessões da pes-
pantes. Essa mudança brusca da cultu- quisa em grupo, alguns adolescentes
ra violenta local pode contribuir para o iniciaram uma conversa sobre o que
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um bandido pode fazer com alguém dimensão final comum. Bandido e fa-
que “vacila”. Eles discorreram ampla- mília se aproximam por manter uma
mente sobre as condutas: por exemplo, relação de proximidade e convivência
para uma pessoa morrer e ter o corpo diária. A polícia não. Ela ocupa um
descartado em local público ela deve papel de invasão do território, e, por
ter feito as seguintes ações: “ter rouba- conseguinte, da rotina dos moradores
do na favela, ou ter comido mulher de da favela, procurando estabelecer a “or-
bandido, ou ter estuprado, matado ou dem” em um local que não habita.
sumido com a carga (drogas)”. Come- Pouco antes da realização do último
çaram a dar exemplos, falaram sobre o grupo, uma mãe nos trouxe a nóticia de
caso de um “fogueteiro”7. Segundo os que um ex-educando teria sido assassi-
meninos, em uma favela próxima, um nado durante o feriado. Ele não tinha
menino na função de fogueteiro soltou envolvimento com o comércio varejista
fogos na hora do gol do flamengo du- de drogas e namorava uma menina há
rante uma transmissão pela televisão três anos. Ele viu algumas fotos da me-
da partida de futebol, em virtude do nina em poses sensuais e semi nua no
seu entusiasmo. Os meninos revelaram celular, e ela tinha enviado essas imagens
que “os caras (os traficantes) saíram a outros homens. Em contrapartida, ele
tudo correndo e depois que souberam gravou um vídeo trasando com ela a for-
a verdade, pegou e matou o menino”. ça, como forma de se vingar. Ela junto a
Vargas (2012) discorre que o crime seu irmão mais velho entregou o vídeo
também governa a partir da tortura, de aos meninos da boca de fumo da favela
forma autoritária na gestão dos confli- em ela morava. Com isso, esses meni-
tos. A tortura não é aplicada apenas por nos foram até a casa do namorado dela
agentes legais, pelo contrário, ela tam- para retirá-lo a força de casa. Levaram-
bém se configura como um aparelho in- -no para a favela deles, cortaram suas
terventivo de outros grupos violentos, pernas, seu pênis e descarregaram uma
como o que assume a cena descrita. arma nele, resultando em sua morte.
A tortura foi um instrumento que Foi uma atrocidade. Nas falas das
também apareceu nas práticas poli- pessoas que vi reproduzir essas histó-
ciais. Não obstante aparece também na rias, percebia em suas construções a
gestão do tráfico. As ações punitivas ênfase do rito atroz que trazia a narra-
da família, do tráfico ou de policiais tiva. Um grupo armado de favela dife-
se equivalem, mas não alcançam uma rente, mas da mesma facção, o retirou
7
de casa, o conduziu ao território deles
A função é equiparada aos “aviãozinho” e “atividades”, no
sentido, de avisar aos demais sobre a entrada na favela de
e iniciou o ritual de tortura e mutila-
um grupo de traficantes rivais ou da policia. ção. Segundo as falas (des)encontradas
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tou o “vacilo” esbraveja: dois, dois! E aí ção dos corpos é para ficar de exemplo
todos os meninos que tiverem próximos de sucesso das medidas. Um policial no
vão até o vacilão e dão dois tapas de leve chão é exemplo de falha, de derrota e
na cabeça do menino que vacilou. Este isso não deve ser ostentado.
tem que aceitar sem revidar. Porém, se Todavia, a ostentação dos cor-
alguém ultrapassa os “limites” da força, a pos de um morador produz dor, e a
punição é convertida contra ele. dor gera revolta, e talvez, essa seja
Portanto, qual seria a noção de justiça a maior prerrogativa para que seja
que opera nas ações dos grupos armados ecoado o “vai morrer” do adolescen-
da favela? Vingança e justiçamento apa- te. Isso quer dizer que a morte, na era
recem como sinônimos na perspectiva da Política de Extermínio dos inimi-
de julgamento do tráfico. O processo de gos, ressalta apenas uma estrutura
cobrança que ocorre no interior das re- comum, onde o inimigo pode ser
lações violentas no espaço favelado não qualquer um, o traficante ou o poli-
parte de um parâmetro de justiça estatal, cial. A construção do inimigo possui
mas da concepção de vingança e justiça- variantes que estão condicionadas ao
mento moral. Os atos contrários a cul- lugar que o sujeito ocupa na guerra.
tura do tráfico de drogas na favela, não Conforme Mbembe (2003), pensar o
reproduz a construção social do crime assassinato como o exercício do poder so-
tampouco a inscrição do ordenamento berano do Estado, significa refletir sobre
juridico. Por ser um grupo considerado quem pode morrer e quem pode viver.
violento, a construção que eles têm de
violência depende do ponto de vista de Hacer morir o dejar vivir
quem vai julgar a conduta. constituye, por tanto, los limi-
Nesse sentido, cobrar por esse ato tes de Ia soberanía, sus princi-
não significa fazer justiça na forma ju- pales atributos. La soberanía
rídica da concepção, mas vingar o des- consiste em ejercer um control
respeito cometido contra o regramento sobre la mortalidad y definir
que o grupo instituiu. É como se fosse Ia vida como el despliegue y
uma afronta a soberania do controle la manifestacion del poder
local exercida por eles. (MBEMBE, 2003, p. 20)
Retornando a ideia inicial do tra-
balho, a gestão dos corpos na favela é Essa forma de dominação consiste
parte inerente ao espetáculo que a so- em exercer o controle sobre a morte e
berania se dispõe a executar. O corpo a definição de vida como a manifesta-
do policial morto na favela não pode ser ção do poder em fazer morrer e deixar
parte desse momento, onde a ostenta- viver. O soberano tem o poder de matar
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