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Doi: 10.5212/Emancipacao.v.13i1.

0005

Família e proteção social: uma relação


continuamente (re)atualizada

Family and social protection: a relationship with


continuous updates

Solange Maria Teixeira*

Resumo: O objetivo deste artigo é retratar e analisar a relação família/sistemas


de proteção social, demonstrando que a família sempre foi um dos elementos
constitutivos desses sistemas, juntamente com o mercado e o Estado, mesmo em
fase de maior intervenção do Estado nas refrações da questão social – todavia
mais presente e constantemente acionada nos modelos mais conservadores.
Destacam-se e discutem-se ainda suas reatualizações em função das reformas
neoliberais e da legitimação dos novos mix público/privado na provisão social.
Palavras-chave: Família. Sistema de Proteção Social. Neoliberalismo.

Abstract: This paper aim is to portray and analyze the relationship between
families/social protection systems, demonstrating that family has always been
one of the constituent elements of these systems, along with the market and the
state, even at stages of greater state intervention in the refractions of the social
question. However, they are more present and consistently activated in the more
conservative models. The new updates are highlighted and discussed in function
of the neoliberal reforms and the legitimacy of the new public/private mix in social
provision.
Keywords: Family. Social Protection System. Neoliberalism.

Recebido em: 20/04/2012. Aceito em: 14/11/2012.

* Pós-doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutora em Políticas Públicas pela Univer-
sidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestre em Serviço Social pela PUC-SP. Professora da Pós-Graduação em Política Públicas e do
Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Teresina, Piauí, Brasil. E-mail: solangemteixeira@hotmail.com

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Solange Maria TEIXEIRA

Introdução O “ressurgimento” da família – ou as expec-


tativas em relação às suas funções de proteção
No contexto da análise das transformações social, inclusão e integração social – é favorecido
dos sistemas de proteção social, sob os efeitos nas últimas décadas. Esse favorecimento se
das restrições econômico-financeiras pós anos diante do recuo do Estado no provimento social,
1970, a sociedade civil, e, mais especificamente, da defesa de um regime de bem-estar plural que
a família, aparecem com renovado papel na pro- envolve o mix público/privado na provisão social,
teção social. Sobre ela têm recaído expectativas e de propostas neoliberais para que a interven-
diversas, inclusive a expectativa de que continue ção estatal ocorra apenas quando cessem as
a ser elemento de integração social, de proteção fontes naturais de proteção social – sejam as
aos seus membros, de socialização, educação e formais, como mercado e terceiro setor, sejam
lugar dos cuidados. as informais, como família e comunidade.
Vale ressaltar que os estudos comparativos Assim, embora seja estratégico e econô-
dos modelos de Welfare State, especialmente as mico contar com a família para potencializar a
particularidades da Europa do Sul, desenvolvidos proteção social oferecida, considerando sua
por Ferrera (2000; 2005), mostram como a família tradicional e cultural função na reprodução social,
historicamente se constituiu nesses países como há sinais de que a proteção familiar não pode ser
fonte de bem-estar social para seus membros me- estendida e sobrecarregada para além de sua ca-
diante um conjunto de serviços de cuidados infan- pacidade. Em relação a isso, alguns aspectos de-
tis, assistência aos desempregados e enfermos e vem ser considerados: a ausência de cuidadores
cuidados com pessoas idosas e deficientes, diante em tempo integral, com a inserção das mulheres
de um Estado subdesenvolvido em serviços de no mercado de trabalho a partir da necessidade
apoio à família. de compartilhar a função provedora com o côn-
Os estudos de Saraceno (1992) demons- juge ou até mesmo de desempenhá-la sozinha,
tram que, em muitos países europeus, a família é ou pelo interesse em participar do mercado de
uma “parceira explícita” do Estado de Bem-Estar trabalho como elemento de mobilização social e
Social. Nesse contexto, as críticas feministas status; as transformações urbanas e a redução
exigiram que se recuperasse o desvio gerado das redes de apoio; a redução do tamanho das
pelas análises anteriores dos regimes de bem- famílias; a fragilidade de renda e de proteção
-estar social centrados na dicotomia entre Estado pública e a vulnerabilidade que reduzem a ca-
e Mercado, incluindo a família como provedora pacidade cuidativa da família e a disponibilidade
de serviços – graças ao trabalho não pago das das mulheres para o cumprimento desse papel.
mulheres, pouco contabilizado e levado em con- O objetivo deste artigo é retratar e analisar
sideração pela economia política. Isso também a relação entre família e sistemas de proteção
levou à reconsideração dos estudos generalistas social, em que a família aparece como um dos
da teoria da modernização sobre a perda de fun- elementos constitutivos desses sistemas, junta-
ções da família, e em especial a perda de função mente com o mercado e o Estado, mesmo em
de proteção social das instituições especializadas fase de maior intervenção estatal nas refrações
e do Estado, obrigando-os a relativizar as de- da questão social. Também se analisam suas re-
terminações desse processo em muitos países, atualizações em função das reformas neoliberais
principalmente os de modernização tardia. e da legitimação dos novos mix público/privado
Estudos em outros continentes, como os de na provisão social.
Franzoni (2008), na América Latina, igualmente
destacam o “familismo” característico da maioria
O lugar da família nos sistemas de proteção
dos países desse continente, em que a família,
social
com suas estratégias de sobrevivência, apoios e
cuidados, constitui fonte ativa de proteção social Não existe sociedade humana que não
diante de um sistema pouco desenvolvido, ou tenha desenvolvido algum sistema de proteção
em situações de retração do Estado, advinda das social. A isso, Di Giovanni (1998, p. 10) denomi-
reformas neoliberais nas últimas décadas, e de na como “as formas – às vezes mais, às vezes
um mercado de trabalho pouco inclusivo. menos, institucionalizadas – que as sociedades

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constituem para proteger parte ou o conjunto de Conforme o autor, em cada país esse sistema
seus membros”, com diferentes formas de alo- público ganha matizes específicas, adaptadas
cação de recursos e esforços para desenvolver a condições políticas, econômicas e culturais
essas atividades. particulares, “mas o fato inexorável é que o Es-
A formação dos sistemas de proteção tado [...] passou a assumir, com maior ênfase,
social tem origem nas necessidades das socie- as funções mencionadas” (Idem).
dades de impedir ou diminuir o impacto de de- A teoria da modernização e suas variantes
terminados riscos sobre os indivíduos ou grupos de viés estrutural-funcionalista têm sustentado
sociais. Tais riscos decorrem de certas vicissitu- a tese da redução das funções da família, da
des da vida natural ou social, como a velhice, a perda de sentido e de autônoma capacidade de
infância, a doença, a invalidez, as privações, o ação, com a industrialização, a urbanização e o
desemprego, dentre outros (DI GIOVANNI, 1998; Estado intervencionista. Segundo essa teoria,
VIANA; LEVCOVITZ, 2005). principalmente a partir do século XX, a família e
Castel (1998), utilizando a noção de soli- os demais provedores informais de bem-estar,
dariedade de Alan Caillé, conceitua os sistemas como a vizinhança e a comunidade, foram per-
de proteção social a partir da distinção entre dendo funções, as quais haviam sido transferi-
sociabilidade primária, em que as ações de prote- das total ou parcialmente a instituições públicas
ção são realizadas pela família, pela vizinhança, especializadas. Essa visão se tornou consenso
pelos grupos de trabalho (e até as formas mais entre vários estudos.
organizadas de filantropia, que buscavam resti- Para as análises marxistas, a raiz sub-
tuir esse princípio natural da solidariedade local, jacente a essas mudanças são as relações de
da proteção face a face aos que pertencem à produção capitalista, com as novas formas de
comunidade), e sociabilidade secundária ou so- organização do trabalho mediante o trabalho
lidariedade institucionalizada, em que as ações assalariado e o valor econômico dos indivíduos
de proteção social são realizadas pelo Estado como força de trabalho. A empresa capitalista
por meio das políticas públicas. orientada para o lucro transforma a família. Pri-
Nessa perspectiva, “o exercício vital das meiramente, retira suas funções de produção,
famílias é semelhante às funções das políticas com a expropriação dos meios de produção e
públicas: ambas visam dar conta da reprodução e com a submissão da economia doméstica à eco-
da proteção social dos grupos que estão sob sua nomia de mercado. Em seguida, transfere boa
tutela” (CARVALHO, 2005, p. 267). A diferença é parte das funções de socialização e educação
que uma se efetiva no âmbito privado e a outra e suas responsabilidades na proteção de seus
na esfera pública, no campo dos direitos à prote- membros para instituições especializadas.
ção social. Mas, como destaca essa autora, se, As esferas da produção e da reprodução
nas sociedades tradicionais e pré-capitalistas, a são espacialmente dissociadas e dicotomica-
família se ocupava quase exclusivamente dessas mente opostas na relação entre público e pri-
funções, nas sociedades contemporâneas tais vado, que, conforme Lavinas (1994, p. 172-3),
funções são compartilhadas com o Estado. foram as bases nas quais por tanto tempo se
Isso ocorre porque a magnitude dos pro- assentou a doutrina liberal. “Assim surge, por
blemas sociais, sua dimensão estrutural e as um lado, a família como paradigma do privado,
lutas travadas para que tais problemas sejam espaço da vida doméstica, das relações inter-
reconhecidos como de responsabilidade pública, pessoais, lugar do feminino, da subjetividade”,
bem como a capacidade de mobilização (tanto esfera da intimidade,1 lugar de refúgio, espaço
da classe social submetida aos maiores riscos de consumo, da reprodução física e social dos
quanto da classe dominante, em sua resposta indivíduos e da integração emocional. “Por
às crises e problemas sociais), fundaram uma
nova legitimidade no formato da proteção so-
cial, desde o final do século XIX. Segundo Di 1
Horkheimer e Adorno (1987) destacam que precisamente a es-
Giovanni (1998, p. 15), “trata-se da presença fera da intimidade, que pareceria decisiva para definir a família na
sociedade moderna, é de natureza social, ou seja, determinada
do Estado como organizador, produtor, gestor e socialmente pelas relações de produção burguesas, e, portanto,
normatizador dos sistemas de proteção social”. não pode ser separada do princípio do trabalho assalariado.

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outro lado, o domínio público, dos interesses assumindo praticamente responsabilidade


interpessoais, portanto, civis e universais, lugar exclusiva. Desfaz-se a última comunidade da
do político por excelência e dos negócios, arena história, pois a sociedade substitui radical-
exclusiva dos homens” (Idem). mente todo tipo de comunidade.
Outros estudos, seguindo uma linha teórica Os estudos e investigações recentes sobre
divergente da teoria da modernização, chegaram família questionam se essa e outras descrições
a conclusões semelhantes. Destacam que, com que vão nessa direção, como as da teoria da
o avanço da urbanização, da industrialização modernização, são adequadas ou verdadeiras.
e da modernização da sociedade, ainda que Para muitos autores (ESPING-ANDERSEN,
persistam a pequena agricultura camponesa, as 1999; SUNKEL, 2006), elas devem ser relativi-
indústrias caseiras e as empresas domésticas zadas. Como destaca Esping-Andersen (1999),
urbanas, atividades econômicas ancoradas em a família padrão pode não ser mais a principal
relações familiares perderam relevância, e, em unidade produtora para o mercado, mas certa-
geral, já não se pode caracterizar a família como mente fornece mercadorias não monetarizadas
unidade de produção. e serviços.
Habermas (1984) diz que a redução da Sunkel (2006) destaca que descrições
propriedade familiar aos rendimentos de cada como as da teoria da modernização são historica-
um de seus membros – com o trabalho assala- mente inadequadas, especialmente na América
riado – rouba à família a possibilidade de cuidar Latina, quando se relacionam as funções prote-
de si mesma. Entretanto, ele aponta um novo tivas e de bem-estar da família a seus membros.
fenômeno, a inter-relação entre as esferas pú- Portanto, esses estudos tendem a rela-
blica e privada, com o processo que denomina tivizar essa “desfuncionalização” anunciada, a
“desprivatização da família” ou “estatização da “dissolução” ou perda de status da família nas
família”, quando o Estado, com as demandas do sociedades capitalistas, principalmente em seu
trabalho e do capital, passa a intervir e assume papel econômico e de bem-estar. É inegável
para si muitas das funções da esfera familiar, que pelo menos as famílias urbanas, com o de-
como a reprodução social, momento em que a senvolvimento das forças produtivas, realmente
família é “desprivatizada através das garantias deixaram de se caracterizar como “unidade de
públicas de seu status” (HABERMAS, 1984, p. produção”. Mas, como destaca Silva (1987, p.
184). 49), isso, entretanto, não significa que tenham
Heller (1987), em seus estudos sobre a deixado de desempenhar um papel econômico,
família e o Estado de Bem-Estar Social, também uma vez que “o papel de reprodutora de seres
destaca que, com a separação entre Estado humanos e também as tarefas que desempenha
e sociedade civil, as relações de mercado e a em sua socialização e reposição da força de
industrialização modificaram o status social da trabalho, assim como o consumo que realiza en-
família. Aponta que a família moderna perdeu quanto grupo, dão a essa instituição um caráter
importantes funções em relação aos modelos econômico por excelência”.
precedentes e que em todos os Estados de Silva (1987) destaca o papel da família
Bem-Estar a família encontra-se em vias de na reprodução social da força de trabalho, não
dissolução, principalmente nos modelos mais apenas biológica, mais social e ideologicamente2
universalistas, à medida que o Estado assume – funções articuladas e indispensáveis à ordem
os serviços familiares – essa posição do Estado capitalista, que são supridas por uma grande
torna a família supérflua, principalmente sob o parcela de trabalho realizado no lar, em especial
perfil da produção e do consumo, embora ela pelas mulheres, que tem como consequência, no
mantenha, apesar de minimizadas, as funções
de reprodução e educação dos filhos. Heller
(1987, p. 20) ressalta: 2
A reprodução biológica está relacionada à procriação e à ma-
nutenção da espécie; a social e ideológica à reprodução de va-
O Estado se faz “materno”, garantindo ao in- lores sociais, convenções, relações padrões (hierarquizadas)
divíduo sua sobrevivência material, educação entre gênero e gerações – embora a família seja espaço de movi-
e saúde; é o Estado a ocupar-se de tudo isso mento, de manutenções e também de mudanças, estando em
estreita relação com o Estado e a sociedade.

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Família e proteção social: uma relação continuamente (re)atualizada

caso das mulheres que trabalham fora do lar, o que em geral o longo movimento histórico tenha
advento da dupla jornada de trabalho. Aponta reduzido o papel da unidade familiar na produção
também a família como sendo uma unidade de de bem-estar social, esse fato não é linear, e
consumo, para a qual se dirige o próprio apelo nem é regra geral, havendo uma variação muito
ao consumo. grande entre os países. Alguns países são ca-
No entanto, em contexto de separação da racterizados por seu avançado nível de “desfami-
produção social da produção privada, essa re- liarização” das responsabilidades do bem-estar
produção social realizada no âmbito doméstico, – como os países do Norte da Europa. Outros
a cargo das mulheres e da família, é analisada reproduzem muitos aspectos da unidade familiar
pelos economistas clássicos como destituída de “pré-industrial”, em que a família é responsável
valor, já que não pode ser medida pelo tempo so- por grande parte dos cuidados dispensados a
cialmente necessário para sua reprodução. Vale seus membros. Segundo Campos (2008a), é
ressaltar que no interior das famílias se recriam o caso, por exemplo, da Europa do Sul. Para
as condições de divisão social e sexual do tra- a autora, na França e na Alemanha, a família
balho, quando se separam as forças masculinas continua responsável por esses cuidados, mas
e femininas, dando-lhes atribuições e setores é bastante subsidiada em sua atuação.
distintos de trabalho: ao homem, a produção so- Na década de 1990, os estudos de Esping-
cial, à mulher, a produção privada, reproduzida e -Andersen (1999, p. 49) contradizem alguns
recriada nos modelos ideais de família difundidos consensos sobre a teoria da modernização,
pelo Estado e pela ordem social. concluindo que “simplesmente é errado consi-
As investigações feministas têm criticado derar que ela (a família) perdeu suas funções de
severamente os estudos da teoria da moderniza- bem-estar social com o advento dos Estados de
ção e da economia política dos Estados de Bem- Bem-Estar Social”.
-Estar – centrados, em sua caracterização dos Campos (2008a) destaca que o projeto de
regimes de bem-estar social, no modelo homem Estado, cuja proteção social é constituinte de
provedor/mulher cuidadora e na relação mercado/ suas obrigações, desenvolveu-se com grande
Estado. Tais investigações têm mostrado que o diversidade e variação, tanto entre os países eu-
modelo clássico de família do período pós-guerra ropeus quanto nos demais continentes, em que
nunca deixou de ser uma unidade produtora e a família permaneceu bastante atuante quanto
provedora de serviços, devido em grande parte à proteção social de seus membros. Em alguns
ao trabalho da mulher no âmbito doméstico. casos, houve inclusive ampliação das funções
Esping-Andersen (1999) reconhece que o da família, como a participação também nos
paradigma da economia política que sustentou benefícios, subsídios e serviços3 estatais. Essas
a pesquisa sobre o Estado de Bem-Estar Social diferenças são engendradas pelas especificida-
nos anos 1980 pouco fez para ressuscitar o in- des de processos sociais, históricos, culturais e
teresse pela família como elemento constitutivo políticos de cada país, que repercutem na con-
dos regimes de bem-estar. O autor salienta que figuração do Estado intervencionista.
a lente analítica dessas pesquisas estava fixada Em estudo conjunto, Campos, Mioto e Lima
na batalha entre Estado e mercado. Os próprios (2006) concluem que a família não foi privada de
estudos de Esping-Andersen se incluem nessas
tendências, embora já incluíssem em sua tipolo-
gia a relação Estado/mercado/família. Todavia, é 3
É o que Saraceno (1992), analisando o caso italiano, denomina
o grau de desmercadorização – isto é, o quanto de “sistema família-serviço”, para definir a presença da família
os sistemas subtraem o trabalhador/cidadão da como parceira do Estado e a sobrecarga de responsabilidade
mesmo quando o Estado intervém com serviços. Isso porque o
dependência do mercado, e com ele sua família “uso de qualquer serviço exige como pressuposto indispensável
– a categoria de análise determinante. uma parte de prestação familiar, como o cumprimento das práti-
Portanto, a família tem um tratamento cas burocrático-administrativas necessárias para fruir delas e às
vezes para estabelecer o direito de cada um à própria fruição [...],
residual na caracterização dos modelos de às formas de participações formais e informais exigidas, à integ-
bem-estar analisados pela economia política na ração das eventuais deficiências dos serviços”. A autora também
destaca: “o uso de serviços exige que a família organize o seu
década de 1980. Aderindo à crítica feminista, tempo e os recursos internos em torno dos tempos e das exigên-
Esping-Andersen (1999) reconhece que, mesmo cias dos próprios serviços” (p. 216).

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suas funções, nem está em vias de dissolução serviços não relacionados com a saúde da família
após a estruturação do Estado de Bem-Estar com percentagem do PIB; b) compromisso geral
Social, quando ganha legitimidade o enfrenta- de subsidiar famílias com crianças (valor combi-
mento coletivo dos riscos sociais mediante a nado do auxílio família e deduções de imposto);
intervenção do Estado sobre a questão social. c) difusão de creches públicas; d) fornecimento de
Assim, afirmam: “a família continuou funcionando cuidados a idosos em domicílio (percentagem de
também como unidade econômica e de serviços, idosos com 65 anos ou mais recebendo serviços
tornando-se através da divisão do trabalho e res- de ajuda em domicílio).
ponsabilidades (entre gênero e gerações) e com Esping-Andersen destaca ainda outros
sua estrutura assimétrica de interdependência, indicadores, como a intensidade das responsa-
em parceira explícita do Estado de Bem-Estar bilidades familiares de bem-estar social medidas
Social” (MIOTO et al., 2006, p. 108). pelo tempo gasto nas obrigações domésticas, ou
Em estudos recentes, Esping-Andersen in- pelo grau no qual a família absorve os encargos
troduz a categoria “desfamiliarização” ao lado da sociais – por exemplo, mantendo no domicílio
categoria “desmercadorização”, ou seu contrário, idosos ou filhos adultos, que, devido ao desem-
a categoria “familismo”, para examinar o grau em prego, são incapazes de formar novas unidades
que as famílias absorvem os riscos sociais nos familiares. Além disso, verifica a desfamiliariza-
regimes de Estado de Bem-Estar Social. ção que ocorre por meio dos mercados, mediante
Deve-se ressaltar que, para esse autor a oferta de serviços e o custo líquido expresso
(1999, p. 51), “desfamiliarização” não implica “an- em percentagem da renda familiar.
tifamília”. Ao contrário, o termo se refere ao grau As conclusões de Esping-Andersen (1999)
no qual as responsabilidades de bem-estar social reforçam os três modelos de regime de bem-es-
e cuidados das unidades familiares são reduzidos tar já indicados em estudos anteriores, descar-
pela provisão de serviços públicos ou ofertados tando a possibilidade de um quarto regime para
pelo mercado. Significa também o grau em que países da Europa do Sul e Japão. São eles: o
a política social torna as mulheres autônomas, regime social-democrata, o regime conservador
reduzindo sua carga horária de serviços domés- e o regime liberal.
ticos ou ampliando suas chances de se inserir no
mercado de trabalho. Assim, o “familismo” não a) O regime social-democrata
pode ser confundido com “pró-família”, mas o
autor aponta que nessa tendência há uma maior O regime social-democrata agrupa os
responsabilização da família pelo bem-estar de países escandinavos (Noruega, Dinamarca,
seus membros (bem-estar também incentivado Suécia e Finlândia) que têm no Estado seu lócus
pelas políticas públicas). principal de provisão de serviços e bem-estar
social. Orienta-se pela cobertura universal dos
A família e os regimes comparativos de cidadãos e apresenta uma provisão de serviços
bem-estar social sociais e níveis generosos de benefícios públi-
cos. Em termos de princípios, esse regime tende
Em relação aos regimes de bem-estar na ao igualitarismo, buscando reduzir ao mínimo
Europa, Esping-Andersen (1999) faz um novo ba- a distribuição desigual de recursos segundo a
lanço nos anos 1990, pós-reformas dos sistemas origem familiar – portanto, baseia-se nos prin-
e verificação da contribuição relativa da família cípios da universalidade, da solidariedade e da
para o complexo do bem-estar social, verificando igualdade, pondo em prática um leque amplo de
como essa participação afeta o seu entendimento medidas de proteção social para todos e com ca-
dos regimes de bem-estar social. O autor busca ráter redistributivo. Os serviços e benefícios são
verificar essa questão a partir da análise do grau assegurados com base no critério de cidadania e
de desfamiliarização, ou seja, observando em não nos critérios de necessidades, desempenho
que medida os regimes de bem-estar social ab- ou status dos indivíduos no mercado, e são ofer-
sorvem os encargos familiares. Para isso, utilizou tados independentemente de contribuição prévia.
vários indicadores, tais como: a) compromisso de Assim, o regime social-democrata apre-
atendimento geral, por meio das despesas com senta um maior grau de “desmercadorização”

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dos direitos sociais, possibilitando maior auto- Europa continental – também nesses países há
nomia de indivíduos e famílias em relação ao maior penalização das famílias com dois prove-
mercado. dores, mais que nos países da Europa do Sul,
Examinando a participação da família nos o que reafirma o caráter conservador e familista
regimes de bem-estar social, o autor encontrou da Europa continental.
uma imagem que denomina “bimodal”. Em um
dos extremos, está o bem-estar social dos países b) O regime conservador
nórdicos, com maior grau de “desfamiliarização”,
entendido como coletivização das necessidades O regime conservador agrupa os países
das famílias. Ou seja, há maior responsabilidade da Europa continental (Alemanha, Holanda,
do conjunto da sociedade sobre o bem-estar e Áustria, França, Itália e Espanha). Nesse regime,
a satisfação das necessidades dos membros da os benefícios dependem da inserção no traba-
família, e tal responsabilidade é expressa em lho formal, da renda e da contribuição prévia
maior percentagem de gasto social em serviços compulsória, elementos administrados e geridos
domiciliar, cobertura de creches e de ajuda aos pelo Estado. Segundo Esping-Andersen (1991,
idosos, e ainda estão presentes políticas e ser- p. 109), o mercado e sua provisão de serviços
viços que socializam os custos da família e mini- nunca foram marcantes. O que predominava
mizam a dependência do indivíduo, em particular era a preservação das diferenças de status. Os
da mulher, em relação à família e ao mercado. direitos, portanto, estavam ligados à classe e
É nesse sentido que Sunkel (2006, p. 21) ao status.
afirma que a “desfamiliarização” faz referência Assim, esse regime, também denominado
a um Estado de Bem-Estar “amistoso” com a corporativo ou meritocrático, se estruturou a
mulher, à medida que incentiva sua independên- partir do seguro social vinculado ao emprego,
cia econômica. Assim, libera-a das obrigações eminentemente masculino, reproduzindo a visão
familiares que restringem sua participação no da família em moldes tradicionais, em que a
mercado de trabalho, cobrindo serviços que família depende do homem como seu provedor
antes eram de sua responsabilidade e realiza- principal, e a mulher, como esposa, acessa os
dos no domicílio e facilitando sua integração no benefícios da seguridade social na condição de
mercado de trabalho. dependente.
Navarro (2002) ressalta que não é por aca- Historicamente, esse tipo de regime foi
so que, entre os países da União Europeia, os influenciado pelo estatismo monarquista, o
que têm maior participação da mulher no mundo corporativismo tradicional e a doutrina social
do trabalho (74%) sejam os nórdicos, onde existe católica, que lhe deram suas características bá-
maior desenvolvimento de serviços de apoio à sicas de segmentação de status e “familismo”.
família e inserção das mulheres como força de O “familismo” se expressa pelo baixo nível dos
trabalho nos serviços públicos. serviços dirigidos às famílias e cobertos pelo
No outro extremo encontram-se os sis- Estado. Portanto, há Estados de Bem-Estar
temas liberais, os sistemas mediterrâneos e o Social passivos quanto a esses serviços, e com
Japão. Em relação à “desfamiliarização”, medi- sobrecarga dos cuidados relegados à família. O
da em termos de previsão pública de serviços catolicismo influenciou a doutrina da subsidiari-
para a família, verifica-se uma baixa oferta de dade4 na intervenção estatal, e, nesse regime,
serviços públicos dirigidos à família, e sobre
esta recaem maior carga e responsabilidade.
(ESPING-ANDERSEN, 1999, p. 61). 4
Campos (2008a), fundamentada nos estudos de Esping-Ander-
sen, expressa bem o significado da noção de subsidiaridade de-
Em relação a todas as variáveis anali- fendida pelo catolicismo ao dizer que para “a Doutrina Social da
sadas, o sul da Europa e o Japão mostram Igreja – DSI, a interferência pública deve limitar-se a situações
provisões extremamente baixas, mas, segundo onde as unidades de menor porte da sociedade falham”, e entre
estas, destaca-se a família. Essa influência cultural influenciou
o autor, isso não merece um rótulo separado um tipo de intervenção do Estado que só ocorre quando a famí-
para os regimes desses países, principalmente lia não consegue arcar com os cuidados e assistência aos seus
membros, favorecida pela família tradicional do sul da Europa
porque os benefícios familiares diretos são ver- com sua extensa rede de solidariedade e o seu intenso fluxo de
dadeiramente pequenos em todos os países da transferências intergeracionais.

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essa só deve ocorrer quando a capacidade de Portanto, nesse tipo de regime, além da
ajuda da família se exaure. Segundo Esping- residualidade das políticas públicas, há uma indi-
-Andersen (1999), essa influência é maior nos vidualização dos riscos, que devem ser supridos
países do sul da Europa. Na França, a política por soluções de mercado. A intervenção do Estado
social tem se guiado pelo espírito republicano é justificada para suprir as falhas do mercado
e anticlerical, e, no Japão, pela doutrina con- junto aos segmentos sociais que comprovem a
fucionista – equivalente funcional do familismo necessidade ou a incapacidade de comprar ser-
católico – e pelo corporativismo. viços no mercado.
A estratificação social seria a noção central Trata-se de um regime “dual” de tratamento
para distinguir os programas sociais segmentados dos problemas sociais, uma vez que nesse regime
e a existência de uma incipiente intervenção do “os Estados de Bem-Estar Social têm em co-
Estado para os que não conseguem obter o bem- mum a adoção de um componente de tributação
-estar a partir da inserção no mercado de trabalho. negativa, que oferece um piso mínimo de renda
Além disso, está presente um explícito “familismo”, aos pobres e aos estratos de baixa renda, junto
no sentido de que, assegurada a renda advinda com o incremento dos incentivos aos setores de
do trabalho, supõe-se que a família pode cumprir maior renda para contratarem serviços pagos”
com a maioria das funções relacionadas ao bem- (ESPING-ANDERSEN, 2001 apud SUNKEL,
-estar de seus membros. Como destaca Sunkel 2006, p. 22).
(2006), o “familismo” combina o corte da proteção Os serviços para os pobres são não con-
social para o homem provedor com a centralidade tributivos. Todavia, exige-se teste de meios para
da família como protetora e responsável última comprovação da necessidade, com caráter estig-
por seus filhos – e estes, quando adultos, como matizante da pobreza. Por outro lado, a evolução
responsáveis pelos pais. histórica desse tipo de regime demonstra que a
Como assevera Esping-Andersen (1999), proteção social do setor privado tem se deslocado
muitos países ainda têm obrigações familiares da cobertura coletiva dos riscos – como os planos
legalmente definidas de assistência aos filhos ou coletivos de seguro social por empresa – para uma
aos pais em necessidade. Tais obrigações são co- cobertura individualizada de planos de previdência
muns nos países da Europa Continental e Japão. e saúde e prestação de serviços no mercado.
Segundo as análises desse autor, o peso A “desfamiliarização” nesses regimes
da responsabilidade da família com os cuidados liberais não ocorre via Estado, com a provisão
de seus membros parece bastante similar nos de serviços e subsídios por parte deste, mas
agrupamentos liberais e da Europa continental. por meio da substituição, pelo mercado, dos
Portanto, reforça a tese de não separação dos serviços domésticos ou de apoio às famílias.
países da Europa do sul pelo “familismo”. Esses serviços, conforme os estudos de Esping-
-Andersen (1999, p. 64), são mais baratos nos
c) O regime liberal Estados Unidos que na Europa, e consomem uma
percentagem menor da renda familiar (6%). Por
O regime liberal agrupa os países anglo- exemplo, “na Europa o custo por ano é de 20%
-saxônicos (Estados Unidos da América, Reino da média de uma família com ambos trabalhando
Unido, Nova Zelândia e Austrália). Nesse regime, na Itália; 14% na Holanda e na França; e 12% na
predomina o mercado como lócus da proteção Alemanha, isso para destacar apenas os serviços
social, o Estado com políticas residuais para de creches privadas”. Se incluirmos serviços de
os comprovadamente pobres e as reduzidas faxineiras, ajudantes domésticos, babás, esses
transferências universais ou os planos modestos serviços consumiriam uma fatia muito grande dos
de previdência social pública. Segundo Esping- orçamentos domésticos. Nos Estados Unidos, em
-Andersen (1991, p. 108), “o Estado, por sua vez, função da desregulamentação dos mercados,
encoraja o mercado, tanto passivamente – ao esses serviços são mais baratos e as famílias
garantir apenas o mínimo – quanto ativamente – podem usá-los. Todavia, as soluções de mercado
ao subsidiar esquemas privados de previdência geram desigualdades, porquanto as famílias de
social”. baixa renda não podem comprar esses serviços,
pois são excluídas.

82 Emancipação, Ponta Grossa, 13(1): 75-86, 2013. Disponível em <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao>


Família e proteção social: uma relação continuamente (re)atualizada

O Estado de Bem-Estar Social Mediterrâneo um ‘amortecedor’5 e promotora de bem-estar para


ou Latino: subtipo do regime conservador seus membros, [...] através dos cuidados infantis,
ou um novo regime? assistência ao desempregado, os cuidados aos
idosos e deficientes ou habitação”. (MORENO,
As investigações sobre os regimes de 2004; NALNI, 2003 apud FERRERA, 2005, p. 8).
bem-estar social cresceram nos anos 1990, e Assim, considerada em seu conjunto, essa
muitos autores, mais sensíveis às peculiaridades organização do bem-estar pressupõe o “familis-
históricas de países e regiões que não estão mo”, ou o papel decisivo da família na provisão
bem ajustados às classificações estabelecidas, social, em que a família busca o bem-estar de
buscaram construir novas categorias de regimes seus membros, mediante transferências materiais
e de Estados de Bem-Estar Social. e imateriais distribuídas no seu interior, especial-
Dentro dessa perspectiva, destacam-se mente o cuidado e o trabalho doméstico realizado
os estudos de Ferrera (2000), que visam captar pelas mulheres.
as peculiaridades dos países da Europa do Sul Destaca-se ainda como característica a forte
(Portugal, Espanha, Itália e Grécia) a partir dos influência da Igreja Católica e a reduzida presença
conceitos de regime de bem-estar do Sul da do Estado em serviços de apoio à família. Navarro
Europa ou regime de bem-estar Mediterrâneo (2002), ao descrever a situação espanhola, salien-
(FERRERA, 2000), ou regime de bem-estar Latino ta que a ausência dessas estruturas públicas de
(ABRAHAMSON, 1992). Como destacam Rhodes apoio à família tem também um aspecto econô-
e Flaquer (1997, apud DRAIBE; RIESCO, 2006, mico, que explica a baixa participação da mulher
p.22), há um esforço para superar o entendimento na força de trabalho; somente 38% das mulheres
desses “casos” como subtipos de outros regimes adultas na Espanha estão integradas ao mercado
ou como modalidades não desenvolvidas, inci- de trabalho, quando a média na União Europeia
pientes ou atrasadas, observando-os em suas é de 53%, e, a dos países nórdicos, 74%. Isso
configurações próprias. porque a sobrecarga das famílias, em especial
Ferrera (2000) destaca as peculiaridades das mulheres, cria dificuldades para que sejam
dos países da Europa do Sul, com sua moderni- conciliadas as responsabilidades profissionais e
zação tardia e as características comuns a suas as familiares. Essa sobrecarga pode ser medida
economias políticas contemporâneas, bem como pela quantidade de horas semanais que as mulhe-
suas características de sua política social – apesar res dedicam ao lar, cuidando de crianças, idosos,
das diferenças significativas que há entre esses pessoas incapacitadas, jovens desempregados e
países. Ressalta que as investigações compa- pessoas adultas – na Espanha chega a 44 horas,
rativas sobre os regimes de bem-estar social da a mais alta da União Europeia.
década de 1980 nem incluíam tradicionalmente os Portanto, a pergunta que Navarro (2002) faz
países da Europa do Sul, com exceção da Itália. sobre quem cobre as insuficiências do Estado de
Os estudos dos anos 1990 confirmam, todavia, a Bem-Estar Social da Espanha (inclusive Catalu-
existência de determinadas similitudes regionais, nha) tem como resposta a família – em particular
tais como: a mulher –, que tem maior responsabilidade no
O relativo subdesenvolvimento do Estado So- que diz respeito aos cuidados e afazeres domés-
cial e a discrepância entre as medidas prometi- ticos, realidade que se estende a outros países
das (e por vezes até legisladas) e as realmente da Europa do sul. Essa constatação confirma a
levadas à prática; a importância e elasticida-
de da família como uma espécie de carteira
de compensação para o bem-estar dos seus 5
Paugan (em palestra na aula inaugural do primeiro semestre de
membros. (FERRERA, 2000, p. 459-60). 2009, na PUC-SP) em seus estudos recentes sobre a pobreza,
trata o caso do sul da Europa como “pobreza integrada”, à me-
dida que os efeitos da crise e do desemprego são amortecidos
Além das características semelhantes ao pela família e a pobreza é, portanto, menos estigmatizada. Mas,
modelo conservador, destaca-se o acentuado “fa- como destaca Ferrera (2005, p.8) citando Moreno (2002), “esta
milismo”, em que a família “tem funcionado como síndrome tem, sem dúvida, resultados positivos em termos de in-
clusão: os pobres continuam a ser mais firmemente integrados ao
uma eficaz (embora informal) rede de segurança: tecido social. Mas também têm gerado algumas patologias socio-
econômicas: as baixas taxas de emprego feminino e o dramático
declínio da fecundidade entre as mulheres”.

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Solange Maria TEIXEIRA

tese de que a família não foi disfuncionalizada impulsionadas pela crise e pelas reformas neo-
ou reduzida em suas funções de proteção social liberais, a sociedade civil – e, mais especifica-
pelo processo de modernização nesses países mente, a família – aparece com papel renovado
mediterrâneos. na proteção social.
Pode-se dizer que até a década de 1960 O setor privado (lucrativo, filantrópico e não
os Estados de Bem-Estar Social reproduziam governamental) e os setores informais (família e
o modelo padrão de homem provedor/mulher comunidade) retornam como fontes de proteção
cuidadora, considerando a ênfase em benefícios social, tomados como mais eficientes, eficazes e
monetários, os quais as mulheres e os filhos aces- com reduzido custo. Entretanto, como o merca-
savam como dependentes, a reduzida oferta de do volta-se cada vez mais para a satisfação de
serviços, além da reduzida inserção das mulheres necessidades lucrativas (voltado, portanto, para
no mercado de trabalho. Esse modelo padrão se os que detêm poder de compra), uma enorme
funda em relações assimétricas e hierarquizadas sobrecarga recairá sobre a família, que funciona
de gênero, e as reproduz.6 Como exemplo, na como “amortecedora” da crise, “absorvedora de
Espanha (inclusive na Catalunha), segundo os choque”, instrumento de redução do sentimento
estudos de Navarro (2002), o companheiro ou de exclusão social e de promoção de bem-estar
marido dedica apenas seis horas semanais com de seus membros.
trabalhos domésticos, enquanto o homem sueco Bermúdez (2001) denomina esse processo
dedica 22 horas semanais. de “neofamiliarismo”, uma tendência ideológica
Assim, nesses países que veem a família e de fazer da família uma unidade econômica e
a sociedade civil como responsáveis pela prote- política de resolução de problemas da raciona-
ção social de seus membros, sobrecarregando a lidade global do sistema, ao lado de tentativas
família e a mulher, são nítidos a visão conservado- de “reprivatizar” atividades antes grandemente
ra e o princípio de subsidiaridade da intervenção assumidas pelo poder público e pela sociedade
do Estado, daí o seu débil desenvolvimento em em geral, como os riscos sociais de responsa-
serviços. bilidade da coletividade.
A tendência contemporânea é de apro- Em síntese, pode-se dizer que a ascensão
fundamento dessas características familistas da família como referência da política social
dos regimes de bem-estar nos países do sul da emerge num contexto de crise e de críticas ao
Europa, nos países do leste e do sul da Ásia (Ja- Estado de Bem-Estar Social. Entre as críticas,
pão e os países recentemente industrializados), destacam-se a impossibilidade financeira de que
expandindo-se para a Europa continental, diante o Estado continue arcando com a provisão do
das reformas promovidas nas políticas públicas bem-estar e o crescente individualismo e a aco-
pelos Estados, em contexto de globalização e modação promovidos pela garantia de acesso
crise do capitalismo. à proteção social pública. Dentre as propostas
de saída da crise, destaca-se o pluralismo de
“Ressurgimento” da família na proteção bem-estar social.
social ou reforço de suas funções Conforme Pereira (2006), o pluralismo de
bem-estar social prevê a distribuição e a provi-
Nesse quadro de restrições econômico- são do bem-estar social por um agregado de
-financeiras e de ações que visam reduzir as instâncias provedoras e gestoras nesse campo,
demandas do Estado, desde a década de 1970, composto por quatro setores: o setor oficial,
identificado pelo Estado; o setor comercial,
identificado pelo mercado; o setor não governa-
6
Como destaca Saraceno (1992, p.183), o trabalho familiar é mental, das instituições sem fins lucrativos da
simultaneamente necessário e repartido não só de forma dese- sociedade civil; e o setor informal, identificado
quilibrada, mas a priori. É o “não dito” do casamento, como da com as redes primárias e informais de apoio
organização social, que mina o modelo de paridade entre côn-
juges, enfraquecendo simultaneamente a posição da mulher, desinteressado e espontâneo, (constituído por
quer nas relações conjugais quer relativamente ao mercado de família, vizinhança e grupos de amigos). Isso
trabalho. Destaca também que o trabalho doméstico continua a
ser atribuído à mulher mesmo quando esta trabalha, apesar do
significa uma divisão de responsabilidades, não
ligeiro aumento da participação dos pais no cuidado dos filhos. apenas de financiamento – que responsabiliza

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Família e proteção social: uma relação continuamente (re)atualizada

a sociedade pela proteção de todos –, mas na família, o que não vem significando diminuição
execução da política, como parte da rede que de responsabilidades, mas sim o seu reforço,
deve prover a proteção social. Trata-se de uma pois o Estado atua tomando a família como um
nítida parceria entre público e privado ou do de seus interlocutores e “parceira” na proteção
reforço da sociedade providência e da família social. Encara a família como um dos sujeitos da
cuidadora, integradora e geradora de vínculos. rede social a ser potencializado e desenvolvido
Se, como salienta Esping-Andersen (1999), para utilizar suas estratégias e recursos internos.
são incorretas para todos os países as ideias de Na sul da Europa, no Leste europeu, na
que as funções da família foram deslocadas com América Latina, onde a família nunca deixou de
o advento do Estado de Bem-Estar Social, e de ser uma unidade produtora e provedora de ser-
que os Estados, com algumas exceções, inves- viços, realizados, em grande parte, pelo trabalho
tem grandemente em transferência de renda e não pago da mulher – entre eles o cuidado, as
apenas marginalmente dedicam-se a serviços tarefas de socialização, educação e proteção –,
para a família, em contexto de austeridade de o reforço dessas funções pela política dirigida
gastos, crescimento de desemprego e busca de à família no contexto de reformas das políticas
soluções privadas para as necessidades sociais sociais, de welfare mix, significa a permanência
não se caminha no sentido de aprofundar mode- da reprodução social no âmbito privado. Signi-
los mais igualitários e universalistas. Antes, são fica também a reprodução da divisão sexual do
reforçadas as características históricas dos seus trabalho, além de onerar ainda mais as mulheres
sistemas, em especial o familismo, que tende a e trazer severas consequências no desenvolvi-
aumentar em muitos países. mento de sua cidadania social.
Em muitos Estados não há um “ressurgi- O “neofamiliarismo” ou “familismo” é uma
mento” da família, uma vez que essa sempre foi tendência dos regimes de bem-estar na Améri-
ativa7 nas funções de reprodução social, mas sim ca Latina, e na orientação das novas políticas
um “reforço” das suas funções clássicas, ou a sociais. Essa perspectiva de responsabilização
“sobrecarga” com novos papéis e deveres. Isso das famílias para além das suas possibilidades
ocorre em um contexto de crise e desemprego, reforça a dependência dos serviços, recursos e
inclusive gerado pelas políticas públicas. Os apoios familiares por parte de seus membros.
governos, que, ao tomar como objeto de inter- A defesa de um projeto protetivo para as
venção as famílias pobres, concebem-nas como famílias e indivíduos requer uma política des-
espaço de proteção social, mas também como familiarizante. Uma política que oferte serviços
alvo dessa proteção, geralmente na perspectiva de suporte; que secundarize suas funções de
de otimizá-la, somando a proteção fornecida reprodução social; que ofereça serviços univer-
pela família à que é realizada pelas instituições sais, de acesso local, em quantidade e qualidade,
públicas e minimizando, assim, custos com a ins- sistemáticos e continuados; que garanta direitos
titucionalização. É nesse contexto que a família e gere independência para jovens, idosos, mu-
é retomada na política pública. lheres; e que democratize as relações familiares,
defendendo e oferecendo serviços que autono-
Considerações finais mizem os membros mais frágeis e dependentes
na hierarquia familiar.
A relação família versus proteção so- Fortalecer a vida familiar é dar-lhe
cial, analisada neste estudo, demonstra que o possibilidades nesse contexto de vulnerabilidade
Estado cada vez mais intervém no campo da que a desagrega; é não reforçar responsabilidades
reprodução social, como já foi destacado por para otimizar as reduzidas ofertas de serviços
Saraceno (1992). Este também é o campo da públicos e privados (mercantil e não mercantil);
é não reforçar as relações de dependência
dos indivíduos dos recursos, serviços e
7
Barros (1995, p. 119) diz que “consultas realizadas nos últimos
anos pela UNESCO sobre o futuro da família em todas as regiões cuidados familiares, mas, sim, fornecer uma
do mundo (Benham, 1990), descartam a ideia da decadência da sustentabilidade material e de serviços que
família e confirmam que esta conserva em todas as partes seu
vigor, se bem que se destaca a diversidade estrutural e funcional
ofereça proteção aos seus membros, cumprindo
dos sistemas familiares”. funções que a família, em decorrência de

Emancipação, Ponta Grossa, 13(1): 75-86, 2013. Disponível em <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao> 85


Solange Maria Teixeira

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