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INTRODUÇÃO

Maria Margarida Machado

PARTE I

Gianni Fresu
Da “marcha da universalidade” à
integral emancipação do homem
Giovanni Semeraro
A práxis “integral” de Gramsci
frente ao atual processo de desinte-
gração
Júlio César Apolinário Maia
Acepção gramsciana da díade con-
senso-coerção: Um esforço inves-
tigativo dos primeiros escritos aos
cadernos especiais
Peter Mayo
Gramsci, colonialismo e seus des-
contentes
Simone Aparecida de Jesus
Aquisição, importância e uso da
língua para Gramsci
Goiânia | 2020
© do texto: Autores, 2020.
© da edição: Editora Scotti, Goiânia, 2020.

Coordenação editorial: Luiz Carlos Scotti


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Revisão: Luísa de Assis Vieira
Projeto gráfico: César França de Oliveira

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L614 Ler Gramsci para pensar a política e a educação [recurso eletrônico] /


Maria Margarida Machado (Organizadora). – Goiânia : Scotti, 2020.
320 p.

ISBN: 978-65-87090-24-5 (papel)
ISBN: 978-65-87090-25-2 (e-book)

1. Gramsci. 2. Política. 3. Educação. I. Machado, Maria Margarida.

CDU: 37.01

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das referências, a revisão gramatical e as ideias expressas e/ou defendidas nos tex-
tos são de inteira responsabilidades dos autores.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
2020
SUMÁRIO

Introdução
Maria Margarida Machado, 7

Parte i
Gianni Fresu — Da “marcha da universalidade” à integral emancipa-
ção do homem, 17
Giovanni Semeraro — A práxis “integral” de Gramsci frente ao atual
processo de desintegração, 49
Júlio César Apolinário Maia — Acepção gramsciana da díade consen-
so-coerção: Um esforço investigativo dos primeiros escritos aos cader-
nos especiais, 65
Peter Mayo — Gramsci, colonialismo e seus descontentes, 95
Simone Aparecida de Jesus — Aquisição, importância e uso da língua
para Gramsci, 119

Parte ii
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta e Marise Ramos — Gramsci: A
historicidade da filosofia da práxis e a educação, 155
Cláudia Borges Costa e Maria Emilia de Castro Rodrigues — Subal-
terno e oprimido: Diálogo com Gramsci e Freire, 187
Maria Margarida Machado — Direito à educação e manutenção da
subalternidade, 221
Vera Lúcia Paganini — Entre missais e carabinas: O poder do discurso
ou o discurso de poder?, 245
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos — Cartas do cárcere e a edu-
cação da infância, 287
INTRODUÇÃO

“É preferível ‘pensar’ sem disto ter consciência crítica, de uma manei-


ra desagregada e ocasional, isto é, ‘participar’ de uma concepção do mundo
‘imposta’ mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos
grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua
entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província,
pode se originar na paróquia e na ‘atividade intelectual’ do vigário ou do
velho patriarca, cuja ‘sabedoria’ dita leis, na mulher que herdou a sabedoria
das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e
pela impotência para a ação), ou é preferível elaborar a própria concepção
do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com
este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, parti-
cipar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo
e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria
personalidade?”

(Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, v. 1)

Essa pergunta, elaborada por Antonio Gramsci (1891-1937)


em uma de suas notas carcerárias no Caderno 11, contribui de forma
inconteste para explicitar as principais questões sobre as quais nos
debruçamos nesta obra, intitulada Ler Gramsci para pensar a política
e a educação. A realidade vivida no Brasil — sobretudo após o golpe
parlamentar, jurídico e midiático de 2016, que retirou a presidenta
Dilma Rousseff do Palácio do Planalto e, em 2018, a eleição de Jair
Bolsonaro para governar o país até 2022, com a forte influência da
“(não) consciência” formada em tempos de fake news — nos desa-
fia a pensar como esses fatos políticos implicam, desafiam, instigam
ou provocam não somente a realidade brasileira, mas a de todo o
mundo.
Os cenários brasileiro e mundial nos colocam diante de várias
questões, sendo uma das mais relevantes, pensar como se constrói
uma concepção de mundo, de sociedade e de indivíduo em contextos

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Ler Gramsci para pensar a política e a educação

ultraneoliberais e de retrocessos políticos autoritários. Para dialogar


com essa questão, que em certa medida também foi proposta por
Gramsci, sobre como se elabora uma concepção de mundo, se im-
posta e desagregada, ou consciente e crítica, neste livro apresentamos
reflexões a partir de aspectos da política e da educação em contextos
internacionais e nacionais. A retomada do pensamento gramsciano,
sobretudo a partir dos conceitos de práxis, hegemonia, educação,
formação humana, língua, Estado e política, tem por objetivo geral
evidenciar a contribuição de Gramsci, ontem e hoje, para o exercício
do nosso pensar e agir politicamente.
A palavra de ordem, como diria Gramsci (2007, p. 295), que
orienta as reflexões apresentadas, é: “pessimismo da inteligência, oti-
mismo da vontade”. A realidade do Brasil revela, primeiramente, o
“otimismo da vontade”, por apontar os inúmeros esforços empreen-
didos para que, por exemplo, a educação para todos e todas ocupas-
se a cena da política do país, sobretudo no início deste século xxi.
Ainda assim, premidos pelo “pessimismo da inteligência”, precisa-
mos reconhecer que as iniciativas relevantes que se desdobraram em
políticas públicas de educação nos últimos quinze anos, da creche à
pós-graduação, não foram suficientes para se consolidar em políticas
de Estado que sobrevivessem aos diferentes interesses dos governos
que se elegeram a cada mandato, ou mesmo que ocuparam o Estado
após manobras midiáticas, parlamentares e jurídicas.
Este livro resulta do esforço conjunto, de pesquisadores mais
experientes e de jovens pesquisadores, para problematizar algumas
das questões relevantes que identificamos, a partir dos referenciais
gramscianos, no campo da política e da educação hoje no Brasil e
fora dele. Foi pensado como espaço de socialização de inquietações e
reflexões originadas na disciplina “Ler Gramsci para pensar a política
e a educação”, ofertada desde 2017 no Programa de Pós-Graduação
em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de
Goiás (UFG). Portanto, conta com capítulos de professores e alunos
desse programa. Conta ainda com a valiosa interlocução de colegas
pesquisadores membros da International Gramsci Society (Brasil) e
de outros pesquisadores que, espalhados pelo Brasil e pelo mundo, se

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INTRODUÇÃO

reencontram nesta obra através de seus olhares diversos sobre a força


do pensamento de Gramsci, para nos auxiliar a pensar o hoje.
Organizamos as contribuições dos autores em duas partes: a
Parte 1 reúne os capítulos que abordam os temas mais gerais do pen-
samento de Gramsci na sua relação com aspectos políticos; na Parte 2
são apresentadas reflexões que relacionam o pensamento gramsciano
a questões da política educacional e dos processos de aprendizagem.
O Capítulo 1, escrito por Gianni Fresu, abre o livro com a re-
flexão sobre como o conceito de emancipação humana, em Gramsci,
se entrelaça a todo o discurso que se desenvolve a partir da afirmação
da dignidade humana universal, da igualdade e liberdade formais,
características das revoluções burguesas. Em seguida, Fresu explica
a fratura epistemológico-política que Marx produziu, abordando a
questão da contradição social, e apresenta reflexões de pensadores li-
berais para explicar o surgimento do Estado Ético, identificando nele
a centralidade da opinião pública na definição das relações de força.
Toma como referência principalmente Hegel e Croce, que influencia-
ram Gramsci mais diretamente nessa reflexão sobre a passagem de
um velho estado corporativo aristocrático feudal, de castas fechadas,
ao moderno estado, onde as relações políticas são determinadas pelo
consenso da opinião pública. A perspectiva é indicar as aproxima-
ções entre o conceito de hegemonia e opinião pública, a partir das
reflexões gramscianas.
O Capítulo 2 traz a contribuição de Giovanni Semeraro, que
chama a atenção sobre a conexão entre o conceito de “práxis” e o
adjetivo “integral”, recorrente nos escritos de Gramsci, ao resgatar
nesse texto uma proposta de sociedade que combate toda forma de
mutilação e desintegração humana, social e ambiental operada pela
mais destruidora ofensiva desferida pelo ultraliberalismo, que con-
centra um inaudito poder econômico, militar e midiático e combina
de forma letal pilhagem financeira, destruição das instituições pú-
blicas, fundamentalismo religioso e Estado policial. Em contrapo-
sição a esse processo que atomiza, descarta e aniquila, nos escritos
de Gramsci, segundo Semeraro, se evidenciam os elementos que
apontam para a necessidade de inaugurar “uma nova fase da história

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Ler Gramsci para pensar a política e a educação

humana”, e para a proposta concreta de criar uma nova civilização


construída pelo protagonismo das classes populares que almejam
uma concepção integral de mundo e lutam pelo desenvolvimento de
todas as componentes e potencialidades do ser humano. Dessa for-
ma, a “práxis integral” desenhada por Gramsci adquire ainda mais
atualidade frente ao quadro de degradação que golpeia o Brasil e
aponta horizontes para enfrentar as chocantes desigualdades com a
realização da democracia “integral”, que passa pela socialização do
poder econômico, político e cultural e instaura a efetiva soberania do
poder popular.
A reflexão proposta por Júlio César Maia, no Capítulo 3, traduz
seu esforço investigativo acerca da díade consenso-coerção na obra
de Gramsci, desde os seus primeiros escritos políticos, publicados na
altura da segunda década do século , até o conjunto de seus cadernos
especiais, cuja produção se interrompe com o agravamento de seus
problemas de saúde. Partindo-se do pressuposto de que sua produ-
ção (epistolar, jornalística e científica) traduz-se em estudos acerca
da consolidação de processos hegemônicos, e conseguintemente
da demarcação de imprescindibilidade aos elementos consenso e
coerção na consolidação desses processos, a presente investigação
se empenha em resgatar fragmentos onde se tornam claros tanto o
mérito concebido pelo autor com relação ao tema em questão como
um movimento ascendente de reflexão acerca desse tema, sempre em
função da evidência de seus objetos de estudo (em especial acerca da
filosofia da práxis, da formação de intelectuais, do princípio educa-
tivo, do Risorgimento italiano, do americanismo e do fordismo, da
Ação Católica, dos temas de cultura etc.).
O Capítulo 4 resulta de uma análise de Peter Mayo, que se uti-
liza das reflexões de Gramsci para evidenciar discussões em torno
do colonialismo e do neocolonialismo, afirmando que eles assu-
mem muitas formas e compreendem questões relativas a um “con-
junto heterogêneo” de “posições de sujeito” subalternas. O conceito
gramsciano explorado pelo autor, ao longo de sua argumentação, é o
de Hegemonia, atribuído por ele a terminologia de “alianças extra-
viadas”. Ao retomar a elaboração de Gramsci sobre processos hege-

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INTRODUÇÃO

mônicos no artigo inconcluso “A Questão Meridional”, com especial


destaque para o papel da Igreja Católica, Peter Mayo apresenta um
conjunto de reflexões sobre hegemonia, algumas exploradas no capí-
tulo anterior, com foco nos contextos da América Latina e de outras
regiões que viveram e vivem processos de colonização, evidenciando
a dependência, no caso dos países latino-americanos, do capitalismo
internacional das multinacionais. Sua argumentação em torno do co-
lonialismo e seus descontentes indica que a descolonização, seja no
domínio da religião ou em outros domínios, educacionais, culturais e
econômicos, deverá “descolonizar a mente”, uma tarefa fundamental
para uma pedagogia genuinamente crítica, nos termos do que já era
defendido por Paulo Freire. A partir de diversas reflexões retomadas
de Freire e outros interlocutores, Mayo finaliza o capítulo com uma
reflexão sobre a linguagem e a potencialidade da aprendizagem bi-
cultural como fundamentais para contestar a opressão em diferentes
contextos.
O último capítulo da Parte i, de Simone Aparecida, também se
dedica a um dos temas abordados por Peter Mayo, que é a questão
da linguagem e, mais especificamente, a língua enquanto ferramenta
para a aquisição de conhecimento, a partir das ideias de Gramsci.
Para tanto, a autora faz uma breve apresentação do autor, haja vista
suas reflexões sobre língua, linguagem e linguística não serem alea-
tórias, pois ele cursou a faculdade de letras e, apesar de não ter con-
cluído esse curso e ter sua atuação voltada ao jornalismo e às ques-
tões partidárias e políticas, demonstrou ter conhecimento da área e
interesse em tratar a questão da língua, refletindo sua importância
na formação do sujeito. Para a elaboração desse capítulo, a autora
pesquisou nos diferentes escritos de Gramsci traduzidos para o por-
tuguês, realizando suas reflexões sobre o tema a partir das indica-
ções encontradas nos Cadernos do cárcere, presentes na edição da
Civilização Brasileira, volumes 1, 2 e 6. Também foram utilizadas na
elaboração do capítulo as contribuições do Dicionário gramsciano
(Liguori; Voza, 2017), que faz várias indicações de onde, na obra de
Gramsci, podem ser encontradas referências à língua, à linguagem, à
linguística e à literatura. Nesse sentido, as reflexões abordadas reve-

11
Ler Gramsci para pensar a política e a educação

lam a relação entre esses conceitos e a ideia de que a língua integra a


concepção de mundo de um povo e deve ser parte da constituição do
sujeito, bem como a sua importante função quanto à tradutibilidade
não apenas de vocábulos, mas também de conceitos e significados,
mediante uma cultura e um tempo histórico. Ainda segundo a auto-
ra, para Gramsci, a língua compõe o sujeito que atua e transforma o
mundo à sua volta por meio da cultura.
A Parte ii do livro dedica-se especialmente a reflexões sobre a
contribuição gramsciana para pensar a educação e os processos edu-
cativos. O Capítulo 6, que dá início a essa seção, é de autoria dos
pesquisadores Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta e Marise Ramos,
para quem Gramsci é um pensador da filosofia da práxis, com base
no materialismo histórico, no seu duplo fundamento: a crítica à eco-
nomia política clássica, a análise do modo de produção capitalista e a
história como produção social da existência dos sujeitos, dos grupos
e das classes sociais. Na abordagem desses autores, Gramsci se orien-
ta pela filosofia da práxis para a análise de correlações de forças que
atuam nas lutas dos trabalhadores, no papel dos intelectuais e dos
partidos, na hegemonia para a obtenção do consenso e nos processos
revolucionários. Nesse capítulo, primeiramente é discutido o concei-
to de filosofia da práxis e sua expressão na obra de Gramsci; a se-
guir, os autores tratam dos conceitos de história e historicidade e das
críticas ao historicismo atribuído ao autor; por último, mediante as
categorias do pensamento gramsciano, analisam as contradições da
relação trabalho-educação no Brasil, com foco no período de 1990 a
2018.
O Capítulo 7, elaborado pelas pesquisadoras Cláudia Borges
e Maria Emilia Rodrigues, objetiva refletir sobre a realidade social
brasileira e suas contradições historicamente constituídas nas dis-
putas e nos conflitos tecidos no sistema capitalista, bem como no
emaranhado desenvolvimento econômico pautado na desigualdade
social, com ênfase na interferência dessas contradições na educação.
Traça uma reflexão acerca das categorias “subalterno” e “oprimido”
sob as óticas de Gramsci e Paulo Freire (1921-1997). O diálogo com
Gramsci faz-se, sobretudo, a partir de seus escritos pré-carcerários —

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INTRODUÇÃO

publicados pela Editora Civilização Brasileira como Escritos políticos,


algumas Cartas do cárcere e Cadernos do cárcere —, que abordam
suas inúmeras reflexões sobre a subalternidade, a superação dessa
condição e a conquista da autonomia por meio do desenvolvimento
da consciência crítica e da compreensão do valor histórico de cada
sujeito. Com Paulo Freire, o diálogo tem como referência os escritos
Pedagogia do oprimido (1987) e Educação como prática da liberda-
de (1967), nos quais ele defende a educação para a responsabilidade
social e política e a busca da emancipação, que consiste na leitura
crítica do mundo e na potencialidade da compreensão do papel do
sujeito histórico e da educação como instrumento de transformação
social. As reflexões objetivam revelar as aproximações conceituais
entre Gramsci e Freire no que se refere à condição de subalternidade
e opressão das classes populares.
Aproximando-se da reflexão do capítulo anterior, o Capítulo 8,
de minha autoria, também reflete sobre a condição de subalternidade
e a relação com a educação dos trabalhadores. Apresenta parte dos
estudos e pesquisas que compuseram minha tese para o concurso de
professora titular da fe/ufg, defendida no final de 2018. A tese to-
mou por objeto de análise a política de Educação de Jovens e Adultos
(eja) implementada no Brasil, principalmente após a promulgação
da Constituição Federal de 1988 (cf/1988), visando pensar como
se tem efetivado o direito à educação e que sentidos têm sido pro-
duzidos pela escola destinada a esses sujeitos. O referencial teórico
gramsciano deu o suporte principal às análises da tese, sobretudo
a partir dos conceitos de educação, Estado e política, para pensar
os papéis da sociedade política e da sociedade civil na eja; da esco-
la como espaço de formação humana; e dos intelectuais que atuam
de forma tradicional e orgânica nessa modalidade de ensino. Nesse
capítulo, apresento parte das reflexões acerca do tema que nos reme-
tem aos esforços realizados nos últimos trinta anos na eja, tomando
como referência a promulgação da cf/1988, com ênfase nas políti-
cas voltadas para a educação dos trabalhadores. Embora tais esforços
expressem um certo “otimismo da vontade”, ainda não foram sufi-
cientes para superar a visão compensatória e aligeirada da escolariza-

13
Ler Gramsci para pensar a política e a educação

ção destinada a esses sujeitos, reforçando, em grande medida, nosso


“pessimismo da inteligência” ao identificar a manutenção da condi-
ção de trabalhadores jovens e adultos subalternos, numa sociedade
de capitalismo cada vez mais desigual e combinado.
O Capítulo 9 também resulta de tese defendida no Programa
de Pós-Graduação em Educação da fe/ufg, de autoria de Vera Lúcia
Paganini. Com base no pensamento de Gramsci sobre concepção de
mundo e se esta pode ser imposta e desagregada, ou consciente e crí-
tica, a autora discute a concepção e o lugar da educação nos processos
educativos realizados, não apenas na escola, mas em espaços múlti-
plos de aprendizagem na prelazia de São Félix do Araguaia (mt). A
retomada do pensamento gramsciano, sobretudo dos conceitos de
educação, formação humana, Estado e política, aparece no capítulo
para compreender o papel do Estado, aqui tomado como sociedade
política e sociedade civil, na educação; perceber a escola como es-
paço de formação humana; e reafirmar o papel dos intelectuais que
atuam de forma tradicional e/ou orgânica na consolidação de con-
cepções hegemônicas. A reflexão indica que a formação de um sujei-
to político-coletivo pelos processos educativos possibilitou o forta-
lecimento do intelectual orgânico que se constituiu e foi constituído
no espaço de vida, de trabalho e de conflitos em que se encontrava,
confirmada pela ação resultante de diferentes textos e contextos. A
pesquisa identificou que, nas contradições das próprias limitações,
emergem os intelectuais orgânicos, decisivos na efetivação do projeto
contra-hegemônico que se concretizou e se sustentou durante algum
tempo naquela região, cujas bases fizeram frente ao projeto político
já consolidado pelo sistema do governo federal à época.
O livro finaliza com o Capítulo 10, de Adriane Guimarães, cujo
objetivo é apresentar uma aproximação inicial à concepção grams-
ciana de educação da infância, num estudo inédito e exclusivo a par-
tir das Cartas do cárcere. O recorte para a análise se dá a partir de 165
cartas nas quais Gramsci se refere ao filho Delio e à sobrinha Edmea.
No diálogo de Gramsci com a família, torna-se evidente a tese de que
a constituição humana é histórico-social. A partir dessa concepção,
Gramsci refuta a perspectiva que busca somente na própria criança o

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INTRODUÇÃO

fundamento para a prática educativa. Por conseguinte, Gramsci des-


taca a necessidade do enriquecimento progressivo da infância, para
o qual se faz necessária a ação consciente, intencional, direta, instru-
tiva, “coercitiva” e disciplinar do adulto. Com esse estudo temático
do epistolário do cárcere, por meio de sua análise a autora revela o
potencial analítico desse estilo literário e as contribuições evidentes
para a compreensão do pensamento de Antonio Gramsci.
O convite é para uma leitura atenta às características diversas
das abordagens desses capítulos, que representam os esforços de jo-
vens e veteranos pesquisadores dedicados a compartilhar seus estu-
dos e olhares sobre realidades políticas e educacionais, a partir do
enorme potencial das contribuições do pensamento e da práxis de
Antonio Gramsci. Voltando à epígrafe desta Introdução, o exercício
proposto neste livro é o de contribuir com os leitores para que pos-
sam “elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira cons-
ciente e crítica”, agora em diálogo com as reflexões aqui apresentadas.

Referências
gramsci, A. Cadernos do cárcere. v. 1. Ed. e trad. Carlos Nelson Coutinho; coed.
Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 1999.
______. Cadernos do cárcere. v. 3. Ed. e trad. Carlos Nelson Coutinho; coed. Luiz
Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2007.
liguori, Guido; voza, Pasquale (Orgs.). Dicionário gramsciano (1926-1937). 1. ed.
Trad. Ana Maria Chiarini, Diego Silveira Coelho Ferreira, Leandro de Oliveira Ca-
lastri e Silvia de Bernardinis. Revisão técnica Marco Aurélio Nogueira. São Paulo:
Boitempo, 2017.

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CAPÍTULO 1
D a “ marcha da universalidade ” à
integral emancipação do homem

Gianni Fresu

“A Comuna quer abolir a propriedade de classe, o que torna o trabalho


de muitos a riqueza de poucos [...]. A classe trabalhadora não tem ideais para
alcançar, mas para libertar os elementos da nova sociedade da qual a velha e
decadente sociedade burguesa está grávida”.

(Karl Marx, A guerra civil na França1)

Introdução
Desde o seu aparecimento na cena política mundial, o movi-
mento socialista alicerçou sua perspectiva de radical transformação
da sociedade no princípio de integral emancipação humana, isto é,
não apenas reforma política, mas radical mudança econômico-so-
cial.2 Nesse marco se insere a ideia de “reforma intelectual e moral”
em Gramsci, entendida não apenas como a abolição das contradições
sociais que impedem a igualdade efetiva entre os homens, mas como
a subversão da hierarquia que divide a humanidade em dirigentes e
dirigidos, contrapondo as funções intelectuais às instrumentais.3 Essa
fratura nada tem de natural, mas é o resultado de um longo processo

1 marx, K. “Sulla Comune di Parigi”. In: Musto, M. (Org.). Lavoratori di tutto il mondo uni-
tevi! Risoluzioni, Discorsi, e documenti. Donzelli, Roma, 2014, p. 172. Traduzi ao português
todas as citações de textos italianos.
2 Tratei desse tema nessa publicação: “De Marx a Gramsci: Educação, relações pro-
dutivas e hierarquia social”. In: schlesener, A. H.; oliveira, A. L.; almeida, T.
M. G. (Orgs.). A atualidade da filosofia da práxis e políticas educacionais. Curitiba:
Universidade Tuiuti do Paraná, 2018. p. 19-62.
3 A respeito desse tema, sugiro a leitura de um recente aprofundamento: frosi-
ni, F. “Egemonia borghese ed hegemonia proletaria nei Quaderni del carcere: Una
proposta di riconsiderazione”. In: Francioni, G; Giasi, F. (Orgs.). Un nuovo Grams-
ci. Roma: Viella, 2020. p. 279-300.

17
Gianni Fresu

de divisão e especialização do trabalho funcional em certas relações


sociais proprietárias. No Caderno 22, Gramsci explica como, ao lon-
go da história, o homem foi moldado de acordo com as necessidades
produtivas: a progressiva desumanização do trabalho industrial mo-
derno faz do homem uma mercadoria, uma prótese da máquina. Isso
atinge seu auge na organização taylorista, que visa transformar o ho-
mem em um “gorila treinado”, eliminando qualquer forma de parti-
cipação ativa e criativa do trabalhador no processo produtivo. Entre-
tanto, segundo Gramsci, embora a alienação do trabalho transforme
o produtor em escravo do produto, essa operação não chega ao ponto
de criar uma “segunda natureza humana”.4 Ou seja, na dialética entre
o “gorila treinado” e o “homem filósofo”, é este último que prevalece.
Segundo Gramsci, a natureza dos seres humanos é intrinsecamente
intelectual, cada indivíduo contribui para fortalecer ou questionar
certas visões de mundo, independentemente da natureza de seu tra-
balho. Todavia, os subalternos acabam sendo veículos de visões de
mundo episódicas e fragmentadas por um conjunto de fatores: a
hegemonia cultural das classes dominantes; a sobrevivência de con-
cepções arcaicas e supersticiosas na cultura popular; e o condiciona-
mento do ambiente social em que nascemos. Portanto, o problema
é libertar os “simples” dessa conjunção de heterodireções que impe-
dem a subjetividade autônoma, a independência e a autossuficiência
das massas populares. É por isso que Gramsci recorre à ideia sorelia-
na de “espírito de cisão”, ou seja, um processo de autodeterminação
material e espiritual dos subordinados capaz de levá-los à elaboração
de sua própria visão crítica e coerente do mundo, emancipada dos
condicionamentos e da interdição das classes dominantes.5 No Ca-
derno 11, ele escreve: “É preciso destruir o preconceito generalizado

4 gramsci, A. Quaderni del carcere. Turim: Einaudi, 1975, p. 2160-2164.


5 “O princípio da intransigência soma-se àquele da distinção do restante do corpo social;
implica separação, destaque das outras expressões da sociedade, das outras classes. Intran-
sigência e distinção são necessariamente correlatas. ‘Distinguir-se’, ‘isolar-se’: essas são as
máximas comportamentais que Gramsci faz descender das normas da intransigência. Aqui
se abre a perspectiva que visa Sorel (embora, na verdade, Gramsci faz referência também
a Giordano Bruno)”. rapone, L. “Gramsci e il movimento internazionale prima del comu-
nismo”. In: capuzzo, P; pons, S. (Orgs.). Gramsci nel movimento comunista internazionale.
Roma: Carocci, 2019, p. 13.

18
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

de que a filosofia é algo muito difícil porque é a atividade intelectual


própria de uma determinada categoria de cientistas especializados
ou de filósofos profissionais sistemáticos”.6 Refletindo em torno des-
ses temas, Mario Alighiero Manacorda escreveu que, no pensamento
de Gramsci, a questão dos intelectuais assume centralidade absoluta
na relação pedagógico-política, por meio da qual o Estado (socie-
dade política + sociedade civil) educa o consenso, difundindo uma
determinada visão do mundo que, então, cria uma consciência cole-
tiva homogênea: “Os intelectuais são o instrumento da supremacia
que em cada sociedade a classe dominante exerce sobre as classes
subalternas, que Gramsci define também como direção intelectual
e moral, ou, muitas vezes e mais sinteticamente, como hegemonia”.7
Apresentar o conhecimento, a filosofia e a política como as-
suntos demasiado complicados e inacessíveis para os simples tem,
segundo Gramsci, uma função operacional bem definida: colocar a
necessidade imperativa de uma casta encarregada de administrar as
funções intelectuais, em todas as suas dimensões, capaz de tornar
intransponíveis a fronteira entre trabalho manual e intelectual e, por-
tanto, a condição de subordinação das massas populares. Por todas
essas razões, Gramsci elabora a ideia do intelectual orgânico e pensa
na produção como uma nova sede de soberania política. Assim, em
sua visão, o “moderno Príncipe” (o partido político dos trabalhado-
res) não deve ser um órgão externo à classe, dirigido por especialistas
em política (por intelectuais puros, talvez de origem burguesa). O
partido deve fazer parte dessa classe, não simplesmente represen-
tá-la, mas ser composto e dirigido por seus membros. A conquista
de uma consciência crítica que transforme grupos subordinados em
sujeitos históricos autoconscientes é, para Gramsci, possível apenas
através da subversão dos “velhos padrões naturalistas” da arte políti-

6 Ibid., p. 1375.
7 MANACORDA, Mario Alighiero.Il principio educativo in Gramsci.. Roma: Edito-
ri Riuniti University Press, 2012, p. 26.

19
Gianni Fresu

ca, com o abandono completo de uma forma dualista de entender a


relação entre a liderança política e as massas.8
No pleno desenvolvimento do “biênio vermelho”, Gramsci
escreveu que, na fábrica, o operário torna-se um “determinado ins-
trumento da produção”, essencial no processo produtivo e de traba-
lho, uma engrenagem na máquina-divisão do trabalho, sem a qual a
produção e a própria acumulação capitalista não podem existir. Se o
operário adquire consciência desse seu papel determinado e o coloca
na base de uma instituição representativa de tipo estatal, lança as ba-
ses de uma estrutura de Estado radicalmente nova que surge e reside
permanentemente na produção. Adquirindo consciência de sua uni-
dade orgânica e construindo suas instituições representativas de tipo
estatal, a classe operária realiza a expropriação do primeiro e mais
importante fator da produção capitalista: a própria classe operária.9
Uma concepção retomada recentemente pelo ex-vice-presidente da
Bolívia, Álvaro García Linera, a meu ver atualmente uma das figu-
ras intelectuais mais interessantes da América Latina no campo do
marxismo, que localiza justamente nessa autodeterminação material
e espiritual a premissa da nova ordem social:

Entretanto, sobre essas condições materiais de realidade do operário moderno


existe outra possibilidade material: que o operário vá rompendo essas cadeias es-
calonadas de submissão; primeiro, individualmente, diante do patrão, o capitalista
individual, o que supõe a erosão das complacências com os medos internos, o des-
gosto com o abuso, a recuperação de uma dignidade humana enterrada atrás da
docilidade barganhada. Esse é o início de uma série escalonada de ruptura com o

8 “A pesquisa de Gramsci está voltada para a análise das formas particulares de hegemonia
burguesa com a clara finalidade de encontrar o caminho para a construção da hegemonia
operária. Daí o seu interesse pela cultura e a história das classes subalternas, não para louvá-
-las, mas para encontrar fragmentos de rebeldia e antagonismo ao poder político-econômi-
co estabelecido e para incorporar essa experiência na frente única anticapitalista. Da rebel-
dia ‘espontânea’ das massas é que se deve partir para a construção de uma nova hegemonia,
mas na passagem de um extremo ao outro — da opressão que fundamenta a rebeldia até a
nova hegemonia operária e socialista — o caminho é longo e muitas são as mediações”. del
roio, M. Gramsci e os subalternos. São Paulo: Editora Unesp, 2018, p. 166.
9 gramsci, A. L’Ordine Nuovo (1919-1929). Turim: Einaudi, 1954, p. 537.

20
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

antigo ser, portanto de antagonismo com as disposições do capital, que dará início
à constituição do operário em classe por afirmação própria.10

Além da reforma política


O processo de libertação dos grilhões que condenam as massas
popular à exploração e à subalternidade, já no momento da luta para
a afirmação e o reconhecimento, assume um conteúdo pedagógico e
progressivo, como também reconheceu o filósofo liberal Benedetto
Croce, um irredutível adversário do socialismo:

O socialismo [...] é uma forma de ascensão e um impulso dado à ascensão daque-


les estratos sociais, daquelas multidões, que permaneceram, na vida pública, mais
passivos que ativos; e, como movimento de ascensão, é social e não antissocial, his-
tórico e não anti-histórico, e por isso não pode ser reprimido e domesticado, quase
como se fosse impulso bestial, com a marca da violência, nem acalmar e curar com
caridade e beneficência, quase enfermidade. E, como essa ascensão significa que o
número de cidadãos participantes e solicitantes de assuntos públicos deve crescer,
e a classe dominante deve ser vitalizada e enriquecida com novos homens, novas
paixões e novas habilidades, o socialismo tem um caráter altamente político.11

O movimento em favor da integral emancipação humana pode


ser considerado um desenvolvimento das lutas para progressiva afir-
mação da universal dignidade humana rumo à superação das con-
tradições sociais que, de fato, impedem a efetiva igualdade formal
dos cidadãos. A premissa dessa transição (que levou a localizar na
questão social a suma das contradições que determina a desigual-
dade entre os homens) encontra-se primeiramente na obra de Rou-
sseau, mas acha um seu ponto fundamental de desdobramento em
A questão judaica, escrito juvenil de Karl Marx. Segundo o filósofo
de Trier, a afirmação dos princípios dos direitos humanos, caraterís-

10 linera, A. G. A potência plebeia: Ação coletiva e identidades indígenas, operárias e


populares na Bolívia. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 82.
11 croce, B. Storia d’Europa nel secolo decimonono. Bari: Laterza, 1965, p. 261.

21
Gianni Fresu

ticos das revoluções burguesas, foi um grande progresso na história


da humanidade. Todavia, ele sublinhou a natureza puramente formal
dos conceitos de liberdade e igualdade.12 A questão social mostrou
a contradição entre duas concepções de justiça: a igualdade formal,
dos cidadãos diante da lei; e a igualdade substancial, pela qual a per-
manência do privilégio e das profundas diferenças econômico-so-
ciais são limites insuperáveis para a efetiva possibilidade de exercer
o primeiro direito. Assim, Marx escreveu que, dentro das relações
burguesas, nenhum dos direitos fundamentais vai além do homem
egoísta, do homem enquanto membro da sociedade civil, ou seja, do
indivíduo dobrado sobre si mesmo, na sua dimensão privada e indi-
vidual inacessível ao poder público. Na visão clássica da filosofia li-
beral, essa prerrogativa se define por meio do conceito de “liberdade
negativa”, em razão da qual o problema principal das relações políti-
cas é restringir o poder do Estado, através de uma estrutura consti-
tucional que freie a sua tendência expansionista, limitando a esfera
da sua intervenção ao mínimo possível para deixar todo o restante
à iniciativa privada: a visão do Estado gendarme que vigia os equi-
líbrios espontâneos gerados pelo mercado. A liberdade se configura
como direito de fazer e empreender tudo aquilo que não prejudique
os outros. O direito do homem à liberdade não é fundado sobre a
união do homem com o homem, mas baseia-se na separação do ho-
mem em relação ao seu semelhante. Assim, a liberdade é o direito do
indivíduo delimitado, limitado a si mesmo.

Longe de conceber o homem como um ser genérico, estes direitos, pelo contrário,
fazem da própria vida genérica, da sociedade, um marco exterior aos indivíduos,
uma limitação de sua independência primitiva. O único nexo que os mantém em

12 Relatando sobre esse escrito do jovem Marx, e comentando a questão social não atingida
pela reforma política, Cingoli escreve: “o Estado declara suprimida politicamente a proprie-
dade privada, não apenas abole o censo, isto é, no momento em que não é mais necessário
um mínimo de riqueza para votar; mas isso não elimina em nada a enorme desigualdade
entre ricos e pobres na sociedade civil. Mas, em geral, o Estado tira ‘à sua maneira’ todas as
diferenças, que todavia permanecem na sociedade civil: portanto, nela deve-se agir”. cingo-
li, M. “La formazione del pensiero politico di Marx (1835-43)”, In: petrucciani, S. (Org.).
Il pensiero di Karl Marx: Filosofia, politica, economia. Roma: Carocci, 2018, p. 33.

22
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

coesão é a necessidade natural, a necessidade e o interesse particular, a conserva-


ção de suas propriedades e de suas individualidades opostas.13

Os chamados direitos humanos nada mais são do que direitos


do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta e sepa-
rado da comunidade. A dimensão prática da liberdade do homem
é o direito à propriedade privada, que assim é definido por Marx,
comentando o artigo 16 da Constituição de 1793:

O direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar de


seu patrimônio e dele dispor arbitrariamente, sem atender aos demais homens,
independentemente da sociedade, é o direito do interesse pessoal. A liberdade
individual e esta aplicação sua constituem o fundamento da sociedade burguesa.
Sociedade que faz com que todo homem encontre nos outros homens não a reali-
zação de sua liberdade, mas pelo contrário, a limitação desta.14

A simples emancipação política (horizonte em que se situa o


pensamento de Bauer, criticado por Marx) não questiona minima-
mente esse quadro geral do direito do homem egoísta, ou seja, do ho-
mem burguês, mas, pelo contrário, fortalece sua dimensão separada
que impede a efetiva e integral emancipação humana.

Mas este fato torna-se ainda mais estranho quando verificamos que os emancipa-
dores políticos rebaixam até mesmo a cidadania, a comunidade política ao papel
de simples meio para a conservação dos chamados direitos humanos; que, por
conseguinte, o citoyen é declarado servo do homem egoísta: degrada-se a esfera
comunitária em que atua o homem em detrimento da esfera em que o homem atua
como ser parcial; que, finalmente, não se considera como homem verdadeiro e
autêntico o homem enquanto cidadão, senão enquanto burguês.15

13 marx, K. A questão judaica. São Paulo: Moraes, 1991, p. 45.


14 Ibid., p. 43.
15 Ibid., p. 45.

23
Gianni Fresu

No quadro da declaração de 1793, e do mesmo Bauer, a vida


política acaba sendo meramente um instrumento que tem por tarefa
e fim a vida e a defesa da sociedade civil. Na afirmação histórica da
burguesia, a emancipação política é ao mesmo tempo a dissolução
da velha sociedade aristocrático-feudal, acima da qual se elevava o
poder absoluto do monarca. A revolução política é a revolução da so-
ciedade civil, que afirma a sua esfera de autonomia do poder político
esvaziando a antiga articulação corporativa da sociedade civil feudal
da sua função política. A afirmação da sociedade burguesa repre-
senta uma profunda revolução econômica, social e política. Assim, a
constituição do Estado político e a dissolução da sociedade civil na
dimensão independente da individualidade, garantida pelo direito,
acontecem no mesmo momento e em um único ato. Trata-se clara-
mente de uma mudança radical, determinada por exigências racio-
nais e interesses da nova classe surgida da decomposição da socieda-
de feudal. Todavia, o homem independente da sociedade civil (uma
absoluta novidade) é apresentado como homem natural e os direitos
humanos (mesmo inéditos) são definidos como direitos naturais. É
exatamente essa separação que antepõe o interesse particular, acima
do qual se articulam as relações sociais, jurídicas, institucionais e as
representações filosóficas, que impede a emancipação humana.

A emancipação é a redução do homem de um lado, a membro da sociedade


burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão do Estado, a
pessoa moral. Somente quando o homem real recupera em si o cidadão abstrato e
se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual
e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e
organizado suas próprias forças como forças sociais e quando, portanto, já não se
separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa
a emancipação humana.16

16 Ibid., p. 52.

24
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

A transição do mundo moderno


Nos seus estudos, Gramsci localizou em Hegel a primeira con-
ceitualização filosófica da mudança histórica marcada pela afirma-
ção do “Estado ético” e pelo prevalecimento do conceito de universal
dignidade humana em contradição com o particularismo da velha
sociedade aristocrático-feudal. Losurdo nos explica a relevância da
filosofia de Hegel para entender racionalmente a Revolução Fran-
cesa — como negação dialética da velha sociedade em agonia — e
suas heranças no devir da humanidade. Hegel soube reconhecer a
história mundial como um processo unitário e dialético no qual as
transformações não são dominadas por inacessíveis leis divinas ou
naturais, sendo antes a consequência do estrito entrelaçamento de
contradições objetivas e subjetivas geradas no corpo mesmo do te-
cido social abalado pelo conflito. A história da revolução filosófica
alemã é a afirmação dos princípios da razão em todos os campos,
a transcrição teórica do desenvolvimento histórico do mundo mo-
derno, daquele progresso da liberdade que encontrou na Revolução
Francesa um autêntico divisor de águas.
A história universal é um produto da razão eterna — e a razão
determinou suas grandes revoluções, tanto do mundo como dos in-
divíduos; ela é a objetivação processual da emancipação humana na
longa marcha da universalidade, da qual Hegel teve consciência e à
qual ele deu forma filosófica e fundamentos gnosiológicos. Até 1789,
as revoluções que marcam o advento do mundo moderno são acom-
panhadas por um debate teológico-político que envolve grandes teó-
ricos como Hobbes, Spinoza e Locke. Este último, em particular, com
os dois tratados sobre o governo, foi o pensador que mais acompa-
nhou, no plano filosófico-político, a vitória da segunda revolução in-
glesa.17 Também nele, a ideia da igualdade entre os homens encontra
uma legitimação religiosa no fato de que eles seriam todos produtos
da criação divina. O processo de secularização, a passagem da teolo-
gia à ciência política, ainda não se tinha desenvolvido suficientemen-
te na época da revolução estadunidense, que continua a fazer refe-

17 losurdo, D. L’ipocondria dell’impolitico: La critica di Hegel di ieri e di oggi. Lecce: Mi-


lella, 2001, p. 35.

25
Gianni Fresu

rência explícita ao “Criador” e à lei “divina”, além da “natural”, e que,


de qualquer modo, considerando como “de per si mesmas evidentes”
as “verdades” a que se refere, procura evitar o debate explicitamente
filosófico, epistemológico-político, que, ao contrário, se torna cen-
tral com a Revolução Francesa. A universal dignidade humana, nesse
caso, é afirmada em si e para si, sem precisar de alguma legitimação
teológica ou de elos de descendência com a criação divina.18
Além de Hegel, o filósofo italiano Benedetto Croce foi o inte-
lectual que com maior consciência e organicidade aprofundou essa
intuição. Não por acaso, Gramsci o definiu como o maior estudioso
da hegemonia na filosofia italiana.19 Num ensaio intitulado “La po-
litica in nuce”, editado em 1924 na revista de história e filosofia La
Critica, por ele fundada e dirigida, Benedetto Croce escreveu que a
política se articula através de dois termos fundamentais estritamente
conexos: força e consenso, correspondentes ao binômio autoridade/
liberdade. O consenso é um elemento decisivo para explicar as for-
mas de articulação do poder político, pois não existe (na antiguidade
como na modernidade) relação política sem conexão com a questão
do consenso. Gramsci escreveu que a obra do filósofo liberal tem um
mérito: encaminhou o interesse científico para o estudo dos elemen-
tos culturais e filosóficos como partes integrantes das ordens de do-
mínio de uma sociedade. Isso favoreceu a compreensão do papel dos
intelectuais na vida dos Estados e na construção da hegemonia e do
consenso, ou seja, na edificação do “bloco histórico concreto”. Mas,
em geral, o protagonista dessa mudança na ciência política é Hegel,
que traduziu conceitualmente a transição histórica do estado patri-
monial, o Estado de castas do ancien régime, ao Estado ético.
Hegel interpretou a história como um processo dialético de
mudança, entre dominantes e dominados, que envolvia indivíduos
e povos. Ele afirmou a natureza racional da história, definindo os

18 Ibid., p. 36.
19 Para aprofundar a importância da filosofia de Benedetto Croce para o desenvolvimento
crítico do pensamento de Gramsci, sugiro a leitura do ótimo trabalho recentemente orga-
nizado por Fabio Frosini: gramsci, A. La “Storia d’Europa” di Benedetto Croce e il fascismo.
Org. F. Frosini. Milão: Unicopli, 2019.

26
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

conceitos historicamente determinados de liberdade e universal dig-


nidade humana que encontraram a própria objetivação no moderno
Estado constitucional.20 Através dessa visão filosófica, Hegel tentou
explicar historicamente as razões das grandes transformações do seu
tempo, que progressivamente levaram a Europa a mudar as velhas
instituições aristocrático-feudais e as antigas relações sociais de pro-
dução corporativas.
Na nova dimensão da vida social, o comportamento dos cida-
dãos é determinado consensualmente pela espontânea adesão à dou-
trina ética dos deveres, isto é, através do convencimento, não apenas
da força. “Na eticidade hegeliana”, escreveu Losurdo, “há o pathos da
razão, da universalidade: ‘A razão deve ser o elemento dominante, e
é assim num Estado desenvolvido’”.21 Isso significa que um Estado
moderno só pode afirmar-se por meio de uma eticidade evoluída.
As instituições devem basear-se nos princípios da racionalidade e o
direito deve aumentar a garantia da liberdade e não a sua limitação
forçada. Isto é, o comportamento dos cidadãos deve inspirar-se con-
sensualmente e livremente (não apenas por meio do constrangimen-
to) nos valores éticos comuns da própria sociedade, que encontram
no moderno Estado constitucional e no direito sua dimensão mais
elevada e universal.22

20 Segundo Rawls, a afirmação do Estado constitucional, e, portanto, do liberalismo, colo-


ca pela primeira vez e com sucesso na história o problema da unidade na diversidade, ou
seja, a existência de uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais divididos por
doutrinas religiosas, filosóficas e morais “razoáveis”. O sucesso do constitucionalismo liberal
tornou possível a afirmação de sociedades plurais, estáveis e razoavelmente harmoniosas,
dando um fundamento ético para a prática pacífica da tolerância. Uma novidade histórica
absoluta. Rawls, J. “Giustizia come equità”. In: veca, S. (Org.). Giustizia e liberalismo politico,
Milão: Edizioni di Comunità, 1994, p. 28-35.
21 losurdo, D. Hegel e a liberdade dos modernos. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 338-339.
22 Isaiah Berlin localiza nessa mudança a origem das modernas sociedades liberais, alicer-
çadas na ideia de pluralismo dos valores. Nelas, os valores que inspiram a vida dos seres
humanos são não apenas muitos e diversificados, mas, em vários casos, inconciliáveis e até
incompatíveis, tanto ao nível das culturas gerais, quanto em relação aos valores de uma mes-
ma cultura ou pessoa. Seria característico das grandes religiões e das ideologias monistas
achar que existe apenas um jeito correto de viver, uma só estrutura de valores de verdade, ou
seja, afirmar, de forma fanática e indiscutível, a unicidade de uma tese que inevitavelmente
desemboca na perseguição dos valores críticos ou não homologados. O pluralismo seria o
único antídoto ao fundamentalismo, uma fonte perene de liberalismo e de tolerância que

27
Gianni Fresu

Estado ético e opinião pública


A transição do velho ao novo, que mudou radicalmente a fun-
ção histórica do Estado e as suas formas de relacionamento com o
povo e aquelas do povo com o Estado, encontrou na centralidade da
opinião pública o novo alvo cultural e político das instituições. Isso
aconteceu na véspera da queda dos Estados absolutos, caracterizada
pela luta da nova classe burguesa pela hegemonia política e pela con-
quista do poder.23
Essa grande mudança, e portanto a transformação do vínculo
comando/obediência, abre historicamente um mundo novo à ciência
e à filosofia política modernas.24 Tendo bem clara essa premissa, John
Rawls escreveu que uma sociedade política, assim como cada agente
racional (indivíduo, família, associação), tem uma modalidade por
meio da qual formula os seus planos e uma ordem entre as priori-
dades dos seus fins, em razão das quais assume as próprias decisões.
A atuação de tudo isso representa sua razão, o poder moral e inte-
lectual cujas raízes se encontram na capacidade de seus membros
humanos. Todavia, nem todas as razões são públicas. Nos regimes
aristocráticos e autocráticos, por exemplo, o conceito do bem não
pertence ao público, mas aos governantes (sejam eles um déspota,
uma casta social ou um sacerdócio). A razão pública é característica
dos povos democráticos: é a razão dos cidadãos, dos que têm em co-
mum o status de cidadania (livre e igual). O objeto da razão deles é o
bem público, o que a concepção política de justiça precisa a respeito
da estrutura institucional da sociedade, dos escopos e dos fins que
devem animar a vida social dos cidadãos. Rawls fala de razão pública

nunca pretende de apagar as outras visões do mundo por ter vieses alternativos aos nossos
convencimentos mais profundos. Berlin, I. Libertà. Milão: Feltrinelli, 2002, p. 56-96.
23 gramsci, A. Quaderni del carcere, op. cit., p. 914-15.
24 Para utilizar uma definição concisa e eficaz de Salvatore Veca: “Diríamos então que o
propósito de uma teoria de justiça é a justificação ética das instituições fundamentais que
moldam uma forma estável e duradoura de vida coletiva. Isso é verdade, quer nossa concep-
ção de justiça seja utilitária ou contratualista, libertária ou comunitária. Se uma sociedade é
uma sociedade justa é a questão que a teoria é chamada a responder, definindo os critérios
de justificação e oferecendo-os para serem compartilhados pelos cidadãos dessa sociedade”.
veca, S. “Introduzione”. In: ______ (Org.). Giustizia e liberalismo politico. Milão: Feltrinelli,
1996, p. 5.

28
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

em três sentidos: 1) como razão dos cidadãos enquanto tais; 2) como


razão sujeita ao bem público e à justiça fundamental; 3) como razão
pública na natureza e no conteúdo (ideais e valores próprios da con-
cepção que a sociedade tem da justiça). A razão pública, como ideia
do bem que inspira e orienta o comportamento dos cidadãos numa
sociedade democrática, não é questão reconduzível à dimensão nor-
mativa ou coercitiva, mas à esfera da adesão espontânea, voluntária,
consciente e consensual.25
Na Filosofia do direito, Hegel escreveu que umas das conse-
quências mais significativas do desenvolvimento dos Estados moder-
nos, até a afirmação do sistema representativo-parlamentar, reside
na importância da participação dos cidadãos (mediada pelos órgãos
intermédios) nas escolhas fundamentais da vida política e, portanto,
na centralidade da opinião pública, que, pelo contrário, não encon-
tramos na sociedade de camadas fechadas do antigo regime.26 A li-
berdade formal e subjetiva, por meio da qual os cidadãos exprimem
as próprias avaliações, opiniões e conselhos sobre as questões gerais
da vida pública, tem o seu fenômeno no que se chama de opinião
pública. A opinião pública que junta o particular com o universal
gera um “senso comum” onde, todavia, podem conviver elementos
contrastantes e negativos. A opinião pública contém contraditoria-
mente em si tanto o bom senso, ou seja, o conteúdo do verdadeiro
e do justo tornado fundamento ético dos nossos comportamentos,
quanto o lado da subjetividade unilateral, que, interiorizando na
consciência individual as grandes questões da política, pode gerar
uma visão parcial ou errada das coisas. A opinião é talvez determi-
nada pelas nossas autênticas necessidades, mas de forma contingente
e acidental, influenciada pela ignorância, que inclusive pode ser afe-
tada pela manipulação e pelas mentiras transformadas em verdade,
levando à interpretação limitada ou equivocada da realidade. A opi-
nião pública, portanto, tem um valor bivalente cujo dado negativo
reside na excessiva propensão subjetiva e na ausência de universali-

25 rawls, J. Il liberalismo politico. Turim: Einaudi, 2005, pp. 193-230.


26 hegel, G. W. F. Linhas fundamentais da filosofia do direito, ou Direito natural e ciência do
estado em compêndio. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009, p. 290.

29
Gianni Fresu

dade, porque não consegue suprassumir-se numa dimensão dialética


mais avançada, ficando travada na unilateralidade da afirmação ou
da negação primitiva:

Visto que se trata aí da consciência da peculiaridade da maneira de ver e do conhe-


cimento, assim é uma opinião tanto mais própria quanto pior é seu conteúdo; pois
o mau é o que é totalmente particular e próprio em seu conteúdo, ao contrário, o
racional é o universal em si e para si, e o próprio é aquilo sobre o qual o opinar se
imagina algo.27

A centralidade da opinião pública na sociedade pós-feudal


capturou também a atenção de uma obra famosa como A democracia
na América. Todavia, Alexis de Tocqueville, falando dessa absoluta
novidade das modernas realidades liberais, sublinhou a sua permea-
bilidade e o perigo do tendencial conformismo conservador. Exata-
mente a legitimação popular das suas relações de força pode condu-
zir até dimensões de despotismo bem mais sofisticadas e eficazes do
que aquelas dos velhos regimes absolutos. Como sabemos, nas suas
considerações sobre o perigo da tirania das maiorias, Tocqueville
contestou não a fraqueza, mas, ao contrário, a força irresistível do
governo democrático, em que o verdadeiro dominus fica na opinião
pública: “o que me repugna não é a extrema liberdade, mas as poucas
garantias contra a tirania”.28
Sendo intérprete dos valores de fundo ou dominantes de uma
sociedade, a maioria define as coordenadas do pensamento, da arte,
da cultura e da ciência, marginalizando ou expulsando os pensamen-
tos críticos e também quem simplesmente não adere à sua visão do
mundo. A maioria intervém sistematicamente sobre a opinião públi-
ca com a tarefa de moldar a sociedade à sua imagem e semelhança de
modo a evitar preventivamente o surgimento de posições críticas, ou
seja, limitando os espaços de legitimidade para o dissenso e a opo-

27 Ibid., p. 291.
28 tocqueville, A. A democracia na América. v. 1. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 296.

30
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

sição aos valores prevalentes e consolidados. Tudo isso determina o


conformismo e a obediência acrítica, agindo não tanto sobre o efeti-
vo convencimento, mas sobre a propensão conformista dos cidadãos.
As opiniões se formam e consolidam sendo passivamente transmiti-
das pelo ambiente social onde o indivíduo está inserido. Desse modo,
a liberdade não é mais consciência crítica, independência moral e
participação eticamente ativa, mas simples exercício de direitos que
garantem a nossa tranquilidade e prosperidade econômica.29
Segundo Tocqueville, nas modernas sociedades democráti-
cas o exercício do pensamento, se crítico das opiniões prevalentes,
pode achar até menos espaço do que nas velhas monarquias absolu-
tas porque, agindo sobre a opinião pública para condicionar as suas
posições, quem controla o poder dispõe agora de instrumentos bem
mais eficazes que a força tradicional dos Estados. Os velhos regimes
objetivavam a violência e, assim, para chegar à alma, endereçavam
brutalmente as próprias atenções ao corpo. Nas modernas democra-
cias, as formas da repressão tornam-se intelectuais, dirigindo-se ci-
rurgicamente à vontade que se quer constranger. A República “deixa
o corpo e vai diretamente à alma”:

Em nossos dias, os soberanos mais absolutos da Europa não seriam capazes de


impedir que certos pensamentos hostis à sua autoridade circulassem surdamente
em seus Estados e até mesmo no seio de suas cortes. A razão disso é simples: não há
monarca tão absoluto que possa reunir em suas mãos todas as forças da sociedade
e vencer as resistências, como pode fazê-lo uma maioria investida do direito de
fazer as leis e executá-las. [...]. A maioria traça um círculo formidável em torno do
pensamento. Dentro deste limite, o escritor é livre; mas ai dele, se ousar sair! Não
que deva temer um auto-de-fé, mas vê-se diante dos desgostos de todo o tipo e de
persecuções cotidianas. A carreira política lhe é vedada: ele ofendeu o único poder
que tem a faculdade de abri-la. Recusam-lhe tudo, até a glória. Antes de publicar
suas opiniões, pensava ter partidários; parece-lhe não os ter mais, agora que se
revelou a todos, porque aqueles que o criticam se exprimem em alta voz e os que
pensam como ele, sem ter sua coragem, calam-se e afastam-se. Ele cede, dobra-se

29 Ibid., p. 290.

31
Gianni Fresu

enfim sob o esforço de cada dia e entra no silêncio, como se sentisse remorso por
ter dito a verdade. Grilhões e carrascos são instrumentos grosseiros, que a tirania
empregava outrora; mas em nossos dias a civilização aperfeiçoou até o próprio
despotismo, que parecia, contudo, nada mais ter a aprender.30

O problema do conformismo das opiniões, e, portanto, do


constrangimento forçado da opinião pública, também foi alvo das
reflexões de outro filósofo liberal, John Stuart Mill. Segundo ele, na
sociedade moderna, onde os indivíduos são perdidos na multidão, o
principal inimigo não é mais (apenas) a legislação coercitiva, mas o
condicionamento do senso comum pela opinião pública que governa
o mundo. “O homem, e ainda mais a mulher, que pode ser acusado
de fazer o que ninguém faz, ou de não fazer o que todo o mundo
faz, é objeto de comentários depreciativos, como se tivesse cometido
algum delito moral grave”.31 Isso torna a opinião pública intolerante
a qualquer manifestação de individualidade, porque a média geral
da humanidade não é apenas moderada pelo intelecto, mas também
pelas inclinações. As pessoas não têm gostos e desejos desenvolvidos
o bastante para deixá-las livres de fazer algo incomum. Portanto, não
entendem que, pelo contrário, têm essa riqueza, para as quais reser-
vam o desprezo, a humilhação da exclusão do mundo dos homens de
bem. Mill fala então do governo da mediocridade, uma condição de
decadência em que as mensagens que orientam as mentes do povo,
suas escolhas e visões do mundo não são mais dos intelectuais, de
livros que marcam uma época ou dos grandes líderes, mas provêm
de pessoas em cuja mediocridade intelectual o cidadão médio pode
se reconhecer. Questões de incrível atualidade numa época como
a atual, onde as redes sociais e informais amplificaram ainda mais
aquelas tendências degenerativas das opiniões que já ele denunciava.

O único poder que merece esse nome é o das massas e dos governos que se tornam
agentes de propensões e dos instintos das massas. Isso vale nas relações morais e

30 Ibid., pp. 289-90.


31 Mill, J. S. Da liberdade individual e econômica. Barueri: Faro, 2019, p. 95.

32
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

sociais da vida privada e nos negócios públicos. Aqueles cuja opiniões são conhe-
cidas como opinião pública nem sempre são o mesmo tipo de público: nos eua são
toda a população branca; na Inglaterra, são, principalmente, a classe média. Mas
são sempre massas, isto é, uma mediocridade coletiva. E o que é uma novidade
ainda maior: nesse momento, as massas não recebem suas opiniões de dignitários
da Igreja ou do Estado, de pretensos líderes ou livros. O pensamento delas é feito
para elas por homens muito parecidos com elas mesmas, dirigindo-se a elas ou
falando em seu nome impulsivamente por meio de jornais.32

O antídoto contra o governo da mediocridade, quando as opi-


niões de homens meramente comuns se tornarem dominantes, seria
a individualidade cada vez mais ampla dos que se situam nas alturas
mais elevadas do pensamento, aqueles que não se deixam condicio-
nar pela opinião prevalente por mero conformismo e oportunismo.
Como Hegel, também Mill fala de indivíduos excepcionais, cujas fa-
culdades não deveriam ser contidas, mas estimuladas a agir de modo
diferente da opinião pública.

Nesta época, o mero exemplo de inconformidade, a mera recusa a se submeter


ao costume é em si um serviço. Justamente porque a tirania da opinião é tal que
torna a excentricidade motivo de censura, é desejável, para romper a tirania, que
as pessoas sejam excêntricas. A excentricidade sempre sobejou quando e onde a
força de caráter sobejou; e o grau de excentricidade numa sociedade geralmente foi
proporcional ao grau de genialidade, vigor mental e coragem moral nela contidos.
Atualmente, que tão poucos ousem ser excêntricos sinaliza o principal perigo da
época.33

Não existem razões para que toda a existência humana se uni-


formize num único padrão ou num pequeno número de padrões.
Pessoas diferentes também exigem condições diferentes para o seu
desenvolvimento humano, intelectual, espiritual. O que favorece e

32 Ibid., p. 92.
33 Ibid., p. 93.

33
Gianni Fresu

ajuda o crescimento de um pode ser um obstáculo ao desenvolvi-


mento de outrem. O “despotismo do costume” representa um obstá-
culo ao avanço humano, porque se contrapõe àquela disposição da
alma, chamada espírito da liberdade ou do progresso, que empurra o
homem para o melhor.
Segundo Benedetto Croce, a afirmação das constituições libe-
rais e dos sistemas parlamentares representativos foi uma verdadei-
ra revolução, marcando um salto decisivo em termos da difusão das
liberdades fundamentais e dos direitos de cidadania. No entanto, o
exemplo da Itália, onde o Estatuto Albertino34 e os equilíbrios ins-
titucionais liberais e democráticos foram literalmente esmagados
pelo fascismo, mostrou o quanto essas garantias políticas, jurídicas
e constitucionais não eram suficientes em si mesmas para garantir a
defesa das liberdades:

É claro que a mera forma institucional e jurídica, se tem sua importância, não basta
para marcar o grau de liberdade e nem mesmo para garantir a existência real dessa
liberdade, pois existem formas vazias e outras tão pouco ou tão estranhamente
preenchidas que dão origem a um parlamentarismo de aparência [...]. Nem mesmo
o sufrágio mais ou menos amplo ou mesmo universal diz algo sobre a extensão e
a profundidade do liberalismo, já que em alguns casos há sentimentos e costumes
mais liberais e ações liberais em países com sufrágio menos amplo do que em ou-
tros que têm sufrágio muito amplo, já que, como já foi dito, o sufrágio universal é
frequentemente muito caro aos inimigos da liberdade, feudalistas, sacerdotes, reis
e chefes do povo ou aventureiros.35

Retomando um tema presente em Hegel, Tocqueville e Stuart


Mill, Croce deixa claro que a liberdade de um povo depende estrita-
mente da força crítica da opinião pública e da qualidade da sua classe
política, do seu amor pelo seu país, do seu senso de Estado e da cora-

34 O Estatuto Albertino de 1848 foi a Constituição de inspiração liberal em vigor primei-


ramente no Reino da Sardenha e, depois da unificação política de 1861, no Reino da Itália,
até o fascismo.
35 croce, B. Storia dell’Europa nel secolo decimonono, op. cit., p. 246.

34
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

gem dos seus governantes para empreender as inovações necessárias


ao progresso social.

As funções hegemônicas do Estado educador


Como já expliquei, exatamente avaliando as reflexões de Hegel
aqui mencionadas, Gramsci sublinha o quanto a concepção usual de
Estado é errada e limitativa. Uma sociedade moderna avançada tem
formas estratificadas de direção política articuladas em dois níveis: a
“sociedade civil”, que corresponde à função de hegemonia exercida
pela classe dominante sobre a sociedade inteira; a “sociedade políti-
ca”, ou o Estado no sentido mais estrito do domínio direto, incluindo
as funções de comando e “governo jurídico”. A visão tradicional do
Estado permanece presa a esse segundo aspecto do domínio, sem dar
a devida importância ao aparato privado da hegemonia, ou socieda-
de civil. Desse modo, subestimam-se as funções políticas da cultura,
das relações sociais e também econômicas. Sociedade política e so-
ciedade civil não estão separadas e em oposição. A segunda existe em
função da primeira, sustentando-a e alimentando-a. Nesse sentido,
Gramsci retoma o raciocínio de Hegel sobre a opinião pública para
explicar a sua estrita conexão com a questão da hegemonia:

§ 83. Noções enciclopédicas. A opinião pública. O que se chama de “opinião pública”


está estreitamente ligado à hegemonia política, ou seja, é o ponto de contato entre
a “sociedade civil” e a “sociedade política”, entre o consenso e a força. O Estado,
quando quer iniciar uma ação pouco popular, cria preventivamente a opinião
pública adequada, ou seja, organiza e centraliza certos elementos da sociedade
civil. História da “opinião pública”: naturalmente, elementos de opinião pública
sempre existiram, mesmo nas satrapias asiáticas; mas a opinião pública como hoje
se entende nasceu às vésperas da queda dos Estados absolutistas, isto é, no período
de luta da nova classe burguesa pela hegemonia política e pela conquista do poder.
A opinião pública é o conteúdo político da vontade política pública, que poderia
ser discordante: por isto, existe luta pelo monopólio dos órgãos da opinião pública
— jornais, partidos, Parlamento —, de modo que uma só força modele a opinião

35
Gianni Fresu

e, portanto, a vontade política nacional, desagregando os que discordam numa


nuvem de poeira individual e inorgânica.36

O que, acima de tudo, caracterizou a burguesia na sua fase re-


volucionária foi a sua capacidade de incluir outras classes sociais e de
dirigi-las por meio do Estado, isto é, a hegemonia política e social.
Enquanto na época do feudalismo a aristocracia, organizada como
“casta fechada”, não tinha a tarefa da incorporação das outras clas-
ses, a burguesia se revelou muito mais dinâmica e móvel, visando à
assimilação do resto da sociedade ao seu nível econômico e cultu-
ral. Isso mudou profundamente a função do Estado, que se tornou
“educador”, até mesmo por meio da função hegemônica do direito
na sociedade.
Essa importantíssima função encontra na escola e nos tribu-
nais os representantes das atividades fundamentais do Estado, embo-
ra, na realidade, elas não sejam as únicas. Cabe incluir no conceito de
Estado ético também o conjunto das iniciativas privadas que formam
o aparelho da hegemonia política e cultural das classes dominantes.
Portanto, a definição de Estado ético de Hegel é própria da fase na
qual a tendência expansiva da sociedade burguesa parecia ilimitada.
Nela, a natureza universal dos seus valores poderia expressar-se pela
transformação burguesa de todo o gênero humano.

§ 2. O Estado e a concepção do direito. A revolução provocada pela classe burguesa


na concepção do direito e, portanto, na função do Estado consiste especialmente
na vontade de conformismo (logo, eticidade do direito e do Estado). As classes do-
minantes precedentes eram essencialmente conservadoras, no sentido de que não
tendiam a assimilar organicamente as outras classes, ou seja, a ampliar “técnica” e
ideologicamente sua esfera de classe: a concepção de casta fechada. A classe bur-
guesa põe-se a si mesma como um organismo em contínuo movimento, capaz de
absorver toda a sociedade, assimilando-a ao seu nível cultural e econômico; toda a
função do Estado é transformada: o Estado torna-se “educador” etc. De que modo
se verifica uma paralisação e se volta à concepção do Estado como pura força etc.
A classe burguesa está “saturada”: não só não se difunde; mas se desagrega; não

36 gramsci, A. Quaderni del carcere, op. cit., p. 914.

36
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

só não assimila novos elementos, mas desassimila uma parte de si mesma (ou,
pelo menos, as desassimilações são muito mais numerosas do que as assimilações).
Uma classe que se ponha a si mesma como passível de assimilar toda a sociedade e,
ao mesmo tempo, seja realmente capaz de exprimir este processo leva à perfeição
esta concepção do Estado e do direito, a ponto de conceber o fim do Estado e
do direito, tornados inúteis por terem esgotado sua missão e sido absorvidos pela
sociedade civil.37

Historicamente, a burguesia trabalha para tornar homogêneas


(em termos de costumes, moral, senso comum) as classes dirigentes e
criar um conformismo social capaz de consolidar o seu poder através
de uma combinação de força e consenso, domínio mais hegemonia.
Desse modo, consegue arregimentar e dirigir, por meio dos seus pró-
prios esquemas culturais, também as classes dominadas. Cada Esta-
do é ético na medida em que opera para elevar toda a população a
um nível cultural e moral adequado ao desenvolvimento das forças
produtivas e aos interesses das classes dominantes. Todavia, segundo
Gramsci, a efetiva eticidade de um Estado pode realizar-se apenas
alcançando a condição de integral emancipação humana, ou seja,
subvertendo as tradicionais relações passivas entre as classes que
definem a fratura entre dirigentes e dirigidos, trabalho intelectual e
trabalho instrumental — isto é, superando as relações sociais alicer-
çadas na exploração e na dominação do homem sobre o homem.
Nessas notas, é evidente a presença de temas característicos de
A ideologia alemã, publicado pela primeira vez em 1932 em alemão
por iniciativa do Instituto Marx-Engels-Lênin em Moscou, enquanto
a primeira tradução para o russo saiu em 1933. Até pouco tempo
atrás, achava-se que Gramsci não conhecia essa obra, e que essa con-
cordância era apenas o fruto de coincidências conceituais não inte-
riorizadas. Todavia, estudos recentes demonstraram o conhecimento
por parte de Gramsci de algumas partes significativas desse trabalho

37 Ibid., 937.

37
Gianni Fresu

(antes de ser publicado na íntegra), contidas em uma antologia russa


de 1924 dos escritos de Marx e Engels.38
Segundo a Ideologia alemã, no longo processo de desenvolvi-
mento histórico que leva ao Estado ético, a divisão do trabalho tor-
na-se realmente tal apenas a partir do momento em que surge uma
separação entre o trabalho material e o espiritual. É a partir desse
momento que se desenvolve o sistema das representações e a cons-
ciência pode ser imaginada como algo diferente da práxis existente,
do processo de produção da vida material:

A partir desse momento, a consciência pode realmente imaginar ser outra coisa
diferente da consciência da práxis existente, representar algo realmente sem repre-
sentar algo real — a partir de então, a consciência está em condições da filosofia,
da moral etc. “puras”. Mas, mesmo que essa teoria, essa teologia, essa filosofia, essa
moral etc. entrem em contradição com as relações existentes, isto só pode se dar
porque as relações sociais existentes estão em contradição com as forças de pro-
dução existentes — o que, aliás, pode se dar também num determinado círculo
nacional de relações [...].39

Toda a representação da história sempre omitiu a sua base real


ou, no limite, a relegou uma dimensão secundária. Por isso, essa dis-
ciplina tendencialmente vê apenas as ações políticas taumatúrgicas
de monarcas e Estados, as lutas religiosas, as lutas teóricas.40
As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias
dominantes. Por isso, ela é ao mesmo tempo a força material e espi-
ritual dominante, porque não controla apenas os meios de produção
material, mas dispõe também dos meios de produção espiritual. Es-
sas ideias, portanto, sempre fixam a expressão ideal das relações ma-
teriais dominantes, concebidas como ideias que marcam uma idade

38 antonini, F. “Gramsci, il materialismo storico e l’antologia russa del 1924”. Studi Storici,
Roma, v. 59, n. 2, pp. 403-35, 2018.
39 marx, K.; engels, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 35.
40 Ibib, pp. 35-36.

38
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

histórica inteira. Estritamente entrelaçada a essa função especializa-


da de produção, a centralidade da separação entre trabalho espiritual
e material é novamente sublinhada por Marx e Engels:

A divisão do trabalho, que já encontramos acima [...] como uma das forças prin-
cipais da história que se deu até aqui, se expressa também na classe dominante
como divisão entre trabalho espiritual e trabalho material, de maneira que, no
interior dessa classe, uma parte aparece como os pensadores dessa classe, como
seus ideólogos ativos, criadores de conceitos, que fazem da atividade de forma-
ção da ilusão dessa classe sobre si mesma o seu meio principal de subsistência,
enquanto os outros se comportam diante dessas ideias e ilusões de forma mais
passiva e receptiva, pois são, na realidade, os membros ativos dessa classe e têm
menos tempo para formar ilusões e ideias sobre si próprios.41

Marx e Engels investigam, na estrita relação entre teoria e prá-


tica, o nexo que junta as condições materiais de vida do indivíduo e
o seu pensamento, fazendo derivar o segundo das primeiras, embora
essa relação de dependência seja ocultada pela ideologia. Segundo
Marx e Engels, na filosofia clássica alemã a relação entre os fatos ma-
teriais e as ideias é representada de maneira invertida, como no inte-
rior de uma câmara obscura, como um homem que caminha sobre
a cabeça.

Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da
terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou
representam, tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para,
a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente
ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento
dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida [...]. Não é a consciência
que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. No primeiro modo
de considerar as coisas, parte-se da consciência como do indivíduo vivo; no segun-

41 Ibid., pp. 47-48.

39
Gianni Fresu

do, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se
considera a consciência apenas como sua consciência.42

Nessa operação que reverte a realidade e as relações entre


causas e efeitos, podemos reconhecer o fundamento ideológico do
pensamento que afirma a sua autonomia e independência. Marx
e Engels descrevem a “falsa consciência”, seja como visão parcial e
fragmentária da realidade (por falta de conhecimento), seja como
representação ideológica onde a tendência a manipular e mistificar
a realidade assume um papel político decisivo, apresentando os inte-
resses específicos de uma classe como interesse geral da sociedade.
Um conhecimento abstrato, formal, que tem a tarefa de legitimar o
status quo social, escondendo a realidade das relações sociais que o
determinam. Isso seria o resultado necessário daquele processo de
alienação, separação e cisão do homem da sua atividade material e,
portanto, da realidade social. Mas a função da ideologia se torna fun-
damental também em relação ao conceito de classe universal ou geral
que concede o poder à velha classe dominante.

Realmente, toda nova classe que toma o lugar de outra que dominava anterior-
mente é obrigada, para atingir seus fins, a apresentar seu interesse como o interesse
comum de todos os membros da sociedade, quer dizer, expresso de forma ideal:
é obrigada a dar às suas ideias a forma da universalidade, a apresentá-las como
as únicas racionais, universalmente válidas. A classe revolucionária, por já se
defrontar desde o início com uma classe, surge não como classe, mas sim como
representante de toda a sociedade; ela aparece como a massa inteira da sociedade
diante da única classe dominante.43

Na sociedade burguesa, onde, como escreve Gramsci, o Estado


torna-se educador, cumprindo a tarefa da construção de um confor-
mismo social rumo às exigências produtivas, a escola encontra um

42 Ibid., p. 94.
43 Ibid., pp. 48-49.

40
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

papel sempre mais importante. Por um lado, ela fornece mão de obra
funcional à produção material; por outro, forma intelectualmente os
futuros representantes da classe dominante. A essa distinção corres-
ponde aquela entre dirigentes e dirigidos. Em contraposição a essa
ideia de hierarquia social — geralmente considerada natural e, en-
quanto tal, imutável, mas que, ao contrário, é fruto da divisão espe-
cialização do trabalho —, Gramsci afirmou a necessidade de superar
a fratura historicamente determinada entre funções intelectuais e
manuais, em razão da qual torna-se necessária a existência de um
sacerdócio ou casta de especialistas da política e do saber.

Conclusões
Na visão de Marx, política e educação estão deontologica-
mente entrelaçadas, numa relação de reciprocidade: por um lado, é
essencial uma profunda transformação das condições sociais para
criar um sistema escolar diferente; por outro, é preciso mudar as
condições do sistema de ensino para mudar as condições sociais. A
perspectiva educativa de Marx reside na exigência de tornar possível
o pleno desenvolvimento da personalidade humana, superando as
condições impostas pela divisão de classes e pela especialização do
trabalho dela decorrente. O percurso de Marx junta filosofia e econo-
mia política. Mas, quando os seus estudos abrangem a dimensão eco-
nômica, ele conserva uma visão dialética, ou seja, interpreta o devir
histórico segundo mudanças que acontecem num quadro dominado
por contradições objetivas e subjetivas, onde a tese se converte no
seu oposto, criando no seu próprio seio a sua negação. Isso acontece
também na dimensão da educação e da emancipação integral do ho-
mem, porque se o desenvolvimento técnico da sociedade industrial
produz o máximo da desumanização, ele cria também as condições
— graças à mesma divisão e especialização do trabalho responsável
por aquela negação da humanidade — para o desenvolvimento om-
nilateral do indivíduo.
Como escreveu Manacorda, a simples emancipação política
não é suficiente para a plena libertação humana, porque o capitalista

41
Gianni Fresu

tem a pretensão de que os trabalhadores permaneçam sempre num


nível mínimo de desfrute da vida e se comportem como puras má-
quinas. O operário não pode participar dos prazeres superiores e dos
diferentes meios de crescimento intelectual, porque sua única parti-
cipação na sociedade é a dos escravos assalariados. As possibilidades
de vida plenamente humana estão em dependência do tempo do tra-
balho, que as regras do capitalismo tendem a prolongar junto com a
produtividade e, portanto, a exploração do trabalho mesmo, apesar
do fato de que o desenvolvimento tecnológico empurra a produção
na direção da redução do tempo necessário para produzir o que a
sociedade precisa para a satisfação das próprias exigências.
Marx nunca expressou uma recusa ideológica da modernidade
da produção industrial. Para ele, o problema encontra-se nas rela-
ções sociais da produção. Se, por um lado, o processo de especiali-
zação do trabalho precisou desumanizar essa atividade criadora, por
outro, o mesmo processo pode tornar-se a premissa da criação, fora
do trabalho, de um tempo totalmente humano, porque, reduzindo
o tempo e o dispêndio de energias, pode livrar aquele necessário ao
completo desenvolvimento do indivíduo social, através da elevação
cultural, científica e artística não só de uma classe, mas de toda a
sociedade. Novamente recorremos a Manacorda, que sintetizou com
grande eficácia o sentido progressivo dessa contradição dialética:

Para concluir, retomando brevemente o que pudemos ver nesta resenha sumária
sobre a concepção que Marx tem do trabalho e da sua função no fazer-se do ho-
mem, podemos dizer que o homem é homem na medida em que deixa de iden-
tificar-se, à maneira dos animais, com a própria atividade vital na natureza; na
medida em que começa a produzir as condições de uma vida humana sua, isto
é, os meios de subsistência e as relações que estabelece com outros homens ao
produzi-la na divisão do trabalho; como uma relação não limitada a apenas uma
parte da natureza, mas pelo menos potencialmente, como uma relação universal
ou omnilateral com toda a natureza como seu corpo orgânico; e na medida, afinal,
em que humaniza a natureza, fazendo da história natural e da história humana um
só processo e, ao assim fazer, modifica-se a si mesmo, cria o homem da sociedade
humana [...]. Num determinado momento desse desenvolvimento, a criação de

42
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

uma totalidade de forças produtivas, dentre as quais a ciência, torna-se possível


a recuperação da integralidade ou omnilateralidade. A propriedade privada dos
meios coletivos de produção, que é apropriação privada de trabalho alheio, tem
significado, também, apropriação privada da ciência e sua superação do trabalho;
esta tem mesmo negado o preexistente vínculo entre ciências e ação, próprio da
limitada produção artesanal, mas criou por sua vez as condições para a sua própria
superação. Torna inevitável a recuperação entre ciência e trabalho; e tal recupe-
ração não pode realizar-se a não ser como reapropriação da ciência por parte de
todos os indivíduos no processo coletivo da produção moderna, do moderno
domínio do homem sobre a natureza.44

A perspectiva de Marx se orienta rumo à criação de uma vida


comunitária onde ciência e trabalho pertençam a todos os indiví-
duos e não fiquem separados. Nessa direção, a escola deve configu-
rar-se como processo educativo em que coincidam o trabalho e uma
ciência operativa, correspondente à essência do homem capaz de do-
minar a natureza. Isso significa que, no plano educativo, a perspecti-
va do ensino não pode criar um trabalho moldado sobre habilidades
parciais, mas estimular a sua dimensão mais dinâmica e moderna
para ser um ator protagonista da sociedade tecnológica e industrial.
Todas as reflexões de Marx se encaminham a partir da questão da
separação entre trabalho mental e trabalho manual ao longo de um
processo contraditório, dialético, potencialmente progressivo. Nova-
mente as palavras de Manacorda:

[Marx] indicou claramente tanto a destruição do velho artesanato, no interior do


qual se podia dominar completamente um limitado processo produtivo até elevar-
-se nele a um limitado senso artístico, isto é, a uma limitada plenitude de expressão
humana, quanto a separação da ciência e do trabalho existente na fábrica, que sub-
trai ao operário as potências intelectuais do trabalho e quanto, afinal, o surgimento
espontâneo (e contraditório) do germe de um novo ensino para a classe operária,
a saber, escolas como as da classe dominante (e não mais de simples treinamento),
escolas também investidas da mais moderna ciência, a tecnologia, destinada, de

44 manacorda, M. A. Marx e a pedagogia moderna. São Paulo: Cortez, 1991, pp. 63-64.

43
Gianni Fresu

modo contraditório, a fazer dominar inteiramente não mais um limitado processo


produtivo, mas uma totalidade de ramos de produção.45

Então, a omnilateralidade (o desenvolvimento da humanidade


em todas as esferas da sua existência) é a tarefa da educação para a
sociedade comunista na visão de Marx. É a perspectiva do homem
integral, “completo, multilateral em todos os sentidos das faculda-
des e das forças produtivas, das necessidades e da capacidade da sua
satisfação”.46 A organização-especialização do trabalho condiciona a
divisão da sociedade em classes e, através da divisão entre trabalho
manual e mental, produz as duas dimensões do homem dividido, que
se desenvolvem de forma unilateral na primeira ou na segunda esfera
de atividade.
Essas questões são abordadas pela primeira vez por Marx nos
Manuscritos econômico-filosóficos,47 muito influenciados pelos pri-
meiros escritos de Engels sobre a situação da classe operária ingle-
sa, onde ele escreveu que a dimensão unilateral do homem dobrado
sobre a máquina acaba por constranger o operário à ignorância, à
deformidade humana. Nesse esquema de relação social, também as

45 Ibid., p. 66.
46 Ibid.
47 Ao longo da sua vida intelectual, Marx escreveu uma enorme quantidade de cadernos
onde anotou estudos, comentários às leituras, rascunhos e reflexões nos diferentes temas por
ele abordados (sobretudo filosofia, política, economia e história). Nesses cadernos, Marx
guardava essencialmente os materiais que depois utilizava para artigos e livros, sem voltar
novamente à leitura das obras citadas. Ao mesmo tempo, todavia, nesses cadernos Marx es-
crevia conceitos, raciocínios e projetos que planejava desenvolver. No período em que Marx
viveu em Paris (entre outubro de 1843 e fevereiro de 1845), ele escreveu os que os estudiosos
de Marx chamam de Cadernos parisienses, onde se encontram os estudos que fundamentam
a Crítica da filosofia do direito, a Questão judaica, a Sagrada família e vários artigos que ele
publicou naqueles anos. É a partir desses materiais que, entre 1927 e 1932, os organizadores
extraíram os chamados Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, publicados na União so-
viética e na Alemanha. Portanto, esse trabalho, que virou uma obra muito conhecida e estu-
dada de Marx, não é um verdadeiro livro, mas o resultado da transcrição dos três cadernos
que ele realizou entre maio e agosto de 1844. A publicação desses materiais definidos como
“ensaios fragmentários”, e também de outros inéditos, foi o resultado dos trabalhos feitos
nos arquivos pelo diretor do Instituto Marx-Engels de Moscou, David, Borisovič Rjazanov.
donaggio, E. “I manoscritti economico-filosofici del 1844”. In: petrucciani, S. Il pensiero
di Marx, op. cit., pp. 43-71.

44
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

escolas que a burguesia criou para os operários assumem um papel


político: impedir qualquer possibilidade de desenvolvimento intelec-
tual do trabalhador. Ao mesmo tempo, a escola para as classes diri-
gentes produz outra forma de degradação, por meio de uma erudição
puramente formal sem nenhuma conexão com a vida real e as ativi-
dades práticas:

Dessa condição histórica do trabalho alienado do homem em relação ao homem e


à natureza do trabalho alienado — no qual a atividade humana, rebaixada de fim
a meio, de automanifestação a uma atividade completamente estranha a si mesma,
nega o próprio homem — decorre uma situação de imoralidade, monstruosidade,
hilotismo dos operários e dos capitalistas, pois o que em um é atividade alienada, é
estado de alienação no outro, e uma potência desumana domina a ambos.48

Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx trata pela pri-


meira vez de forma explícita o tema do comunismo, uma visão que
tem na suprassunção positiva (a superação no sentido dialético) da
propriedade privada a premissa para a conquista da efetiva essência
humana. O comunismo seria, portanto, a afirmação total da huma-
nidade, a negação da desumanização e da alienação produzida pelo
capitalismo:

Por isso, trata-se de retorno pleno, tornado consciente e interior a toda riqueza do
desenvolvimento até aqui realizado, retorno do homem para si enquanto homem
social, isto é, humano. Este comunismo é a verdadeira dissolução do antagonismo
do homem com a natureza e com o homem; a verdadeira resolução do conflito
entre existência e essência, entre objetivação e autoconfirmação, entre liberdade e
necessidade, entre indivíduo e gênero. É o enigma resolvido da história e se sabe
com esta solução.49

48 manacorda, M. A. Marx e a pedagogia moderna, op. cit., p. 24.


49 marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 105.

45
Gianni Fresu

Por sua vez, a base da sociedade burguesa, a propriedade pri-


vada, seria a “expressão sensível” da vida humana estranhada. Seu
movimento, produção e consumo, seria a manifestação sensível do
movimento de toda a produção até aqui, realização ou efetividade
do homem. Tudo que no marxismo seriam superestruturas (religião,
família, Estado, direito, moral, ciência, arte etc.) são apenas formas
particulares, reflexos da produção e caem sob a sua lei geral. Então,
a suprassunção positiva da propriedade privada, enquanto apropria-
ção da vida humana, é também suprassunção de toda a sua esfera
reflexa, é a libertação dos condicionamentos ilusórios ou mistifica-
dos da religião, da filosofia (que apresenta o Estado como entidade
racional e universal) e da política funcional à conservação de rela-
ções sociais de produção historicamente determinadas, alicerçadas
na propriedade privada.

A suprassunção da propriedade privada é, por conseguinte, a emancipação com-


pleta de todas as qualidades e sentidos humanos; mas ela é essa emancipação
justamente pelo fato de esses sentidos e propriedades terem se tornados humanos,
tanto subjetiva quanto objetivamente. O olho se tornou olho humano, proveniente
do homem para o homem50.

Marx chega, nos Manuscritos, a definir a sua concepção de


emancipação humana integral como profundo revolucionamento
das relações produtivas e sociais, que envolve também a dimensão
espiritual, liberando o homem das cadeias concretas e ilusórias de
ambas as dimensões. Como Jesus Ranieri escreveu na apresentação
à edição brasileira,

os Manuscritos inauguram, graças aos estudos de economia política iniciados por


Marx, uma análise bem estruturada do modo de produção capitalista, ou mais, da
forma capitalista da atividade de produção. É nesse texto que o lugar do trabalho

50 Ibid., p. 109.

46
D a “ marcha da universalidade ” à integral emancipação do homem

como forma efetivadora do ser social é realmente exposta e desenvolvida, algo que,
até então, mesmo em Marx, não havia sido feito.51

A dialética entre a alienação e a emancipação humana consiste


num dos temas centrais da obra inteira de Marx, desde a Crítica à fi-
losofia hegeliana do direito até o Capital. Nesses desdobramentos, que
marcam a história do pensamento socialista, situam-se as premissas
teóricas do longo processo de lutas e mobilizações populares para a
integral emancipação humana. Um desenvolvimento orgânico e sis-
temático da “marcha da universalidade”, que, para tornar substancial
e não apenas formal o princípio de igualdade, levantou a exigência da
superação das contradições estruturais imanentes à sociedade bur-
guesa, impondo ao mundo contemporâneo a centralidade da “ques-
tão social”.

51 ranieri, J. “Apresentação”. In: marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 14.

47
CAPÍTULO 2
A práxis “ integral ” de G ramsci frente
ao atual processo de desintegração 52

Giovanni Semeraro

Partir da “filologia vivente” do nosso tempo


Em algumas anotações dos Cadernos do cárcere, Gramsci es-
creve sobre a necessidade de aprender a realizar uma “filologia viven-
te” (Q 11, § 25, p. 1430),53 de modo a conectar o estudo cuidadoso
dos textos com as interpelações da história e os “problemas postos
pela realidade, que são bem determinados e ‘originais’ na sua atuali-
dade” (Q 11, § 12, p. 1377). Portanto, a leitura que aqui se apresenta
do conceito de “práxis” à luz do adjetivo “integral”, tão recorrente nos
escritos de Gramsci, parte de aspectos candentes do nosso contexto
histórico e procura dar uma resposta à avassaladora ofensiva desfe-
rida pelo recrudescimento da crise do capital, eclodida nos países
centrais e no coração do sistema financeiro.
Preocupado com o encolhimento dos espaços para se reprodu-
zir e expandir, o capitalismo, em desespero, aprofunda a sua insani-
dade pelo mundo e debita grande parte dos seus trágicos efeitos na
conta dos países mais vulneráveis e dos setores sociais desprotegidos.
Por outro lado, enquanto o planeta está sendo levado ao limite do
esgotamento dos seus recursos e são implementadas novas formas de
exploração do trabalho, multiplicam-se por toda parte levantes po-
pulares que reivindicam a distribuição das riquezas, a concretização
dos direitos fundamentais e o protagonismo político. Posto em evi-

52 Texto veiculado, inicialmente, em 2017 pelo site da igs Brasil: http://igsbrasil.org/, que
para este livro foi revisado e sofreu diversas modificações em relação ao original.
53 gramsci, A. Quaderni del carcere, a cura di V. Gerratana, 4 v. Turim: Einaudi, 1975. No
corpo do texto, esta obra é citada com o símbolo Q, seguido pelo número do caderno, pelo
número do parágrafo e da página da edição italiana, dados que permitem a localização na
edição brasileira.

49
dência por diversos autores, o aprofundamento das “contradições do
capital”54 gera cada vez mais um insustentável quadro de “desordem
mundial”.55 A destruição de nações inteiras pela indústria da guerra,
as gigantescas ondas migratórias, a desestabilização e o retrocesso
social impostos na América Latina provam amplamente a instala-
ção do “império do caos” desencadeado no mundo. Um dos sinto-
mas dessa situação é o pavoroso aparato bélico e policial que cresce
em proporção inversa à destruição das conquistas civilizatórias e ao
esvaziamento das instituições públicas. Conforme Marx havia ob-
servado ao afirmar que “a classe que dispõe dos meios de produção
material dispõe também dos meios de produção intelectual”,56 hoje
podemos verificar que a “guerra híbrida” e a sofisticação das armas
midiáticas e tecnológicas estão sendo utilizadas para desencadear a
indignação popular contra inimigos artificialmente construídos e
manipular medos e emoções das massas em função dos interesses
dos países mais poderosos.57
Um número crescente de pesquisadores mostra com dados im-
pressionantes que ingressamos em uma era que tende a se prolongar
pelo século xxi, controlada por plutocratas e corporações transna-
cionais que aprofundam a absurda disparidade entre riqueza privada
e dívida pública que compromete a liberdade política.58 Nestas últi-
mas décadas, de fato, assistimos não só ao desmoronamento do assim
chamado “socialismo real”, mas também das tentativas da “Terceira
Via”, das versões de socialdemocracia, das experiências de “governos
progressistas” e dos próprios modelos de “democracia liberal”.
Um clima generalizado de decepção e ceticismo está semeando
descrédito na política e na democracia, que afeta não só as camba-
leantes regiões periféricas do sistema, mas os próprios países consi-

54 harvey, D. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016.


55 bandeira, L. A. M. A desordem mundial: O espectro da total dominação. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2016.
56 marx, K.; engels, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 48.
57 losurdo, D. La sinistra assente: Crisi, società dello spettacolo, guerra. Roma: Carocci,
2014, pp. 71 e ss.
58 piketty, T. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016, pp. 169 e ss.

50
A práxis “ integral ” de G ramsci frente ao atual processo de desintegração

derados avançados. Nestes, além dos espetáculos da corrupção e da


sintomática abstenção eleitoral, prosperam novas formas de violên-
cia e a frustração de amplos setores da população angustiada pelo
desemprego, o endividamento e a pauperização. É na fermentação
desse caldo que despontam populistas e crescem preocupantes seg-
mentos de extrema-direita, como é possível ver nos Estados Unidos,
Reino Unido, Dinamarca, Áustria, Polônia, Alemanha, França, Itá-
lia, Holanda, Hungria, Turquia, Filipinas e, também, na Argentina,
Colômbia, Equador e Brasil. O “estado de exceção”,59 amparado por
um aparato jurídico subjugado, hoje vem ganhando consideráveis
dimensões e passa a ser naturalizado com o reaparecimento de um
nacionalismo racista e de grupos nazifascistas, da perseguição a mi-
norias e opositores ideológicos, do desmonte da Constituição e de
tratados internacionais.
Na contramão do alardeado processo de globalização turbina-
do pelo mercado, pela tecnologia e pela indústria do entretenimento,
concentrados nas mãos de pequenos grupos, estamos assistindo à
desintegração de vínculos coletivos e culturais e de projetos de unifi-
cação regional, como a União Europeia e a latino-americana. E, por
incrível que pareça, menos de trinta anos depois da queda do Muro
de Berlin, os países que concorreram para a sua derrubada erguem
barreiras e muros mais vergonhosos. Até F. Fukuyama passou a re-
conhecer que “a nova era de nacionalismo populista põe em risco a
ordem liberal mundial”.60 Claro, ainda que numerosos observadores
do próprio sistema percebam sinais preocupantes, não significa que
o capitalismo tenha chegado à sua fase terminal. Mas, o fato de se
fechar em si para proteger seus privilégios e recorrer cada vez mais
à violência e a fraudes crescentes, demonstra que se está perdendo a
hegemonia e que deixa de ser expansivo e persuasivo na solução dos
problemas vitais da sociedade.

59 agamben, G. Stato di eccezione. Turim: Bollati Boringhieri, 2003, p. 11.


60 fukuyama, F. “Nova era nacionalista pode estar a caminho com a vitória de Trump”,
Folha de S.Paulo, Caderno Mundo, 13 nov. 2016.

51
Giovanni Semeraro

No Brasil, pela precariedade das suas estruturas sociais e po-


líticas, essa tendência mundial assume traços ainda mais ruinosos
e assustadores. Em pouco tempo, estão sendo destruídos avanços
econômicos e sociais, conquistas democráticas e um tímido esboço
de soberania nacional. O golpe parlamentar-judicial-midiático des-
ferido em 2016 com o apoio do grande capital e do Departamento
de Justiça (doj) dos Estados Unidos, que se vale da Lei de Práticas de
Corrupção no Exterior (fcpa) para impor sua jurisdição no mundo,
abriu o caminho não só para o desmantelamento dos direitos sociais
e da indústria nacional e para a liquidação de patrimônios públicos
e recursos naturais, mas está empurrando a população a procurar
cada vez mais no setor privado os serviços básicos: saúde, educação,
assistência social, segurança e previdência.
Olhando para esse quadro de involução e desintegração que
ocorre no mundo e no Brasil, vem à mente uma nota de Gramsci
registrada no Q 6 (texto B), § 10, intitulada “passado e presente”:

Em grandes linhas, se poderia já dizer que hoje verifica-se no mundo moderno


um fenômeno semelhante àquele do descolamento entre “espiritual” e “temporal”
na Idade Média: fenômeno muito mais complexo do que o de então, visto que a
vida moderna tornou-se mais complexa. Os agrupamentos sociais regressivos e
conservadores se reduzem cada vez mais à sua fase inicial econômico-corporativa,
enquanto os agrupamentos progressistas e inovadores se encontram ainda na fase
inicial, ou seja, econômico-corporativa [...]. Este processo de desintegração do
Estado moderno, portanto, é muito mais catastrófico do que o [processo histórico]
medieval, que era desintegrativo e integrativo ao mesmo tempo, considerando o
grupo especial que era o motor do processo histórico e dado o tipo de Estado (p.
691).

O “pessimismo da inteligência” de Gramsci abordava a realida-


de nessa perspectiva porque, enquanto na passagem do feudalismo
para a modernidade abria-se uma época de revoluções, nos anos 30
do século passado o mundo ia em direção ao fascismo e ao nazismo
(Q 8, § 130, p. 1053).

52
A práxis “ integral ” de G ramsci frente ao atual processo de desintegração

O quadro da crise dramática no Brasil


No Brasil, a desintegração social e a decomposição do Estado
Democrático de Direito, refém de corporações e da ditadura do sis-
tema financeiro (verdadeiro Estado no Estado), não revelam apenas
um retrocesso ao estágio “mais elementar econômico-corporativo”
(Q 13, § 17, p. 1583), mas mostram o colapso político, social e cultu-
ral com sinais crescentes de barbárie e tribalismo. O prazer destruti-
vo dos direitos sociais e o ódio às “classes perigosas” e aos “grupos de
risco”, praticados por um neofascismo primário que não suporta atos
de resistência e contestação, que viola a Constituição e as instituições
públicas, denotam que “a anomia absorveu a democracia brasileira”.61
Por outro lado, também a desarticulação das organizações políticas
populares concorre para um impasse político e “uma situação em
que as forças em luta se equilibram de modo catastrófico” (Q 13, §
27, p. 1619). Nesse contexto, a alta burguesia, serva do capital in-
ternacional, e a classe média, subjugada pela mídia monopolizada,
procuram aniquilar as organizações dos trabalhadores e implantar
um conjunto draconiano de contrarreformas para restaurar a mais
abjeta condição colonial.
Ao disseminar o pânico da catástrofe econômica e desfraldar a
bandeira do combate à corrupção, a escalada golpista usurpa o poder
popular e ataca as “trincheiras e fortalezas” situadas nas escolas e uni-
versidades públicas, nas organizações da sociedade civil, nas redes
sociais e nos movimentos populares, de modo a estabelecer o domí-
nio não só no âmbito da economia, da burocracia e dos aparelhos
de repressão, mas também na esfera da cultura e da educação. Dessa
forma, o que vem se constituindo no Brasil é um coquetel letal de
ultraliberalismo, monopólio da mídia, incursões de fake news, fun-
damentalismo religioso e Estado policial. Ao minar direitos e liber-
dades, as bases da Justiça e as responsabilidades do Estado, instau-
ram-se “a guerra de todos contra todos” e a eliminação de qualquer
sentido de país e de nação.

61 santos, W. G. “A anomia anuncia a tirania”, blog Segunda Opinião, 2 dez. 2016.

53
Giovanni Semeraro

“A intrínseca barbárie da civilização burguesa”, que Marx via


camuflada nas metrópoles e “sem velos” nas colônias,62 e que Lênin
denunciou na sua fase imperial com “o predomínio do capital finan-
ceiro sobre as demais formas do capital [que] implica o predomínio
do rentista e da oligarquia financeira, de alguns Estados em relação
aos restantes”63, hoje é universalmente visível na escalada do “capita-
lismo rentista” que se reproduz pela dívida pública e na apropriação
da propriedade intelectual.64 No Brasil, de fato, conforme a Auditoria
Cidadã da Dívida, o orçamento é canalizado essencialmente para fi-
nanciar os juros da dívida pública e para garantir ganhos fabulosos
ao sistema financeiro e a uma ínfima parcela de credores improduti-
vos. Dessa forma, o parasitismo e os monopólios crescentes desmen-
tem que o capitalismo está baseado sobre a concorrência, o risco, os
investimentos e o livre comércio. É o que mostram, por exemplo,
os acordos estabelecidos por meio do Internacional Security and
Defense System (isds), dedicado a proteger investidores e dar segu-
rança aos empreendimentos multinacionais, à revelia da jurisdição
dos Estados e das regulamentações administrativas. Nesse sentido,
triunfalmente anunciada no Fórum Econômico Mundial de Davos, a
“Quarta Revolução Industrial” impulsiona ainda mais uma inaudita
concentração corporativa de bens e de oligopólios em setores estra-
tégicos: na robótica, na nanotecnologia, na informática, na biologia
sintética e inteligência artificial, na produção sofisticada de armas, na
vigilância e no controle social, na digitalização em todos os setores,
com impactos imprevisíveis sobre o meio ambiente, a saúde e o tra-
balho da população. Não surpreende, portanto, que essa globalização
esteja produzindo a aberração de um mundo onde 1% concentra a

62 marx, K.; engels, F. Werke. Berlim: Dietz, 1955-1989, v. 9, p. 225.


63 lênin, V. I. Imperialismo: Fase superior do capitalismo, Campinas: Editora da Unicamp,
2011, p. 176.
64 standing, G. The Corruption of Capitalism: Why Rentiers Thrive and Work Does Not Pay.
Londres: Biteback, 2016. Neste livro, o autor mostra que as empresas que nada produzem
e que compram só patentes possuem um estoque que vale mais de 10 trilhões de dólares,
segundo a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi). Assim, as indústrias
intensivas em conhecimentos ganham mais com a propriedade intelectual (softwares, smar-
tphones, Google, Facebook, filmes, vídeo, músicas, bancos de dados, aquisição de tecnolo-
gias etc.) do que com a produção de bens e serviços.

54
A práxis “ integral ” de G ramsci frente ao atual processo de desintegração

riqueza dos 99% (conforme relatório anual da Oxfam) e continua


gerando uma imensa massa de “lúmpen-proletariado” em estado
crescente de precarização, totalmente desprotegido, desenraizado,
errático, sem identidade e sem organização, presa fácil da mídia, da
polícia, de fundamentalistas e populistas.
Um dos retratos mais explícitos desse processo “desintegrador”
está estampado no capitalismo selvagem totalmente à solta no Brasil
e conduzido por uma “elite mesquinha, covarde, violenta e ignoran-
te”, como a costumava definir Darcy Ribeiro. Basta olhar a configu-
ração das cidades e do campo para dar-se conta da divisão abismal
e chocante que torna o país profundamente desagregado, precário e
desumanizado. De um lado, de fato, há um pequeno centro opulento,
ultramoderno, tecnologicamente atualizado, protegido em condomí-
nios e carros blindados, cercado de vigias e abastecido de serviços,
restaurantes, lojas e sofisticados lugares de entretenimento. E, de ou-
tro lado, visivelmente segregada em apartheid, a imensa massa po-
pular largada na periferia, privada das estruturas mais elementares,
entregue à própria sorte, à violência e ao extermínio.

Resgatar a práxis “integral” contra o processo de desintegração


É neste contexto de penúria humana e desintegração social,
mas, também, de desorientação dos movimentos sociais e das forças
políticas populares, que é preciso retomar a concepção de mundo
fundada sobre a práxis. Uma proposta tão atual quanto imprescindí-
vel, uma vez que seu objetivo é a formação criativa e unitária do ser
humano em suas relações com os outros e no metabolismo com a
natureza. Frente ao acelerado processo destrutivo operado pelo capi-
tal, ganha enorme significado a consideração de Gramsci ao observar
que “o marxismo contém em si todos os elementos fundamentais,
não só para construir uma concepção total do mundo, uma filosofia
completa, mas para dar vida a uma total organização prática da so-
ciedade, quer dizer, para tornar-se uma integral, total civilização” (Q
4, § 14, p. 435). Além disso, com Gramsci aprende-se que, se é verda-
de que a crise penaliza e angustia, é nessa circunstância que a luta de

55
Giovanni Semeraro

classes se torna mais nítida e necessária (Q 3, § 34, p. 311) e podem


despontar possibilidades de reorganização política. Porque, “apesar
de tudo” – repetia Gramsci – “a realidade permanece dialética” (Q
15, § 62, p. 1827) e os embates sociais são um campo aberto, como
mostram as revoluções que constelam a história.
Foi, de fato, em meio à convulsão do seu tempo e à irrupção
das massas trabalhadoras na cena política que Marx desenhou o es-
boço genial da “nova concepção de mundo”.65 E Gramsci, a partir das
análises sobre a derrota do movimento operário, aprofunda “a filoso-
fia original e integral” derivada dos escritos de Marx e percebe que a
sua proposta “inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento
do pensamento” (Q 7, § 29, p. 877) e deflagra uma “idade histórica
que provavelmente durará séculos, até o desaparecimento da Socie-
dade política e o advento da Sociedade regulada” (Q 7, § 33, p. 882).
O vigor dessa visão revolucionária, direta ou indiretamente,
continua exercendo seu impacto nos movimentos sociais populares
espalhados pelo mundo e nas teorias econômicas, sociais, filosóficas
e políticas. As próprias correntes de ideias que se dedicaram às crí-
ticas das grandes narrativas e associaram equivocadamente o pen-
samento de Marx às doutrinas massificadoras acabaram perdendo
a visão de conjunto da realidade e a interligação das históricas lutas
das massas populares por um projeto alternativo de sociedade. A di-
fusão do relativismo e a dispersão da vida sociopolítica acabaram
favorecendo a vigência do totalitarismo ultraliberal no mundo. Um
sistema que desintegra a unidade orgânica tecida pela dinâmica da
multiplicidade do real e que, como advertem Marx e Gramsci, não se
combate apenas com a crítica ou a defesa dos interesses individuais
e particulares, mas com a construção consciente, organizada e cole-
tiva de uma nova “civilização integral” protagonizada pelas classes
populares.
Para desencadear um projeto dessa grandeza, anota Grams-
ci, é necessário em primeiro lugar criar “o espírito de ruptura e a

65 engels, F. “L. Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”. In: marx, K.; engels, F.
Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, s.d., p. 177.

56
A práxis “ integral ” de G ramsci frente ao atual processo de desintegração

progressiva conquista da própria personalidade histórica” (Q 25, §


5, pp. 2288-89) em condições de desafiar a classe dominante com a
elaboração de uma concepção superior de sociedade, uma vez que
“uma teoria é ‘revolucionária’ enquanto é elemento de separação e
distinção consciente em dois campos, enquanto é vértice inacessível
ao campo adversário” (Q 11, § 27, p. 1434). Além disso, para superar
“a história desagregada e episódica dos grupos subalternos” (Q 25, §
2, p. 2283) e alcançar uma “autonomia integral” (Q 25, § 5, p. 2288),
faz-se necessário estruturar coletivamente uma proposta alternativa
de civilização, ultrapassando os particularismos e o “subversivismo
esporádico, elementar e desorgânico das massas” (Q 10, § 41, p. 1325)
e criando articulações entre as forças que se opõem ao capitalismo.
Essa é a crítica contínua que Gramsci dirige à classe subalterna, que
em diversos momentos históricos foi derrotada porque “não soube ir
além dos limites corporativos e criar-se todas as superestruturas de
uma sociedade integral” (Q 5, § 123, p. 652). De fato, as lutas locais,
específicas e setoriais, ainda que importantes, adquirem estabilidade
e sentido mais amplo quando não se limitam a conquistas parciais
e momentâneas, mas conseguem convergir para um projeto que re-
voluciona integralmente a realidade e confere a hegemonia às forças
populares para dirigir e administrar democraticamente a sociedade.
Sem transformar o sistema como um todo e assumir o poder nos
setores nevrálgicos, os levantes espontâneos e as batalhas molecula-
res correm sempre o risco de serem marginalizadas, neutralizadas e
esmagadas.
Entre os múltiplos significados que emergem dos prismas da
“práxis” inaugurada por Marx e aprofundada por Gramsci, em ou-
tros textos focalizamos a concepção revolucionária que provocam no
modo de entender a filosofia e a política.66 Aqui, diante da desinte-
gração social e da “de-formação” humana produzidas pelo sistema
vigente, nos limitamos a evidenciar alguns exemplos da profunda
conexão do conceito de “práxis” com o adjetivo “integral”, uma co-

66 semeraro, G. Gramsci e os novos embates da filosofia da práxis. 3. ed. São Paulo: Ideias e
Letras, 2015, pp. 237-57.

57
Giovanni Semeraro

notação muito presente nos escritos de Gramsci e pouco abordada


em estudos e pesquisas.
Na verdade, Hegel havia já desenvolvido a ideia de que o que
constitui a verdade é “o inteiro”67 e, portanto, a realidade deve ser
apreendida na sua totalidade histórico-dialética. Inspirados nessa
visão, mas superando a mistificação de um sistema filosófico cons-
truído sobre a evolução do Espírito, Marx e Gramsci partem do pro-
tagonismo das classes desapropriadas e desenvolvem a concepção de
mundo em torno de uma práxis “integral” ao estabelecer uma rela-
ção histórica, inseparável e dialética entre estrutura e superestrutu-
ra, objeto e sujeito, ação e pensamento, política e filosofia, matéria
e espírito, ambiente e educação, intelectual e massa, razão e paixão,
ciência e arte, indivíduo e sociedade, ser humano e natureza, traba-
lho e socialização, no intuito de desenvolver todas as componentes
e potencialidades humanas e sociais. Essa concepção não apenas se
contrapõe frontalmente ao processo atomizador e ao poder destrui-
dor do capital analisado acima, mas se ergue também contra todas as
teorias que mutilam e deformam o ser humano, reduzindo-o exclu-
sivamente ao universo ideal e espiritual, aos aspectos vulgarmente
materialistas e naturalistas, aos interesses individuais e privados, às
expressões culturais e simbólicas autorreferenciadas e exibicionistas.
A concepção de mundo construída sobre o conceito de “prá-
xis” critica toda forma de reducionismo e mutilação, combate o nii-
lismo e a desintegração humana, social e planetária operada por um
sistema que invade, rapina, devasta, corrompe, concentra, exclui, re-
prime, deforma, ilude, esfarela a realidade e ergue muros. Desmon-
ta, também, os discursos hipócritas de conciliação entre as classes,
a construção do mito do “país cordial e harmonioso”, que no Brasil
serve para esconder a realidade brutal da desigualdade e do racismo
e evitar o enfrentamento das contradições econômicas e sociais. La-
mentavelmente, até hoje, não faltam intelectuais nacionais e interna-
cionais, como o renomado Domenico De Masi, que continuam a se
utilizar desse estereótipo para agradar a mídia dominante e seduzir

67 hegel, G. W. F. Lezioni sulla storia della filosofia. 4 v. Organização de E. Codignola e G.


Sanna, Florença: La Nuova Italia, 1973, p. 12.

58
A práxis “ integral ” de G ramsci frente ao atual processo de desintegração

os simplórios. Além de propagar a romântica visão da “democracia


racial” e apresentar o Brasil como “grande modelo de vida para o
mundo”, o intelectual midiático italiano mal consegue disfarçar seus
sentimentos de discriminação, ao atribuir o caos vigente no Brasil à
“infantilidade do povo”,68 ignorando totalmente a história das lutas
políticas populares contra as atrocidades de um dos sistemas mais
desiguais e violentos do mundo. Contrariamente a tais visões, a con-
cepção fundada sobre a práxis aponta que só haverá democracia efe-
tiva quando se realizarem a livre produção e autoprodução do ser
humano e a socialização do poder econômico, político e cultural.
Não temos dúvidas, portanto, de que o ataque em curso contra esse
projeto constitui o centro da crise mundial e a raiz do golpe que de-
sestrutura tragicamente o Brasil.
Em um eventual Dicionário gramsciano compilado a partir de
adjetivos, o termo “integral” (e seus correlatos) saltaria certamente
aos olhos pela riqueza e originalidade dos significados disseminados
nos escritos de Gramsci. Nos diversos contextos onde esse adjetivo
aparece, percebe-se sua íntima vinculação com os conceitos de “prá-
xis”, “total”, “completo”, “autonomia”, “criação”, “revolução” e “nova ci-
vilização”. Na verdade, toda a obra de Gramsci tem a marca de uma
visão integral do mundo, quando se observa como são abordadas de
forma articulada e interdisciplinar as múltiplas dimensões humanas
e as atividades sociais, inclusive suas potencialidades (Q 13, § 16, p.
1578). Contrariamente aos que pensam em superar as crises com re-
pressão, muros, supressão de direitos, cortes econômicos seletivos e
ajustes fiscais, Gramsci sustenta que toda reestruturação econômica
deve estar conjugada com uma “reforma intelectual e moral”, com a
construção da hegemonia popular e a “democracia de massa”.69 E que
esses objetivos se consolidam na criação de uma nova concepção de
Estado, ou seja, um “‘Estado’ integral, com todas as forças intelec-
tuais e morais necessárias e suficientes para organizar uma sociedade
completa e perfeita” (Q 6, § 10, p. 691), onde seus integrantes se tor-

68 de masi, D. “Entrevista”, Folha de S.Paulo, Caderno Ilustrada, 27 nov. 2016.


69 coutinho, C. N. Marxismo e política: A dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo:
Cortez, 1994, p. 78.

59
Giovanni Semeraro

nam “intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores de


todas as atividades e funções inerentes ao orgânico desenvolvimento
de uma sociedade integral, civil e política” (Q 12, § 1, p. 1522). Nes-
sa perspectiva, contra a implantação de uma economia concentrada,
excludente e “parasita”, Gramsci aponta para um sistema produtivo
agrário e industrial voltado para as necessidades da população, com
“um desenho compreensivo de racionalização integral” (Q 9, § 8, p.
1101).
Essa concepção, evidentemente execrada pelo ultraliberalismo
destrutivo, antidemocrático, individualista e excludente, coaduna-se
em Gramsci com a formação de uma “intelectualidade integral” (Q
11, § 12, p. 1387) capaz de construir uma concepção de mundo “coe-
rente e unitária” (Q 11, § 12, p. 1385). E, em estreita conexão com
essa visão, com uma educação “desinteressada” e uma “escola unitá-
ria de cultura geral” em tempo integral (Q 12, § 1, p. 1536) que saiba
conectar trabalho intelectual e industrial com “toda a vida social”
(Q 12, § 1, p. 1538), de modo a desenvolver todas as potencialidades
humanas e sociais e a criar democraticamente nas massas populares
as condições para aprender a dirigir a sociedade em todas as suas
dimensões. A educação, portanto, é integral e efetiva quando leva
à “elaboração nacional unitária de uma consciência coletiva homo-
gênea” (Q 24, §3, p. 2267) e constrói “a vontade coletiva e a vontade
política no sentido moderno, a vontade como consciência operosa da
necessidade histórica” (Q 13, § 1, p. 1559), que, ao enfrentar coletiva
e democraticamente seus problemas, se constitui como povo unifica-
do e nação soberana.
Para Gramsci, a conquista de uma “integral renovação intelec-
tual e moral” (Q 15, § 58, p. 1820) exige a “criação de uma nova cultu-
ra integral, que possua os aspectos de massa da Reforma protestante
e do Iluminismo francês e preserve os traços da cultura clássica grega
e do Renascimento italiano, uma cultura que sintetize [...] a política e
a filosofia em unidade dialética intrínseca a um grupo social não ape-
nas francês ou alemão, mas europeu e mundial” (Q 10, § 11, p. 1233,
itálico meu). Trata-se da mesma visão registrada na carta a Iulca, en-

60
A práxis “ integral ” de G ramsci frente ao atual processo de desintegração

viada do cárcere em 1º de agosto de 1932, na qual Gramsci desenha


o quadro de uma educação

de todas as faculdades intelectuais e práticas, a serem especializadas com o tempo,


sobre a base de uma personalidade vigorosamente formada no sentido total e inte-
gral. O homem moderno deveria ser uma síntese das características que são ideali-
zadas como sendo nacionais: o engenheiro americano, o filósofo alemão, o político
francês, recriando, por assim dizer, o italiano da Renascença, o tipo moderno de
Leonardo da Vinci feito homem-massa ou homem coletivo, mesmo mantendo a
própria forte personalidade e originalidade individual.70

Desnecessário observar que Gramsci, italiano e europeu, não


padece de eurocentrismo, uma vez que reconhece as peculiaridades
nacionais, as relações internacionais e as dimensões mundiais.
Nessa ótica, ainda mais em época de “pós-verdade”, com
Gramsci se aprende a “fazer história integral e não história parcial
e exterior” (Q 10, § 12, p. 1235), a “situar cada aspecto parcial na
totalidade” (Q 24, § 3) e a praticar um jornalismo em condições de
“difundir uma concepção integral do mundo” (Q 14, § 60, p. 1719),
de modo que “a ação coletiva venha a tornar-se ‘história’ concreta e
completa (integral)” (Q 10, § 17, p. 1255). A partir das dimensões
omnilaterais da práxis, portanto, também o partido “orgânico” deve
ser “concebido, organizado e dirigido de tal forma que possa se de-
senvolver integralmente em um Estado (integral, e não em um go-
verno tecnicamente entendido) e numa concepção do mundo” (Q
17, § 51, p. 1947). Por isso, Gramsci considera “Maquiavel como po-
lítico integral ou em ato” (Q 8, p. 936) e os jacobinos expressão do
“movimento revolucionário no seu conjunto, como desenvolvimen-
to histórico integral, porque representavam também as necessidades
futuras e não só daquelas determinadas pessoas físicas, mas de todos
os grupos nacionais” (Q 19, § 24, p. 2028).

70 gramsci, A. Lettere dal cárcere. Palermo: Sellerio, 1996, p. 601.

61
Giovanni Semeraro

Essa concepção integral do mundo, que deriva da “totalida-


de concreta, categoria fundamental da realidade”,71 nada tem nada
a ver com a ideia falida de globalização que uniformiza midiática
e tecnologicamente, potencializa economicamente e embrutece uma
ínfima minoria e abandona a si mesma e desintegra a grande massa
da população. Nesse sentido, a práxis integrativa desencadeada por
Marx e Gramsci não se reduz à concepção de “cidadania” burguesa
que “integra” a população nos registros do seu sistema de contro-
le e transforma os indivíduos em eleitores passivos e consumidores
obsessivos. Também não significa acomodação nas formas de um
comunitarismo solidarista e de grupos enclausurados em suas iden-
tidades, nem se confunde com a ideologia do “integralismo”, ampla e
duramente combatido por Gramsci como projeto reacionário, orien-
tado a organizar hierárquica e imutavelmente a sociedade (Q 14, §
52, pp. 1711-12).
“Integral”, como procuramos mostrar com apenas algumas
recorrências evocadas dos escritos de Gramsci, está associado à
concepção de uma nova civilização a ser construída na práxis das
organizações políticas populares voltadas a romper com a matriz
destrutiva do capitalismo, a combater toda forma de degradação hu-
mana, social e ambiental, a eliminar a corrosiva divisão de classe, a
superar a concepção superior-inferior, governantes-governados, di-
rigentes-dirigido (Q 8, § 191, p. 1056; Q 15, § 4, p. 1752). Em oposi-
ção ao sistema desintegrador dominante, a práxis integral proposta
por Gramsci visa criar uma sociedade constituída de uma “rica to-
talidade de múltiplas determinações e relações”, “autorregulada” pela
realização plena de subjetividades políticas ativas e pela socialização
do poder econômico, político e cultural, único caminho para formar
seres humanos em toda a sua integralidade, em condições de reali-
zar a autêntica democracia que é a soberania do poder popular livre,
consciente, criativo e organizado politicamente.
Nesse sentido, a “práxis” inaugurada por Marx e aprofunda-
da por Gramsci é diferente do conceito de “prática” e de qualquer

71 lukács, G. História e consciência de classe: Estudo sobre a dialética marxista. São Paulo:
Martins Fontes, 2012, p. 79.

62
A práxis “ integral ” de G ramsci frente ao atual processo de desintegração

forma de pragmatismo imediatista, utilitarista e calculista que vise


eficiência, resultados e... ganhos! E é até diferente do conceito de
“experiência”, quando esta é entendida apenas no sentido científico
ou como memória e vivência de um grupo fechado em seu universo
particular. Ainda que importantes, esses significados não traduzem
todo o valor revolucionário conferido à “práxis”, que visa à trans-
formação radical do estado dominante pelo desenvolvimento livre
e criativo de todas as componentes humanas, sociais e ambientais
protagonizado pela ação política das massas populares. Para Grams-
ci, tanto o conhecimento do mundo e de si mesmo como a formação
das subjetividades humanas e sociais se constituem na construção
da hegemonia popular para criar uma nova civilização (Q 11, § 12,
p. 1385). Por isso, a unidade dialética entre teoria e prática (práxis)
não é uma mera característica técnica e profissional que se “aprende
fazendo”, mas é uma revolucionária concepção integral de ser huma-
no, de sociedade e de mundo que carrega o princípio teórico-prático
da hegemonia e visa transformar “de cima a baixo” a economia, a
política, a filosofia, a ciência, a cultura, a educação, as relações de
poder e a construir personalidades livres e associadas, em condições
de realizar a “grande política: a criação de novos Estados” (Q 13, § 5,
p. 1564) e de dirigir democrática e integralmente a sociedade.

63
CAPÍTULO 3
A cepção gramsciana da díade
consenso - coerção :

Um esforço investigativo dos


primeiros escritos aos cadernos
especiais

Júlio César Apolinário Maia

Considerações iniciais
Antonio Gramsci (1891-1937), no transcorrer do conjunto
epistolário, jornalístico e científico de seus textos, depara-se com
uma questão central: a consolidação de processos hegemônicos.
Dessa indagação passa, paulatinamente, a presumir a elaboração de
um “sujeito coletivo”, isto é, um tipo novo de civilização que intelec-
tual e moralmente oriente-se às necessidades contínuas de um pro-
jeto produtivo e econômico de desenvolvimento. A consolidação de
processos hegemônicos, assim, assume proporcionalidade direta em
relação à elaboração desse “sujeito coletivo”.
No entanto, ao intencionar esse raciocínio, não deixa de se in-
terrogar: como fazer com que cada indivíduo singular incorpore o
“sujeito coletivo”? Nos termos das proposições evidenciadas no âm-
bito do prefácio da Contribuição à crítica da economia política72 de
Karl Marx (1818-83), haja vista a notória conformidade do sardo

72 A progressão de um processo hegemônico acordada à noção gramsciana de filosofia da


práxis se orienta às proposições evidenciadas no prefácio da Contribuição à crítica da econo-
mia política de Marx (2008): i) toda ação humana só se coloca em prática se estiverem dadas
as suas condições objetivas; ii) só quando todas as forças produtivas de uma forção social
se desenvolvem é que esta encontra-se apta a se esgotar e extinguir; e iii) da mesma forma,
uma nova formação social só se eleva no momento em que suas forças produtivas estiverem
preliminarmente consolidadas no seio da antiga formação social. Dessas três proposições a
filosofia da práxis pode ser evidenciada e, por conseguinte, o fenômeno hegemonia, tam-
bém investigado por Antonio Gramsci no decorrer do conjunto de seus textos (jornalísticos,
epistolários e científicos), pode ser introduzido. Para aprofundamento cf. marx, Karl. Con-
tribuição à crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

65
Júlio César Apolinário Maia

para com a filosofia da práxis, cabe a paráfrase: como fazer com que
as forças produtivas de uma determinada formação social encon-
trem-se, ainda que preliminarmente, consolidadas?
A resposta encontrada por Gramsci a esse questionamento se
articula, a priori, à noção de consenso, isto é, ao princípio educativo.
É possível, a partir da reflexão sugerida na altura das notas intro-
dutórias de seu estudo sobre os intelectuais,73 entender como suas
funções, quando conectadas aos grupos de maior relevância social
(dominantes/governantes), possuem maior capacidade de cooptação
moral e intelectual.
Isso se deve à fácil assimilação ideológica por parte desses gru-
pos, transposta aos grupos sociais de menor relevância (dominados/
governados). Portanto, caberia a formulação de uma nova pergunta:
como educar cada indivíduo singular para a obtenção de um consen-
so, ou seja, para a incorporação do “sujeito coletivo”? Ou ainda, nos
termos de Marx: como avançar sobre o consenso de classe e, conse-
quentemente, tornar precisa a consolidação das forças produtivas de
uma nova formação social? Tal é o desafio a partir do qual se posicio-
na, preliminarmente, a consolidação hegemônica.
Na medida em que é ambicionada tal consolidação, no entanto,
também a regulamentação, isto é, a reivindicação do controle ou do
exercício coercitivo, deve caminhar ao lado da organização da cul-
tura. O sardo, ainda na altura de seu estudo sobre a função dos inte-
lectuais, destaca uma característica nuclear da garantia do exercício
ideológico dos grupos sociais dominantes sobre os grupos sociais do-
minados: a adequação e/ou manutenção de um aparelho coercitivo
capacitado a assegurar a legalidade do consenso (inicialmente pro-
jetado e firmado entre os diversos grupos sociais); noutras palavras,
a função de anexação do consenso ao campo da legitimidade, o que

73 Tal reflexão assegura que todo trabalho, por mais que seja demasiadamente instrumental,
também é intelectual, logo “todos os homens são intelectuais”. Entretanto, “nem todos têm
função de intelectuais na sociedade”, o que evidencia a existência de distintas (e até diver-
gentes) funções intelectuais: de um lado encontram-se aquelas cuja importância na socieda-
de é ilustre, e, em contramedida, de outro lado veem-se aquelas que não possuem nenhuma
(ou pouca) influência social. Para aprofundamento, cf. Gramsci, 2001.

66
A cepção gramsciana da díade consenso - coerção :

conseguintemente significa o papel de disciplinarização do indivíduo


(ou grupo de indivíduos). Eis porque à resposta dada aos primeiros
questionamentos, sobre a consolidação dos processos hegemônicos,
deve ser somado o tema coerção.
Assim, é correto afirmar, no referente à hegemonia, que o tema
consenso tende a caminhar junto do tema coerção, e que os acompa-
nham, na particularidade da ótica gramsciana, os pares terminológi-
cos “sociedade civil” e “sociedade política”, “estrutura” e “superestru-
tura”, “nível econômico-corporativo” e nível “ético-político” etc.
Não obstante, vale apreender que, no conjunto de seus textos,
notadamente, traduz-se um empenho investigativo acerca da conso-
lidação de diferentes processos hegemônicos. Tal empenho, de forma
metódica e sistemática, busca sempre demarcar, no âmbito da expe-
riência característica às diversas organizações sociais e suas respecti-
vas especulações hegemônicas, a imprescindibilidade dos temas con-
senso e coerção. É num esforço de síntese pelo resgate de ambos os
temas, no transcorrer da obra gramsciana, que se concentra o mote
do presente capítulo.

A título de sistematização
O objetivo que deve ser aqui exposto assinala-se pela inves-
tigação das categorias consenso e coerção na amplitude da obra de
Gramsci. Para fins de identificação tanto do percurso de elaboração
como da opção de exposição deste capítulo, vale identificar que: i) a
edição utilizada para consulta dos textos de Gramsci, passível de ve-
rificação na seção de referências bibliográficas, refere-se ao conjunto
do projeto de edição crítica da obra gramsciana realizado pela Civi-
lização Brasileira (cb), cujo percurso consolidativo pode ser apreen-
dido de forma emblemática através de Carlos Nelson Coutinho;74 ii)
a disposição analítica deste capítulo adota como critério a cronologia
da publicação dos textos de Gramsci e, para tanto, distingue sete di-
ferentes seções (1910-1926; 1929; 1930; 1931; 1932; 1933; e 1934) a

74 Para aprofundamento, cf. coutinho, Carlos Nelson. “Introdução”.mIn: Gramsci, 2006.

67
Júlio César Apolinário Maia

partir das quais se entrecruzam Escritos Políticos (ep), Cartas (lc) e


Cadernos (cc) que tratam dos temas consenso e coerção.
A primeira seção, em particular, compreende a análise dos ep,
textos pré-carcerários elaborados por Gramsci a partir de finalidades
diversas (jornalísticas, conferenciais, partidárias, de militância etc.).
Nessa seção, peculiarmente, adota-se a mesma cronologia contida
nos dois volumes da edição crítica da cb, isto é, num primeiro ins-
tante é identificada a presença dos temas consenso e coerção nos ep
alusivos ao intervalo 1910-20 (segmentados por Primeiros escritos:
1910-1919 e A nova ordem: 1919-1920), e, na sequência, esse mesmo
esforço é realizado nos ep referentes ao intervalo 1921-26 (divididos
em Socialismo e fascismo: 1921-1922, A construção do Partido Comu-
nista: 1923-1926 e A questão meridional: 1926).
As demais seções, distintamente, acham-se compostas por lc,
cc miscelâneos e cc especiais. Estes, diferentemente dos ep que com-
põem a primeira seção, não se agrupam segundo as orientações da
edição crítica da cb, mas com base no ano original de publicação.75

1910-26: O consenso e a coerção nos ep


No conjunto dos ep, os temas consenso e coerção aparecem,
majoritariamente, orientados a determinadas experiências (bolche-
viques; socialistas, comunistas e anarquistas italianas etc.), fato que
lhes confere uma aparência indireta, ou seja, não explícita, ainda que
passível de destaque.
Dada a particularidade jornalística e desuniforme desses es-
critos, remetidos a diferentes revistas, jornais, personalidades e de-
mais fontes de publicação e endereçamento, é notório observar que
Gramsci (2004a e 2004b) ainda não intenciona desenvolver, sistema-

75 Destarte, a seção “1929...” é composta por lc alusivas ao ano de 1929 e pelo cc mis-
celâneo 1 (1929-30); a seção “1930...” apreende o conjunto das lc do ano de 1930 e os cc
miscelâneos 7 (1930-31), 5 (1930-32) e 6 (1930-32); a seção “1931...” contempla lc do ano de
1931, como também o cc miscelâneo 8 (1931-32); a seção “1932...” aborda lc referentes ao
ano de 1932 e os cc especiais 12 (1932), 11 (1932-33), 13 (1932-34) e 10 (1932-35); a seção
“1933...” se dedica à investigação do cc miscelâneo 15 (1933) e do cc especial 16 (1933-34)
e; a seção “1934...” trata dos cc especiais 22 (1934) e 19 (1934-35).

68
A cepção gramsciana da díade consenso - coerção :

ticamente, um estudo que torne lúcidos os temas em questão. Ainda


assim, é possível registrar, mediante a observação de cada uma dessas
experiências, que já na altura dos ep ele consegue desenvolver um
raciocínio sobre os temas consenso e coerção, ainda que de forma
tímida.
Gramsci (2004a), no ep “A educação política na Rússia”, per-
tencente à primeira parte do volume primeiro da edição crítica da
cb, contesta uma genérica condenação direcionada aos bolcheviques
russos,76 que os referia “caóticos, loucos e sanguinários”. No esteio
dessa contestação já existem aproximações ao que o sardo passa, pro-
gressivamente, a denominar consenso e, especificamente, “consenso
ativo e operante”.77
Ao contrário da acusação feita, Gramsci (2004a) tende a deixar
evidente que o saldo positivo da experiência bolchevique russa deve
ser buscado no modo de difusão de um pensamento por parte dos
grupos dirigentes, isto é, pela difusão de um pensamento a ser segui-
do pelos grupos dirigidos, em função do “consenso ativo e operan-
te”. Nesse restrito sentido, os grupos dirigidos passam a confiar nos
grupos dirigentes, isto é, a se reconhecerem no direcionamento das
ações tomadas por estes.
No ep em questão, Gramsci (2004a) enfatiza ainda que o cerne
da orientação mental e cultural dos bolcheviques tem relação com
uma base filosófica historicista, ou melhor, com um significado acer-
ca do processo histórico e da ação política muito além de formas con-
tratualistas, e por isso se reconhecem na condição histórica de ação
sobre os órgãos executivos, sobre as atividades políticas, econômicas

76 A acepção de Bobbio (1998, p. 115) caracteriza os bolcheviques russos segundo “[...] a


linha política e organizativa imposta por Lênin ao Partido Operário Social-Democrático da
Rússia [...] no congresso de 1903 [ii Congresso do posdr]”. Para aprofundamento, cf. verbe-
te “Bolchevismo” em bobbio, Norberto. Dicionário de política. v. 1. 11. ed. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1998.
77 Nesta noção de consenso, distintamente daquela que passa Gramsci a denominar “con-
senso passivo”, não há sujeição (ou obrigação) que ligue, forçosamente, os governados ao seu
relevante papel na administração das decisões de seu grupo social, mas sim um sentimento
real de coparticipação e corresponsabilidade sobre tal, isto é, a condição de sujeito históri-
co e protagonista. Para aprofundamento da distinção entre “consenso passivo” e “consenso
ativo”, cf. Gramsci, 2014.

69
Júlio César Apolinário Maia

etc. Esse ep, logo, indicia o entendimento de Gramsci sobre “consen-


so ativo e operante”.
Com relação ao conjunto de ep que compreendem o período
do Biênio Vermelho (1919-20), segunda parte do volume primeiro
da edição crítica da cb, o tema consenso ainda se mostra prevalente
em detrimento do tema coerção, que por sua vez não havia, até então,
se manifestado. Esse tema, agora, passa a aparecer indiretamente, nas
vias da prerrogativa da “ditadura do proletariado”.
Em “Democracia operária” (junho de 1919), por exemplo,
Gramsci (2004a) evidencia o problema da construção de um con-
senso entre os grupos governados vide a ditadura do proletariado:
problema que para ele só seria resolvido a partir da efetiva prática
comunista (ou conscientização por um interesse comum/unificado).
Parte, portanto, para a construção de uma estratégia de “mobilização
da consciência das forças sociais” em prol do estabelecimento rígido
de uma ditadura do proletariado, ou seja, da articulação dos interes-
ses dos grupos governados para o estabelecimento dessa ditadura.
Seguramente, a estratégia de mobilização, como também a ditadura
do proletariado, ambos elementos apreendidos por Gramsci (2004a),
referem-se respectivamente aos temas consenso e coerção.
Em “O partido e a revolução” (dezembro de 1919), buscando
enfatizar a capacidade de operação do Partido Socialista Italiano
(psi) na manifestação da prática comunista, Gramsci (2004a) trata
da complexa conjuntura apreendida no interior desse partido, reafir-
mando que a instauração do interesse comum/unificado deve partir
de um reconhecimento coletivo acerca da própria capacitação his-
tórica da humanidade, isto é, um movimento consciente dos grupos
governados, na medida em que apercebem as contradições explícitas
no âmbito da regulação e da produção capitalista.
Em “Antes de mais nada, renovar o partido” (janeiro de 1920),
Gramsci (2004a) se debate com o problema da perda da essencia-
lidade da função do psi (anteriormente tornada evidente). Tal per-
da significava a intransigência com a consolidação do consenso, e a
consequente debandada da ditadura proletária. Para o sardo, o psi

70
A cepção gramsciana da díade consenso - coerção :

tinha caído numa “crise de infantilismo político” ao perder de vista


a articulação com os grupos governados e dar vazão à reafirmação
da democracia burguesa e do regime capitalista. Não é por acaso
que Gramsci está, no instante em questão, tecendo críticas severas à
ascensão dos “oportunistas reformistas” e “pseudorrevolucionários
anarquistas”78 no centro desse partido.
Gramsci (2004a) novamente adota, enquanto contraposição
ao problema do psi, a procedência da ação dos bolcheviques russos:
para ele, o Estado Operário Russo, ao estabelecer uma justaposição
entre o consenso e a coerção, conseguiu consolidar-se como ver-
dadeira ameaça ao Estado Imperialista, sobrepondo-se a ele e atin-
gindo o grau de ameaça aos diferentes formatos de Estado Burguês
Ocidental.
Na altura dos ep que compõem o segundo volume da edição
crítica da cb, o tema coerção ganha um pouco mais de notabilidade
e clareza. No primeiro ep destacado, “O Estado Operário” (janeiro
de 1921), na primeira parte do volume em questão, Gramsci (2004b)
trata da criação das condições políticas, por parte do psi, para o de-
senvolvimento do Estado Operário Italiano, ou seja, das qualida-
des necessárias para o advento do consenso em prol da revolução
proletária.
Deixa evidente que esse partido, até então, tinha fracassado
por não conseguir alçar os interesses dos grupos governados que
lhe garantiam sustentáculo. Tal incoerência é explicada por Grams-
ci (2004b) a partir dos “hábitos burgueses” (corrupção) adquiridos,
com maior frequência a cada vez, pelo psi, fato que joga luz à noção
de “crise partidária”, isto é, o desequilíbrio entre elementos consenso
e coerção. Nesse ep, portanto, Gramsci (2004b) busca deixar claro
que, quando há sobrepujança da coerção em relação ao consenso, o
partido tende a entrar em crise/colapso e deixar de ser representativo
do grupo social que inicialmente se comprometera a apoiar.

78 Ver, por exemplo, o ep “Mensagem aos anarquistas”, onde Gramsci (2004a) desenvolve
o entendimento de que o anarquismo não se caracteriza por um movimento que encarne o
estímulo revolucionário aos grupos governados, inviabilizando o papel do partido e, conse-
guintemente, o consenso. Para aprofundamento, cf. Gramsci, 2004a.

71
Júlio César Apolinário Maia

Uma alusão ao elemento consenso pode ser observada também


no ep “Controle operário” (fevereiro de 1921), onde Gramsci (2004b)
sustenta que, do ponto de vista da classe operária, a noção de “con-
trole” significa a possibilidade de construção de um novo Estado, de
uma organização governamental articulada aos interesses dos grupos
sociais governados: a reivindicação dessa noção de “controle”, salien-
ta, tão somente ocorre a partir da luta revolucionária, da organização
da cultura e da atividade de propaganda, da educação das massas
sobre a própria autonomia e personalidade histórica noutros termos
da conquista da confiança e do consenso, da proposição de formas
de organização baseadas na autogestão das próprias grandes massas
populares (tal como a experiência dos conselhos de fábricas).79
No que diz respeito ao ep “O programa de L’Ordine Nuovo”
(abril de 1924), já na altura da segunda parte do volume segundo
da edição crítica da cb, o tema do consenso pode ser verificado no
tocante ao plano de reorganização da classe proletária, ambicionado
por Gramsci (2004b) – e à consequente reorientação do “consenso
ativo e operante” dos grupos governados –, depois da repercussão
dos dois primeiros números da nova seção de L’Ordine Nuovo. Entre
as estratégias do plano há o projeto de criação das Escolas de Partido
para fins de elevação do nível político dos jovens: tal elevação cul-

79 Para Gramsci (2004a e b), os conselhos de fábrica, ainda que apreendidos num forma-
to primitivo, representam um novo tipo de organização proletária, a partir dos operários
fabris. Um tipo de organização que ocorre na produção fabril, na fábrica, na unidade de
produção, baseado em um novo tipo de organização com novas hierarquias delineadas se-
gundo os fundamentos do Estado socialista. Conflui-se aqui a democracia operária, onde a
partir de comissões internas a economia e a política se aparelham e a soberania se identifica
com a produção. A experiência aqui destacada diz respeito ao conselho de fábrica instau-
rado na fábrica da Fiat em Turim, em setembro de 1929, a partir do qual previam-se: i) a
reconstrução da classe trabalhadora em prol de uma finalidade que historicamente lhe era
imposta; ii) a necessidade de a classe operária cumprir pleno e efetivo domínio de si mesma
para ter autonomia, liberdade e espontaneidade no contexto da fábrica; iii) o reflexo do
melhoramento da produção (para isso, Gramsci expõe a tese de que, livre e emancipada da
escravidão, a força de trabalho humana é mais bem empregada, o que sinaliza que a domi-
nação dos capitalistas encontra-se em estado de esgotamento); iv) o controle e o respeito às
regras de trabalho; e v) a atualização dos regulamentos, a promoção de seções de instrução
etc. Para mais informações, cf. Gramsci, 2004a e 2004b.

72
A cepção gramsciana da díade consenso - coerção :

tural significa, notadamente, a organização de um “consenso ativo


e operante” em função das articulações partidárias do proletariado.
Na carta “Ao Comitê Central do Partido Comunista da urss”
(outubro de 1926), que toma forma de ep, também se verifica o tema
consenso. Gramsci (2004b) escreve ao Komintern para elucidar a
preocupação do Partido Comunista Italiano (pci) acerca da falta de
segurança, diante do saldo da xv Conferência do Partido Comunis-
ta Russo. As atividades e decisões tomadas pelo Komintern pare-
ciam não representar as massas trabalhadoras, o que significava para
Gramsci (2004b) a dissolução do consenso, um problema já viven-
ciado pelo psi.
Na terceira parte do volume segundo da edição crítica da cb,
especificamente no seu único ep, “Notas sobre o problema meridio-
nal e sobre a atitude diante dele dos comunistas, dos socialistas e dos
democratas” (setembro de 1926), os temas consenso e coerção, dife-
rentemente da primeira e segunda parte, podem ser apercebidos de
forma indireta.
Vale salientar, inicialmente, que tal ep se caracteriza pela res-
posta de Gramsci (2004b) à publicação de “Il problema meridionale”
pela revista Quarto Stato, dirigida por Carlo Rosselli e Petro Nenni,
no ano de 1926. A publicação tecia crítica às ideias de Guido Dorso
em sua obra La rivoluzione meridionale. A nota assinada por Quarto
Stato repudia Dorso por defender a posição do pci ante a “questão
meridional”, contra-argumentando que o partido carregava, enquan-
to formula mágica, “a divisão dos latifúndios entre os proprietários
rurais”.
Verificam-se aqui os temas consenso e coerção: Gramsci
(2004b), utilizando-se de um artigo que o pci publicara em L’Ordine
Nuovo dez anos antes, contesta engenhosamente a crítica elaborada
por Quarto Stato, na medida em que tinha consciência de que havia
quase uma década que o partido vinha defendendo a necessidade de
aliança e união de forças entre os operários do Norte e o campesinato
do Sul para a defesa contra uma provável contrarrevolução burguesa.

73
Júlio César Apolinário Maia

O que o pci fomentava, em contrapartida ao que observaram


os jovens do Quarto Stato, era a “hegemonia do proletariado”: a com-
pleta justaposição entre uma ditadura proletária, que concebia as vias
da exata medida entre coerção e consenso, e a elevação do Estado
Operário Italiano.

1929: O consenso e a coerção na conjuntura inicial das lc e no cc


miscelâneo 1
A presente seção, que se remete ao ano de 1929, possui pou-
cos destaques, o que não a impede de expor o substancial aprofun-
damento dado por Gramsci aos temas consenso e coerção. Há um
adensamento dessa noção na comparação com aquela apreendida
nos ep. Observa-se, sobretudo no destaque do cc miscelâneo 1, que
Gramsci (2014) já objetivava desenvolver reflexões sobre a consoli-
dação dos processos hegemônicos, e para tanto começava a identi-
ficar a imprescindibilidade da articulação entre Estado e sociedade
civil para a elaboração do consenso dos grupos dominados. Da mes-
ma forma, o destaque da lc já demonstra o quanto Gramsci (2005a)
dá importância aos temas consenso e coerção na “organização da
cultura”, deixando evidente que a formação do “sujeito coletivo”
(desde o desenvolvimento e a aprendizagem) perpassa a articulação
entre ambos.
No que tange à lc de 30 de dezembro de 1929, endereçada à
companheira Giulia, Gramsci (2005a) reflete sobre o desenvolvimen-
to de seu filho Delio. Aponta que o garoto aparenta estar num atra-
sado grau de desenvolvimento, não compatível com sua idade (cinco
anos e poucos meses). O tema coerção verifica-se na sequência: após
Gramsci (2005a) relembrar fatos de sua infância, exemplificando a
partir do próprio desenvolvimento a altura dos cinco anos de idade,
afirma: “[...] tive a impressão de que a concepção sua e do resto de
sua família seja excessivamente metafísica, isto é, pressuponha que
na criança está em potência todo o homem e é necessário ajudá-la a
desenvolver o que já contém em estado latente [...]” (p. 385).

74
A cepção gramsciana da díade consenso - coerção :

Nesse excerto, Gramsci (2005a) se posiciona em relação ao de-


senvolvimento e à aprendizagem no emanar da educação infantil: re-
vela ser impossível que aconteçam na ausência do elemento coerção,
isto é, largados ao “espontaneísmo”, haja vista distinguir-se o ser hu-
mano como caracteristicamente histórico. Tal distinção dada ao ser
humano pressupõe que a educação tenha, ao ver de Gramsci (2005a),
caráter coercitivo (não no sentido violento/brutal, mas sistemático/
metódico).
Já no que diz respeito ao cc miscelâneo 1, § 47, intitulado “He-
gel e o associacionismo”, Gramsci (2014) aborda o tema consenso da
seguinte maneira: afirma que este deve ter caráter, acima de tudo,
organizativo, e para tal é inevitável que se articule às organizações
privadas do Estado, aos partidos e às associações políticas e sindi-
cais. Gramsci (2014) evidencia que isso já era perceptível na con-
cepção hegeliana da ação dos partidos “como trama ‘privada’ do
Estado”, ou seja, a partir de Friedrich Hegel uma crítica ao constitu-
cionalismo parlamentar – onde o consenso dos governados não as-
sume caráter organizado e se faz vago e genérico – já era apercebida.
Contrariamente, acredita que o consenso dos governados, quando
organizado, deixa de ser genérico, pois torna-se um consenso de mo-
tivação e educação orientado às massas governadas.

1930: O consenso e a coerção na conjuntura intermédia das lc e


nos cc miscelâneos 7, 5 e 6
Da mesma forma que na seção anterior, Gramsci aqui avança
ainda mais sobre os temas consenso e coerção. Ainda, entretanto, de
forma muito dispersa e labiríntica por não haver, no ano de 1930, a
compilação das notas na forma de cc especiais, apenas os miscelâ-
neos e as lc. Nesse sentido, há de se destacar pelo menos cinco di-
ferentes assuntos no âmbito dos textos pertencentes a esta seção, em
que ambos os temas aparecem: reflexões acerca da opinião pública,
da constituição de um aparelho estatal, dos movimentos religiosos,
do Risorgimento italiano e, novamente (nos destaques epistolários),
da produção da cultura.

75
Júlio César Apolinário Maia

Duas são as lc que merecem realce, nesta seção, com relação


ao tema coerção. Na primeira delas, remetida à cunhada Tatiana no
dia 24 de março, Gramsci (2005a) demonstra alegria por ter notado,
em recente visita, que o estado de saúde dela não se agravara ao pon-
to que transparecia nas correspondências.
O tema coerção aparece na medida em que ele, convencido por
Tatiana, expõe não confiar na efetividade de “sermões advindos de
correspondências”, e que gostaria de poder fazê-la crer na importân-
cia de cuidar de sua própria saúde. Para tal, avança Gramsci (2005a)
no raciocínio, seria imprescindível “empregar meios de convenci-
mento como se faz com as crianças”, ou seja, utilizar-se um sistema
educativo que envolvesse doses conscientes e saudáveis de coerção.
O segundo destaque remete a uma lc à mesma destinatária
referente ao dia 20 de outubro. Gramsci (2005a) demonstra extrema
preocupação com as condições de saúde de Giulia, apontando como
teria ela adotado uma rotina de trabalho incompatível com a recu-
peração e os cuidados necessários ao próprio organismo, e que isso
poderia causar-lhe problemas. Ao fim, enfatiza, no mesmo sentido
da lc anterior, a importância de uma ação coercitiva sobre Giulia,
para além da simples persuasão (ou consenso).
No cc miscelâneo 7, § 83, “Noções enciclopédicas”, Gramsci
(2014) aborda o conceito de “opinião pública”, aproximando-o dos
temas consenso e coerção. Enfatiza que tal conceito representa a von-
tade política de um determinado grupo social, e que a existência de
vários grupos sociais torna notória a existência de várias opiniões
públicas, repercutidas e difundidas pelos diversos “órgãos de opinião
pública” (imprensa, jornal, Parlamento, partidos etc.).
E, por envolver vontades políticas diversas, o “problema da
opinião pública” se vincula à hegemonia, à articulação entre socie-
dade civil e sociedade política, logo à exata medida entre consenso
e coerção. Em síntese, esclarece que o alcance de uma hegemonia,
no âmbito de uma iniciativa estatal, perpassa o engenho de uma
única opinião pública, subsidiada pela articulação entre consenso e
coerção.

76
A cepção gramsciana da díade consenso - coerção :

Em “Maquiavel”, § 127 do cc miscelâneo 5, Gramsci (2014)


aponta alguns atributos da obra O príncipe e da personalidade de Ni-
colau Maquiavel, pretensão que o encaminha ao trato do tema con-
senso em articulação à noção de “Estado Integral”. Ao fim e ao cabo,
o texto busca sustentar, em contraposição às afirmações arbitrárias
de terceiros no tocante à obra em questão, que Maquiavel escreve so-
bre ação política imediata, portanto não reconhece princípios trans-
cendentais e metafísicos, e que parte, portanto, de uma concepção
de mundo original, caracterizada pela ação concreta do homem, ca-
pacitado a transformar a realidade. Para ele, Maquiavel se preocupa
com a formação do “Estado Integral” e por isso confere a tudo um
sentido político, isto é, remete à busca por um consenso permanente
que assegure a consolidação desse tipo de Estado.
Já no § 17 desse mesmo cc, “Movimento pancristão”, Gramsci
(2001b) aborda a iniciativa protestante pela elaboração de uma frente
única. Tal iniciativa, não obstante, parte do consenso, logrado pelas
diversas seitas cristãs contra o status hegemônico da Igreja Católica.
A oportunidade desse texto possibilita clara aproximação do tema
consenso à ofensiva protestante.
O cc miscelâneo 6, por vez, tem um primeiro destaque no §
87, “Armas e religião”, onde os temas consenso e coerção aparecem
de forma bastante clara. Gramsci (2014) recorre a uma afirmação de
Francesco Guicciardini sobre “dois elementos de extrema relevância
à consolidação de um Estado”: armas e religião. Esses dois elementos,
para Gramsci (2014), compreendem respectivamente “a força e [...]
persuasão, Estado e Igreja, sociedade política e sociedade civil, polí-
tica e moral [...], direito e liberdade, violência e fraude” (p. 243), ou
seja, compreendem a coerção e o consenso, elementos fundamentais
para a constituição do Estado.
Já na altura do § 88 desse mesmo cc, “Estado gendarme-guar-
da-noturno”, os temas consenso e coerção também se fazem presen-
tes. Aqui Gramsci (2014) retoma o conceito de Estado, diz ser urgen-
te a superação deste em sua representação econômico-corporativa,
na medida em que ela promove uma confusão entre sociedade civil
e sociedade política.

77
Júlio César Apolinário Maia

Diferentemente, ao seu ver, deve haver por parte do Estado


um zelo pela soma da sociedade política à sociedade civil, ou seja,
do consenso à coerção: “hegemonia couraçada de coerção”. Apreen-
der o verdadeiro conceito de Estado, a partir de tal articulação, para
Gramsci (2014), é ponto de partida para uma doutrina que enxerga a
imprescindibilidade do alcance da “sociedade regulada”.80
O § 13 desse cc miscelâneo, “As comunas medievais como
fase econômico-corporativa do desenvolvimento moderno”, é onde
Gramsci (2011) destaca a importância do livro de Bernardino Bar-
badoro para a compreensão do fato de a burguesia comunal italiana
não ter conseguido superar a fase econômico-corporativa, ou seja,
consolidar-se em Estado, avançar sobre a função hegemônica (de
consenso).
Para Gramsci (2011), a consolidação do Estado, por parte desse
grupo social, não poderia ser alcançada a partir da forma de repúbli-
ca comunal, necessitava, pelo contrário, elevar-se à forma de princi-
pado. Por isso tão somente, esse grupo social detém a fase econômi-
co-corporativa da consolidação do Estado moderno, fase em que se
verifica distanciamento entre as bases estruturais e superestruturais,
ou seja, respectivamente entre a coerção e sua necessidade de conci-
liação à função hegemônica, isto é, o consenso.

1931: O consenso e a coerção na conjuntura intermédia das lc e


no cc miscelâneo 8
No que se refere ao ano de 1931, Gramsci conduz, em menor
ênfase, alguns importantes contributos para o acréscimo dos temas
consenso e coerção. No que concerne ao destaque da lc, tal como
na seção “1929...”, é possível verificar uma aproximação de ambos os
temas ao problema do “princípio educativo”, ou seja, do desenvolvi-

80 Este conceito, para Gramsci (2014), culmina com a noção de uma sociedade ausente do
papel coercitivo, isto é, da sociedade política. Significa, assim, o estado pleno da sociedade
civil, o alcance de um Estado onde a ética e a moral coletiva se ascendam e os indivíduos, em
sociedade civil organizada, acatem espontaneamente a lei (espontaneamente não significa
passivamente, mas livres de todo e qualquer tipo de coerção, outrora exercida pela socieda-
de política). Para aprofundamento, cf. Gramsci, 2014.

78
A cepção gramsciana da díade consenso - coerção :

mento e da aprendizagem do “sujeito coletivo”. No tocante ao cc mis-


celâneo 8, é possível fazer aproximações entre os temas em questão e
o revigoramento dos movimentos religiosos.
Na lc em destaque, endereçada a Giulia em 31 de agosto de
1931, Gramsci (2005b) aborda, novamente, o tema da coerção orien-
tado ao desenvolvimento e à aprendizagem de seus filhos (Delio e
Giuliano). Comenta com Giulia sobre a visita de Lady Astor, Shaw
e Lorde Lothian à Rússia, da qual toma conhecimento a partir de
um artigo de opinião que lhe chega às mãos. Destaca o comentário
de Lady Astor a respeito da educação das crianças russas: segundo o
artigo, elas não têm tempo, sequer, de se sujarem, ante a ansiedade
dos russos em manterem-nas sempre limpas.
O que chama sua atenção, entretanto, para além desse comen-
tário, é a opinião “liberal” do redator do artigo: “O que acontecerá
com estas crianças quando tornarem-se adultas e não se submeterem
a esta superproteção dos pais?”. Gramsci (2005b) acha demasiada-
mente exagerado tal comentário e justifica-se ao dizer que a opinião
do redator denigre a função da coerção naquele sentido que já vinha
buscando clarificar em lc anteriores, qual seja, na organização da
cultura e da educação infantil.
No § 68 do cc miscelâneo 8, intitulado “Reforma e Renasci-
mento”, também há aproximações com os temas consenso e coerção
na medida em que Gramsci (2011) averigua uma observação de Giu-
lio Augusto Levi sobre a temática do livro de Domenico Guerri, La
corrente popolare nel Rinascimento, de 1931, que teria enfatizado que
o humanismo se caracteriza por um movimento de influência não
somente advindo do “gabinete dos doutos”, mas também do espírito
popular.
Aqui está a relação com os temas consenso e coerção: Levi, as-
sume Gramsci (2011), continua mencionando esse movimento de
confusão entre influências populares e eruditas, mas agora a partir da
experiência da Contrarreforma católica. Para ele, a Contrarreforma
não fora somente obra de “gabinete dos doutos”, pois se assim fosse
teria se utilizado apenas de coerção e não operado o “renovamento

79
Júlio César Apolinário Maia

religioso”. Contrariamente, assegura, fez-se necessário agir sobre o


consenso dos grupos governados.
O texto em questão é enfático para a compreensão da conci-
liação entre consenso e coerção, não só para o movimento da Con-
trarreforma, mas para todos os demais: Gramsci (2011) entende que,
“com o terror dos castigos [coerção], dobram-se as vontades, mas
não se fazem crescer obras de arte” (p. 291).

1932: O consenso e a coerção na conjuntura intermédia das lc,


no “Ensaio sobre a história dos intelectuais”, na “Introdução ao
estudo da filosofia”, nas “Notas sobre a política de Maquiavel” e na
“Filosofia de Benedetto Croce”
Esta seção carrega a maior expressividade dos temas consenso
e coerção no conjunto dos textos de Gramsci. Também aqui são es-
tabelecidas aproximações desses temas com contextos diversificados:
nas lc destacadas, primeiramente, a coerção se relaciona com a psi-
canálise e também com a arbitrariedade do pensamento croceano.
Já nos diferentes cc especiais, os contextos assumem ainda maior
amplitude: partem da elaboração das camadas intelectuais e do prin-
cípio educativo, avançam sobre a questão do momento especulativo
representativo dos processos hegemônicos do Estado, como também
da teoria da “dupla perspectiva” da ação política e da vida estatal, do
economicismo etc., até a noção de crise política dos partidos.
Em lc remetida a Tatiana, referente ao dia 7 de março de 1932,
buscando reiterar uma reflexão sobre a psicanálise, Gramsci (2005b)
apreende o tema coerção como estratégia do Estado para contenção
da moralidade num determinado contexto de crise. Para Gramsci
(2005b), a psicanálise é representativa das consequências advindas
da contradição entre novas obrigações e “antigos hábitos”/“velhos
modos de pensar”. Tal contradição é designativa de um contexto de
crise de representação assumido pelo Estado, onde a coerção faz-se
presente sob a forma de controle da ação de determinados grupos
sociais que não mais coadunam com uma moralidade pretensa.

80
A cepção gramsciana da díade consenso - coerção :

Já na lc de 2 de maio, endereçada à mesma destinatária, abor-


da ambos os temas, consenso e coerção, sob o ponto de vista da
literatura croceana. Croce parecia ser um autor por quem Tatiana
despertava particular curiosidade e Gramsci (2005b), na tentativa de
auxiliá-la em seus estudos, apresenta seu ponto de vista: o pensamen-
to de um teórico exclusivamente revisionista, crítico da filosofia da
práxis e, no campo da atividade histórico-política, corroborativo do
terreno superestrutural, do elemento ético-político. Gramsci (2005b)
aqui o interpreta como alguém que, notadamente, distingue o ele-
mento coerção do elemento consenso, dando grande relevância ao
primeiro enquanto negligencia o segundo.
Com relação ao § 1 do cc especial 12, não intitulado, alusões
relativas aos temas consenso e coerção podem ser encontradas du-
rante uma reflexão sobre a elaboração das camadas intelectuais. Tal
elaboração não ocorre, salienta Gramsci (2001a), de forma democrá-
tica, mas a partir da determinação de processos históricos concretos.
Logo, observa que a relação entre intelectuais e mundo da produção
perpassa a mediação do conjunto das superestruturas, ou seja, a ar-
ticulação entre sociedade civil e sociedade política, organismos pri-
vados a partir da função da hegemonia (consenso) e domínio direto
a partir do Estado (coerção). Nesse mesmo sentido, busca destacar
as duas funções imprescindíveis aos intelectuais: i) manutenção do
consenso “espontâneo” dos grupos governados. Esse consenso, sa-
lienta, nasce de uma confiança depositada pelos grupos governados
sobre o grupo dominante, em função do prestígio deste no mundo da
produção; e ii) manutenção do aparelho coercitivo, que assegura a le-
galidade do Estado e disciplina o indivíduo (ou grupo de indivíduos)
que, num momento de crise, possa romper com o consenso passivo
(ou espontâneo).
Na altura do § 2 desse cc especial, “Observações sobre a escola:
para a investigação do princípio educativo”, também existem apro-
ximações com os temas consenso e coerção. Aqui Gramsci (2001a)
revela que a conformação antiga das escolas primárias italianas se
orientava pelas “noções científicas” e “noções de direitos e deveres”.
As primeiras lutavam contra as perspectivas folcloristas do conheci-

81
Júlio César Apolinário Maia

mento e as segundas contra o individualismo e o localismo, ambos os


aspectos recriminados na nova concepção de mundo atribuída à for-
mação do “sujeito coletivo” moderno. A ciência como algo objetivo
e caracterizada pelas leis naturais, portanto promíscua à adaptação
humana (consenso) e as leis (os direitos e deveres — coerção) como
construções humanas, promíscuas à modificação/transformação em
prol do desenvolvimento social e coletivo.
A correlação entre ambas as noções tem uma intencionalidade:
formar o indivíduo nas vias de um conhecimento sobre as leis natu-
rais e a ordem legal que o regula. A ordem legal, especialmente, deve
ser respeitada como convicção (consenso), necessidade e condição
de liberdade, e não somente internalizada por meio da coerção.
Aproximações aos temas consenso e coerção, no § 53, “Filo-
sofia especulativa” do cc especial 11, também são apercebidas. Aqui
Gramsci (2006) está se debatendo com uma dificuldade de estabele-
cer crítica ao caráter especulativo de determinados sistemas filosófi-
cos. Para tanto, elenca algumas questões: i) se o elemento especula-
tivo é próprio de toda filosofia, ou seja, se é sua expressão teórica; e
ii) se esse elemento é representativo do apogeu e, consequentemente,
da dissolução de um sistema filosófico, ou seja, se é sua expressão
histórica.
Da segunda questão verifica-se a relação com o tema consenso:
Gramsci (2006) aproxima a dissolução de um sistema filosófico por
meio da especulação como expressão histórica da desagregação da
hegemonia real de um Estado. Pressupõe, assim, que, tendo atingido
a fase hegemônica (a fase do consenso), o Estado se depara com um
momento especulativo: um momento tendencial de desagregação.
Destarte conclui que toda época de degenerescência hegemônica do
Estado pressupõe um momento especulativo.
No cc especial 13, caracterizado por uma grande densidade
sobre os temas consenso e coerção, pode-se verificar, inicialmente,
no § 7, “Questão do ‘homem coletivo’ ou do ‘conformismo social’”,
um apontamento de Gramsci (2014) sobre a função do Estado na ela-
boração de um “sujeito coletivo”. Nesse apontamento ele se questiona

82
A cepção gramsciana da díade consenso - coerção :

sobre como educar cada indivíduo, objetivando a apreensão de seu


consenso, e também sobre como transformar a coerção em liberdade
(em sinônimo de benefício do “homem coletivo”).
Propõe-se a responder essas indagações salientando a impres-
cindibilidade do enaltecimento dos direitos dos organismos da so-
ciedade civil, que, por sua vez, em sua concepção, são juridicamente
indiferentes e não deveriam, em função de sua forte influência so-
bre a educação intelectual e moral dos grupos sociais governados,
ser desagregados da sociedade política. A elevação do direito aos
organismos da sociedade civil caracteriza, significativamente, a so-
lidificação de uma relação entre as sociedades política e civil, e con-
sequentemente a articulação do consenso (hegemonia) da sociedade
civil com a coerção (legitimidade) da sociedade política.
Nesse mesmo § Gramsci (2014) introduz ainda pares de con-
ceitos interessantes para pensar os temas consenso e coerção, tais
como “revolução permanente”/“hegemonia civil” e “guerra de movi-
mento”/“guerra de posição”.81
Na sequência desse cc especial, também se observam os temas
consenso e coerção no não intitulado § 14, quando Gramsci (2014)
trata da teoria da “dupla perspectiva” da ação política e da vida es-
tatal. Define vários graus nos quais essa dupla perspectiva pode-se
apresentar e deixa claro que um deles caracteriza-se justamente pelo

81 Sobre a revolução permanente, o autor deixa claro ser um conceito característico do


pós-Revolução Francesa que tem orientação representativa na prospectiva da Revolução
Socialista de 1848, um período de característica fluidez estatal, quando os partidos de massa
e os grandes sindicatos econômicos inexistiam, o Estado pouco tinha se desenvolvido e os
organismos da sociedade civil tinham maior visibilidade e concentração de poder. A partir
de 1870, no entanto, o conceito de revolução permanente caduca em virtude da expansão
colonial europeia, das questões internacionais, da complexidade com que passa a se deparar
o Estado. A partir da expansão colonial, fala-se agora em hegemonia civil, pois o Estado sai
vitorioso somente se estiver ajustado à estrutura moderna de democracia, que prescinde de
uma aliança entre a organização estatal e a sociedade civil. Justamente por essa complexi-
dade do Estado, com o advento da sociedade moderna, é que não se fala mais de guerra de
movimento para a conquista de uma determinada vitória, pois esta presume o não preparo
técnico e minucioso por parte do Estado, mas de guerra de posição, onde as trincheiras, ou
seja, o aumento da possibilidade de tornar-se vitorioso, pode ser apresentado pela apro-
priação da estrutura democrática moderna: articulação entre sociedade civil e sociedade
política (consenso e coerção). Para aprofundamento, cf. Gramsci, 2014.

83
Júlio César Apolinário Maia

sincronismo dos elementos coerção e consenso. O ensinamento des-


sa teoria postula, em crítica aos que a admitem imediatista, que deve
haver equilíbrio entre os elementos componentes da ação política e a
vida estatal, do contrário, se o primeiro grau (a coerção) é imediato
e elementar, o segundo (o consenso) tende a ser, necessariamente,
distante e complexo.
Na altura das primeiras reflexões do § 18, “Alguns aspectos
teóricos e práticos do ‘economicismo’”, especificamente naquelas em
que Gramsci (2014) se dispõe a entender em que circunstâncias o
sindicalismo teórico deriva do liberalismo (das doutrinas econômi-
cas do livre câmbio), veem-se também traços dos temas consenso e
coerção. Aqui Gramsci (2014) menciona uma distinção aguda entre
o livre-cambismo (liberalismo) e o sindicalismo teórico: menciona
que o primeiro é uma tendência própria da classe dominante – cujo
erro central se posta numa aparente desarticulação entre a sociedade
civil e a sociedade política, isto é, na atribuição de monopólio da ati-
vidade econômica à sociedade civil e no impedimento da sociedade
política sobre esta, permitindo, em contrapartida, regulamentações
estatais (ação de coerção), o que acaba por deturpar a ideia de liber-
dade econômica e significar o poder do Estado sobre a economia – e
que o sindicalismo teórico é uma tendência característica dos grupos
governados que não conseguem deslocar-se do estágio econômico-
-corporativo, ou seja, conciliar em exata medida os elementos con-
senso e coerção.
No § 21, também não intitulado, Gramsci (2014) destaca
particularmente o tema consenso, a partir do artifício do partido
político, na condição de novo príncipe e expressão de um único grupo
social, para buscar equilibrar e habilitar os interesses desse grupo e
dos demais (grupos aliados e opostos), fazendo-os entrar em con-
senso. Tal estratégia perpassa a fórmula jurídica do rei/governante/
presidente que “reina, mas não governa”, ou seja, que detém a função
ministerial, mas não a função governamental. Isso é fundamental, ao
ver de Gramsci (2014), para a manutenção da unidade estatal.
O § 23, “Observações sobre alguns aspectos da estrutura dos
partidos políticos nos períodos de crise orgânica”, é uma chave de lei-

84
A cepção gramsciana da díade consenso - coerção :

tura para identificar os elementos consenso e coerção na altura desse


cc. Nele, Gramsci (2014) busca evidenciar a existência dos momen-
tos de “crise orgânica no interior dos partidos”. Esses momentos são
causados pelo não reconhecimento, por parte dos grupos governa-
dos, dos partidos como expressão de classe, ou seja, pela carência do
elemento consenso, ou pela elucidação de uma insatisfação com o
grau de coerção assumido pelo Estado, e consequentemente a mani-
festação de um consenso passivo (ou forçado).
Em “Notas sobre a vida nacional francesa”, § 37, o tema con-
senso ainda é explorado. Salienta Gramsci (2014) que o jacobinismo
da Revolução Francesa encontra no regime parlamentar um aper-
feiçoamento jurídico-constitucional capacitado a elevar a classe ur-
bana, sob as vias de um consenso voluntário (ou passivo), ao status
de “hegemonia permanente”. Apresenta, na sequência, o registro da
hegemonia do regime parlamentar: esse tipo de hegemonia é demar-
cado pela conciliação do consenso e da força (coerção). Um equilí-
brio variado, mas jamais propenso a deixar que a força ultrapasse o
consenso, em que ambos caminham juntos, isto é, a força se camufla
no consenso.
Gramsci (2006), ao elencar pontos referenciais para um en-
saio sobre Benedetto Croce, em nota introdutória do cc especial 10,
apresenta alguns critérios metodológicos. A referência ao consenso
aparece neste momento: Gramsci (2006) elucida que o pensamento
de Croce não deve ser descartado ou interpretado qual fútil. Ao con-
trário, é elucidativo de uma reação ao economicismo e ao mecani-
cismo fatalista que assolava a filosofia da práxis num dado momento
histórico, portanto chama atenção de estudos para os temas da polí-
tica, da hegemonia e da noção de consenso como pressuposto à sua
consolidação.
Noutro instante desse mesmo cc, § 7, intitulado “Definição do
conceito de história ético-política”, Gramsci (2006) faz menção ao
tema consenso em aproximação à noção de filosofia da práxis: esta
não deixa de considerar a história ético-política como momento da
gerência política e do estabelecimento do consenso, tarefa em que
contraditoriamente não se empenhava Croce, ao compreender a his-

85
Júlio César Apolinário Maia

tória ético-política como “história propriamente dita”. Nesse sentido,


o contrário inviabilizaria sua linguagem especulativa, sua leitura su-
perficial e limitada da história, concebida a partir de individualida-
des, de uma formatação e personalização cultural própria etc., e não
a partir da coexistência caótica e contraditória de culturas. Croce não
se valia, conclui Gramsci (2006), do tema consenso.
Na altura do § 15, “Breves notas sobre economia”, também há
menção aos temas consenso e coerção, na medida em que Gramsci
(2006) trata de um conceito estabelecido no centro do debate eco-
nômico à sua época: o Homo oeconomicus. Para Gramsci (2006),
este caracteriza a própria abstração da atividade econômica de uma
determinada sociedade, logo sua improcedência científica culmina
com a necessidade de substituição de uma atividade econômica de-
terminada, que tende a caducar. Por assim dizer, o conceito de Homo
oeconomicus relaciona-se, para Gramsci (2006), com a política: a rea-
dequação da estrutura econômica é um estímulo político. Mediante
o papel legislativo e coercitivo (coerção) do Estado, pode agir sobre a
sociedade civil, alterando sua estrutura econômica (consenso). Deve
haver, conclui, direção política consciente para que a sociedade civil
se adapte a uma nova estrutura econômica.

1933: O consenso e a coerção no cc miscelâneo 15 e nos “Temas


de cultura”
A partir dessa seção, Gramsci passa, com mais segurança, a
subjugar os temas consenso e coerção, a partir de estudos orienta-
dos – que era o propósito dos cadernos especiais –, a experiências
concretas de consolidações hegemônicas: seu interesse pelo papel
desempenhado pela Igreja, retratado num dos destaques dessa seção,
torna evidente esse intento. Para além desse destaque, também exis-
tem aqui aproximações entre o tema consenso, o conceito de Estado
a partir da ciência política e a noção de centralismo orgânico.
Na conjuntura do § 10 do cc miscelâneo 15, “Maquiavel. So-
ciologia e ciência política”, Gramsci (2014) acrescenta reflexões so-
bre o tema consenso. O debate posto apreende que, ao passo que as

86
A cepção gramsciana da díade consenso - coerção :

tendências evolucionistas e positivistas ganharam protagonismo na


segunda metade do séc. xix, o conceito de Estado passou a ser em-
pobrecido, haja vista o regime parlamentarista ter tomado forma de
resolução natural da política e as ciências naturais se apresentado
como inteligíveis à decifração dos problemas sociais. O tema con-
senso parte do contraponto de Gramsci (2014) ao deixar claro que
os problemas sociais deveriam ser zelados pela ciência política, haja
vista o conceito de Estado por ela cultivado compreender o comple-
xo de atividades teóricas e práticas da sociedade, a partir das quais
à classe dirigente é lançado o desafio de saldar o consenso ativo das
classes dirigidas.
Adiante, § 13 do mesmo cc, “Problemas de cultura. Fetichis-
mo”, Gramsci (2014) aborda a imprescindibilidade da reeducação
das consciências individuais por parte dos partidos e organismos po-
líticos e sindicais. Identifica a fetichização dos organismos coletivos
quando passam a ser vistos pelos indivíduos como “unidade estra-
nha”. É possível caracterizar o entendimento de consenso, nesse §, na
condição de ferramenta importante para o centralismo orgânico na
função do Estado de conciliação da ação dirigente aos interesses dos
dirigidos.
No cc especial 16, por sua vez, o tema do consenso pode ser
apercebido na altura do § 11 do quarto volume, “Relações entre Es-
tado e Igreja”, onde Gramsci (2001b) aborda as concordatas e os tra-
tados internacionais. Questiona, antes de tudo, a contrapartida que
o Estado recebe a partir de uma concordata e busca desenvolver o
raciocínio a partir da Concordata estabelecida entre o Vaticano e o
Reich. Questiona o saldo obtido pelo Reich, haja vista aparentemente
ter se evidenciado, tão somente, uma limitação da autoridade estatal
por parte do contratante, na medida em que a Concordata interferiu
em sua legislação e administração.
No entanto, vale mencionar que existe uma contrapartida por
parte do Estado à assinatura de uma concordata, tal como ocorrera
entre o Estado Fascista e a Santa Sé em 1929: relaciona-se intima-
mente à concessão do consenso das massas. A Igreja passa a se aliar
ao Estado e a não se colocar como empecilho a suas decisões, favo-

87
Júlio César Apolinário Maia

recendo-o e sustentando-o “[...] assim como uma muleta ampara um


inválido” (p. 43).
Assim, como organismo privilegiado da sociedade civil, a Igre-
ja, ao se aliar ao Estado, passa a agir sobre o consenso dos grupos go-
vernados em acordo com o reconhecimento da legitimação das de-
cisões do aparelho estatal. Gramsci (2001b) designa esse movimento
de “capitulação dos estados à Igreja”, na medida em que reconhece
seu poder de organização do consenso dos grupos governados.

1934: O consenso e a coerção em “Americanismo e fordismo” e em


“Risorgimento italiano”
Nessa seção, os temas consenso e coerção direcionam-se a dois
pontos centrais: i) Ao processo de consolidação hegemônica de uma
nova hegemonia burguesa às vias da formação de um novo “sujeito
coletivo” moderno; e ii) Ao processo de consolidação hegemônica
dos moderados no contexto do Risorgimento italiano. Verifica-se,
destarte, um amadurecimento de ambos os temas, haja visto terem
sido, como pode ser observado no registro das seções anteriores,
continuamente estudados e conceituados, e progressivamente subju-
gados a experiências históricas concretas.
No cc especial 22, prontamente, Gramsci (2001b) aborda o
tema coerção na altura do § 2, “Racionalização da composição de-
mográfica europeia”, ao notabilizar a frustração das tentativas de
introdução do “americanismo” no contexto europeu. Para ele, tais
tentativas frustravam-se porque anacrônicas, incompatíveis com a
estrutura social-demográfica europeia, composta por uma camada
parasitária que tão só engessava o poder de concorrência das diversas
nações daquele continente no cenário do mercado nacional.
A coerção remete-se ao registro de Gramsci (2001b) sobre o
modo como as nações europeias pareciam resistir, intelectual e mo-
ralmente, ao fordismo: assinala que tal resistência, muitas vezes, era
contida não pela utilização do consenso, mas pela coerção.

88
A cepção gramsciana da díade consenso - coerção :

Em “Alguns aspectos da questão sexual”, § 3, também se faz


notório o tema coerção. Nele, Gramsci (2001b) avalia a influência da
questão sexual na função econômica, ou seja, a imprescindibilidade
de o Estado reiterar-se da questão sexual sob o advento da coerção
(da organização, legislação e regulamentação) de alguns de seus as-
pectos em benefício dos novos métodos de produção e da nova for-
ma assumida pelo trabalho na perspectiva da sociedade moderna.
Os temas consenso e coerção podem também ser vistos no § 10
desse cc, “‘Animalidade’ e industrialismo”, a partir do qual Gramsci
(2001b) evidencia que o industrialismo expressava um movimento
de contradição e correção da animalidade humana, ou seja, buscava
desfavorecer todo e qualquer tipo de instinto natural provindo do
homem.
Dessa tese, Gramsci (2001b) certifica que: i) o alcance de tal
objetivo, por parte do industrialismo, atrelava-se ao emprego do
elemento coerção; e ii) historicamente, para além da experiência do
industrialismo, toda mudança do modo de ser e viver de um dado
grupo social, noutras palavras, toda transposição de um “velho que
não quer morrer” para um “novo que quer nascer”, é resultado de um
movimento mecânico de coerção, acompanhado do consenso dos
grupos governados. Ocorre uma imposição de interesses e formas
de organização da vida material, por parte de um grupo dominante,
sobre os dominados.
O indício dos temas consenso e coerção no contexto do cc
especial 19 remete-se ao § 24, “O problema da direção política na
formação e no desenvolvimento da nação e do Estado moderno na
Itália”, onde Gramsci (2011), ao narrar sobre a direção política italia-
na, apresenta um de seus problemas nucleares: a homogeneidade dos
moderados (intelectuais da camada progressista) e sua influência nas
demais correntes políticas e grupos subordinados do Risorgimento.
Estes estabeleciam forte influência sobre o Partido de Ação, a ponto
de cooptarem, historicamente, o apoio desse partido a seus interes-
ses. Logo, identifica Gramsci (2011), para que um grupo social se
faça hegemônico, deve apresentar supremacia a partir do “domínio”
(coerção) e da “direção intelectual e moral” (consenso): assim fize-

89
Júlio César Apolinário Maia

ram os moderados, se mostraram dirigentes e permaneceram como


dirigentes, exerceram influência e domínio psicológico, técnico-jurí-
dico e corporativo, sobre os demais grupos. Esse domínio caracteriza
uma “revolução sem revolução”, uma revolução passiva, que ocorre,
em certa medida, por meio da lenta capacidade coercitiva do grupo
dominante sobre os demais grupos sociais.

Considerações finais
Cumpre notar que o avanço sobre as diferentes seções dispostas
neste arrazoado notabiliza o protagonismo dado aos temas consenso
e coerção no conjunto dos textos de Gramsci. É curioso notar como,
progressivamente, esses temas: i) deixam de assumir influências in-
diretas, como nos casos dos ep, das conjunturas inicial e intermé-
dia das lc e parcialmente dos primeiros cc, isto é, destituem-se de
um formato de sustentáculo de reflexões difusas, onde tão somente
postam-se como coadjuvantes ante um sentido mais amplo e pro-
tagonístico no texto (vale mencionar, vide exemplo, os diversos ep
onde o próprio termo coerção é aproximado de vários outros, como
“ditadura do proletariado”, “controle operário” etc.); ii) atravessam
um segundo instante, localizado também (e sobretudo) na primeira
altura dos cc, onde prevalece um esforço investigativo que passa a
atribuir condição protagonística a esses termos, ou seja, um instan-
te onde Gramsci se dedica a estudá-los propriamente (o cc especial
13, assim como as diversas notas espalhadas nos demais cc sobre a
consolidação hegemônica de um aparelho estatal, é exemplo notório
desse instante); e iii) passam a assumir, ao fim e ao cabo, na altura
dos últimos cc, não somente um papel protagonístico, mas o próprio
alvo investigativo de Gramsci. Em outras palavras, os temas consen-
so e coerção tornam-se mais que o objeto de sua investigação, mas o
próprio subsídio que ampara sua investigação (os destaques apreen-
didos nos cc 19 e 22, para além de notas dispersas em miscelâneos,
são exemplos disso: neles Gramsci dedica-se a investigar o consenso
aplicado a uma experiência real ⸺ na particularidade citada, o Risor-
gimento italiano e o Americanismo, respectivamente).

90
A cepção gramsciana da díade consenso - coerção :

Vale reiterar, por fim, que o juízo dos conceitos aqui investiga-
dos seguramente pode ser encarado qual chave de leitura do modo
de organização da sociedade moderna, isto é, a formação e a atri-
buição de sentido ao “sujeito coletivo” moderno tem implicações
diretas sobre a consolidação de um processo hegemônico, ou seja,
sobre o estabelecimento de uma relação entre o elemento consen-
so, característico do território estrutural da sociedade civil, de seu
elemento econômico-corporativo, e do elemento coerção, designati-
vo do território superestrutural da sociedade política, seu elemento
ético-político.
Não por acaso, despertou Gramsci, de forma cada vez mais
enfática, para a implicação da conciliação entre ambos os temas no
transcorrer das diversas consolidações (ou prospectivas) hegemôni-
cas de seu tempo. A perpetuação de seu esforço, logo, posta-se qual
desafio à hodiernidade, o que significa a atualização daquela mesma
indagação que outrora o instigou (“como fazer com que cada indiví-
duo singular incorpore o ‘sujeito coletivo’”?) sob a arguição e o res-
paldo de todo o legado de seu esforço de síntese.

Referências
gramsci, A. Cadernos do cárcere. Os intelectuais; O princípio educativo; Jornalismo.
v. 2. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001a.

______. Cadernos do cárcere. Temas de cultura; Ação Católica; Americanismo e


fordismo. v. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001b.

______. Escritos políticos. 1910-1920. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


2004a.

______. Escritos políticos. 1921-1926. v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


2004b.

______. Cartas do cárcere. 1926-1930. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


2005a.

______. Cartas do cárcere. 1931-1937. v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


2005b.

91
Júlio César Apolinário Maia

______. Cadernos do cárcere. Introdução ao estudo da filosofia; A filosofia de Bene-


detto Croce. v. 1. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

______. Cadernos do cárcere. Il Risorgimento; Notas sobre a história da Itália. v. 5.


2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

______. Cadernos do cárcere. Maquiavel; Notas sobre o Estado e a política. v. 3. 6. ed.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

92
CAPÍTULO 4
G ramsci , colonialismo e seus
descontentes

Peter Mayo

Introdução
O trabalho de Antonio Gramsci na prisão, focado na “Filosofia
da Práxis”, serve como fonte de ideias para ações políticas estratégi-
cas em vários campos, incluindo a descolonização da educação. A
“Filosofia da Práxis” não é, portanto, simplesmente uma palavra-có-
digo para contornar o censor da prisão, mas está no coração do pen-
samento de Gramsci e da exploração de áreas de investigação para
entender as condições históricas e geográficas que levaram à situação
da Itália em seu tempo, e contemplar direções futuras que o país po-
dia tomar. Cada situação é vista de uma perspectiva glocal, onde o
particular é visto e refletido em um contexto global mais amplo e vi-
ce-versa. Os escritos de Gramsci são particularmente relevantes para
discussões em torno do colonialismo, o foco temático deste capítulo.
Nas palavras de Stuart Hall, um dos principais estudiosos ins-
pirados em Gramsci, que fez muito para reinventar alguns dos con-
ceitos do sardo para uma análise de preocupações mais recentes so-
bre políticas, estratégias de raça e descolonização do Reino Unido:

Seus conceitos são “épicos” no seu alcance e referência. No entanto, Gramsci en-
tendeu que, quando esses conceitos precisam ser aplicados a formações sociais
históricas específicas, a sociedades particulares como estágios específicos no de-
senvolvimento do capitalismo, o teórico é obrigado a passar do nível de “modo de
produção” para um nível de aplicação inferior, mais concreto (Hall, 1996, p. 414).

A visão no cerne deste capítulo é que o colonialismo e o neoco-


lonialismo assumem muitas formas e compreendem questões relati-

95
Peter Mayo

vas a um “conjunto heterogêneo” de “posições de sujeito” subalternas


(Slemon, 1995, p. 45). Por isso, confinarei meu capítulo aos conceitos
gramscianos de Hegemonia e ao que chamo de “alianças extraviadas”
(Mayo, 2016), além da questão muito complexa da linguagem em
uma situação pós-independência e pós-colonial.
Essas questões se destacam nos contextos em que o colonia-
lismo direto, nos termos de Edward Said (1994, p. 8), tipificado pela
presença de uma força de ocupação, o neocolonialismo, e, para ado-
tar a perspectiva de Gramsci, o “colonialismo interno”(Gramsci,
1997) fazem sentir sua presença. Gramsci também foi invocado em
uma análise da ação comunitária na situação específica do “colonia-
lismo dos colonos” (Silwadi; Mayo, 2014; Sperlinger, 2015), na qual
os palestinos se encontram em sua terra natal.
Um texto chave de Gramsci, usado por vários autores nas dis-
cussões sobre colonização e dependência, é o ensaio interrompido
sobre a Questão Meridional. A questão da dependência é proemi-
nente na literatura que trata da pedagogia em contextos do Sul, sob
o domínio do “colonialismo informal”, como são, por exemplo, o
Oriente Médio e a América Latina. De relevância para a América
Latina, o contexto para a publicação deste livro é a situação relati-
va à Igreja Católica (com destaque em toda a obra de Gramsci) e
ao colonialismo/dependência. O chamado progressivo, na América
Latina e em outros lugares, foi para uma “igreja profética”, que revela,
nas palavras de Gustavo Gutiérrez, uma opção preferencial pelos po-
bres. Isso sublinha o contraste entre o que Cornell West chama de
“Igreja Constantineana” (a “Igreja do Império”) e a “Igreja Profética”
historicamente subterrânea, orientada para as bases, fundamentada
na Teologia da Libertação. Esta é uma teologia decididamente desco-
lonizante nascida dos contextos mais abertamente colonizados, que
deixaram de ser diretamente colonizados para serem informalmente
colonizados pela superpotência que são os eua e as multinacionais.
A questão da dependência precisa ser analisada neste contexto:
a dependência dos países latino-americanos do capitalismo interna-
cional das multinacionais, como proposto por Fernando Henrique

96
G ramsci , colonialismo e seus descontentes

Cardoso, mais tarde presidente do Brasil, e Enzo Faletto (Cardoso;


Faletto, 1979).
Gramsci se conecta a essa discussão sobre religião e movimen-
tos religiosos por meio de suas ruminações sobre o papel do movi-
mento cristão primitivo, como um movimento progressivo histori-
camente contingente, que desafiava o status quo e, eu acrescentaria,
eventualmente ajudou a transformar as relações de hegemonia den-
tro do Império Romano. Desafiou o imperialismo romano de várias
maneiras, embora tenha sido finalmente incorporado à mesma força
conquistadora, quando ganhou terreno e acabou se tornando a reli-
gião oficial do Império Romano, estabelecida por Constantino, daí
a Igreja do Império Constantinense, em oposição à profética mais
subalterna, e a igreja descolonizante da Teologia da Libertação. Essa
é uma forte característica cultural da tentativa de desvincular-se dos
centros de poder, uma teologia em que a fé se torna uma práxis li-
bertadora, em palavras que ecoam Leonardo e Clodovis Boff (1987).
Qualquer processo de descolonização, seja no domínio da re-
ligião ou em outros domínios, culturais e econômicos, é para “des-
colonizar a mente”, uma tarefa fundamental para uma pedagogia
genuinamente crítica. O primeiro passo nesse sentido é o Verstehen
(entendimento), que assume a forma de compreender a natureza da
opressão e o modo como a ideologia opera para tornar os seres hu-
manos cúmplices de sua própria opressão e da opressão de outros.
Como Paulo Freire escreveria, a imagem do opressor é internalizada
pelo oprimido (Freire, 1970, p. 30), o que impede que este contribua
para resolver a relação dialética opressor-oprimido. Essa situação
ecoa a dialética Master-Slave (Senhor-Escravo) de Hegel. Dados o
contexto brasileiro para a publicação deste livro e o elemento peda-
gógico envolvido, farei outras referências às ideias de Paulo Freire ao
longo do texto.
De uma perspectiva gramsciana, isso pode se conectar ao con-
ceito de hegemonia, o conceito principal de assinatura de Gramsci,
que não é de sua própria cunhagem. Foi usada por muitos antes dele
e deriva da palavra grega antiga Hēgemṓn (ἡγεμών) – chefe, líder ou
cidade-estado dominando outra. A hegemonia, no sentido grams-

97
Peter Mayo

ciano do conceito, significa liderança e direção por uma classe domi-


nante: um determinado estado de coisas é cimentado e condicionado
por ideias e comportamentos que apoiam grupos dominantes espe-
cíficos. Esses grupos estabelecem o padrão para as pessoas aspirarem
a alcançar. Há quem concorde com esse estado de coisas, apesar de
não acreditar na ideia hegemônica; as pessoas podem apoiar a he-
gemonia mesmo que não acreditem nela. Elas podem não acreditar
na religião, mas apoiam a hegemonia religiosa, uma vez que fornece
uma medida de ordem social e regulação moral que favorece seus
próprios interesses ou credo político. Os gays do armário podem
apoiar a heteronormatividade ao não “sair” ou agindo como machos,
pela simples razão de que esse comportamento externo lhes permite
faturar nas atuais estruturas hegemônicas heterossexuais.
No que diz respeito ao pensamento de Gramsci sobre o Mezzo-
giorno (regiões e ilhas do sul) na Itália, os camponeses do Sul desen-
volvem uma atitude cínica em relação aos padres que eles não con-
sideram modelos de virtude (ao contrário da situação no Norte da
Itália, afirma Gramsci). Gramsci escreve que o ditado popular entre
os camponeses do Sul é que os sacerdotes são sacerdotes apenas no
altar, fora eles são homens iguais aos outros (Gramsci, 1995, p. 38; no
original, Gramsci, 1997, p. 196) – possuem e negociam propriedades
privadas e, muitas vezes, vivem com uma concubina. Ficamos com a
sensação, no entanto, de que muitos dos camponeses do Sul teriam
aspirado a esse papel por seus filhos, pois o sacerdócio constitui um
caminho para a mobilidade social. Eles não estariam interessados em
perturbar a ordem social, que é reconciliar os opostos relacionados
na relação dialética de opressor e oprimido, uma relação que opera
em níveis diferentes e contraditórios (pode-se ser uma pessoa opri-
mida em um contexto, mas opressora em outro). Abstêm-se, assim,
de desafiar a relação da hegemonia e o bloco social que a sustenta.
Segundo Gramsci, sempre atento ao particular, os sacerdotes histo-
ricamente destacavam-se entre os intelectuais subalternos do Sul da
Itália que mantinham esse bloco – o Bloco Agrário do Sul, apresen-
tado por Gramsci como subserviente à capital do Norte. A hegemo-
nia representa a união de força e consentimento, tudo parte do que

98
G ramsci , colonialismo e seus descontentes

é chamado de Estado integral. A questão que se coloca em relação


aos diferentes contextos é se é apenas a força ou a força e o con-
sentimento que mantém a estrutura de poder no lugar. É mais pela
força (que Gramsci chama de domínio – dominação) que prevalece,
do que por consentimento e força? Se houver alguma balança envol-
vendo as duas, a favor de que lado ela está inclinada? Em contextos
como o da Rússia antes da revolução, ela era levada à força. Era tarefa
dos soviéticos criar as instituições da sociedade civil, como entendi-
do por Gramsci, ou seja, as instituições de construção de consenso
ideológico, cimentação, contestação e renegociação, para embeber a
revolução na consciência popular (Thomas, 2009).

Dividir para governar


Além disso, aqueles que são oprimidos em um contexto podem
ser opressores em outros. Em um contexto colonial, isso se manifesta
em casos de “dividir para governar”. A segmentação em linhas raciais/
étnicas e nacionais constitui uma estratégia-chave contemporânea de
dividir para governar baseada no processo de internalização da ima-
gem do opressor. Isso se torna mais importante em um período de
globalização hegemônica em que os produtores são segregados em
linhas étnicas, nacionais e geográficas (Norte-Sul). Isso está ligado à
noção de “opressor interno”, uma situação evidente, por exemplo, na
perpetração de atos de violência contra pessoas construídas como di-
ferentes e cujas características não se enquadram nos termos de refe-
rência eurocêntricos. Construo minha identidade posicionando-me
em relação à alteridade, marcando um ou dois aspectos da diferença
sem reconhecer um status econômico subalterno semelhante que faz
dos dois bucha de canhão para as forças capitalistas e suas estratégias
de segmentação.

Mentalidade de conquistador
Essa situação se aplica aos países ocidentais que desenvolvem sua
economia com mão-de-obra imigrante e, ao mesmo tempo, são luga-

99
Peter Mayo

res onde o medo de “concorrência” contra o “Outro” prevalecem. Apli-


ca-se também a países como o Brasil, com seu complexo conjunto de
políticas raciais envolvendo brancos posicionando-se como sendo de
origem europeia, pessoas do Sudeste da Ásia e, até certo ponto, negros
e indígenas. Os últimos mencionados ainda estão entre as maiores ví-
timas da especulação capitalista voraz em áreas como a Amazônia. São
vítimas do tipo de atrocidades contemporâneas que Eduardo Galeano
considerava uma continuação da antiga mentalidade do “conquista-
dor” (Galeano, 2009). O arrepiante relato e reflexão de Freire sobre
o assassinato arbitrário (imolação) de um indígena pataxó, Galdino
Jesus dos Santos, em um texto incluído na coleção póstuma de ensaios
agrupados sob o título Pedagogia da indignação (Freire, 2000), destaca
a continuação de atos racistas bárbaros no Brasil.
Um assassinato racista semelhante ocorreu em meu próprio
país (Malta) em abril passado, quando dois homens de uniforme mi-
litar saíram em uma “aventura” que consistia em caçar cães e gatos
“vadios”. Não encontrando nenhum em Malta “católico”, voltaram
sua atenção para os africanos migrantes. Lassana Cisse Souleymane,
42, marfinense, foi morta ao dirigir no meio de um tiroteio.82 Esses
crimes em particular são um exemplo da consciência opressora que
reside nas pessoas que usam a supremacia branca como um meio de
se posicionar contra a alteridade. Dá-lhes esse sentimento de “supe-
rioridade posicional”, para usar o termo difundido por Said (1978).
Essa superioridade posicional permitiria que alguns deles, como as
pessoas no Brasil e em Malta, matassem outros seres humanos por
esporte, como “moscas para meninos devassos” na famosa linha
do cego Gloucester na peça Rei Lear de Shakespeare. O orientalis-
mo, como uma construção do Ocidente, teve o efeito sobre o jovem
Edward Said e outros de fazê-los sentir como se fossem “pessoas me-
nores”.83 Ele reflete a mesma mentalidade que levou os europeus no

82 Disponível em: https://timesofmalta.com/articles/view/two-soldiers-believed-to-be-


-behind-migrants-drive-by-murder.710302. Acesso em: 2 jun. 2020.
83 Ver Edward Said. Entrevista com Michaël Zeeman para o programa Leven en Werken
(Vida e Trabalho) na televisão holandesa. Disponível em: https://www.youtube.com/wat-
ch?v=676fB7ExZys. Acesso em: 8 dez. 2018.

100
G ramsci , colonialismo e seus descontentes

passado a considerar negros, indígenas na América Latina e aborígi-


nes como “subumanos”, sujeitando-os a todos os tipos de degradação
humana, incluindo o comércio de escravos, perseguindo-os como
caça na Tasmânia com impunidade, enviando-os para as minas de
ouro e prata, onde podiam ser sepultados (ver Marx, O capital, v. 3)
ou mutilados por toda a vida, jogados, no caso dos africanos, de na-
vios de transporte de escravos, para os mares infestados de tubarões,
quando considerados não adequados para o propósito e assim por
diante. É uma mentalidade que se estende à limpeza dos desampara-
dos de cidades ou subúrbios, marcada não apenas por cor e raça, mas
também pelo abandono, como no tiroteio, por milicianos, visando
crianças sem-teto na Candelária no Rio de Janeiro, percebidas como
um “incômodo”.
Mais importante, no caso de terras ocupadas como as Améri-
cas e, séculos mais tarde, a Palestina, é o tipo de atitude que relega
uma porção específica da sociedade em uma terra cobiçada por um
grupo étnico específico e por forças imperiais estrangeiras, atuando
com uma variedade de motivos (Masalha, 2018), a uma massa ofi-
cialmente “invisível”. E tudo isso ocorre apesar do fato de que essas
pessoas são as mais visíveis, de fato o “elefante na sala”. Aqueles que
sobrevivem recebem uma cidadania inferior – o destino das pessoas
despossuídas ao longo da história do mundo. Exemplos incluem os
indígenas da América, termo usado em seu amplo sentido norte,
centro e sul-americano. Tornam-se descartáveis, expostos aos cons-
tantes perigos da limpeza étnica.
Atos violentos, racistas, sexistas entre indígenas, antropocên-
tricos e homofóbicos são exemplos dos tipos de comportamento
que indicam a presença da “imagem do opressor” dentro dos opri-
midos. Novamente, esse comportamento pode ser encorajado por
uma estratégia colonial de “dividir para governar”. Pode-se apontar,
como um exemplo relativamente recente, dentre os muitos exemplos
semelhantes ao longo da história, a carnificina interindígena na
década de 1990, resultante de como a Bélgica colonial conseguiu
colocar os tutsis contra os hutus em Ruanda. Na Índia colonial havia
diferentes hierarquias de diferenças sociais, especialmente diferenças

101
Peter Mayo

de castas, aproveitadas pelo “Raj Britânico” para o mesmo objetivo.


Essas diferenças não foram superadas quando o Estado indiano in-
dependente pós-colonial foi estabelecido e persistem (Guha, 2009).

O que Gramsci tem a nos dizer sobre esses tipos de fragmentação?


A Itália de Gramsci estava muito longe do país multiétnico que
se tornou desde então. A imigração da Europa Oriental e dos países do
Sul aumentou exponencialmente nos últimos anos. Testemunhamos
o surgimento de reações de grupos de extrema-direita, movimentos
políticos como a Lega Lombarda e figuras como Umberto Bossi e
populistas mais recentes como Matteo Salvini, o recente vice-primei-
ro ministro da Itália. O tema “dividir para governar”, no entanto, se
conecta ao tema de “alianças extraviadas”. Eu identifiquei isso como
um tema importante na discussão de Gramsci sobre a Questão Me-
ridional nos Quaderni, especialmente suas anotações sobre a história
italiana, e o manuscrito anterior, “Alguns temas da Questão Meridio-
nal” (“Alcuni temi sulla Quistione Meridionale”),84 tendo este último
inspirado Edward Said (1994, pp. 56-59), que recorre aos escritos de
Gramsci, especialmente às notas sobre as funções dos intelectuais,
principalmente no que diz respeito à sua representação (Said, 1996).
Gramsci se refere a como pessoas com interesses de classe di-
ferentes são induzidas a se unir a “alianças extraviadas” (Mayo, 2016)
com seus exploradores através da excitação populista de sentimentos
nacionais ou regionais, centrados na identidade territorial. A refe-
rência aqui é à formação da Jovem Sardenha, reunindo camponeses e
proprietários de terras no continente italiano – “o continente”, como
os sardos chamam. Ele elogia aqueles de genuína persuasão comu-
nista que identificaram a falha-chave em uma aliança que serviu para
mistificar as diferenças de classe envolvidas. Ele também se refere, no
mesmo manuscrito, a soldados da Brigada Sassari, com seu prestígio,
sendo dissuadidos de dispersar e disparar contra trabalhadores em

84 “Quistione” agora é considerado arcaico e é escrito e pronunciado como “questione”.


Obviamente não era arcaico quando Gramsci escreveu em 1926.

102
G ramsci , colonialismo e seus descontentes

greve em Turim, parte do antigo Reino da Sardenha, governado pela


casa de Savoia, no Piemonte.
O que convenceu as tropas de Sassari na Sardenha a se retira-
rem para seus quartéis foi a consideração de que os manifestantes,
trabalhando nas fábricas de Turim, eram de origem camponeses do
Sul, incluindo os sardos, assim como os próprios soldados. As “forças
da lei e da ordem”, representadas nas ruas pela polícia e pelos solda-
dos, recrutam-se nas classes trabalhadoras e camponesas, como des-
tacou Pier Paolo Pasolini,85 inspirado em Gramsci, em 1968. Ele esta-
va reagindo aos confrontos em Valle Giulia, Roma, entre estudantes
universitários (fora da Faculdade de Arquitetura), cujos rostos são,
de acordo com o escritor Friuli, os de “figli di papà”, e a polícia, recru-
tados nas classes trabalhadoras (“Figli di papà” é um popular slogan
italiano que literalmente quer dizer “filhos de papai”, significando
“burguês”).
Isso representa um apelo à solidariedade entre os subalternos,
nesse caso pessoas de origem camponesa e da classe trabalhadora. O
reconhecimento de trabalhadores industriais no Norte, originários
de comunidades camponesas no Sul da Itália, foi um aspecto impor-
tante do que Gramsci via como potencial para um novo bloco histó-
rico – mais do que simplesmente uma aliança. É algo profundamente
arraigado, enraizado no interesse comum.
Os episódios do tratado de Gramsci sobre a Questão Meridio-
nal levam a uma discussão sobre como o racismo e o populismo, te-
mas tão pertinentes hoje em dia, obscurecem interesses subalternos
comuns e relacionados. Isso ajuda a tornar o medo daqueles cons-
truídos como “outros” uma pedra de tropeço para a solidariedade su-
balterna nacional e internacional. Essa solidariedade basear-se-ia na
premissa de que as classes sociais são internacionais e não de âmbito
nacional, pois o capitalismo, desde o início, vem se globalizando. A
classe social é tranversal à principal divisão populacional. A questão
da classe é pertinente a vários contextos, dadas as divisões que neles

85 Ver http://www.scomunicando.it/notizie/storia-cultura-01-marzo-del-1968-gli-scontri-
-alla-facolta-architettura-valle-giulia-roma-pasolini-scriveva/. Acesso em: 2 jun. 2020.

103
Peter Mayo

ocorrem, como a divisão territorial Norte-Sul da Itália, com base em


fatores como rural ou urbano, Norte e Sul do mesmo país, uma forte
fonte de diferenciação social, para citar apenas um dos muitos obs-
táculos locais à solidariedade mencionados anteriormente. Gramsci
escreveu sobre uma aliança, que pode se transformar em um bloco
histórico, compreendendo trabalhadores industriais no Norte e cam-
poneses no Sul da Itália. Outras variáveis de divisão, comuns a mui-
tos outros países, incluem discriminação e violência de gênero. Isso
inclui “violência por honra” (incluindo “matança por honra”), uma
característica de muitas partes do Mediterrâneo e além.
A política de identidade, na pior das hipóteses, constituiria ou-
tro exemplo contemporâneo dos excessos de um fenômeno divisivo
que passa por cima de questões de solidariedade de classe social. Es-
sas são as mesmas políticas de identidade que Said detestava aber-
tamente, e que o escritor egípcio Nawal El Saadawi (1987, p. 126)
chama de um “dividir para governar pós-moderno”. Como em todas
as sociedades, existem questões que nunca desaparecem da classe so-
cial, que podem dilacerar tanto o colonizador quanto o colonizado.
A situação é exacerbada pelo processo de colonização do “uni-
verso mental” dos colonizados, nas palavras de Ngũgĩ wa Thiong’o
(1981, p. 16). Historicamente, caracterizou-se pela imposição dire-
ta do “arbitrário cultural” (interesses e escolhas culturais) dos co-
lonizadores na maioria dos locais onde o “conhecimento oficial”
(Apple, 1993) era transmitido, principalmente as escolas. O processo
de “anglicização” nas colônias britânicas é um exemplo óbvio. Fui
criado nos anos 1960, seguindo um currículo que se aproximava do
britânico, e lecionava em escolas que persistiam com livros em inglês
e da Inglaterra, considerados desatualizados no país de origem, mas
que eram despejados, ou continuavam sendo produzidos para certos
estados coloniais, um mercado residual (o caso dos livros Ladybird e
First Aid in English).
Hoje em dia, a invasão cultural se manifesta principalmente
por aquele tipo todo pervasivo de neocolonialismo ocidental euro-
cêntrico que Boaventura de Sousa Santos chama de “globalização he-
gemônica”, em reconhecimento à presença de um tipo alternativo de

104
G ramsci , colonialismo e seus descontentes

globalização, a “globalização de baixo”,86 também presente na ideolo-


gia da cultura de consumo concomitante. “Invasão cultural”, um ter-
mo correlato, usado por Paulo Freire na Pedagogia do oprimido, foi o
processo pelo qual certos africanos se viam como “europeus negros”
ou, nos termos de Frantz Fanon, “peles negras em máscaras brancas”.
Tudo isso pode ser lido como parte de um processo no qual certos
sujeitos, anteriormente colonizados diretamente, desejam ser iden-
tificados e assimilados nos centros do poder colonial eurocêntrico.
Esses constituem casos ilustrativos de hegemonia em um contexto
colonial.
A noção de Gramsci de hegemonia como força e consentimen-
to implícitos, mais intrinsecamente entrelaçados do que qualquer se-
paração por propósitos heurísticos pode sugerir, se baseia na ideia
de colonização, não apenas através do controle e subjugação militar
(nas palavras de Ranajit Guha, “dominância sem hegemonia” (Guha,
1997; 2009)), mas também através da colonização do “universo men-
tal” dos colonizados. Essa colonização mental deixa sua marca e lega-
do bem após o término da colonização “direta”. Ajuda a incutir entre
muitos a suscetibilidade contínua a influências políticas e culturais
decorrentes do que permanece, dentro do imaginário popular, a me-
trópole colonial. Afinal, como Thomas Babington Macaulay escreveu
uma vez, em relação à Índia, uma educação colonial visa criar “uma
classe de pessoas indianas em sangue e cor, mas inglesas em gostos,
opiniões, moral e intelecto”.87 O legado disso é uma elite dominante,
no período de pós-colonização direta, conectando-se com a burgue-
sia internacional e criando uma situação que Mohandas Gandhi cha-
mou de “domínio inglês sem o inglês” (Kapoor, 2003, p. 77), situação
que ele achava que aconteceria se o povo não desenvolvesse o Swa-

86 É preciso ter cautela em fornecer binários aqui, pois os dois se cruzam, por exemplo,
usando as ferramentas da globalização hegemônica, como a internet, para obter a interação
de diferentes ativistas na construção de eventos como protestos de rua ou fóruns sociais
mundiais.
87 Ata escrita pelo Hon. T. B. Macaulay, datada de 2 de fevereiro de 1835. Disponível em:
http://www.mssu.edu/projectsouthasia/history/primarydocs/education/Macaulay001.htm.
Acesso em: 30 maio 2020.

105
Peter Mayo

raj (autogoverno, não através de regras hierárquicas, mas através da


construção de comunidades e autotransformação).88
Obviamente, como indico mais adiante, as coisas costumam
ser mais complexas do que isso. É essa mesma metrópole que define
o padrão e se torna “o Eldorado” para muitos colonizados, embora
levando a situações complexas, dentro do próprio poder colonial
antigo – “O Império contra-ataca” de uma maneira muito diferen-
te do significado que Stuart Hall atribuiu a esse título cativante ao
cunhá-lo em 1982. É o título de um famoso ensaio dele sobre a in-
vocação da Grã-Bretanha de um glorioso passado imperial ao enviar
uma força-tarefa ao Atlântico Sul, por um “ato de princípio”, para
recuperar as Falklands/Malvinas da ocupação argentina (Hall, 2017,
pp. 200-06). Os colonizados do antigo Império também “revidam” de
uma maneira diferente. Eles o fazem entrando nos portões do antigo
poder colonizador e mudando gradualmente a natureza de sua so-
ciedade, embora não necessariamente, pelo menos por enquanto, sua
estrutura de poder. Essa situação levou e continua a levar a pedidos
de “lei e ordem” e a diferentes formas de racismo e apela a políticas de
imigração rigorosas, incluindo o “Powellism” (política racial defendi-
da pelo parlamentar britânico Enoch Powell). Ambos os temas foram
abordados por Hall89 (2017, p. 107 e 150). A situação continua a levar
a formas modernas de populismo ou trumpismo.
A imigração de colônias antigas e atuais, no entanto, gradual-
mente começa a ter efeitos nas políticas de certos poderes coloniza-
dores antigos.

88 O alerta dado por Gandhi a esse respeito, como Guha (2009, p. 38) indicou, foi ignorado
porque a elite nacionalista que reuniu apoio popular na sua busca por independência não
conseguiu manter esse apoio depois de conquistar o Estado, permanecendo tão distante do
resto da população como o Raj colonial tinha sido. A nova elite governante na Índia, por-
tanto, não conseguiu atingir domínio hegemônico.
89 “Powellism” tem significados diferentes, principalmente o de visões associadas às ideias
conservadoras de Enoch Powell. Ele tem sido frequentemente usado com relação a seus
pontos de vista sobre imigração e, portanto, o legado e as sombras desse discurso de “rios de
sangue” de 1968, assim chamado por causa de um verso que ele citou da Eneida de Virgílio.
A palavra “shadows” aparece no título de uma peça contemporânea muito absorvente sobre
o assunto, de Chris Hannan - What Shadows -, que foi muito bem recebida nos dois lados
do Atlântico, ganhando os prêmios Tony e Olivier.

106
G ramsci , colonialismo e seus descontentes

Medo da liberdade
Para os anteriormente colonizados diretamente que perma-
necem em seu país de origem, outras questões abundam. Ecoando
Fromm, Paulo Freire sustenta que, sob condições coloniais de pres-
crição e invasão/dependência cultural, a liberdade pode se tornar
uma coisa assustadora para os oprimidos. As pessoas podem ser tão
domesticadas que qualquer atividade que implique criatividade pode
parecer uma jornada para o desconhecido. Isso também afeta as pes-
soas, especialmente os migrantes de primeira geração, em países de
assentamento onde a contenção e a guetização constituem uma op-
ção de sobrevivência (Borg; Mayo, 1994).
Como Freire argumentou, a criatividade envolve assumir ris-
cos (Freire; Macedo, 1987, p. 57), com as conotações imediatas aqui
sendo diferentes daquelas ligadas ao conceito de Ulrich Beck de uma
sociedade contemporânea de “risco”. Assumir riscos é algo a que
muitas pessoas, anteriormente oprimidas, relutam a entregar-se, ten-
do sido imergidas na “cultura do silêncio”. “O país pode sobreviver
como uma nação independente?” foi a pergunta frequente com que
me deparei na preparação para a retirada das forças armadas do Rei-
no Unido de Malta em 1979. Muitas vezes ouvimos o mesmo pensa-
mento entre os escoceses à luz do Brexit e da possibilidade de outro
referendo sobre se a Escócia deve permanecer na União (Reino Uni-
do), e isso em um país que tem muito mais recursos naturais do que
Malta. Atualmente, este último desfruta de uma economia dinâmica
e de um bom padrão de vida.
De maneira mais geral, o medo da “libertação” e do desconhe-
cido faz parte da forma colonial da educação bancária, um dos con-
ceitos mais famosos de Freire, ecoando o “despejo” de Dewey, onde
a prescrição é a ordem do dia e onde as culturas e os espíritos cria-
tivos dos colonizados são denegridos e construídos como inferiores
aos dos colonizadores e de suas elites compradoras. É por essa razão,
para dar um exemplo, que o governo da “Nova Jóia” na Granada re-
volucionária insistiu em uma política destinada a “granadizar os gra-
nadinos”. Isso pretendia não desenvolver um nacionalismo insular,
mas instigar valor e orgulho entre os que eram antes pessoas direta-

107
Peter Mayo

mente colonizadas (Hickling-Hudson, 1997). O objetivo era ajudar


as pessoas a ganhar a confiança necessária para participar do pro-
cesso de desenvolvimento e a fazê-lo de maneira consciente, pergun-
tando: desenvolvimento para quem? Isso ecoa o tipo de reflexão no
centro da noção pedagógica e filosófica de práxis de Freire, discutida
anteriormente (Allman, 1999).
Do ponto de vista gramsciano, isso implica um trabalho pre-
figurativo, através do qual um grupo ou pessoas subalternas são or-
ganizadas para contestar a regra atual, com o objetivo de se tornar
o corpo governante. No caso de Gramsci, era a classe trabalhadora
industrial em Turim: “Toda revolução foi precedida por um intenso
trabalho de crítica e pela disseminação de ideias entre as massas”
(Gramsci, 1977, p. 12; no original, Gramsci, 1967, p. 19).
Contudo, esse ponto pode ser estendido às discussões sobre
a situação de um povo colonizado e a maneira como ele adquire a
confiança, a atitude e as habilidades para governar. Esse ponto surge
em uma variedade de lugares no corpo de trabalho de Gramsci,
inclusive em seus primeiros e posteriores escritos sobre os Conselhos
de Fábrica, com o objetivo de mudar o conjunto de relações de pro-
dução, complementado por uma mudança de relações legitimadas
na esfera social mais ampla, para provocar uma transformação na
natureza do Estado.
O Estado alternativo previsto é prefigurado pelas relações que
são incubadas e nutridas em diferentes bolsões de ação, como a ação
dos que trabalham nas fábricas de Turim: “O Estado Socialista já
existe potencialmente nas instituições da vida social característica
da classe trabalhadora explorada” (Gramsci, 1977, p. 66; no origi-
nal, Gramsci, 1967, pp. 206-07). Essas relações visam permitir que os
trabalhadores e seus representantes transcendam a relação capitalis-
ta-salário, e, daí, a estrutura dada, o que, ele observou, os sindicatos
eram relutantes em fazer.
O trabalho prefigurativo nos níveis industrial e cultural, com
a práxis no centro, foi fundamental para Gramsci no que diz respei-
to ao aprendizado de grupos subalternos para transcender o quadro

108
G ramsci , colonialismo e seus descontentes

político existente. Isso tem implicações para grupos colonizados que


precisam cultivar as habilidades e atitudes necessárias para assumir a
tarefa de governo após um período de colonização, tarefas e habilida-
des sendo frequentemente prefiguradas em zonas liberadas de países
como a Guiné-Bissau (Freire, 1978), engajados em prolongadas guer-
ras de independência. A luta pela liberdade de qualquer povo implica
esse trabalho prefigurativo que antecipa um estado que “ainda não”
está, mas que pode e deve ser.
Obviamente, uma advertência importante precisa ser feita
aqui: a situação indiana, conforme descrita por Ranajit Guha (2009)
e pelo grupo de Estudos Subalternos, inspirado em Gramsci, do qual
ele (Guha) é uma figura importante, indica que a organização popu-
lar e o apoio na busca pela conquista do Estado não se traduzem, ne-
cessariamente, em governo por hegemonia (força e consenso) poste-
riormente, ou seja, na situação pós-colonial. A dialética de opressor
e oprimido não é encerrada pela mudança de poder, mas continua a
ser reproduzida, como no relato de Guha sobre a situação indiana.
Ela continua a ser reproduzida através de uma simples mudança de
pessoal. Nenhuma tentativa é feita para “reinventar o poder”, como
Freire diria. Até que ponto isso se aplica a um estado futuro em que
as pessoas vivem e trabalham juntas como cidadãos iguais, sendo di-
ferentes, mas de uma maneira que não permite que a diferença seja
um instrumento de poder, um meio de um dominar o outro, como é
perfeitamente formulado por Edward Said na entrevista à tv holan-
desa90 (ver nota 2)? Ele obviamente tinha a Palestina em mente.

A questão da linguagem
É claro que há outro aspecto dos escritos de Gramsci que seria
particularmente preocupante para ativistas/educadores de adultos
envolvidos na política pós-colonial. Trata-se do problema do idioma.
Ao abordar a questão do colonialismo em termos de um contexto
colonial Norte-Sul na mesma península, Gramsci criticou a imposi-
ção hegemônica do idioma florentino “burguês” da época contem-

90 Ver Edward Said entrevistado por Michaël Zeeman, op. cit.

109
Peter Mayo

porânea como idioma nacional, dado que era uma “gramática nor-
matizada” imposta, sem nenhuma base popular nacional. Embora
ele tenha visto o valor das gramáticas espontâneas de diferentes re-
giões da península italiana, Gramsci incentivou o estudo da língua
nacional padrão, sem deixar de lado a primeira língua, pois pode
ajudar o subalterno a não permanecer à margem da vida política e
econômica. Ele também criticou fortemente a ideia de uma língua
franca artificialmente construída na forma do esperanto, uma vez
que não estava enraizada em autênticas relações sociais vivas e não
emergia “de baixo para cima” (Gramsci, 1985, p. 30).
Esse ponto referente à aprendizagem da língua padrão (impos-
ta de cima como uma espécie de “revolução passiva” não enraizada
na consciência popular) se torna ainda mais válido quando se con-
sidera que, como indicado, a hibridação continua sendo uma expe-
riência característica da experiência de resistência colonial ao poder.
Uma “guerra de posição” gramsciana, caracterizada por avan-
ços e recuos, envolvendo apropriação crítica, ocorre em diferentes
frentes. Evidentemente, a questão da linguagem nas antigas colônias
diretas permanece complexa, pois a linguagem padrão colonizado-
ra se torna uma fonte de diferenciação social entre grupos e classes,
embora, em pequenos Estados, sirva como linguagem da moeda in-
ternacional, sendo, portanto, um ativo econômico. Eu alegaria, no
entanto, que o idioma precisa ser ensinado de maneira diferente de
como foi ensinado em condições de colonialismo direto. Nas ex-co-
lônias britânicas, a ênfase não seria mais colocada na “anglicização”
e no ensino da língua inglesa como uma “missão civilizadora” (até
se fala em “línguas inglesas” hoje), com sua conotação de construir
aquilo que é nativo como “não civilizado”, mas no aprendizado de
idiomas como uma experiência libertadora. Neste último caso, pode
ser um meio de, como Said coloca na mesma entrevista citada, se
libertar da guetização.
As políticas de ensino de idiomas incluiriam, em um contexto
pós-colonial, o ensino/aprendizagem de línguas e alfabetizações na-

110
G ramsci , colonialismo e seus descontentes

cional-populares91 ou indígenas. Aprender as línguas indígenas ao


lado da língua colonizadora pode muito bem fazer parte de uma edu-
cação bicultural, como defendido por Antonia Darder, uma pedago-
ga crítica de inspiração freireana, no que diz respeito à educação para
latinas e latinos nos eua (Darder, 2011; Ives, 2006; Carlucci, 2015).
A linguagem colonizadora, de uma perspectiva pedagógica crítica,
precisaria ser ensinada de maneira problemática, na qual seus papéis
históricos e sociopolíticos são abordados. A problematização envolve
aprender juntos como a ideologia, incluindo a ideologia colonial, re-
side nas línguas – muito longe da maneira colonial e neocolonial de
ensinar línguas até o dia de hoje (ver discussões em torno do tesol
entre imigrantes). Também implica aprender o papel que, no caso
do inglês, a língua colonizadora desempenha como força hegemôni-
ca (Macedo; Dendrinos; Gounari, 2003). Uma educação baseada em
práxis envolve essa abordagem. Amilcar Cabral declarou publica-
mente algo no sentido de que “a linguagem é uma das expressões
mais imediatas, autênticas e concretas da cultura” (Freire, 1978, p.
184). Marx e Engels escreveram, na Ideologia alemã, algo no sentido
de a linguagem ser “consciência prática”, que é tão antiga quanto a
própria consciência (Marx; Engels, 1970, p. 51).
Uma noção gramsciana de entendimento através da práxis
levaria a sublinhar a necessidade de entender o papel hegemônico
político da linguagem padrão que se deve aprender para se tornar
eficaz, pois isso também se encaixa perfeitamente com suas discus-
sões sobre o rigor e a força política transmitidos por meio de apren-
der “conhecimento poderoso” em pé de igualdade com as matérias
inseridas no currículo da escola clássica, um argumento que ele faz
nas anotações (ensaios) dos Cadernos iv e xii. O que constitui “co-
nhecimento poderoso”, um termo que tem ecos gramscianos, que eu
emprestei de Michael Young, varia de um contexto histórico e geo-
gráfico para outro. A velha escola clássica terá que ser transformada,
na sua opinião, na medida em que a sociedade que ela serviu mudou.
Ele fornece um epitáfio para uma escola que foi, mas não pode ser

91 “Alfabetizações” usada como um termo genérico ⸺ incluindo creoles e outras formas de


expressão que não têm o status de línguas.

111
Peter Mayo

mais, com a mudança dos tempos (Manacorda, 1972, p. 29). Quanto


à linguagem, ele poderia argumentar que o mesmo se aplica, mas
não em sua vida nem no futuro próximo, pois, a meu ver, sua so-
lução parece mais teórica do que prática. Ele defende o surgimento
de uma língua popular nacional ou gramática normativa a partir de
uma síntese das várias gramáticas espontâneas (idiomas regionais ou
alfabetizações) existentes em todo o país, dando o exemplo de sua
Itália natal – uma língua popular nacional que seria democrática na
medida em que refletiria a “vontade coletiva” (ver Ives, 2004, p. 100).
Isso seria uma ilusão da parte de Gramsci? Deve-se relacionar com
“todo o modo de vida” dos alunos, como argumentaria Raymond
Williams (1958/1990, p. 239). Eles não devem ser ensinados de uma
maneira que sirva para imitar o colonizador (típico da “anglicização”
nas colônias britânicas).

Conclusão
As questões de linguagem nas antigas colônias diretas, como
na maioria das questões pós-coloniais em geral, permanecem com-
plexas. Antonio Gramsci nos ajuda a seguir uma rota por essa com-
plexidade. É por isso que suas ideias continuam a inspirar escritores,
ativistas sociais e inúmeros outros trabalhadores da cultura hoje.
Edward Said, por exemplo, reconheceu isso quando, acostumado ao
inglês em seu trabalho acadêmico e escolar, voltou ao Oriente Médio
para reaprender o árabe, um idioma que havia “deixado de lado”, um
argumento que destaca na citada entrevista na televisão holandesa.
Ao fazê-lo, obteve a combinação perfeita, como um intelectual ára-
be, que lhe permitiu atravessar dois meios de comunicação, cada um
refletindo uma visão de mundo específica (Weltanschauung). Cada
idioma se mostrou importante na busca de articular as lutas de seu
próprio povo em diferentes domínios políticos e culturais – o próprio
mundo árabe e o domínio ocidental, este último fornecendo espaços
para desafiar o que ele considerava deturpações e “orientalizações”
de pessoas do Oriente Médio. A aprendizagem bicultural é funda-
mental para contestar a opressão em diferentes locais de luta. Na vi-
são de Gramsci, serve para transcender as margens da vida política.

112
G ramsci , colonialismo e seus descontentes

Com relação a Gramsci, Stuart Hall indicou que ele escreveu


pouco com foco especificamente em raça e etnia, mas há muito no
corpo de trabalho legado à posteridade que é útil para ativistas e es-
tudiosos que lidam com essas áreas relacionadas à investigação pú-
blica (Hall, 1996 , p. 115).
Independentemente da quantidade de escritos que Gramsci
dedicou ao colonialismo e de sua localização social específica como
uma pessoa emergente, como Freire e Said, de um território com uma
história de colonização (a Sardenha historicamente esteve em um re-
lacionamento colonial com o norte da Itália continental), o corpo de
trabalho oferece ferramentas e estruturas conceituais suficientes que
podem ajudar a orientar diferentes análises do colonialismo, etnia e
condição pós-colonial. Sugeri a relevância dessas ferramentas con-
ceituais para as várias lutas da descolonização, em situações de pós-
-colonialismo e neocolonialismo ou colonialismo direto que existem
hoje.

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116
CAPÍTULO 5
A quisição , importância e uso da
língua para G ramsci

Simone Aparecida de Jesus

Introdução
No Brasil, as obras de Gramsci foram traduzidas pela edito-
ra Civilização Brasileira, e compõem uma coleção de dez volumes,
sendo dois Escritos políticos, seis Cadernos do cárcere e dois volumes
de coletâneas das Cartas do cárcere. É o material pesquisado para
a elaboração deste capítulo. Na introdução ao primeiro volume dos
Cadernos do cárcere, na versão brasileira, assinada por Carlos Nelson
Coutinho, que é também o responsável pela tradução de todos os vo-
lumes utilizados nesta pesquisa e disponíveis em língua portuguesa,
há uma passagem, nas páginas 17 e 18, que chama a atenção ao fato
de Gramsci sempre ter pretensões de estudo e escrita sobre linguís-
tica. Mas é feita uma consideração de que a menção recorrente de
um retorno a esse tema seria uma maneira encontrada por ele para
homenagear seus interesses dos tempos de juventude, de quando in-
gressou no curso de letras na universidade, conforme se verifica a
seguir:

Pode-se facilmente observar que, em função da crescente deterioração de suas


condições físicas, o ritmo de trabalho de Gramsci se torna cada vez mais lento e
menos criativo. Todos os cadernos redigidos nesse último período são “cadernos
especiais”, de dimensões reduzidas, onde Gramsci se limita a recopiar textos A,
praticamente sem nenhuma modificação ou acréscimo. As poucas notas criativas
desse período são incluídas, em sua maioria, em cadernos iniciados no período
anterior. A única exceção é o caderno 29, intitulado “Notas para a introdução ao
estudo da gramatica”, formado por 9 notas, relativamente breves, todas de tipo B,
nas quais Gramsci retoma preocupações próprias dos anos em que frequentou a

119
Simone Aparecida de Jesus

Universidade, quando pretendia graduar-se em linguística. É como se, no ocaso de


sua breve mas intensa vida, Gramsci resolvesse prestar uma homenagem aos seus
antigos interesses e projetos juvenis (Gramsci, 1999, pp. 17-18).

Ao contrário do que foi apreendido e dito nesse excerto da in-


trodução dos Cadernos do cárcere, o que se percebe ao pesquisar em
toda a obra gramsciana, disponível em português, quanto às questões
de língua, linguagem e linguística, é que a intenção, sempre presente,
de retornar a esse estudo não é uma simples homenagem, mas uma
forma própria de dar a esse tema seu lugar dentro do que seria a obra
completa do autor. De certa maneira, Gramsci fala da questão da lín-
gua ao longo de toda a sua obra, tanto porque tece alguns conceitos
a respeito, em outros textos, quanto pela forma como ele associa a
questão da língua à própria consciência de mundo do povo.
Dessa forma, o que se percebe, em suas pretensões, é que, as-
sim como fez com diversos outros temas, ele dedicaria uma parte de
sua obra especificamente à língua, o que não foi possível fazer devido
ao seu estado de saúde e ao tempo escasso. Provavelmente, seria uma
discussão muito maior do que tudo o que se pode reunir dos textos
disponíveis relativo ao tema até o momento, mas é também possível
que muito do que ele colocaria nesse caderno específico já esteja es-
crito em outras partes de outros Cadernos, conforme se percebe nas
análises desenvolvidas a seguir.
Já preso, por meio de carta Gramsci comunicou a Tatiana, sua
cunhada, seu plano de estudos composto por quatro temas, a saber:
uma pesquisa sobre a história dos intelectuais italianos; um estudo
de linguística comparada; um estudo sobre o teatro de Pirandello;
e um ensaio sobre os romances de folhetim. Um dos interesses de
Gramsci, desde o princípio, era estudar e compreender melhor a
questão da língua na constituição do sujeito. Para ele, a língua im-
plica diretamente a maneira como o indivíduo concebe o mundo.
Nessa perspectiva, são diversas as passagens nas quais fala da língua
em seus escritos.

120
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

De acordo com as cartas, era intenção de Gramsci, dentre ou-


tros temas, realizar um estudo de linguística comparada. A proposta
seria abordar apenas a parte metodológica e puramente teórica do
assunto, que, segundo o autor, jamais foi tratada de modo completo e
sistemático do novo ponto de vista dos neolinguistas contra os neo-
gramáticos. Ainda nesse campo, propunha também um estudo sobre
o teatro de Pirandello e sobre a transformação do gosto teatral italia-
no que Pirandello representou e para o qual contribuiu, e, ainda, um
ensaio sobre os romances de folhetim e o gosto popular na literatura.
Aos dois últimos temas são destinadas algumas passagens da
obra gramsciana. Já o estudo de linguística comparada não está con-
templado no material até hoje disponibilizado para estudo, porém,
provavelmente, muito do que reorganizaria para esse tema já está
contido nos demais, por ser a língua algo recorrente em toda a obra.
É possível chegar a essa conclusão por todas as inferências que ele
faz ao tema e a densidade dessas inferências, ainda mais se conside-
radas a forma como Gramsci escreveu, com frequentes repetições e
retomadas de assuntos já tratados anteriormente, e sua morte por
complicações de saúde, que o impediu de concluir seu legado.
Em carta de 8 de fevereiro de 1929, dentre as notas e aponta-
mentos feitos por Gramsci, aponta A literatura popular dos romances
de folhetim e as razões de sua permanente influência e A questão da
língua na Itália como temas principais a serem desenvolvidos. Tam-
bém nos Ensaios principais trata da literatura popular dos romances
de folhetim, do folclore e do senso comum, da questão da língua li-
terária e dos dialetos.
Como já dito, a língua é um tema recorrente em toda a obra de
Gramsci, como fator determinante de muitos outros temas desenvol-
vidos, justamente porque, para o autor, ela tem fundamental impor-
tância na concepção de mundo de um povo. É nesse sentido que o
presente capítulo caminha, destacando o que Gramsci apontou acer-
ca da língua e as relações que ele estabelece a partir desse estudo. A
linguística em Gramsci é um objeto em si, não podendo ser reduzida
ou subsumida às demais esferas de sua reflexão (Carlucci, 2013, p. 2).

121
Simone Aparecida de Jesus

Gramsci: vida e obra (breves considerações)


Gramsci foi uma figura bastante emblemática em seu tempo e
continua o sendo ainda na atualidade. Compreender a sua obra não
é uma tarefa fácil, exige muita disciplina e pesquisa. A maneira como
ele escreveu e o volume de material produzido impressionam, prin-
cipalmente pelas condições de escrita que ele tinha. De seus escritos
podem ser desenvolvidos vários assuntos importantes e interessan-
tes. Porém, este artigo abordará um tema sobre o qual, talvez, caso
tivesse mais tempo, ele teria se aprofundado ainda mais: a língua.
Antes de retomar os escritos de Gramsci, o levantamento do
que ele escreveu sobre a língua e os desdobramentos que tencionou a
partir desse tema, faz-se necessária uma breve apresentação do autor,
no intuito de entender o porquê da compreensão de que escrever
sobre a língua seria uma mera homenagem ao curso de linguística e
de como essa interpretação difere do entendimento defendido neste
capítulo.
Gramsci nasceu em 22 de janeiro de 1891, em Ales, na Sarde-
nha, e morreu em 27 de abril de 1937. Filho de Francesco e Giuse-
ppina, ele teve seis irmãos. Sua mãe era sarda e vinha de uma família
rica, e seu pai era filho de um coronel da polícia militar, família de
origem albanesa, e trabalhava no cartório, do qual foi afastado quan-
do preso por irregularidades administrativas.
Gramsci foi casado com Giulia Schucht, com quem teve dois
filhos, Delio e Giuliano. O segundo, no entanto, não chegou a co-
nhecer, pois já estava encarcerado quando ele nasceu e não chegou a
vê-lo no breve período após sua libertação.
Gramsci tinha a saúde comprometida desde a infância. Devi-
do à prisão do pai e às condições econômicas da família, de volta à
Sardenha, ainda aos 11 anos, começou a trabalhar no cartório. Com
muito esforço, retomou os estudos e passou ler a imprensa socialista,
que lhe era encaminhada pelo irmão, Gennaro, que prestava servi-
ço militar em Turim à época. Muito cedo, Gramsci já frequentava
e participava ativamente do movimento socialista, que discutia os
problemas econômicos e sociais da Sardenha. Dessa participação tão

122
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

intensa surge uma revolta contra os ricos e um orgulho regionalista


que ele carrega por toda a vida e que, de certa forma, motiva sua par-
ticipação política e sua produção escrita.
Em 1910, Gramsci publicou seu primeiro artigo e começou a
ler as obras de Marx, por curiosidade intelectual. Em 1911 entrou
para a Faculdade de Letras em Turim. Interessava-se principalmen-
te pelas questões de linguística. Por essa razão, desenvolveu pesqui-
sas sobre o dialeto sardo e frequentou também o curso de literatura,
mas vivia isolado e com muitas dificuldades, pois tinha sempre crises
nervosas. Devido à saúde debilitada, não conseguiu prestar nenhum
exame e acabou abandonando a universidade em 1915, apesar de
continuar com intenções de desenvolver pesquisas sobre linguística.
Após abandonar a faculdade, acabou enveredando ainda mais pelos
caminhos da política e se fazendo jornalista político. Nessa função
teve inúmeros textos publicados em revistas e periódicos da época.
Apesar de todo o destaque dentro do Partido Socialista Italiano
(psi), Gramsci teve sempre sérias divergências com a direção do par-
tido e seus membros. Apoiou, inclusive, a formação, em Turim, dos
“grupos comunistas de fábrica”, que foram a base para a constituição
do Partido Comunista, de cujo Comitê Central Gramsci fez parte.
Na polêmica jornalística do período, Gramsci ataca tanto os “manda-
rins” do sindicato e os reformistas, quanto o centrismo maximalista
do psi. Começa então a analisar o conteúdo de classe do movimento
fascista.
Em 1924 Gramsci foi eleito deputado pelo distrito do Vêneto.
Como deputado, participou de muitos movimentos partidários, mas
fez apenas um discurso parlamentar. Esse discurso se dirigiu contra
o projeto de lei sobre as associações secretas, apresentado por Mus-
solini e Alfredo Roco.
Em janeiro de 1925, em Roma, conheceu Tatiana, irmã de sua
esposa, Giulia, importante personagem de sua história, pois é com
ela que passa a se corresponder mais tarde, enquanto esteve preso.
Nesse ano também, apesar de ter imunidade parlamentar, na quali-

123
Simone Aparecida de Jesus

dade de deputado, foi preso, junto com outros parlamentares comu-


nistas, e recolhido ao cárcere.
Na prisão, Gramsci fez uma dupla assinatura na biblioteca e
passou a receber livros e revistas de fora do cárcere e a escrever car-
tas para a família e os amigos. Foi por intermédio dessas cartas que
Gramsci comunicou a Tatiana, sua cunhada, o seu plano de estudos
composto por quatro temas: uma Pesquisa sobre a história dos intelec-
tuais italianos; um Estudo de linguística comparada; um Estudo sobre
o teatro de PirandelloI; e um Ensaio sobre os romances de folhetim.
A partir de então passou a escrever a maior parte das suas obras, os
Cadernos do cárcere e as Cartas do cárcere. Escrevia em mais de um
caderno ao mesmo tempo e tudo passava pela censura da prisão. Em
seu plano, é possível verificar o interesse ainda latente pelo estudo
da língua, que ele considerava parte constituinte do sujeito. Gramsci
alegava estar atormentado pela ideia de que precisava fazer algo que
ficasse para sempre. Sempre muito crítico às condições políticas e
partidárias com as quais esteve envolvido durante toda a sua vida,
inclusive a própria condição de deputado, da qual não se valeu para
se livrar do cárcere, como seria esperado.
Em 1932 Gramsci foi para a clínica do dr. Cusumano, de onde
foi transferido, em 1935, para a clínica Quisisana, em Roma. Em
1937, readquiriu a plena liberdade. Projetou, então, voltar à Sardenha
para se reestabelecer, mas, na noite de 25 de abril desse ano, teve uma
crise imprevista, sofreu um derrame cerebral e morreu dois dias de-
pois, deixando um vasto estudo sobre diversos assuntos e a pretensão
de se dedicar aos estudos da língua. Ainda que o tema tenha apareci-
do no decurso de toda a sua obra, ele provavelmente teria escrito um
caderno específico dedicado a esse tema.

A língua na obra gramsciana: primeiras aproximações


Para falar da questão da língua a partir das obras de Gramsci,
torna-se importante voltar ao seu plano de trabalho e passar, portan-

124
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

to, pela literatura de folhetim92 e pelo teatro de Pirandello,93 textos


nos quais a questão da linguagem se explicita de forma importante
para a formação dos conceitos de língua unitária e dialeto e para a
concepção de mundo que envolve tais conceitos, segundo o autor.
Com relação à literatura de folhetim, Gramsci aponta uma preocu-
pação com o fato de que o público italiano estava abandonando os
escritores italianos, e, nesse sentido, o que ele observava é que restava
ao povo a literatura de folhetim, sobre a qual tece alguns comentários
em seus escritos. Segundo ele, essa literatura é um elemento efetivo
de uma cultura degradada, porém ainda sentida.

[...] a literatura não é nacional porque não é popular. Paradoxo da época atual.
De resto, não há uma hierarquia no mundo literário, isto é, não existe uma per-
sonalidade eminente que exerça uma hegemonia cultural. Questão de por quê e
como uma literatura é popular. A “beleza” não basta: é necessário um determinado
conteúdo intelectual e moral que seja a expressão elaborada e completa das aspira-
ções mais profundas de um determinado público, isto é, da nação povo numa certa
fase de seu desenvolvimento histórico. A literatura deve ser, ao mesmo tempo,
elemento efetivo de civilização e obra de arte; se não for assim, a literatura artística
cederá lugar à literatura de folhetim, que, a seu modo, é um elemento efetivo de
cultura, de uma cultura certamente degradada, mas vivamente sentida (Gramsci,
2002b, p. 39).

92 Literatura de folhetim - narrativa literária publicada em jornais ou periódicos, de forma


parcial e sequenciada. Apresenta narrativa ágil, profusão de eventos e acontecimentos inten-
cionalmente voltados para prender a atenção do leitor de forma a criar certa necessidade de
ler o próximo capítulo (texto adaptado a partir de pesquisas online, entre as quais: https://
educalingo.com/pt/dic-pt/folhetim. Acesso em: 17 set. 2019).
93 Luigi Pirandello nasceu em Agrigento, na Sicília, em 28 de junho de 1867. Foi drama-
turgo, poeta, romancista. Suas obras mais famosas são: Seis personagens à procura de um
autor, assim é, se lhe parece, Cada um a seu modo, Vestir os nus, Esta noite se improvisa,
Henrique IV e o inacabado Gigantes da montanha. Seus romances O falecido Mattia Pascal
e Um, nenhum, cem mil também foram transformados em teatro e cinema (texto adapta-
do a partir de pesquisas online, cujo site principal foi http://www.paranaeducativa.pr.gov.
br/2017/06/4913/Dramaturgo-italiano-ganha-vida-no-projeto-Tres-Vezes-Pirandello-Tra-
gedia-Drama-Comedia.html. Acesso em: 17 set. 2019).

125
Simone Aparecida de Jesus

Gramsci critica o fato de não haver na Itália uma literatura na-


cional popular. Para ele, não existe uma hierarquia no mundo lite-
rário, no sentido de haver um tipo de texto melhor que os outros,
contudo acredita ser importante que o povo tenha acesso a uma lite-
ratura que tenha em sua essência determinado conteúdo intelectual
e moral. Assim, afirma que a “beleza” do texto literário, como são
dispostas as palavras e expressões para que o texto fique bonito, não
é o mais importante. A preocupação, pelo contrário, deveria ser com
o conteúdo do texto literário. As questões intelectuais e morais que se
apresentam em tais textos deveriam expressar questões históricas e
culturais e a história de seu povo, de forma que a literatura se coloque
como elemento também de civilização e não apenas de arte.
Para resolver a questão, Gramsci acreditava que deveria haver
certa intervenção política, de forma a retomar a relação entre os in-
telectuais e as classes subalternas, mas isso só teria possibilidade de
acontecer por meio da própria literatura de folhetim, devido ao pú-
blico que se deveria alcançar, as classes menos favorecidas, às quais o
acesso à literatura se restringia a esse formato.

[...] somente a partir dos leitores da literatura de folhetim é que será possível sele-
cionar o público suficiente e necessário para criar a base cultural da nova literatura.
Parece-me que o problema é este: como criar um corpo de literatos que esteja artis-
ticamente para a literatura de folhetim como Dostoievski estava para Sue e Soulié,
ou como, no romance policial, Chesterton está para Conan Doyle e para Wallace,
etc. Para isto, é preciso abandonar muitos preconceitos, mas sobretudo cabe pensar
que não apenas é impossível ter o monopólio, como também se deve enfrentar
uma formidável organização de interesses editoriais. O preconceito mais comum
é o de que a nova literatura deva se identificar com uma escola artística de origem
intelectual, como foi o caso do futurismo. A premissa da nova literatura não pode
deixar de ser histórico-política, popular: deve ter como objetivo elaborar o que já
existe, não importa se de modo polêmico ou de outro modo; o que importa é que
aprofunde suas raízes no húmus da cultura popular tal como ela é, com seus gostos,
suas tendências, etc., com seu mundo moral e intelectual, ainda que atrasado e
convencional (Gramsci, 2002b, p. 264).

126
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

Segundo se percebe no trecho acima, Gramsci defende uma


literatura histórico-política e popular, contudo afirma que esta não
deve seguir preceitos de uma determinada escola artística e tampou-
co de uma elite dominante, mas ser condizente com o povo, com
suas raízes culturais, independente de atrasos e convenções que a
modifiquem.
O motivo que leva os jornais a divulgarem a literatura de folhe-
tim está muito mais relacionado aos aspectos políticos e econômicos
que à beleza de tais textos. O jornal imprime o que vende. Indepen-
dentemente das consequências disso, são mantidos interesses merca-
dológicos, o que preocupa o autor, haja vista a literatura ser, para ele,
um meio de formar uma opinião pública mais atuante ou simples-
mente mantê-la alienada.

Os jornais são organismos político-financeiros e não se propõem divulgar as be-


las-letras “em suas colunas”, a não ser que estas belas-letras aumentem a receita. O
romance de folhetim é um meio para a difusão desses jornais entre as classes po-
pulares [...], o que significa sucesso político e sucesso financeiro. Por isso, o jornal
procura aquele romance, aquele tipo de romance que “certamente” agrada o povo,
que garantirá uma clientela “continuada” e permanente (Gramsci, 2002b, p. 40).

É também sob esse princípio que Gramsci ressalta que os jor-


nais italianos publicavam romances de folhetim antigos, pois eram
do gosto popular, ou seja, vendáveis. Além disso, os intelectuais ita-
lianos eram “livrescos” e estavam muito distantes da massa, razão
pela qual não se tinha uma literatura popular italiana, que contasse
da sua história e cultura e fosse formativa nesse sentido. Dessa forma,
os italianos acabavam sofrendo muito mais influências estrangeiras
que as do próprio país, o que era uma das preocupações do autor,
no sentido de ver o povo se perder de sua própria história e do que
ela representaria quanto à sua independência. Nesse ponto, nota-se a
questão da identidade nacional, presente em diversas partes da obra
de Gramsci, como uma preocupação também relativa à unificação
da língua.

127
Simone Aparecida de Jesus

A esse respeito, Gramsci destaca, com alguma ressalva, o tea-


tro de Pirandello. Além de citar Pirandello como exemplo em várias
passagens dos Cadernos do cárcere, dedica-lhe uma seção no volume
6. Segundo Gramsci, Pirandello escreve algumas vezes fazendo uso
do dialeto, e outras em italiano, o que se dá, na sua concepção, devido
a esse escritor ter se tornado italiano e nacional, se desprovinciona-
lizando completamente. Para Gramsci, Pirandello tem uma grande
responsabilidade sobre o gosto literário do povo italiano e o critica
por entender que ele deveria contribuir para uma literatura nacional
e valorizada.
Nota-se a importância dada por Gramsci à questão do dialeto e
da língua nacional. Justamente nesse texto, do volume 6 dos Cadernos
do Cárcere, ele avalia como necessária a questão da historicidade da
língua. Para ele, entender esses dialetos faria com que a compreensão
dos textos literários fosse maior. Nesse sentido, ele critica o fato de
a literatura italiana ser cosmopolita e valorizar muito mais os textos
estrangeiros que os textos italianos, pelo qual ele responsabiliza edi-
tores, escritores e mesmo os leitores. Sempre no sentido de valorizar
o que seja italiano, o que para ele influi diretamente na concepção de
mundo desse povo, na identidade que se forma a partir desse contex-
to de valorização e desvalorização do nacional.

Na realidade, existem na Itália muitas línguas “populares” e, nas conversas íntimas,


nas quais se expressam os sentimentos e afetos mais comuns e difundidos, fala-se
costumeiramente nos dialetos regionais: em grande parte, a língua literária é ainda
uma língua cosmopolita, uma espécie de “esperanto”, isto é, algo limitado à expres-
são de sentimentos e de noções parciais, etc. (Gramsci, 2002b, p. 110).

Nesta perspectiva, Gramsci salienta que

do fato de não se compreender a historicidade das línguas — e, portanto, das


filosofias, das ideologias e das opiniões científicas — decorre a tendência, que é
própria de todas as formas de pensamento (inclusive das idealistas-historicistas), a

128
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

fazer de si mesmas uma espécie de esperanto ou volapuque da filosofia e da ciência.


É possível dizer que se perpetuou (em formas sempre diversas e mais ou menos
atenuadas) o estado de espírito dos povos primitivos em face dos outros povos,
com os quais entravam em relação. Todo povo primitivo chamava (ou chama) a
si mesmo com uma palavra que significa igualmente “homem”, e aos outros com
palavras que significam “mudos” ou “tartamudos” (bárbaros), pois eles não conhe-
cem a “língua dos homens” (disto decorreu o belíssimo paradoxo de que “canibal”,
ou devorador de homens, signifique originariamente — do ponto de vista etimo-
lógico — “homem por excelência” ou “homem verdadeiro”). Para os esperantistas
da filosofia e da ciência, tudo o que não vem expresso em sua linguagem é delírio,
é preconceito, é superstição, etc.; mediante um processo análogo ao que se verifica
na mentalidade sectária, eles transformam em juízo moral ou em diagnóstico de
ordem psiquiátrica o que deveria ser um mero juízo histórico (Gramsci, 2004a, p.
183-84).

É destacada nessa passagem dos Cadernos do cárcere, volume


1, Caderno 11, a tendência geral de desconsiderar a raiz histórica das
línguas, desde os seus falantes primitivos, bem como o fato lógico
de existir em todas as culturas um modo de se referir a si, ao outro
e às coisas. Gramsci critica o fato de os especialistas da filosofia e da
ciência desconsiderarem aquilo que esteja expresso em sua própria
língua, como se tais coisas fossem delírio, preconceito ou supersti-
ção, julgando questões meramente históricas. Para ele, tais expres-
sões fazem parte da própria constituição do povo, não devendo ser
ignoradas ou desconsideradas, vistas como “delírio”.
De acordo com os apontamentos feitos por Gramsci, a exis-
tência de uma língua extrapola o limite do próprio vocabulário ou
da gramática em si. Mais do que um conjunto de palavras, a língua
estabelece relações de sentido e essas relações são produzidas social-
mente. É nesse sentido que ele associa a língua à concepção de mun-
do. Assegura então:
Rossi diz, corretamente, que “o uso que um povo faz de uma língua, em vez de
outra, para desinteressados fins intelectuais, não é capricho de indivíduos ou de
coletividades, mas é espontaneidade de uma peculiar vida interior, que se manifes-

129
Simone Aparecida de Jesus

ta na única forma que lhe é adequada”, ou seja, que toda língua é uma concepção
do mundo integral, e não só uma veste que sirva indiferentemente como forma a
qualquer conteúdo (Gramsci, 2002b, p. 229).

Nesse sentido, ao considerar que toda língua é uma concepção


do mundo integral, ela pode ser entendida ainda como um “produto
social”, pois expressa a cultura de um povo. As palavras que consti-
tuem uma língua, mais que símbolos para representar determinado
objeto ou ação, constituem “elementos de história da cultura” desse
povo, o que faz com que o vocabulário esteja sempre em transfor-
mação. Dito de outra forma, a língua é um organismo vivo e sofre
influências de diversas formas no decorrer do tempo. A ela podem
se incorporar novas palavras, outras podem ser extintas pelo simples
fato de caírem em desuso ou ter sua grafia modificada e mesmo seu
sentido, de acordo com o contexto em que são utilizadas por seus
falantes.
Todo esse movimento faz parte da história e da cultura dos fa-
lantes de uma língua. Segundo Gramsci,

na realidade, toda corrente cultural cria uma sua linguagem, isto é, participa do
desenvolvimento geral de uma determinada língua nacional, introduzindo termos
novos, enriquecendo de conteúdo novos termos já em uso, criando metáforas,
servindo-se de nomes históricos para facilitar a compreensão e o julgamento de
determinadas situações atuais, etc. (2000a, p. 202).

A partir desse entendimento, a língua já não pode ser com-


preendida como homogênea ou estática, pois é fato que ela se trans-
forma das formas mais diversas, seja pela conquista de uma nação
por parte de outra e a imposição da língua daquele que tomou o ter-
ritório aos seus conquistados; seja pela relação com a língua desse
povo conquistado, até para a implantação da nova língua, com a con-
vivência com novos vocábulos; seja de forma intencional, pela inter-
venção escolar, no ensino da língua formal, pelos meios de informa-

130
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

ção e comunicação, como jornais e revistas, hoje dos mais diversos


tipos e com as mais diversas possibilidades; e mesmo de forma não
intencional, até mesmo pelas trocas de vocabulários em conversas in-
formais, de maneira simples, criando hábitos linguísticos diferentes
dos originais. Sobre esse aspecto, para distinguir o tipo de transfor-
mação de que trata uma dada mudança ou adesão de novos vocabu-
lários, Gramsci faz uma distinção entre dois efeitos, o “molecular” e
o “de massa”:

Também na língua não há partenogênese, isto é, língua que produza outra lín-
gua, mas há inovação por interferências de culturas diversas, etc., o que ocorre
sob formas muito diferentes: ocorre com massas inteiras de elementos linguísticos
e ocorre molecularmente (o latim inovou o céltico das Gálias em “massa” e, ao
contrário, influenciou o germânico “molecularmente”, isto é, emprestando-lhe pa-
lavras ou formas singulares, etc.). A interferência e a influência “molecular” podem
ocorrer no próprio seio de uma nação, entre diversos estratos, etc.; uma nova classe
que se torna dirigente inova em “massa”; o jargão das profissões, etc., isto é, das
sociedades particulares, inova molecularmente (Gramsci, 2002b, p. 198).

Assim, é possível compreender que, para Gramsci, as transfor-


mações da língua impostas pelo colonizador influem diretamente em
toda uma nação, mudando sua língua de uso, por força da obrigato-
riedade de um novo idioma. Essa seria uma transformação de massa
da língua, enquanto os estrangeirismos integrados à língua de de-
terminado povo comporiam uma transformação molecular, caso em
que somente algumas palavras e expressões são inseridas na língua
desse povo à medida em que ganham adeptos ou usuários, em deter-
minadas situações se integrando completamente à nova língua como
parte de seu vocabulário, com novas flexões e sentidos.
A transformação molecular então seria uma mudança menos
agressiva, ou mais lenta, tendo em vista que vai pouco a pouco, de
forma às vezes até inconsciente, mudando a língua da nação. Em
certa medida é o que acontece ainda hoje, com estrangeirismos que
inclusive não encontram correspondência na língua do falante e se

131
Simone Aparecida de Jesus

naturalizam nessa língua, como se dela fizessem parte desde sempre,


passando a ter flexões e significados algumas vezes distintos daque-
les de origem. Nesse sentido, Gramsci fala da importância da lín-
gua nacional, em contrapartida ao dialeto, pois ela tem muito mais
possibilidades de traduzir outra língua, outra cultura, por causa de
seu corpo histórico, construído ao longo do tempo. Desse ponto de
vista, se se conseguisse traduzir uma quantidade maior de vocábulos
ou toda uma língua, respeitando seus sentidos originais, seriam evi-
tadas as novas inserções e consequentemente os estrangeirismos, e
suas novas configurações seriam minimizados.
Gramsci relaciona ainda a questão da língua às classes. Para
ele, quem fala somente em dialeto se restringe ao provincianismo,
deixa de conhecer e tomar parte de questões importantes e, nesse
sentido, se torna restrito, limitado tanto no entendimento quanto na
expressão. Pois o dialeto não dá conta das necessidades linguísticas
de um povo, não tem a carga histórica e o vocabulário necessários
para dar conta da cultura desse povo e de outras culturas.
Nesse sentido, ele cita a tradução como uma ferramenta para
colocar um povo em contato com outras culturas, para que se apro-
prie de informações úteis e conhecimentos necessários. Mas, essa
tradução só é possível, para ele, por meio de uma língua nacional,
dotada de riqueza histórica, complexa o suficiente para encontrar
correspondência em outras línguas estrangeiras, traduzindo grandes
culturas. Um dialeto seria muito restrito, não encontraria a neces-
sária correspondência em outras línguas, seria como um dicionário
com poucos verbetes, limitaria o conhecimento e a compreensão do
que é traduzido.
Uma língua nacional, ao contrário, deve ter expressão muito
além dos limites de seu povo, permitindo aos seus falantes conta-
to com vidas culturais as mais diversas, de forma que possam par-
ticipar de uma cultura mais ampla e completa. Gramsci não exclui
a importância dos dialetos, porém, indica a importância de se ter
uma língua nacional, com profundidade e amplitude, para se fazer
conhecer e também dar a conhecer outras culturas. Nesse sentido se
observa apenas a limitação do dialeto, pois seu número de vocábulos

132
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

é limitado, de modo que será apenas capaz de traduzir questões tam-


bém limitadas, enquanto que uma língua, com um vocabulário mais
abrangente, poderá traduzir culturas mais complexas.

Se é verdade que toda linguagem contém os elementos de uma concepção do


mundo e de uma cultura, será igualmente verdade que, a partir da linguagem de
cada um, é possível julgar a maior ou menor complexidade da sua concepção do
mundo. Quem fala somente o dialeto ou compreende a língua nacional em graus
diversos participa necessariamente de uma intuição do mundo mais ou menos
restrita e provinciana, fossilizada, anacrônica em relação às grandes correntes
de pensamento que dominam a história mundial. Seus interesses serão restritos,
mais ou menos corporativistas ou economicistas, não universais. Se nem sempre é
possível aprender outras línguas estrangeiras a fim de colocar-se em contato com
vidas culturais diversas, deve-se pelo menos conhecer bem a língua nacional. Uma
grande cultura pode traduzir-se na língua de outra grande cultura, isto é, uma
grande língua nacional historicamente rica e complexa pode traduzir qualquer
outra grande cultura, ou seja, ser uma expressão mundial. Mas, com um dialeto,
não é possível fazer a mesma coisa (Gramsci, 1999, p. 95).

Com isso, Gramsci coloca em questão a necessidade de va-


lorização da língua nacional, uma língua única, coletiva, dotada de
historicidade e vocabulário amplo em contrapartida aos dialetos, co-
muns e diversos naquele momento histórico, na Itália. Para ele, essa
língua nacional daria à nação maior força, inclusive política, como
um fator integrador.
Ao se referir à gramática, Gramsci explica que há uma gramá-
tica inerente ao indivíduo, de acordo com a qual ele elabora sua fala,
ainda que seja de maneira inconsciente. De acordo com essa gramá-
tica, não se fazem necessárias correções ou ajustamentos, seria uma
gramática pessoal, de acordo com a qual cada indivíduo se compõe,
algo interno a cada um. Em contrapartida, há também uma ou mais
gramáticas normativas, externas ao sujeito, mas que também o in-
fluenciam. Estas, por sua vez, são dotadas de regras que devem ser
cumpridas e constituídas de controle recíproco, por meio do ensina-

133
Simone Aparecida de Jesus

mento e da censura, não admitindo erros e desajustes. Para essas gra-


máticas, portanto, há correções e ajustamentos para que se alinhem.
Sua existência garante o entendimento por todos os falantes, pois tais
regras são comuns a todos eles.
As gramáticas normativas, segundo Gramsci, são necessárias,
pois o indivíduo precisa se fazer entender, o que nem sempre é pos-
sível de outra maneira. Para elucidar esse fato, ele argumenta que,
quando uma pessoa diz algo que a outra não entende, é preciso ex-
plicar o que quis dizer com vocábulos ou expressão distintos, e isso
implica a necessidade de que haja regras comuns, compreendidas
por todos, justificando assim a necessidade de que cada língua tenha
uma gramática normativa, a fim de garantir o entendimento entre
seus falantes. Essa gramática deve ser comum a todos, suas regras
devem atingir a todos, e justamente por isso se fazer entender por
todos. Porém, Gramsci adverte que essa gramática acaba por ficar
restrita a alguns grupos das classes dominantes, que a impõem às
classes subalternas. Essa questão é criticada pelo autor, que defende
uma língua que surja do povo e não seja imposta a ele de modo ar-
bitrário. Nesse sentido, as gramáticas normativas deveriam surgir de
convenções que considerassem a origem da língua, a expressão de
seus falantes.
Então, a gramática normativa existe como regra a ser seguida,
mas, por se basear nos preceitos das classes dominantes, é imposta às
classes subalternas, que justamente por isso encontram dificuldades
para segui-la, já que desacorda drasticamente com suas gramáticas
inerentes. Há um distanciamento entre aquilo que é internalizado e o
que é cobrado como correto.
Como exemplo para explicitar a questão da adequação ou sub-
missão à gramática imposta, Gramsci fala do camponês que vai para
a cidade e acaba se adaptando, ainda que encontre dificuldades nes-
se intento, ao modo de falar da cidade, o qual está mais de acordo
com a gramática normativa, distante da sua gramática interna. Nesse
sentido, Gramsci sustenta que as classes subalternas fazem tentati-
vas de falar como as classes dominantes, o que coloca a língua num
contexto de hierarquia e dominação, reafirmando o posicionamento

134
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

do autor no que diz respeito ao conceito de língua enquanto parte


constituinte do próprio conceito de mundo. Isso acaba por apontar
padrões que vão além do uso da língua e de uma gramática norma-
tiva correspondente, pois diz sobre o lugar de cada falante em sua
sociedade na concepção dessa hierarquia.
A essa aceitação da gramática normativa Gramsci chama “con-
formismo gramatical”, sob o qual os indivíduos se põem a aceitar e
a aprender normas e “juízos de correção e incorreção”, bem como as
correspondências e a estrutura da língua.

[...] além da “gramática imanente” a toda língua, existe também, de fato, ou seja,
ainda que não escrita, uma (ou mais) gramática “normativa”, constituída pelo con-
trole recíproco, pelo ensinamento recíproco, pela “censura” recíproca, que se mani-
festam nas perguntas: “O que você entendeu ou quer dizer?”, “Explique-se melhor”,
etc., com a caricatura e a ironia, etc. Todo este conjunto de ações e reações conflui
no sentido de determinar um conformismo gramatical, isto é, de estabelecer “nor-
mas” e juízos de correção e de incorreção, etc. Mas esta manifestação “espontânea”
de um conformismo gramatical é necessariamente desconexa, descontínua, limi-
tada a estratos sociais locais ou a centros locais, etc. (Um camponês que vai para a
cidade termina, graças à pressão do ambiente urbano, por conformar-se ao modo
de falar da cidade; no campo, busca-se imitar o modo de falar da cidade; as classes
subalternas buscam falar como as classes dominantes e os intelectuais, etc.). Poder-
-se-ia esboçar um quadro da “gramática normativa” que opera espontaneamente
em toda sociedade determinada, na medida em que esta tende a unificar-se seja
como território, seja como cultura, isto é, na medida em que existe nesta sociedade
uma camada dirigente cuja função é reconhecida e seguida (Gramsci, 2002b, p.
142).

Gramsci não condena as várias gramáticas existentes indivi-


dualmente, segundo cada falante, mas, apesar de defender uma gra-
mática normativa, comum a todos, também não defende que seja
imposta pelas classes dominantes a seus subalternos. Para ele, deve
haver movimentos que trabalhem no sentido de unificar as gramá-
ticas, construindo uma gramática normativa de forma democrática,

135
Simone Aparecida de Jesus

na coletividade, assim como defende uma língua nacional não como


imposição de um grupo a outro, mas como uma construção, consi-
derando a história da nação. Nesse sentido, afirma que

as “gramáticas normativas” escritas tendem a abarcar todo um território nacional


e todo o “volume linguístico”, a fim de criar um conformismo linguístico nacional
unitário, o qual, de resto, põe num plano mais elevado o “individualismo” ex-
pressivo, já que cria um esqueleto mais robusto e homogêneo para o organismo
linguístico nacional, do qual cada indivíduo é o reflexo e o intérprete (Gramsci,
2002b, p. 143).

No mesmo sentido, Gramsci afirma que um escritor que se


interesse por escrever uma gramática normativa deve considerar a
história da língua sobre a qual pretende escrever, não se esquecendo
de que cada escolha feita em detrimento de um elemento linguístico
é também um ato político e representa muito mais que uma simples
escolha, pois, como já dito outras vezes, a língua compõe a concep-
ção de mundo de seus falantes e não fica restrita a esses falantes ou a
parte deles.
Uma vez constituída a língua e construída a sua gramática nor-
mativa, ela fica exposta a todas as outras culturas que irão traduzi-la
ou ser traduzidas por ela.

Gramáticas históricas e não normativas. — Mas é evidente que um escritor de gra-


mática normativa não pode ignorar a história da língua da qual pretende propor
uma “fase exemplar” como a “única” digna de se tornar, “orgânica” e “totalitaria-
mente”, a língua “comum” de uma nação, em luta e em concorrência com outras
“fases” e tipos ou esquemas que já existem (ligados a desenvolvimentos tradicio-
nais ou a tentativas inorgânicas e incoerentes das forças que, como se viu, operam
continuamente sobre as “gramáticas” espontâneas e imanentes à linguagem). A
gramática histórica não pode deixar de ser “comparativa”: expressão que, analisada
a fundo, indica a íntima consciência de que o fato linguístico, como qualquer outro
fato histórico, não pode ter fronteiras nacionais estreitamente definidas, mas que a

136
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

história é sempre “história mundial” e que as histórias particulares vivem somente


no quadro da história mundial. A gramática normativa tem outras finalidades,
ainda que não se possa imaginar a língua nacional fora do quadro das demais
línguas, que influem, através de caminhos variados e de difícil verificação, sobre
ela (quem pode controlar a contribuição de inovações linguísticas devidas aos
emigrados repatriados, aos viajantes, aos leitores de jornais e línguas estrangeiras,
aos tradutores, etc.?). A gramática normativa escrita, portanto, pressupõe sempre
uma escolha, uma orientação cultural, ou seja, é sempre um ato de política cultu-
ral-nacional. Será possível discutir sobre o melhor modo de apresentar a “escolha”
e a “orientação” a fim de que sejam aceitas de bom grado, isto é, discutir sobre os
meios mais adequados para atingir o objetivo; não pode haver dúvida de que há
um objetivo a alcançar, que requer meios idôneos e adequados, ou seja, de que se
trata de um ato político (Gramsci, 2002b, p. 143-44).

Destaca-se neste excerto que o fato linguístico, assim como


qualquer fato histórico, não se limita a “fronteiras nacionais estrei-
tamente definidas”, sendo que seu histórico só é possível em função
de uma história maior, uma “história mundial”. Tais indicativos dão
a dimensão pretendida por Gramsci em relação à língua. Pelo que se
percebe, a língua tem uma grande importância para a nação, tanto
interna quanto externamente, e faz parte de seu patrimônio.
Ainda mais, Gramsci destaca que a gramática normativa escri-
ta pressupõe sempre uma escolha, sendo essa escolha um ato político.
Justamente por ser um ato político, são necessários alguns cuidados
para não suscitar a oposição, mas a colaboração de todos em prol da
língua nacional, a fim de que esta seja aceita por todos os seus falan-
tes, fato que envolve as relações de poder e a questão da hierarquia
implícita nas escolas em detrimento de uma gramática normativa
dessa língua nacional:

[...] cabe, ao contrário, uma colaboração de fato e uma cuidadosa acolhida de tudo
o que possa servir para criar uma língua comum nacional, cuja inexistência deter-
mina atritos sobretudo nas massas populares, entre as quais são mais tenazes do
que se crê os particularismos locais e os fenômenos de psicologia restrita e pro-

137
Simone Aparecida de Jesus

vinciana; trata-se, em suma, de uma intensificação da luta contra o analfabetismo,


etc. A oposição de “fato” já existe na resistência das massas a se desvencilharem de
hábitos e psicologias particularistas (Gramsci, 2002b, p. 144).

Na passagem citada, Gramsci demonstra preocupação também


com a alfabetização, que não seria possível senão por meio de uma
gramatica normativa, comum a todos. Assim como em outras passa-
gens dos Cadernos, Gramsci, ao falar da escola e dos partidos como
instituições responsáveis pela alfabetização e instrução, aponta que é
por meio da aquisição da língua que o indivíduo se torna mais autô-
nomo e participativo em sua sociedade.
Alguém alfabetizado não se limita às informações que proposi-
tadamente lhe são ofertadas, mas tem a possibilidade de buscar por si
conhecimentos que o instrumentalizam para opinar e conviver com
questões sociais e políticas, concordando ou divergindo delas, po-
dendo tanto apontar pontos de discordância como argumentar em
favor de uma opinião diversa da maioria ou do grupo dominante.
Em diversas passagens dos Cadernos do cárcere, Gramsci fala
da importância de ter uma língua unitária como forma de reafirma-
ção de um povo, como a identidade desse povo e um meio para que
se adquira conhecimento, utilizando, inclusive, a tradução, que, se-
gundo ele, amplia os conhecimentos, posto que, traduzindo outras
culturas, se passa a ter maiores referências e contribuições culturais.
Contudo, é importante destacar que, para Gramsci, a tradução
não se limita à correspondência de um vocabulário com outro, a tra-
dutibilidade está além das questões linguísticas, está no entendimen-
to e na construção de sentidos. Assim, uma área do conhecimento
pode traduzir outra para termos de seu contexto, não apenas para
uma língua diferente da original.

Deve-se resolver o seguinte problema: se a tradutibilidade recíproca das várias lin-


guagens filosóficas e científicas é um elemento “crítico” próprio a toda concepção
do mundo ou próprio somente à filosofia da práxis (de maneira orgânica) e apenas

138
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

parcialmente apropriável pelas outras filosofias. A tradutibilidade pressupõe que


uma determinada fase da civilização tenha uma expressão cultural “fundamental-
mente” idêntica, mesmo que a linguagem seja historicamente diversa, diversidade
determinada pela tradição particular de cada cultura nacional e de cada sistema
filosófico, do predomínio de uma atividade intelectual ou prática, etc. Assim, de-
ve-se ver se a tradutibilidade é possível entre expressões de diferentes fases de civi-
lização, na medida em que estas fases são momentos de desenvolvimento uma da
outra e, portanto, integram-se reciprocamente; ou se uma expressão determinada
pode ser traduzida com os termos de uma fase anterior de uma mesma civilização,
fase anterior que, porém, é mais compreensível do que a linguagem dada, etc. É
possível dizer, ao que parece, que só na filosofia da práxis a “tradução” é orgânica e
profunda, enquanto de outros pontos de vista trata-se frequentemente de um mero
jogo de esquematismos genéricos (Gramsci, 2004a, p. 185).

Nesse sentido, Gramsci suscita uma importante reflexão sobre


a tradutibilidade, não sendo esta limitada aos vocábulos de uma de-
terminada língua, mas abrangendo conceitos inerentes a uma cultura
em campos distintos de interesse filosófico e científico e em tempos
distintos, no sentido da percepção de diferenças que interferem nessa
tradutibilidade, tanto culturais como históricas, dentro ou fora dessa
mesma sociedade.
No Caderno 11 dos Cadernos do Cárcere, Gramsci exemplifica
essa questão da seguinte maneira:

[...] dois “cientistas” formados no terreno de uma mesma cultura fundamental


acreditam sustentar diferentes “verdades” somente porque empregam uma dife-
rente linguagem científica (o que não quer dizer que entre eles não exista uma
diferença e que esta diferença não tenha o seu significado), também duas culturas
nacionais, expressões de civilizações fundamentalmente similares, acreditam ser
diferentes, opostas, antagônicas, uma superior à outra, pelo fato de empregarem
linguagens de tradição diferente, formadas com base em atividades características
e particulares a cada uma delas: linguagem político-jurídica na França, linguagem
filosófica, doutrinária, teórica na Alemanha. Para o historiador, em realidade, estas
civilizações são tradutíveis reciprocamente, redutíveis uma à outra. Esta traduti-

139
Simone Aparecida de Jesus

bilidade, por certo, não é “perfeita” em todos os detalhes, até mesmo importantes
(mas que língua é exatamente tradutível em outra? que palavra singular é exata-
mente tradutível em outra língua?), mas o é em seu “fundo” essencial. É possível,
também, que uma seja realmente superior à outra, mas quase nunca o é naquilo
que os seus representantes e defensores fanáticos pretendem e, sobretudo, quase
nunca em seu conjunto: o progresso real da civilização ocorre graças à colaboração
de todos os povos, graças a “impulsos” nacionais, mas tais impulsos quase sem-
pre dizem respeito a determinadas atividades culturais ou grupos de problemas
(Gramsci, 2004a, p. 187).

Desse modo, é possível refletir sobre as questões colocadas por


Gramsci – “que língua é exatamente tradutível em outra? Que pala-
vra singular é exatamente tradutível em outra língua?” – como um
modo de dizer da singularidade de cada língua e ao mesmo tempo
da possibilidade de conceber versões diversas da original que serão
também modificadas ou transformadas mediante cada tempo e cul-
tura. Essas diferenças são essenciais à identidade de seu povo nesse
tempo histórico e à compreensão que se tem dele. Assim, por mais
que se queira traduzir culturas diversas e se encontrem correspon-
dências entre elas, há uma percepção coletiva de dada sociedade que
é única a ela. A tradutibilidade, portanto, também tem seus limites,
pois ainda que palavras e culturas sejam traduzidas, o que se tem é
uma nova versão do que se diz ou se pretende dizer no original, e
nunca há exatidão, pois os sentidos implícitos a cada língua lhe são
particulares e não totalmente tradutíveis. Há toda uma carga histó-
rica em sua constituição, muito bem entendida por seus falantes de
origem, que pode ser entendida de modo diverso pelos falantes de
outras línguas.
Para Gramsci, a formação de uma língua unitária deve consi-
derar todos os processos moleculares que a envolvem em seu conjun-
to, bem como não se pode esperar que todos os objetivos propostos
sejam atingidos em seus detalhes. Dessa maneira, segundo ele, é im-
possível prever e estabelecer qual será a língua prevalecente mediante
as variações que lhe darão origem, mas, se a intervenção for “racio-

140
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

nal”, será organicamente ligada à tradição, o que é muito importante


na economia da cultura.

A linguagem “literária” é estreitamente ligada à vida das multidões nacionais e de-


senvolve-se lentamente e apenas de modo molecular; embora seja possível afirmar
que todo grupo social tem uma sua “língua” própria, deve-se notar (salvo raras
exceções) que entre a língua popular e a das classes cultas há uma contínua ade-
rência e um contínuo intercâmbio. Isto não ocorre nas linguagens das demais artes;
sobre estas, pode-se notar que se verificam atualmente duas ordens de fenômenos:
1) nelas estão sempre vivos, pelo menos em medida muito maior que na língua
literária, os elementos expressivos do passado, pode-se mesmo dizer de todo ao
passado; 2) nelas se forma rapidamente uma língua cosmopolita, que absorve os
elementos técnico-expressivos de todas as nações que, alternadamente, produzem
grandes pintores, escultores, músicos, etc. Wagner forneceu à música elementos
linguísticos em proporção maior do que toda a literatura alemã em toda a sua
história, etc. Isto ocorre porque o povo participa escassamente na produção dessas
linguagens, que são próprias de uma elite internacional, etc., ao mesmo tempo em
que pode muito rapidamente (e como coletividade, não como indivíduos) chegar
a compreendê-las. Tudo isto para indicar como realmente o “gosto” puramente es-
tético, embora possa ser chamado de primário como forma e atividade do espírito,
não é tal praticamente, isto é, em sentido cronológico (Gramsci, 2000a, p. 193).

Ainda que valorize a adoção de uma língua nacional, Gramsci


reconhece no dialeto uma possibilidade de uso como arma linguísti-
ca das classes cultas contra as classes populares e cita como exemplo
o uso do romanesco por ocasião do Risorgimento, que levou ao “pe-
ríodo liberal de Pio ix”. Gramsci cita ainda os períodos de 1847-1849,
quando o dialeto se torna a arma dos liberais, e de 1870, como a arma
dos clericais (Gramsci, 2000a, p. 84). É nesse sentido que Gramsci
localiza a língua como uma condição para o acesso aos direitos, à
participação plena na sociedade e ao poder.
Contudo, ele observa que o dialeto, “o vulgar é escrito quando
o povo retoma importância”.

141
Simone Aparecida de Jesus

As línguas vulgares são escritas quando o povo retoma importância: o juramento


de Estrasburgo (após a batalha de Fontaneto entre os sucessores de Carlos Magno)
se manteve porque os soldados não podiam jurar numa língua desconhecida, sem
com isso retirar a validade do juramento. Também na Itália, as primeiras marcas
de vulgar são juramentos e prestações de testemunhos do povo para estabelecer a
propriedade das terras de convento (Montecassino) (Gramsci, 2000a, p. 81).

O italiano como se conhece hoje teve origem em um dialeto, o


florentino, utilizado pela elite de Florença. Isso contraria a ideia de
Gramsci de que a língua nacional deveria surgir não por uma ordem
de força e poder, uma imposição da classe dominante aos subalter-
nos, mas pela construção coletiva por seus partícipes.
Em carta a sua irmã Teresina, ao se referir aos sobrinhos,
Gramsci solicita-lhe que os deixe falar no dialeto sardo, o que segun-
do ele seria importante para sua formação intelectual, como parte
de suas identidades. Ele reconhece como um erro que Edmea, filha
de seu irmão, Germano, tenha sido impedida de falar livremente o
sardo, entendendo esse impedimento como uma falha que a afetou
intelectualmente, como se lhe faltasse parte de sua identidade cultu-
ral, aquela relativa ao seu povo de origem, o que não poderia ocorrer
com os filhos de Teresina:

Franco me parece muito esperto e inteligente: acho que já fala fluentemente. Em


que língua ele fala? Espero que o deixem falar em sardo e não lhe criem problemas
a este respeito. Para mim, foi um erro não terem deixado que Edmea, quando bem
menina, falasse livremente em sardo. Isto prejudicou sua formação intelectual e
colocou uma camisa-de-força em sua fantasia. Não cometa este erro com suas
crianças [...] Aconselho você, de coração, a não cometer este erro e a deixar que
suas crianças absorvam todo o sardismo que quiserem e se desenvolvam esponta-
neamente no ambiente natural em que nasceram: isto não será um obstáculo para
o futuro delas, longe disso (Gramsci, 2005a, pp. 133-34).

142
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

Para Gramsci o sardo representava, mais que um simples diale-


to, uma língua. Ele acreditava ainda que o italiano não se tornaria
uma língua forte, mas limitada, conforme se apresenta no trecho se-
guinte da mesma carta endereçada a Teresina, sua irmã.

De cara, o sardo não é um dialeto, mas uma língua em si mesma, ainda que não
tenha uma grande literatura, e é bom que as crianças aprendam várias línguas, se
possível. Além disso, o italiano que vocês lhe ensinarem será uma língua pobre,
truncada, feita só com aquelas poucas frases e palavras de suas conversas com ele,
puramente infantil; ele não terá contato com o ambiente geral e terminará por
aprender dois jargões e nenhuma língua: um jargão italiano para a conversa oficial
com vocês e um jargão sardo, aprendido aqui e ali, para falar com as outras crian-
ças e com as pessoas que encontra na rua ou na praça (Gramsci, 2005a, p. 134).

Nesse trecho, é possível assegurar que, para o autor, era impor-


tante que as crianças aprendessem mais de uma língua, fato que con-
diz com tudo que pensava a esse respeito, pois entendendo línguas
diversas conheceriam culturas diversas, seriam capazes de traduzir
culturas distintas, de se relacionar com essas culturas de modo a ad-
quirir mais conhecimento e também de se expressar mediante tais
culturas.
Ao se referir à habilidade de seu filho Delio, na mesma carta,
Gramsci expõe esse seu apreço pelo aprendizado de mais de uma lín-
gua como um modo de ampliar o conhecimento histórico e cultural.

Veja Delio, por exemplo: começou falando a língua da mãe, como era natural e
necessário, mas rapidamente foi aprendendo também o italiano e ainda cantava
algumas pequenas canções em francês, sem por isso se confundir ou confundir as
palavras de uma língua e de outra. Eu queria também lhe ensinar a cantar: Lassa
sa figu, puzone, mas as tias, especialmente, se opuseram energicamente (Gramsci,
2005a, p. 134, grifos no original).

143
Simone Aparecida de Jesus

Ainda no mesmo volume das cartas, Gramsci faz uma crítica


ao valor atribuído ao italiano nas escolas sardas em desvalor do sar-
do, que julgam serem os falantes do italiano, os que se habituaram
a falar italiano ainda em casa, mais inteligentes, o que lhes bastaria
para serem bem-sucedidos, segundo essas instituições:

Nas escolas dos vilarejos sardos, acontece que uma menina, ou um menino, que
em casa foi habituado a falar o italiano (ainda que pouco e mal), só por este fato se
encontra num nível superior a seus colegas, que só conhecem o sardo e, portanto,
aprendem a ler e a escrever, a falar, a redigir numa língua completamente nova.
Parece que os primeiros são mais inteligentes e espertos, quando algumas vezes
não é assim, e por isso, na família e na escola, não se tem o cuidado de habituá-los
ao trabalho metódico e disciplinado, pensando que superam todas as dificuldades
com a “inteligência”, etc. (Gramsci, 2005a, p. 308).

Para Gramsci, a língua é a possibilidade que as classes popu-


lares têm para sair de uma estreita visão de mundo, que as condena
à subalternidade, para se tornarem hegemônicas. Segundo o autor,
isso se dá por meio da constituição de uma língua nacional que seja
capaz de oferecer os instrumentos de acesso aos grandes processos
mundiais, no que vale ressaltar, inclusive, a ampliação da cultura por
meio da tradução de outras culturas. Tanto que ele imputa aos parti-
dos a responsabilidade de alfabetizar seus adeptos, pois, segundo ele,
para aprender a ler o indivíduo precisa de um incentivo, no sentido
de ter uma razão, como o interesse político inerente aos partidos, por
exemplo. O partido teria uma responsabilidade com a formação de
seus partidários, para que se tornem mais informados e capazes de
participar das decisões partidárias de forma consciente.
A esse respeito, Gramsci afirma que

sempre que aflora, de um modo ou de outro, a questão da língua, isto significa que
uma série de outros problemas está se impondo: a formação e a ampliação da classe
dirigente, a necessidade de estabelecer relações mais íntimas e seguras entre os

144
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

grupos dirigentes e a massa popular-nacional, isto é, de reorganizar a hegemonia


cultural. Verificam-se hoje diversos fenômenos que indicam um renascimento des-
tas questões: publicações de Panzini, Trabalza-Allodi, Monelli, colunas nos jornais,
intervenção das direções sindicais, etc. (Gramsci, 2002b, p. 146).

Gramsci acreditava que aprender mais que o dialeto de cada


região significa a ampliação de possibilidades de adquirir conheci-
mentos, bem como as suas inflexões acerca da alfabetização, que é
o processo pelo qual se aprende a ler. Nesse sentido, entende que a
leitura proporciona ao sujeito a possibilidade de saber mais do que
aquilo que intencionalmente lhe é dito com o intuito de manter a di-
visão de classes e a desigualdade vigentes, já que por meio da lingua-
gem poderá contrapor informações e fazer suas próprias inferências.
Mais uma vez, é importante ressaltar que é nesse sentido que Grams-
ci fala da importância de ter uma língua nacional que guarde consigo
a riqueza histórica do país, pois, para ele, língua significa também
cultura e filosofia, e se há uma língua nacional por conseguinte se
valorizam a cultura e a filosofia de seu povo.
Gramsci concebe o mundo de maneira relativamente ligada às
capacidades que o sujeito desenvolve para interpretar a realidade vi-
gente e, nesse sentido, a concepção de mundo defendida está direta-
mente em comunhão com a língua, como até aqui vem sendo afirma-
do. No seu entendimento, cada indivíduo tem sua própria concepção
do mundo, mais ou menos elaborada, de acordo com suas vivências.
Essa concepção, de forma particular, mas que também compõe a co-
letividade da sociedade, indica tanto a filosofia dos simples, por meio
do senso comum, quanto as concepções elaboradas, hegemônicas ou
potencialmente hegemônicas.
Tanto as grandes ideias coletivas como as elaborações indivi-
duais dos grandes pensadores, mesmo a partir de uma concepção
do mundo preexistente, na qual se formaram e viveram, contribuem
para a elaboração de novas ideias, de uma nova concepção de mun-
do, de uma nação.

145
Simone Aparecida de Jesus

Seria possível explicar observando que tanto o Partido quanto a Religião são formas
de concepção do mundo e que a unidade religiosa é aparente, como é aparente a
unidade política: a unidade religiosa oculta uma multiplicidade real de concepções
do mundo que encontram expressão nos partidos, porque existe “indiferentismo”
religioso, assim como a unidade política oculta uma multiplicidade de tendências
que encontram expressão nas seitas religiosas, etc. Todo homem tende a ter uma só
concepção do mundo orgânica e sistemática, mas, como as diferenciações culturais
são muitas e profundas, a sociedade assume uma bizarra variedade de correntes
que apresentam um colorido religioso ou um colorido político, de acordo com a
tradição histórica (Gramsci, 2000b, pp. 280-81).

A concepção do mundo é determinada para o reconhecimento


das identidades coletivas e individuais. Essa concepção indica a que
grupo determinado indivíduo pertence, independentemente de onde
ele esteja ou de quando seja inquirido. Trata-se da forma como esse
indivíduo enxerga o mundo e se relaciona com ele por meio da lín-
gua, fundamental ao seu reconhecimento enquanto tal:

Pela própria concepção do mundo, pertencemos sempre a um determinado gru-


po, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo
modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos
sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o
tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? Quando
a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, per-
tencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria
personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos
dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, pre-
conceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições
de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unifica-
do. Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e
coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído.
Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida
em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da
elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um “conhece-te a

146
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

ti mesmo” como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou
em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicial-
mente, essa análise (Gramsci, 1999, p. 94).

A concepção de mundo de um povo é formada, portanto, a


partir de suas próprias construções históricas e culturais. Cada indi-
víduo tem em si a síntese do que significa o mundo para a sua socie-
dade. Ainda que haja convergências e divergências em determinados
pontos, é nesse movimento que ele se forma e, com os demais indi-
víduos, com suas diferenças e semelhanças, forma a nação de deter-
minada maneira, diferente das demais nações. É claro que existem
traços de individualidade em cada um, mas todos eles em conjunto
formam a coletividade.
Salienta Gramsci que,

com efeito, não existe filosofia em geral: existem diversas filosofias ou concepções
do mundo, e sempre se faz uma escolha entre elas. [...] Qual será, então, a verdadeira
concepção do mundo: a que é logicamente afirmada como fato intelectual, ou a que
resulta da atividade real de cada um, que está implícita na sua ação? E, já que a ação
é sempre uma ação política, não se pode dizer que a verdadeira filosofia de cada um
se acha inteiramente contida na sua política? Este contraste entre o pensar e o agir,
isto é, a coexistência de duas concepções do mundo, uma afirmada por palavras e a
outra manifestando-se na ação efetiva, nem sempre se deve à má-fé. [...] um grupo
social, que tem sua própria concepção do mundo, ainda que embrionária, que se
manifesta na ação e, portanto, de modo descontínuo e ocasional — isto é, quando
tal grupo se movimenta como um conjunto orgânico —, toma emprestado a outro
grupo social, por razões de submissão e subordinação intelectual, uma concepção
que não é a sua, e a afirma verbalmente, e também acredita segui-la, já que a segue
em “épocas normais”, ou seja, quando a conduta não é independente e autônoma,
mas sim submissa e subordinada. É por isso, portanto, que não se pode separar a
filosofia da política; ao contrário, pode-se demonstrar que a escolha e a crítica de
uma concepção do mundo são, também elas, fatos políticos (Gramsci, 1999, pp.
96-97).

147
Simone Aparecida de Jesus

De acordo com esse excerto, é possível observar que entre as


nações ainda existe uma relação de subalternidade e subordinação à
qual Gramsci se opõe, e justamente por isso fala tanto da concepção
de mundo que deve ser criada historicamente pelo povo da nação,
como da criação da língua nacional, com sua gramática normativa
correspondente, pois essa delimitação diz muito da autonomia desse
povo. É por ter a sua própria concepção de mundo que uma nação se
impõe e responde às tentativas de subordinação que venham contra
si. Essa concepção torna-se um fato político relevante para nação em
contraposição a outras nações.
Gramsci trata ainda, nesse contexto, da questão da hierarquia
relativa ao uso dos diferentes dialetos no movimento entre as classes
cultas e as populares. Para ele, a língua é também uma condição para
o acesso aos direitos e para a participação efetiva do sujeito na socie-
dade, tomando parte do poder e dos processos mundiais. Nesse sen-
tido, ele relaciona a questão da língua a uma hierarquia hegemônica
cultural.
O autor salienta, contudo, que a língua serve ao propósito que
tem mediante determinado interesse de quem a usa. Nesse sentido é
que ele afirma, ao comparar médicos a veterinários, que estes mere-
cem mais respeito, pois atendem animais, que não falam, ao contrá-
rio dos homens, que usam a fala em seu benefício. Ainda que contem
mentiras, os homens têm condição de relatar o que se passa e tornar
mais fácil o trabalho dos médicos ao atendê-los, mediante suas pró-
prias indicações. Ele afirma que “a língua também serve aos homens
para dizer mentiras ou, pelo menos, para expressar impressões fala-
ciosas” (Gramsci, 2005b, p. 82).
De acordo com o que se pode apurar sobre a discussão de
Gramsci acerca da linguística, é possível perceber que ele faz uma di-
visão desse campo em duas vertentes principais e, ao mesmo tempo,
convergentes, a saber: a linguística histórica, influenciado pelos seus
estudos enquanto universitário do curso de letras, e a linguística da
década de 1930, a sociolinguística. Nesse contexto, faz uma crítica
aos linguistas, a quem classifica de “essencialmente históricos”.

148
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

[...] os linguistas, que são essencialmente historiadores, encontram-se diante de


outro problema: é possível a história das línguas fora da história da arte e, mais ain-
da, é possível a história da arte? Mas os linguistas estudam as línguas precisamente
enquanto não são arte, mas “material” da arte, enquanto produto social, enquanto
expressão cultural de um determinado povo, etc. Estas questões não foram resolvi-
das, ou o foram através de um retorno à velha retórica embelezada [...] O problema
não pode ser resolvido por falta de documentos e, portanto, é arbitrário: além de
um certo limite histórico, pode-se fazer história hipotética, conjectural ou socioló-
gica, mas não história “histórica”. Esta identificação permitiria também determinar
aquilo que na língua é erro, isto é, não língua [...] A história das línguas é história
das inovações linguísticas, mas estas inovações não são individuais (como ocorre
na arte): são de toda uma comunidade social que inovou sua cultura, que “pro-
grediu” historicamente. Naturalmente, também elas se tornam individuais, mas
não do indivíduo-artista, e sim do indivíduo elemento histórico-cultural completo,
determinado (Gramsci, 2002b, p. 197).

Neste ponto, é importante destacar que houve uma mudança


no discurso linguístico, antes histórico, tendo a língua como mate-
rial, enquanto produto e expressão cultural, para o discurso de que a
língua é passível de mudanças e, nesse sentido, inova, não de maneira
individualizada, mas coletiva, atingindo toda uma classe social, como
parte do indivíduo, enquanto “elemento histórico cultural”. Gramsci
reconhece, portanto, que há uma heterogênese das comunidades lin-
guísticas, já que ele reconhecia a divisão de classes sociais e via nessas
classes diferentes grupos de dialetos, sobre os quais pesava a questão
da língua nacional, necessária à identidade do povo. Por pensar dessa
forma, Gramsci reconheceu que existe, de certa maneira, uma con-
tribuição das classes populares na formação das línguas e das nações.
Ainda no âmbito da linguística, Gramsci, quando trata a questão da
metáfora, critica também os pragmatistas, por seu “neolalismo”,94

94 Neolalismo, segundo o dicionário italiano, significa “lo stesso, ma meno comune, che neo-
lalia” (Disponível em: https://www.dizionario-italiano.it/dizionario-italiano.php?lemma=-
NEOLALISMO100. Acesso em: 2 dez. 2019). Em língua portuguesa se traduz comumente
por neolalia, que significa “desequilíbrio mental que leva ao emprego frequente de neologis-
mos e formas estranhas de linguagem”, segundo o Dicionário Online da Língua Portuguesa
(Disponível em: https://www.dicio.com.br/neolalia/. Acesso em: 2 dez. 2019). Já o “neolo-

149
Simone Aparecida de Jesus

que nasce da questão colocada por Pareto e pelos pragmatistas sobre a “lingua-
gem como causa de erro”. Pareto, como os pragmatistas — na medida em que
acreditam ter dado origem a uma nova concepção do mundo ou, pelo menos, ter
inovado uma determinada ciência (e ter, consequentemente, dado às palavras um
novo significado ou, pelo menos, um novo matiz, ou ter criado novos conceitos)
—, encontram-se diante do fato de que as palavras tradicionais, sobretudo no
uso comum, mas também no uso da classe culta (e mesmo no uso da seção de
especialistas que trabalham com a própria ciência), continuam a manter o velho
significado, não obstante a inovação de conteúdo, e reagem contra isso. [...] Mas é
possível afastar da linguagem as suas significações metafóricas e extensivas? Não,
não é possível. A linguagem se transforma com a transformação de toda a civi-
lização, com o florescimento de novas classes para a cultura, com a hegemonia
exercida por uma língua nacional sobre as outras, etc., assumindo precisamente,
de modo metafórico, as palavras das civilizações e das culturas precedentes [...] O
novo significado metafórico se amplia com a ampliação da nova cultura, que, de
resto, cria palavras totalmente novas e as toma emprestadas de outras línguas, com
um significado preciso, isto é, sem a aura extensiva que tinham na língua original
(Gramsci, 1999, p. 145).

Destaque importante é que “a linguagem se transforma com


a transformação de toda a civilização”. Assim, o autor concorda que
a língua é um organismo vivo sujeito a transformações advindas de
seus falantes e de como a sociedade evolui. Para ele, é “com o floresci-
mento de novas classes para a cultura, com a hegemonia exercida por
uma língua nacional sobre as outras, etc.”, que a língua nacional vai se
moldando e constituindo-se enquanto parte da identidade do povo.
Para Gramsci, tanto a criação da língua nacional quanto a mu-
dança na língua decorrem de seus falantes muito mais do que da im-

gismo é um fenômeno linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão


nova, ou na atribuição de um novo sentido a uma palavra já existente. É uma nova palavra
criada na língua, e geralmente surge quando o indivíduo quer se expressar, mas não encon-
tra a palavra ideal. Como o falante nativo tem total domínio dos processos de formação de
palavras, pois tem a língua internalizada, para ele é fácil criar uma nova palavra sem nem
mesmo se dar conta de que está utilizando um dos processos existentes na língua como a
prefixação, a sufixação, a aglutinação ou a justaposição” (Disponível em: https://www.in-
foescola.com/linguistica/neologismo/. Acesso em: 2 dez. 2019).

150
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

posição, mas essa possibilidade também existe, não de forma direta


e arbitrária, mas pela convivência com a ampliação da cultura. Para
ele, os pragmatistas pretendiam criar uma “língua matemática”, im-
portando a forma apenas e não a sua aplicação, em nome da “beleza”,
do que Gramsci discorda.
Nas obras de Gramsci, a língua assume papel relevante para
que o sujeito se posicione em seu contexto. Para ele, a língua é um
produto social, porém em constante transformação, já que aparecem
novos termos e significados distintos para termos já usados em de-
terminadas culturas. Nesse sentido, o autor destaca também o papel
da escola, bem como a responsabilidade dos partidos no que tange
à aquisição da língua, para a oferta de mais informações e conheci-
mentos, bem como para a participação efetiva das decisões a serem
tomadas.

Considerações finais
Diante de toda a pesquisa realizada nos Cadernos, Cartas e Es-
critos políticos deixados por Gramsci, com tradução para o português,
apura-se que a preocupação do autor com a língua, expressa num
texto específico, muito mais que uma homenagem aos tempos da ju-
ventude seria um destaque à importância desse tema, que já vinha,
até por sua formação, permeando toda a sua obra. Ele fala de linguís-
tica no sentido de uma preocupação com a alfabetização, em todos
os momentos que expõe sua preocupação com a língua nacional e
com o uso de dialetos, quando expõe sobre a literatura e suas preocu-
pações quanto aos interesses de leitura do povo italiano e como isso
poderia influenciar a formação desse povo, o gosto popular e como
se posiciona, relacionando a linguística a questões políticas todo o
tempo, chamando, inclusive, para o partido a responsabilidade pela
formação de seus adeptos; e também a questões jurídicas, quando
trata, por exemplo, dos juramentos. Faz relação também entre a lin-
guística e a cultura. “Já que assim ocorre, revela-se a importância da
questão linguística geral, isto é, da conquista coletiva de um mesmo
‘clima’ cultural” (Gramsci, 1999, p. 399).

151
Simone Aparecida de Jesus

Como se observa, a preocupação linguística de Gramsci é constante,


ainda que o planejado caderno de linguística comparada não tenha
sido concretizado como os demais.
Diante de todo estudo desenvolvido para este capítulo, é possí-
vel afirmar que, para Gramsci, a língua pode ser compreendida como
uma ferramenta para adquirir conhecimento e garantir o desenvolvi-
mento do sujeito como um todo. A língua é entendida por ele como
parte integrante do indivíduo, de sua concepção de mundo, e como
meio para mudanças e transformações inerentes às culturas e tem-
pos históricos nos quais se insere e sobre os quais sofre e/ou provoca
transformações.

Referências
carlucci, Alessandro. Gramsci and Languages. Leiden: Brill, 2013.

fiori, Giuseppe. Antonio Gramsci: Vida de un revolucionario. Trad. Jordi Solé


Tura. Madri: Capitán Swing Libros, 2015.

______. Cadernos do cárcere. v. 1. Ed. e trad. Carlos Nelson Coutinho; coed. Luiz
Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1999.

______. Cadernos do cárcere. v. 2. Ed. e trad. Carlos Nelson Coutinho; coed. Luiz
Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000a.

______. Cadernos do cárcere. v. 3. Ed. e trad. Carlos Nelson Coutinho; coed. Luiz
Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000b.

______. Cadernos do cárcere. v. 4. Ed. e trad. Carlos Nelson Coutinho; coed. Luiz
Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001.

______. Cadernos do cárcere. v. 5. Ed. e trad. Luiz Sérgio Henriques; coed. Carlos
Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002a.

152
A quisição , importância e uso da língua para G ramsci

______. Cadernos do cárcere. v. 6. Trad., org. e ed. Carlos Nelson Coutinho, Marco
Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002b.

______. Escritos políticos. v. 1. Org. e trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004a.

______. Escritos políticos. v. 2. Org. e trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004b

______. Cartas do cárcere. v. 1. Trad. Luiz Sérgio Henriques; org. Carlos Nelson
Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005a.

______. Cartas do cárcere. v. 2. Trad. Luiz Sérgio Henriques; org. Carlos Nelson
Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005b.

liguori, Guido; voza, Pasquale (Orgs.). Dicionário gramsciano (1926-1937). 1.


ed. Trad. Ana Maria Chiarini, Diego Silveira Coelho Ferreira, Leandro de Oliveira
Calastri e Silvia de Bernardinis; revisão técnica Marco Aurélio Nogueira. São Pau-
lo: Boitempo, 2017.

153
CAPÍTULO 6
G ramsci : A historicidade da filosofia
da práxis e a educação

Gaudêncio Frigotto,
Maria Ciavatta,
Marise Ramos

Introdução
Gramsci é o original pensador da filosofia da práxis, com base
no materialismo histórico, no seu duplo fundamento: a crítica à eco-
nomia política clássica, a análise do modo de produção capitalista e a
história como produção social da existência dos sujeitos, dos grupos
e das classes sociais. Gramsci95 se orienta pela filosofia da práxis para
a análise de correlações de forças que atuam nas lutas dos trabalha-
dores, no papel dos intelectuais e dos partidos, na hegemonia para a
obtenção do consenso e nos processos revolucionários.
A questão da historicidade da vida social não tem sido um
objeto de destaque nos estudos marxistas, mesmo os gramscianos.
Muitas são as razões históricas que ajudam a compreender por que,
embora Marx e Gramsci tenham trabalhado intensamente sobre a
empiria e a documentação dos fenômenos e sujeitos sociais de seu
tempo, a questão histórica está esparsamente presente nos estudos
derivados de suas teorias.
Sem sombra de dúvida, alguns conceitos são indispensáveis
nos estudos com base conceitual em Marx e na crítica à economia
política: a análise do capital, a teoria do mais valor, alienação, ideo-
logia, totalidade, mediação, contradição, concreto e abstrato. Outros
são conceitos básicos na teoria gramsciana: filosofia da práxis, his-

95 Antonio Gramsci (1891-1937), filósofo, crítico literário e político, membro fundador do


Partido Comunista Italiano (pci), foi encarcerado pelo regime fascista de Benito Mussolini.
Ficou preso de 1926 a 1934.

155
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos

tória, hegemonia, Estado, bloco histórico, sociedade civil/ sociedade


política, estrutura e superestrutura, A importância da formação dos
intelectuais para a disputa por hegemonia mobilizou Gramsci a dar
atenção à escola, além das preocupações que tinha com a educação
dos próprios filhos, a qual foi forçado a acompanhar de dentro do
cárcere.
Neste trabalho, primeiro recuperamos, em alguns textos de
Gramsci, o conceito de história, as críticas ao historicismo e a his-
toricidade do pensamento do autor; a seguir, tratamos do conceito
de filosofia da práxis e sua expressão na obra gramsciana; por últi-
mo, retomaremos algumas reflexões do filósofo sobre a educação e
a escola, que ele apresenta como apontamentos e notas para ensaios
sobre a história dos intelectuais no Caderno 12 e, mediante uma lei-
tura histórica de seu pensamento, buscaremos analisar contradições
da relação trabalho-educação no Brasil (1990-2018).

História, historicismo e historicidade do pensamento de Gramsci


Neste capítulo, não pretendemos aventar as razões possíveis
para o aparente esquecimento da história em muitos trabalhos que
têm sua base teórica no materialismo histórico, em Marx e Grams-
ci.96 Vamos nos limitar a pesquisar, em Gramsci, algumas referên-
cias básicas em que ele trata, como filósofo e como militante político,
da história, do historicismo, da anti-história e da historicidade dos
acontecimentos.
Tomamos, em primeiro lugar, os Cadernos do cárcere (2006)
e examinamos a presença dessas palavras no “Índice dos principais
conceitos” (Gramsci, 2002, p. 467-95). Os conceitos de história, anti-
-história e historicismo, no conjunto, são citados em 119 páginas dos
seis Cadernos, concentrados, principalmente, no primeiro. O concei-
to de historicismo é sempre tratado em sua relação com a história. A

96 Levantamos possíveis explicações sobre esse fato em Ciavatta (2019).

156
G ramsci : A historicidade da filosofia da práxis e a educação

historicidade do pensamento do autor evidencia-se pela concepção


de história com base nas premissas no materialismo histórico.97
O historicismo é alvo de muitas argumentações, incluindo crí-
ticas aos opositores e comentários a literatos, sempre tendo como re-
ferência a história, a partir do materialismo histórico. O termo histo-
ricidade tem incidência menor. Entendemos que a historicidade dos
acontecimentos é consequência das análises históricas do autor, com
base no materialismo histórico. Uma edição das obras escolhidas de
Gramsci (Gramsci, 1976) e outros autores de referência completam
as análises desta seção.
Em problemas de filosofia e de história, Gramsci afirma que “A
filosofia de uma época histórica não é, portanto, outra coisa, senão
a ‘história’ daquela mesma época [...]”. Explicita no texto que não se
trata de fazer “o estudo da história e da lógica das diversas filosofias
dos filósofos [...] Se é verdade que a filosofia é expressão de uma so-
ciedade, deveria reagir sobre a sociedade, determinar seus efeitos,
positivos e negativos [...]”. Estes constituem “a medida de seu alcance
histórico, do seu não ser “elucubração” individual, mas ser um “fato
histórico” (Gramsci, 1976, pp. 42 e 44). Em outro texto ele reafirma
sua crítica: “Devem ser revistas e criticadas todas as teorias histori-
cistas de caráter especulativo” (Gramsci, 2006, p. 194).
A relação da filosofia com a história se explicita quando a filo-
sofia se detém “sobre as concepções de mundo das grandes massas,
sobre as [concepções] dos mais restritos grupos dirigentes (ou inte-
lectuais) e, enfim, sobre as ligações entre estes vários conjuntos cultu-
rais e a filosofia dos filósofos” (Ibid., p. 42).98 Aqui, tanto Gramsci se

97 Das 119 páginas indicadas no “Índice dos principais conceitos”, “história” aparece em
81 páginas, sendo 41 páginas no 1º Caderno; “historicismo” é citado e argumentado por
Gramsci em trinta páginas, sendo 17 páginas no 1º Caderno; “anti-história” aparece em oito
páginas, sendo seis páginas no 1º. Caderno. Devido aos limites desta seção e deste texto,
nossa análise não é exaustiva. No entanto, ficou clara, primeiro, a reiteração do materialis-
mo histórico como fundamento dos três conceitos, incluindo historicidade, que não consta
do Índice; segundo, outros conceitos, de que não nos ocupamos, são tratados no 1º e nos
Cadernos 2 a 6, através de extensa argumentação crítica aos pensadores, literatos e políticos
de seu tempo.
98 Um exemplo recente que ilustra o pensamento que discrimina segundo a classe social é
“dos mais restritos grupos dirigentes”, a declaração do Ministro da Economia, Paulo Guedes,

157
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos

afasta da filosófica clássica idealista e metafísica, quanto da história


tradicional como relato descritivo dos grandes feitos dos governan-
tes, dos homens ricos e poderosos. Ele põe em cena os dirigentes e
as massas e suas expressões de vida ativa, material, as mentalidades
culturais e religiosas, seu agir prático e suas concepções de mundo.
Explicita o que entende por história da filosofia:

[…] é a história das tentativas e das iniciativas ideológicas de uma determina-


da classe de pessoas para mudar, corrigir, aperfeiçoar as concepções do mundo
existentes numa determinada época e para mudar, por conseguinte, as correspon-
dentes normas de comportamento, a atividade prática no seu conjunto (Gramsci,
2006, p. 41).

Estão aqui presentes os elementos da concepção de história em


Marx e Engels (1979), a produção humana dos meios de vida e das
formas de manifestar a vida (p. 27). Criticando o idealismo da filoso-
fia alemã, eles afirmam que

[…] o primeiro pressuposto de toda existência humana é, portanto, de toda


história, é que os homens devem estar em condições de viver para poder “fazer
história”. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-
se e algumas coisas mais (Ibid., p. 29).

A esse primeiro ato histórico, à satisfação das primeiras ne-


cessidades, segue-se a produção de novas necessidades. A terceira
condição é a procriação e novas relações sociais. Desse conjunto de
relações materiais e sociais na produção da vida, tanto a própria, no
trabalho, como a alheia, na procriação, nasce a consciência e a lin-
guagem (Ibid., pp. 39-43):

justificando a alta do dólar: “Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Todo mundo indo para
a Disneylândia, empregada doméstica, indo para a Disneylândia, uma festa danada” (ven-
tura; martins, 2020).

158
G ramsci : A historicidade da filosofia da práxis e a educação

Esta concepção de história consiste, pois, em expor o processo real de produção,


partindo da produção material da vida imediata; e em conceber a forma de in-
tercâmbio conectada a este modo de produção e por ele engendrada (ou seja, a
sociedade civil em suas diferentes fases) como o fundamento de toda história,
apresentando-a como ação do Estado e explicando a partir dela o conjunto dos
diversos produtos teóricos e formas de consciência – religião, filosofia, moral etc.
(Ibid., p. 55).

Essa concepção de história em Marx e em Gramsci é a base


epistemológica para tratarmos a polêmica afirmação de que Grams-
ci seria historicista. Gramsci cita os termos história e historicismo
frequentemente em suas análises nos Cadernos do cárcere (Gramsci,
2006). Sobre o conceito de história e seu significado, ele é muito claro
e incisivo nos termos da concepção de Marx. Sobre o historicismo,
parece admitir a si próprio como historicista, sem nenhuma alusão
pejorativa ao termo. Seu historicismo é “saudável”, é a base materia-
lista histórica de explicação da realidade.
O sufixo “-ismo” dá forma a uma grande quantidade de pala-
vras que pode indicar uma escola, doutrina ou teoria, tais como po-
sitivismo, socialismo e darwinismo; ou uma ação ou conduta, como
heroísmo, ciclismo e americanismo. Mas também expressa uma ên-
fase excessiva e negativa em uma certa concepção ou conduta, tais
como terrorismo, clientelismo e alcoolismo.
Para uma breve análise do sentido “historicista” do pensamen-
to de Gramsci, recorremos ao uso da palavra pelos historiadores. O
termo historicismo, como toda palavra, tem uma história e diferentes
significados de acordo com a apropriação cultural que lhe é feita por
diferentes autores em seu tempo. Seu sentido próprio é a qualidade
ou condição do que é histórico, e tem existência em um certo espa-
ço-tempo da vida social.
Embora o sentido próprio de historicismo seja a forma histó-
rica de abordar os fenômenos, e seu uso guarde ênfase na história,
observamos a complexidade das múltiplas vertentes e expressões
teóricas de pensamento, a empiria dos fatos que são objeto de uma

159
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos

certa narrativa, ou concepções e sua relação com a realidade de vida


humana.
Dos textos de filosofia e de história em que buscamos o con-
ceito de historicismo, o artigo do professor Francisco Falcon (2002)
nos pareceu o mais abrangente e incisivo sobre os diversos sentidos
do termo historicismo e de sua relação com a concepção de história,
para pensar sobre o historicismo de Gramsci. Falcon “trata da atua-
lidade do debate sobre o historicismo”, considerando os sentidos do
conceito em sua relação com a realidade histórica e com a “noção de
historicidade”.
Considera que o historicismo pode ser analisado tanto nos sen-
tidos antropológico e cosmológico, como no ontológico e no episte-
mológico. Nesse texto, utiliza um critério cronológico, abrangendo
as duas vertentes para o tratamento das diversas interpretações do
termo (Ibid., p. 32).99 Nota que, entre os muitos autores que tratam
do tema, a palavra historicismo adquiriu, na modernidade, um senti-
do relativo aos acontecimentos em seu tempo; na pós-modernidade,
o historicismo seria uma forma de relativismo ainda mais radical,
com diversas interpretações, inclusive em relação à verdade, “embora
num sentido predominantemente negativo” (Ibid., p. 23-24).
Mas o que é crucial no historicismo é que a história existe, o
que pode ser compreendido em vários aspectos. Pode ser “como pro-
cesso real, imanente e intrinsecamente racional”; ou existe conforme
uma lógica interna que lhe dá sentido, o “progresso”; ou como um
terceiro aspecto, em que “a realidade é histórica, tudo tem história
e existe na história [...] em princípio, tudo é histórico” (Ibid., p. 28).
Entretanto, para os historiadores, é necessário, também, “indagar
a respeito da natureza do objeto e da possibilidade de conhecê-lo
como reflexo ou representação na mente do sujeito racional (o histo-
riador)” (Ibid., p. 27).

99 Menciona também a polêmica do uso das palavras “historismo” e “historicismo”, mas,


após situar a discussão básica dos termos entre os historiadores alemães (Ibid., pp. 25-27),
utiliza o termo historicismo e apenas menciona o uso do termo “historismo”.

160
G ramsci : A historicidade da filosofia da práxis e a educação

São muitas as controvérsias sobre o historicismo. O termo par-


ticipa de dois universos, o positivismo e o idealismo. Considera-se,
segundo Falcon (2002), que a objetividade e a racionalidade da his-
tória desenvolvem, no século xix, “formas de inteligibilidade típicas
das historiografias modernas: a discursiva-explicativa, a hermenêu-
tica-compreensiva, a materialista dialética” (p. 28-29).
No primeiro caso está o empirismo cientificista, ou positivis-
mo, pela introdução dos fatos históricos que seriam, à semelhança
dos fenômenos da natureza, a base para os estudos sociais se torna-
rem estudos científicos. É o caso do positivismo de Auguste Comte,
que, ao buscar dar cientificidade à nova ciência social, comparável às
“ciências naturais”, concebeu os fatos históricos submetidos à obser-
vação e quantificação. O conhecimento rigoroso dos fatos, “em ter-
mos objetivos, [propiciaria] a explicação causal dos acontecimentos
e [faria] avançar o conhecimento em direção ao estabelecimento das
leis gerais ou universais que regem a história” (Ibid., p. 29).
A forma hermenêutica e compreensiva “tem como ponto de
partida a negação da distinção/ separação entre sujeito e objeto do
conhecimento”. Nessa vertente se situa o historicismo “culturalista”
“que parte da distinção radical entre ‘natureza’ e ‘cultura’ ou entre
dois ‘mundos’: o natural e o humano”. Falcon acrescenta: “metodolo-
gicamente individualizante, o historicismo culturalista é organicista
quanto à sociedade e centrado nos indivíduos históricos, do ponto de
vista da interpretação e da compreensão” (Ibid.).
A terceira das formas de inteligibilidade é a materialista his-
tórica, com base no materialismo histórico. Para Falcon (2002), seu
historicismo

[...] contém elementos que podem ser interpretados tanto num sentido positivista
ou cientificista, presentes em algumas das formas mais “ortodoxas” do marxismo,
quanto de uma forma “historista” ou historicista, especialmente, a partir de Lukács
e Gramsci (p. 30).

161
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos

Para o autor, do ponto de vista ontológico, o materialismo his-


tórico é historicista, porque se ocupa de coisas materiais e de sujeitos
humanos em múltiplas relações, em tempos-espaços determinados.
Do ponto de vista epistemológico, o materialismo histórico propõe
a superação da relação entre natureza e cultura e a verdade objetiva
na criação de uma “ciência da História” distinta tanto do empirismo
cientificista quanto do idealismo subjetivista ou objetivista de Hegel
(Ibid.).No idealismo de Hegel, as ideias se antecipam à realidade e à
sua compreensão pela razão humana. A mente humana organiza os
acontecimentos em um todo provido de racionalidade. Para Falcon
(2002),

o idealismo objetivo de Hegel (1965)100 realiza, através da fenomenologia do espí-


rito e sua dialética, a identificação entre razão e história, entre o real e o racional. A
história, então, como singular coletivo, nada mais é do que a sequência, no tempo,
da busca de si mesmo do espírito absoluto, que se manifesta concretamente, em
diferentes momentos (épocas/ nações) (p. 34).

Segundo Gramsci (2006), “somente a filosofia da práxis reali-


zou um passo à frente no pensamento, com base na filosofia clássica
alemã, evitando o solipsismo, historicizando o pensamento [...]” (p.
202). Seu pensamento crítico aos historicistas de seu tempo dirige-se
àqueles que partem de um ponto de vista essencialista que se opõe ao
materialismo histórico. É uma crítica ao pensamento especulativo,
metafísico, separado dos acontecimentos que lhe dão a materialidade.
A própria filosofia da práxis é concebida historicamente, já que
“o desenvolvimento histórico está caracterizado, a certa altura, pela
passagem do reino da necessidade ao reino da liberdade”. Todos os
sistemas filosóficos foram expressão das contradições das diferentes
sociedades, embora possam não ter tido consciência dessas contradi-
ções (Gramsci, 1976, p. 85-86).

100 hegel, G. W. La Raison dans l’histoire: Introduction à la philosophie de l’histoire. Paris:


Plon, 1965.

162
G ramsci : A historicidade da filosofia da práxis e a educação

Na sua crítica ao historicismo dos contemporâneos Labriola101


e Gentile,102 analisa também o historicismo formal dos juristas, de
acordo com Marx: “Uma escola [a escola histórica do direito] que le-
gitima a vilania de hoje com a vilania de ontem, uma escola que con-
sidera um ato de rebeldia todo grito do servo contra o cnute [chicote]
quando esse é um cnute carregado de anos, tradicional, histórico”.103
Gramsci dedica muitas páginas de seus Cadernos a criticar o
historicismo de Croce.104 Nos limites deste texto, apenas podemos
sinalizar a polêmica. Para ele,

estabelecer com exatidão a significação histórica e política do historicismo crocea-


no significa precisamente, reduzi-lo à sua função real de ideologia política imedia-
ta [...] O historicismo de Croce seria, portanto, nada mais do que uma forma de
moderantismo político, que coloca como único método de ação política aquele no
qual o progresso e o desenvolvimento histórico resultam da dialética da conserva-
ção e inovação (Ibid., pp. 393 e 395).

Sua crítica ao grande intelectual que foi Croce tem como alvo
a política conservadora de seus opositores: “Mas este historicismo
próprio de moderados e reformistas não é de modo algum uma teo-
ria científica, o ‘verdadeiro’ historicismo; é somente o reflexo de uma
tendência prático-política, uma ideologia no sentido pejorativo”
(Ibid., p. 293).

101 Antonio Labriola (1843-1904), filósofo italiano que “justificava a ação italiana na Líbia,
afirmando que ela contribuía para levar a civilização a um povo atrasado”. Notas ao texto,
apud Gramsci, 2006, p. 457.
102 Giovanni Gentile (1876-1944), ministro da Instrução Pública no regime fascista, “jus-
tificou o ensino religioso obrigatório na escola primária alegando que a religião ela algo
próprio da ‘infância da humanidade’”. Notas ao texto, apud Gramsci, 2006, p. 457.
103 marx, K. “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução [1844]”. Temas de Ciên-
cias Humanas, São Paulo, Grijalbo, v. 2, p. 3, 1977, apud Gramsci, 2006, p. 458.
104 Benedetto Croce (1866-1952), filósofo, historiador e político de família rica e conser-
vadora, exerceu grande influência sobre muitos intelectuais italianos; no princípio apoiou o
fascismo e, depois, foi opositor.

163
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos

Tratando de história e anti-história, Gramsci (1976) se dirige


a outros filósofos e a discussões clássicas sobre natureza e história e
sobre a evolução do ser humano. Ele situa sua crítica em uma questão
fundamental,

[…] o ponto de passagem da “lógica” de cada concepção de mundo à moral que


lhe corresponde, de cada “contemplação” à “ação” de cada filosofia política que dela
depende. É o ponto em que a concepção de mundo, a contemplação, a filosofia se
tornam “reais” porque tendem a modificar o mundo, a alterar a práxis (p. 59).

Gramsci reitera que “este é o nexo central da filosofia da prá-


xis”, o pensamento passa do cérebro dos indivíduos para a vida so-
cial, quando ela se atualiza historicamente. Deixa de ser “arbitrária”
para se tornar “necessária-racional-real” para a transformação social
(Ibid.).

A historicidade da filosofia da práxis e a formação da classe traba-


lhadora como sujeito da história
Iniciamos este capítulo destacando que Gramsci tem sua filia-
ção orgânica com o materialismo histórico e que ele é um original
pensador da filosofia da práxis. Nesta compreensão, à luz do que
apreendemos de sua obra, em especial dos Cadernos do cárcere, a
historicidade da filosofia da práxis se expressa pela forma com que
Gramsci, com base na herança de Marx e Engels, analisa a materia-
lidade das relações sociais capitalistas de seu tempo na perspectiva
da formação da classe trabalhadora qualificando-se para se tornar o
sujeito da história.
Vale ressaltar de imediato que, diferentemente de outros filó-
sofos e filosofias tradicionais, a filosofia da práxis engloba conceitos
para a compreensão e a transformação da sociedade, tais como Es-
tado ampliado, sociedade civil, infraestrutura e superestrutura, rela-
ções de força, lutas de classe, hegemonia, bloco histórico, revolução
e revolução passiva.

164
G ramsci : A historicidade da filosofia da práxis e a educação

Por isso, a filosofia da práxis expressa o sentido da ruptura


ontológica, epistemológica e política realizada por Marx e Engels e,
como tal, pode ser entendida com o mesmo sentido de materialismo
histórico-dialético. Todavia, ao trazer esse legado ao confronto com a
materialidade das relações sociais da primeira metade do século xx,
como observa Giovanni Semeraro, assume o caráter de uma “filoso-
fia integral e original que inicia uma nova fase da história e no de-
senvolvimento mundial do pensamento” (Semeraro, 2014, p. 136).105
Gramsci assim expressa a natureza dessa originalidade no Caderno
16:

A afirmação de que a filosofia da práxis é uma concepção nova, independente,


original, mesmo sendo um momento do desenvolvimento histórico mundial, é a
afirmação da independência e originalidade de uma nova cultura em preparação
que se desenvolverá com o desenvolvimento das relações sociais (Gramsci, 2007,
p. 39).

Não é por acaso, como sublinha Semeraro, que no conjunto


dos Cadernos do cárcere o tema da filosofia da práxis mereceu as ano-
tações mais extensas e elaboradas. Com efeito, o leitor poderá consta-
tar no “Índice dos principais conceitos” (Gramsci, 2002, p. 447-495)
que, ao longo dos seis volumes que reúnem os Cadernos do cárcere, a
concepção da filosofia da práxis, de forma direta ou mediata, orienta
a análise do conjunto dos temas fundamentais com os quais Gramsci
se ocupa historicizando a obra de Marx e Engels e dialogando cri-
ticamente com seus intérpretes. Magri, ao escrever “uma possível
história do Partido Comunista Italiano”, quando trata, no primeiro
capítulo, da herança, traz como um dos subtítulos O genoma Grams-
ci, destacando que ele foi “um cérebro que continuou a pensar, uma
mina de ideias” (Magri, 2014, p. 52).

105 Dois textos de Giovanni Semeraro aprofundam, de forma concisa, clara e densa, o que
trazemos de forma indicativa nos limites deste item e do texto no seu conjunto. O primeiro,
referido na citação acima, que trata da “Filosofia da práxis e as práticas político-pedagógicas
populares” e, o segundo, “Anotações para uma teoria do conhecimento em Gramsci” (Se-
meraro, 2001).

165
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos

Um pensar que busca entender os nexos entre a particularida-


de das lutas e embates que se dão na sociedade italiana e o movimen-
to histórico universal. Um pensar que não engessa e dogmatiza as
análises de Marx e Engels e, posteriormente, de Lênin, mas as chama
para entender o processo histórico em movimento e suas implica-
ções para a luta de classes.106
No sentido indicativo do conjunto deste texto, que tem como
objetivo interpelar e motivar o leitor a buscar na obra de Grams-
ci bases para sua formação intelectual e política e sua intervenção
nos processos emancipatórios da classe trabalhadora, neste item nos
atemos a destacar como Gramsci historiciza a filosofia da práxis de
Marx e Engels na tarefa de pensar e analisar rigorosamente como se
produz a realidade humana sob o capitalismo e, ao mesmo tempo,
intervir praticamente. Trata-se de se mover na unidade do diverso,
do pensar e do agir, da teoria e da prática, nas circunstâncias histo-
ricamente dadas e produzidas pelos seres humanos, até hoje, sob o
signo da luta de classes.
Dentro dessa perspectiva, para Semeraro (2014, pp. 36-37), a
contribuição original de Gramsci em suas reflexões sobre a filosofia
da práxis cumpre três objetivos:

1) Resgatar o marxismo na sua integralidade e originalidade, protegendo-o das


distorções teóricas, “das incrustações naturalistas e mecanicistas” do materialismo
vulgar, das manipulações idealistas e de todas as tentativas de reduzir a prática
à teoria ou da teoria à prática; 2) enfrentar as teorias modernas mais refinadas e
hegemônicas de seu tempo, mostrando a autonomia e independência da “filosofia
da práxis” e as posições mais avançadas de compreensão do mundo por ela alcan-
çadas [...]; 3) partir da realidade e da filosofia “espontânea” das massas populares
para chegar a construir uma própria concepção de mundo e uma práxis político-
-pedagógica em condições de torná-las [...] autônomas e “dirigentes” da própria
sociedade.

106 Para aprofundar o sentido da necessidade de historicizar as análises dos fundadores da


filosofia da práxis, no que Gramsci se destacou como pensador fecundo do século xx, o livro
de Leandro Konder (1992) é uma obra de leitura obrigatória.

166
G ramsci : A historicidade da filosofia da práxis e a educação

Certamente, Gramsci foi o pensador marxista mais importante


do século xx que tomou para si continuar aquilo que Marx define
como sendo “a tarefa da filosofia que está a serviço da história”:

De imediato, e uma vez desmascarada a figura sagrada da autoalienação humana,


é tarefa da filosofia, que está a serviço da história, desmascarar a autoalienação em
suas formas profanas. A crítica do céu transforma-se assim em crítica da terra, a
crítica da religião em crítica do direito, a crítica da teologia em crítica da política
(Marx, 2012, pp. 30-31, grifos do autor).

Nenhum desses aspectos escapou às análises de Gramsci no


diálogo com o seu tempo histórico. No plano filosófico, Gramsci
ocupou-se em desvelar o sentido alienador do pensar dogmático, do
idealismo e da redução da filosofia ao pensar lógico ou a algo des-
tinado a mentes especiais, para ligá-la à vida cotidiana e à transfor-
mação prática do mundo. Dessa forma, para Gramsci, todos somos
filósofos, mesmo que não seja essa a nossa formação profissional, e,
portanto, a filosofia se expressa no senso comum, no folclore, na reli-
gião etc. Por isso, para ele, no plano do processo revolucionário, vale
mais uma pequena descoberta comum a uma grande massa de seres
humanos do que o pensar “genial” isolado de um filósofo.
Mas longe de Gramsci, com isso, indicar que a grande massa
que representa a classe trabalhadora deva permanecer no senso co-
mum, no folclore, ou que se estabeleça uma relação com as classes
populares para mantê-las subalternas, como era a prática do catoli-
cismo. Sobre esse aspecto, no Caderno 16, Gramsci assim se expressa:

Mas deste ponto de vista não se pode confundir a atitude da filosofia da práxis com
a do catolicismo. Enquanto aquela mantém um contato dinâmico e tende erguer
continuamente novos estratos de massa a uma vida cultural superior, este último
tende a manter um contato meramente mecânico, uma unidade exterior, baseada
especialmente na liturgia e no culto mais aparatosamente sugestivo sobre as gran-
des multidões (2007, pp. 38-39).

167
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos

Esse é um ponto fundamental que incide sobre a formação


da classe trabalhadora no processo de tornar-se sujeito da história
e classe hegemônica no processo de superação das relações sociais
capitalistas, para uma sociedade sem classes e sem, portanto, explo-
ração de seres humanos por outros seres humanos. E nesse particular
situa-se, também, a diferença entre a atuação dos intelectuais tradi-
cionais e os intelectuais orgânicos na relação com as massas. Enquan-
to para os primeiros o centro do conhecimento está neles mesmos e
para poucos, mantendo as multidões no plano do senso comum, os
intelectuais orgânicos da classe trabalhadora buscam, partindo desse
senso comum, possibilitar à grande massa a ascensão ao conheci-
mento histórico científico,107 chave central para a construção de uma
nova concepção de mundo e força dirigente para a superação do sis-
tema capitalista.108
Vale registrar que Florestan Fernandes, tendo como base a
mesma herança de Marx e Engels desenvolvida por Gramsci, chega à
mesma compreensão sobre o papel dos intelectuais, que ele denomi-
na de militantes, em relação às classes populares.

107 Dermeval Saviani (1996) capta com acuidade a perspectiva de Gramsci sobre o papel
de elevação intelectual e moral das massas para que desenvolvam um pensamento crítico
autônomo. Uma obra, nesse sentido, de referência para os educadores vinculados à luta da
classe trabalhadora.
108 É importante registrar que a classe dominante brasileira, ao longo de toda a nossa his-
tória, teve como projeto manter a maioria da população sem acesso ao conhecimento ela-
borado, mas mascara isso com um discurso cínico sobre a importância da educação. Além
disso, em todos os momentos em que as lutas sociais conseguem estabelecer avanços, os
mesmos são interrompidos por ditaduras ou golpes. Assim foi com a ditadura de Getúlio
Vargas, posteriormente com a ditadura empresarial-militar de 1964 e as manobras e golpes
após a Constituição de 1988. Mas com golpe de Estado de 2016 e o bloco de poder de ex-
trema-direita que assumiu o país, a regressão é sem precedentes. A Emenda Constitucional
95, as contrarreformas do trabalho, da educação básica e superior e da Previdência têm
como corolário o desmanche da esfera pública. Vale dizer, dos direitos universais. Mas com
o governo de extrema-direita o ataque é no plano da disputa ideológica. Um bloco de poder
que se guia pelo fundamentalismo econômico, sob o signo ideológico da meritocracia; pelo
fundamentalismo político, que se pauta pela pedagogia do ódio, da violência, da anulação
ou eliminação do adversário ou dos que pensam criticamente; e, por fim, o fundamenta-
lismo religioso que regride à Idade Média, tendo como foco a subordinação da ciência à
religião. A regressão, nesse particular, revisita as pautas e as práticas fascistas das quais An-
tonio Gramsci foi um ferrenho opositor, o que lhe valeu o cárcere até o fim da vida. Por isso,
revistar sua obra é fundamental. Não é casual que ele seja entendido pelo bloco de poder de
extrema-direita do Brasil como ícone do “marxismo cultural”.

168
G ramsci : A historicidade da filosofia da práxis e a educação

A causa principal consiste em ficar rente à maioria e às suas necessidades econô-


micas, culturais e políticas: pôr o povo no centro da história, como mola mestra da
Nação. O que devemos fazer não é lutar pelo Povo. As nossas tarefas são de outro
calibre: devemos colocar-nos a serviço do Povo brasileiro para que ele adquira,
com maior rapidez e profundidade possíveis, a consciência de si próprio e possa
desencadear, por sua conta, a revolução nacional que instaure no Brasil uma nova
ordem social democrática e um estado fundado na dominação efetiva da maioria
(Fernandes, 1980, p. 245-46).

Portanto, o ponto fundamental da filosofia da práxis é que a


grande massa adquira um pensar autônomo para desmascarar os
processos de alienação inerentes às relações sociais de produção da
existência humana sob o capitalismo. Um pensar capaz de efetivar
a crítica, pela raiz, à economia, ao Estado, ao direito, à política, à
cultura e à educação burgueses e à ciência e à ideologia que lhes
correspondem.
Essa crítica radical é tarefa fundamental da filosofia da práxis,
mas esta não é um pensar diletante ou que se esgota na crítica, ainda
que seja uma condição fundamental. Ela supõe necessária e conco-
mitantemente a ação política intencional prática, pois é esta que pos-
sibilita alterar um panorama histórico. Ou seja, é na ação prática que
se constrói o processo de superação das relações sociais capitalistas.
Nesse particular, também Gramsci se pauta no legado de Marx
e Engels, sendo uma das referências centrais as “Teses sobre [ou
contra] Feuerbach”, particularmente a Tese 11, na qual indica que
“os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes formas; o
que importa é transformá-lo” (Marx, 1982). E, de forma mais incisi-
va, Marx e Engels sublinham no livro A sagrada família: “Ideias não
podem executar absolutamente nada. Para a execução das ideias são
necessários homens que ponham em ação uma força prática” (Marx;
Engels, 2003, p. 137, grifo dos autores).
Veja-se que Marx e Engels não estão negando o papel da teoria
revolucionária, mas mostrando que ela só tem efetividade revolucio-
nária na ação prática. É nessa perspectiva que a filosofia da práxis
sustenta a unidade (no diverso) indissolúvel da teoria e da prática.

169
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos

Com efeito, é mediante o método materialista histórico-dialé-


tico que Gramsci, na análise das relações e da luta de classes, põe em
evidência os processos que visam manter e reproduzir as relações
sociais do sistema capitalista. Aqui Gramsci traz os temas da coopta-
ção, do transformismo e das mudanças feitas pelo alto, da “revolução
passiva e/ou revolução-restauração”. Do mesmo modo, efetiva a crí-
tica ao determinismo econômico que conduz à ideia de que o sistema
capitalista se dissolverá sem, necessariamente, a existência de uma
força política organizada para liquidá-lo. Na mesma direção, segue
a crítica ao voluntarismo político que não leva em consideração as
condições objetivas nos diferentes âmbitos e níveis das relações de
forças entre os grupos e classes sociais.
Esse tema incide sobre vários aspectos do plano político e nele
se situa o debate de Gramsci sobre as relações entre infraestrutura e
superestrutura; Estado e sociedade civil (Estado ampliado); a hege-
monia e a questão do partido político, ideológico e revolucionário;
e o tema da revolução ou das reformas contra a ordem capitalista. A
análise que Gramsci efetivou não só das questões específicas da Itália
e do enfrentamento do fascismo, mas também da particularidade da
relação entre Estado e sociedade civil no Ocidente, tem particular re-
levância e interpelação para a nossa especificidade histórica e o fosso
em que nos encontramos no presente.
Uma primeira e importante particularidade sobre o processo
revolucionário é a especificidade que Gramsci traz ao analisar as so-
ciedades ocidentais em relação às sociedades orientais. Ao longo dos
Cadernos do cárcere, o autor se ocupa intensamente da questão do
Estado, da sociedade civil, da sua relação e das implicações com a
luta política. Umas das ideias-chave é a de que, no Oriente, o Estado
abarcava tudo e a sociedade civil era fraca e gelatinosa e, em contra-
partida, no Ocidente havia uma relação equilibrada entre o Estado e
a sociedade civil. Daí advém a materialização, no Ocidente, do Esta-
do ampliado. A consequência política é que a tomada pura e simples
do Estado não garante transformações na sociedade se a sociedade
civil não tem forças sociais que as demandem e as sustentem politi-
camente. Da mesma maneira, a tomada do Estado por um poder re-

170
G ramsci : A historicidade da filosofia da práxis e a educação

volucionário, sem as trincheiras e casamatas presentes na sociedade


civil, não terá como sustentar-se.109
No Caderno 17, sob o título “A análise das situações: relações
de força”, Gramsci demarca a diretriz fundamental da luta política e
os dois princípios que a orientam, retirados do prefácio do livro Con-
tribuição à crítica da economia política.110

É o problema das relações entre estrutura e superestrutura que deve ser posto com
exatidão para que se possa chegar a uma justa análise das forças que atuam na
história de um determinado período e determinar a relação entre elas. É necessário
mover-se no âmbito de dois princípios: 1) o de que nenhuma sociedade se põe
tarefas para cuja solução ainda não existam as condições necessárias e suficientes,
ou que pelo menos não estejam em via de aparecer e se desenvolver; 2) e o de que
nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída antes que se tenham desen-
volvido todas as formas de vida implícitas em suas relações (Gramsci, 2011, p. 36).

E, na análise das relações de força, Gramsci indica a necessi-


dade de se distinguirem diferentes momentos: a relação de força li-
gada à estrutura objetiva que independe da nossa vontade; a relação
de força política que implica avaliar o grau de coesão, entendimento
e organização dos grupos que a compõem; e, finalmente, a relação
de forças militares, “imediatamente decisivo em cada oportunidade
concreta”.111
Lúcio Magri, à luz especialmente das contribuições de Gramsci
sobre as particularidades do processo revolucionário no Ocidente,
mas que também se aplicam a mudanças estruturais dentro da ordem
capitalista, contra a mesma, efetiva uma síntese que é sobremaneira
atual para a realidade brasileira e que deve nos interpelar.

109 Ver no “Índice dos principais conceitos” (v. 6) os temas: Estado, Sociedade civil, Guerra
de movimento ou manobrada, Guerra de posição.
110 Ver “Prefácio”. In: Marx, 1983, p. 25.
111 Para a caracterização específica de cada um desses momentos e suas imbricações, ver:
“Gramsci”. In: Coutinho; Nogueira; Henriques, 2002, pp. 42-46.

171
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos

Para Gramsci, portanto, a revolução representa um longo processo mundial, por


etapas, no qual a conquista do poder estatal, ainda que necessária, intervém em
certo momento, de acordo com as condições históricas, e no Ocidente pressupõe
um longo trabalho de conquista de casamatas, a construção de um bloco histórico
entre classes diferentes, cada qual portadora não apenas de interesses diversos, mas
de raízes culturais e políticas próprias. Ao mesmo tempo, esse processo social não
constitui o resultado gradual e unívoco de uma tendência inscrita no desenvolvi-
mento capitalista e na democracia, mas, ao contrário, é o produto de uma vontade
organizada e consciente que intervém no processo de uma nova hegemonia polí-
tica e cultural, de um novo tipo de ser humano em formação progressiva (Magri,
2014, p. 56).

Sem dúvida, essa síntese engendra uma interpelação que nos


cobra um mergulho sobre a formação e cultura política da clas-
se trabalhadora e o papel dos intelectuais que atuam na educação,
nos diferentes níveis, das lideranças do campo político, sindical e
dos movimentos sociais e culturais de esquerda que se vinculam aos
seus interesses. Cabe-nos identificar as dificuldades para entender
a especificidade do processo histórico da sociedade brasileira e da
classe dominante que se mantém no poder mediante a violência ins-
titucionalizada, o conservadorismo, o populismo, o nepotismo e o
clientelismo. De modo especial, devem-se identificar as tarefas que se
colocam no presente para enfrentar o bloco de poder de extrema-di-
reita que faz renascer, como tragédia, as posturas e práticas políticas
fascistas.
Na tarefa dessa vontade organizada e consciente que forja uma
nova hegemonia política, a educação das massas e o acesso ao co-
nhecimento científico historicamente produzido pela humanidade
têm uma função fundamental. Daí a importância que Gramsci deu à
escola na formação da classe trabalhadora como o sujeito da história.
Mas não qualquer escola: a escola unitária. A que se opõe ao mero
adestramento psicofísico demandado pelas relações sociais e de pro-
dução capitalistas.

172
G ramsci : A historicidade da filosofia da práxis e a educação

O caráter histórico e dialético da escola unitária e suas possibili-


dades e limites na realidade brasileira
É bem conhecido o enunciado de Gramsci, como já assinala-
do acima, sobre os intelectuais, encontrado no Caderno 12:112 “todos
os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então: mas nem todos
os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais”
(Gramsci, 1991, p. 7). O autor quer negar a distinção entre intelec-
tuais e não intelectuais definida por referência à categoria profissio-
nal. Ele afirma, então, que se pode falar de intelectuais, mas não de
não intelectuais, já que inexiste atividade humana da qual se pos-
sa excluir a intervenção intelectual (separação entre Homo faber e
Homo sapiens).
É claro o caráter histórico e prático da unidade entre trabalho
manual e intelectual, que ele expressa também como “esforço
muscular-nervoso” e “esforço intelectual-cerebral”, a qual é produ-
zida e só pode ser apreendida nas relações sociais concretas. Em
Gramsci, essa formação está intimamente vinculada à base econô-
mica, às classes sociais e às mediações da superestrutura (sociedade
civil e sociedade política), em que a organização escolar – organismo
privado de hegemonia – assume relevância: “a diversa distribuição
dos diversos tipos de escola (clássicas e profissionais) no território
‘econômico’ e as diversas aspirações das várias categorias destas ca-
madas determinam, ou dão forma, à produção dos diversos ramos de
especialização intelectual” (Gramsci, 1991, p. 9).
Essa compreensão leva Gramsci a distinguir entre os intelec-
tuais como categoria tradicional e aqueles como “categoria orgâni-
ca de cada grupo social fundamental”. Também histórico e diferente
nas diversas formações sociais é o desenvolvimento destes últimos
em relação aos primeiros, que têm seus lastros desde a Antiguidade,

112 Gramsci dedica esse caderno a “apontamentos e notas dispersas para um grupo de en-
saios sobre a história dos intelectuais” (Gramsci, 2006), em que a abordagem da educação e
da escola é privilegiada. São esses estudos que tomaremos como referência neste item, tendo
como apoio, porém, a edição da Civilização Brasileira, que recebeu o título “Os intelectuais
e a organização da cultura” na 8ª edição (Gramsci, 1991), tradução de Carlos Nelson Couti-
nho do original publicado na Itália.

173
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos

enquanto vão se tornando necessários na disputa por hegemonia a


partir da economia capitalista, especialmente em sociedades do tipo
ocidental.
A organização da escola é correlata a esse processo. Grams-
ci113 identifica como uma crise escolar o fenômeno da diferenciação e
particularização que ocorre na criação de escolas de diferentes níveis
para ramos e profissões especializadas, em coexistência com a escola
“humanista” tradicional antiga. Essa crise seria parte de uma crise or-
gânica mais ampla e geral no desenvolvimento do modo de produção
capitalista, dada a necessidade de um novo tipo de intelectual urbano
requerido pelo industrialismo.
Se, por um lado, ele reconhecia a necessidade de formação de
intelectuais de “novo tipo”, também criticava o desaparecimento da
escola “desinteressada” (não imediatamente interessada, tal como ele
entendia a relação entre intelectuais e produção) e “formativa”. Preo-
cupava-se, naquele momento, com a dualidade educacional, caracte-
rizada, de um lado, pela existência de um pequeno número de esco-
las tradicionais destinadas a uma elite que não precisaria se preparar
para o exercício profissional, e, de outro, pela ampliação de escolas
profissionais especializadas, mediante as quais se predeterminavam
o destino e a atividade futura dos estudantes. Esse fenômeno leva
Gramsci (1991, p. 118) a propor uma solução que, “racionalmente”,
deveria ser seguida:

[…] escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa. Que equilibre
equanimemente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente
(tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho
intelectual. Deste tipo de escola única, através de repetidas experiências de orien-
tação profissional, passar-se-á a uma das escolas especializadas ou ao trabalho
produtivo.

113 Um dos pesquisadores brasileiros estudiosos do pensamento educacional de Antonio


Gramsci no Brasil é Paolo Nosella, cujo livro A Escola de Gramsci (1992) é uma referência
reconhecida para aqueles que pretendem iniciar estudos sobre o tema.

174
G ramsci : A historicidade da filosofia da práxis e a educação

Destacamos o advérbio “racionalmente” para alertar que essa


posição do nosso filósofo não se confunde com um idealismo. Ao
contrário, trata-se de uma elaboração com fundamento histórico,
dada a apreensão que ele tinha, orientado pelo materialismo histó-
rico, das contradições da sociedade à época, as quais poderiam, na
disputa por hegemonia, se desenvolver em benefício do trabalho.
Isso nos parece importante para não tomarmos a posição de Gramsci
como uma fórmula, mas como resultado da análise histórica.
No Brasil de hoje, tal como afirmamos em outros textos (Fri-
gotto; Ciavatta; Ramos, 2005; Ramos, 2014), a contradição entre
a defesa da possibilidade de integração da educação profissional à
educação geral e a perspectiva da escola unitária não é de caráter
lógico (Barata-Moura, 2012), mas dialético. Isso porque, em nos-
sa sociedade escravocrata e conservadora, é nesse tipo de escola –
pública, gratuita, financiada pelo Estado e de qualidade socialmente
referenciada – que reside a possibilidade concreta de filhos da classe
trabalhadora terem acesso à “cultura geral, humanista e formativa”,
ao mesmo tempo em que desenvolvem suas capacidades manuais e
intelectuais, a partir da qual se pode passar ao trabalho produtivo
qualificado e também prosseguir estudos para níveis superiores.
Neste país, a escola “desinteressada” é, precisamente, como
Gramsci identificou na Itália dos anos de 1930, destinada à elite,
enquanto a exclusivamente profissional se destina à reprodução da
condição subalterna dos filhos da classe trabalhadora. A escola uni-
tária no Brasil, portanto, tem sua historicidade: sua construção im-
plica a integração entre educação básica e profissional. Nesse sentido,
argumentamos:

A finalidade profissionalizante que se agrega na proposta de formação integrada


no Brasil é fruto das circunstâncias adversas do real e se faz por, pelo menos, três
razões, a saber: a) de caráter econômico, dado que jovens e adultos da classe tra-
balhadora brasileira, à margem de uma política pública coerente, têm dificuldade
de, por si próprios, traçar uma carreira escolar em que a profissionalização – de
nível médio ou superior – seja um projeto posterior à educação básica; b) de ca-

175
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos

ráter social, posto que títulos e diplomas produzem relações de identidade que
implicam formas intersubjetivas de enfrentamento da questão social sob a crise
capitalista contemporânea; c) de caráter cultural, pois a dualidade da educação
brasileira e a correspondente desvalorização da cultura do trabalho pelas elites e
pelos segmentos médios da sociedade, torna a escola refratária a essa cultura e suas
práticas (Ramos, 2014, p. 210).

Disso resulta nossa compreensão de que

a integração do ensino médio com o ensino técnico é uma necessidade conjuntu-


ral – social e histórica – para que a educação tecnológica se efetive para os filhos
dos trabalhadores. A possibilidade de integrar formação geral e formação técnica
no ensino médio, visando a uma formação integral do ser humano é, por essas
determinações concretas, condição necessária para a travessia em direção ao en-
sino médio politécnico e à superação da dualidade educacional pela superação da
dualidade de classes (Frigotto; Ciavatta; Ramos, 2005, p. 45).

Pode-se depreender dos escritos de nosso pensador italiano


que a escola unitária, para ele, é essencialmente humanista e de cul-
tura geral. Mas ele próprio chama a atenção para que seu “huma-
nismo” seja entendido em “sentido amplo e não apenas em sentido
tradicional” (Gramsci, 1991, p. 121). Esse tipo de humanismo, como
vimos, tem fundamento filosófico e histórico, encontrado na unida-
de que ele enuncia entre Homo faber e Homo sapiens, que, no tempo
em que escreveu, já era mediada pela ciência como força produtiva,
numa sociedade industrialista e tecnológica da primeira e segunda
Revoluções Industriais. O “sentido amplo” de seu humanismo tem
base também epistemológica, que pode ser percebida em sua crítica
às correntes filosóficas idealistas de Croce e Gentile, que endossavam
o isolamento das ciências naturais ou exatas do mundo da cultura.
Em termos pedagógicos, encontramos na análise de Gramsci
sobre a escola elementar a defesa da educação orientada pela unidade
entre societas rerum (mundo das coisas) e societas hominum (mundo

176
G ramsci : A historicidade da filosofia da práxis e a educação

dos homens). A criança seria introduzida na primeira pelo estudo


das noções científicas (hoje, as ciências da natureza e a matemática) e,
na segunda, mediante o aprendizado de direitos e deveres, pelo qual
conheceriam a vida estatal e a sociedade civil (as ciências humanas e
sociais e a filosofia). A educação completa implicaria ainda o estudo
das linguagens, sobre o qual Gramsci se debruçará ao discutir o lugar
do latim na escola básica – ainda que reconheça no industrialismo
a tendência à sua supressão –, e em cuja abordagem encontramos a
historicidade do conhecimento como princípio pedagógico. A arte
também é fundamental nessa organização, além do desenvolvimento
da disciplina corporal para a dedicação aos estudos. Aqui se encontra
a perspectiva gramsciana de formação de dirigentes, inclusive dos
quadros estatais, os quais, segundo ele, deveriam ter o mínimo de
cultura geral para criar ou julgar soluções de caráter técnico-político.
O princípio educativo tem seu fundamento na unidade dialé-
tica entre as ciências da natureza e as ciências humanas e sociais,
que se condensa no trabalho. A formação do homem de novo tipo,
livre das concepções tradicionais de mundo, implica, por um lado, o
aprendizado das leis da natureza e, por outro, das leis civis e estatais
produzidas pelo próprio homem. Estas últimas, por sua vez, organi-
zam a sociedade de modo historicamente mais adequado à interação
entre homem e natureza na produção social da existência. Não se
trata, portanto, de uma unidade abstrata – exclusiva do plano do pen-
samento ou das atividades acadêmicas –, mas concreta, que se mate-
rializa no trabalho humano, “forma própria através da qual o homem
participa ativamente na vida da natureza, visando transformá-la e
socializá-la cada vez mais profunda e extensamente” (Gramsci, 1991,
p. 130).
Daí ser o trabalho o princípio educativo, pois ele não se pode
realizar em todo o seu poder de expansão e produtividade sem o
conhecimento das leis da natureza e da sociedade. O conhecimento
orientado pelo princípio educativo do trabalho não visa à adaptação
dos sujeitos, nem à natureza – pois a apreensão de suas leis visa à am-
pliação das capacidades humanas de transformá-las conforme suas

177
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos

necessidades –, nem à ordem social, pois são próprias da elaboração


humana como liberdade e não como imposição externa ou coação.
É importante trazer as palavras do próprio autor, em uma
passagem que nos brinda com a recuperação do sentido onto-
histórico do trabalho no materialismo histórico-dialético, reforçan-
do-o como fundamento da formação humana no seu devenir históri-
co e como princípio da educação escolar.

O conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-prática) é o princípio edu-


cativo imanente à escola elementar, já que a ordem social e estatal (direitos e de-
veres) é introduzida e identificada na ordem natural pelo trabalho. O conceito do
equilíbrio entre ordem social e ordem natural sobre o fundamento do trabalho, da
atividade teórico-prática do homem, cria os primeiros elementos de uma intuição
do mundo liberta de toda magia ou bruxaria, e fornece o ponto de partida para o
posterior desenvolvimento de uma concepção histórico-dialética do mundo, para
a compreensão do movimento e do devenir, para a valorização da soma de esforços
e de sacrifícios que o presente custou ao passado e que o futuro custa ao presente,
para a concepção da atualidade como síntese do passado, de todas as gerações
passadas, que se projeta no futuro (Gramsci, 1991, p. 130).

Essa compreensão nos impede de entender o trabalho como


princípio educativo exclusivo das escolas profissionais, o que o es-
vaziaria de seu caráter dialético. Se assim ocorre, o aprendizado das
“leis da natureza” se reduz à instrumentalidade, e o das “leis da so-
ciedade” ao seu caráter coercitivo. Nas escolas tradicionais, por sua
vez, reificam-se a cultura geral como cultura de elite e o trabalho
intelectual como exclusividade da classe dominante.
A ocorrência de um desequilíbrio como esse se configura, em
sua análise, como uma “degenerescência”, manifestada no entusias-
mo com as escolas de tipo profissional que se preocupavam com a
satisfação de interesses práticos imediatos, em detrimento da escola
formativa, imediatamente desinteressada. Seria um equívoco vê-las
como democráticas, apesar de essa ser uma tendência no Brasil em

178
G ramsci : A historicidade da filosofia da práxis e a educação

relação a políticas como o Programa Intensivo de Preparação de Mão


de Obra (Pipmo), na década de 1970; o Plano Nacional de Formação
Profissional (Planfor), dos anos de 1990; e o Programa de Nacional de
Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), da década passada.
Argumenta o autor, com razão, que a escola delimitada por seu
interesse imediato nas especialidades práticas perpetua e cristaliza as
diferenças sociais. E, mesmo que seus propósitos pareçam democrá-
ticos porque visariam qualificar o operário manual, o camponês etc.,
isso não é suficiente. Em suas palavras:

a tendência democrática, intrinsecamente, não pode consistir apenas em que um


operário manual se torne qualificado, mas em que cada “cidadão”’ possa se tornar
“governante” e que a sociedade o coloque, ainda que “abstratamente”, nas condições
gerais de pode fazê-lo: a democracia política tende a fazer coincidir governantes e
governados (no sentido de governo com o consentimento dos governados), asse-
gurando a cada governado a aprendizagem gratuita das capacidades e da prepara-
ção técnica geral necessárias ao fim de governar (Gramsci, 1991, p. 137).

É justamente com a lógica dual de ser humano, de conhecimento


e de formação que o filósofo vem romper, configurando uma nova
concepção que chega até a educação formal com o princípio educativo
do trabalho e a organização da escola unitária. Assim, para ele, em
vez de se multiplicarem os tipos de escolas profissionais, dever-se-ia
criar um tipo único de escola preparatória (elementar-média) que
conduziria os jovens aos umbrais da escola profissional. Eles seriam
formados como pessoas capazes de pensar, de estudar, de dirigir ou
de controlar quem dirige.
Gramsci tinha clareza quanto à organização prática desse tipo
de escola. Sua tarefa seria inserir os jovens na atividade social depois
de tê-los levado a um certo grau de maturidade, capacidade e auto-
nomia para a criação intelectual. Por isso, a última fase dessa escola,
que poderíamos reconhecer como nosso ensino médio, seria decisi-
va, pois, juntamente como os valores fundamentais do humanismo

179
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos

proporcionado pela cultura geral, seriam desenvolvidas a disciplina


intelectual e a autonomia moral dos estudantes, necessárias à poste-
rior especialização. Esta poderia seguir os rumos dos estudos uni-
versitários, que ele entende como estudos de caráter científico, ou da
prática produtiva.
É importante notar que o autor entende que se deva anteci-
par para essa fase o que antes se restringia aos ensinos superiores: a
apreensão dos métodos dos estudos científicos e da investigação, que
consolide a relação entre trabalho intelectual e trabalho industrial. Ou
seja, para além do elemento moral típico da escola tradicional, ou da
prática ativa dos estudantes proposta pelas pedagogias novas, a esco-
la unitária buscaria fundir disciplina e autonomia moral e intelectual
com domínio teórico-metodológico das ciências, a fim de desenvol-
ver no estudante a capacidade de produzir conhecimentos. Gramsci
dirá, então, que a escola unitária é criadora e superior, em termos de
princípios, propósitos e complexidade, à escola ativa.114 Com base

114 Gramsci critica nas reformas educacionais italianas, de um lado, a proliferação das esco-
las profissionais e, de outro, a adesão ao modelo da escola ativa, como meios de se contrapor
à escola tradicional, jesuítica. Para ele, na Itália de seu tempo, esse projeto se encontrava
numa fase “romântica”, “na qual os elementos da luta contra a escola mecânica e jesuítica se
dilataram morbidamente por causa do contraste e da polêmica: é necessário entrar na fase
‘clássica’, racional, encontrando nos fins a atingir a fonte natural para elaborar os métodos e
as formas” (Gramsci, 1991, p. 124). Isso não significa que ele negasse a participação ativa dos
jovens no processo educativo. O que ele rejeitava era o espontaneísmo e o não diretivismo
do projeto educativo, o que pode ser visto na complementação da citação anterior: “é ne-
cessário entrar na fase ‘clássica’, racional, encontrando nos fins a atingir a fonte natural para
elaborar os métodos e as formas”. Por isso, Gramsci vai além da ideia de atividade e enuncia
que a escola unitária é também criadora. Princípios da escola ativa baseados no pensamento
de John Dewey chegaram ao Brasil por meio dos “Pioneiros da Educação Nova”, entre os
quais Anísio Teixeira. Demerval Saviani (2000) explica que esse educador, entretanto, não
encarava de forma romântica esses princípios, reconhecendo a importância de organizar o
ensino na forma de um sistema articulado que envolvesse órgãos centralizados, especial-
mente em países pouco desenvolvidos. Esse mesmo autor explica o quanto a discussão da
primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, iniciada em 1946, foi influencia-
da pelos “escolanovistas”. Ao lado dos liberais, a Igreja Católica também tentou se renovar
metodologicamente na mesma linha, com as ideias de Lubienska, associadas a Montessori,
sendo que as perspectivas litúrgicas da primeira se adequavam ao projeto não laico (Saviani,
1991). O caráter progressista da Pedagogia Nova no Brasil, que tem Anísio Teixeira como
representante, acabou dando lugar a perspectivas educacionais não críticas. Isso porque,
de um lado, seu caráter inovador ficou restrito a escolas de elite; por outro, porque acabou
ajudando a colocar na escola, mais do que na estrutura econômico-social, as razões das
desigualdades educacionais e sociais dos estudantes.

180
G ramsci : A historicidade da filosofia da práxis e a educação

nessa compreensão, temos tratado a pesquisa no ensino médio como


um princípio metodológico coerente com essa perspectiva.
Quando declaramos que a escola unitária no Brasil tem sua
historicidade e que as contradições inerentes a esse projeto não são
de ordem lógica (produto do pensamento), mas sim, dialética (pro-
duto da realidade concreta), procede elucidar algumas questões.
Primeiramente, a defesa da educação profissional integrada à
formação geral orientada pela referência gramsciana compreende
que a vinculação entre educação e produção pressuposta por tal pro-
jeto possibilita a materialização do princípio educativo do trabalho
na escola, na medida em que o currículo ajuda a evidenciar que a
produção da existência humana se faz pelas relações entre as neces-
sidades da existência e as condições de satisfazê-las, tensionadas pela
luta de classes em determinados tempos e espaços históricos.
A vinculação entre educação e produção na formação integra-
da não é imediatamente interessada. Por mais que, contraditoria-
mente aos enunciados de Gramsci, nesse tipo de escola os estudan-
tes sejam levados a fazer escolhas de formação profissional no início
do ensino médio, o desenvolvimento moral e intelectual defendido
pelo filósofo é intrínseco a esse projeto, cujos fundamentos filosófi-
cos, epistemológicos, pedagógicos e metodológicos são os mesmos
da escola unitária. Ao concluírem os estudos, os estudantes podem
passar à atividade produtiva e/ou prosseguir estudos, inclusive em
outras especialidades. Cumpre-se, assim, o projeto de a escola inserir
os jovens na atividade social a partir de um verdadeiro amadureci-
mento moral, intelectual e científico que os orientará nas escolhas
subsequentes.
Em segundo lugar, Gramsci não projetava a escola unitária de
forma ideal, mas sabia, por exemplo, que as condições econômicas
podiam obrigar os jovens à colaboração produtiva imediata. Por isso,
o Estado deveria assumir as despesas que estariam a cargo das famí-
lias, de modo que o orçamento da educação deveria ser ampliado e as
condições de infraestrutura das escolas completamente modificadas.

181
Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Marise Ramos

No Brasil, nossas conquistas, até hoje, chegaram à garantia de


existência, expansão e interiorização da Rede Federal de Educação
Profissional, Científica e Tecnológica, a qual reúne algumas dessas
condições defendidas pelo filósofo, abrangendo parcela importante
dos estudantes da classe trabalhadora. A sustentação de seu objeto,
definido pela tríade da formação profissional, científica e tecnológi-
ca, tem sido fundamental para a sua existência em condições econô-
micas e políticas historicamente avessas aos interesses dessa classe
em nosso país.
Isso não significa que defendemos essa concepção exclusiva-
mente para essa rede. Mas entendemos que as características federa-
tivas de nossa organização política – que, por um lado, conferem au-
tonomia aos sistemas de ensino, tornando mais difícil a disputa por
um projeto educacional orgânico no país; e, por outro, preservam o
caráter autárquico daquelas instituições – e as conquistas que já con-
seguimos nas disputas de concepções e de condições das escolas, in-
cluindo a qualidade da formação e o regime de trabalho de seu corpo
docente,115 fazem essa rede ser estratégica para a consolidação de um
projeto que pode e deve vir a ser disputado para o âmbito nacional.

Considerações finais
Tratando de história, anti-história, historicismo e historicida-
de, Gramsci se dirige a outros pensadores de seu tempo, em polê-
mica, muitas vezes, sobre as discussões clássicas sobre natureza, ser
humano e história. Ele situa sua crítica em questões teórico-práticas
fundamentais para o tratamento histórico dos acontecimentos: teo-
ria e prática, filosofia e política, ética e ação. Gramsci reitera que “este
é o nexo central da filosofia da práxis”. O pensamento vai além dos

115 É interessante tomar novamente do próprio Gramsci a crítica de que a existência de uma
concepção educativa que orienta o projeto escolar não necessariamente envolve e compro-
mete organicamente todos os docentes. Diz ele ao falar do princípio educativo do trabalho
na escola elementar: “É este o fundamento da escola elementar; que ele tenha dado todos
os seus frutos, que no corpo de professores tenha existido a consciência de seu dever e do
conteúdo filosófico deste dever, é outro problema, ligado à crítica do grau de consciência
civil de toda a nação, da qual o corpo docente é tão somente uma expressão, ainda que
amesquinhada, e não certamente uma vanguarda (Gramsci, 1991, p. 131).

182
G ramsci : A historicidade da filosofia da práxis e a educação

indivíduos, passa pela história de vida individual e coletiva. Atualizá-


-la historicamente é fazê-la deixar de ser ocasional, “arbitrária”, para
ser fruto da necessidade real da transformação social.
No campo da educação, a construção no Brasil da escola unitá-
ria desinteressada profissionalizante ou não profissionalizante é ma-
téria da própria luta de classes e implica a apropriação de mediações
concretas que possibilitam à classe trabalhadora o acesso ao conheci-
mento nos termos da unidade gramsciana aqui discutida. O projeto
do Ensino Médio Integrado (Frigotto; Ciavatta; Ramos, 2005), basea-
do na unidade trabalho-ciência-cultura, sob o princípio educativo do
trabalho, é a particularidade na qual disputamos as contradições no
sentido da utopia gramsciana.
Como vimos acima na síntese de Lúcio Magri (2014) sobre a
compreensão de Gramsci do processo social revolucionário, o mes-
mo “não constitui o resultado gradual e unívoco de uma tendência
inscrita no desenvolvimento capitalista e na democracia, mas, ao
contrário, é o produto de uma vontade organizada e consciente que
intervém no processo de uma nova hegemonia política e cultural,
de um novo tipo de ser humano em formação progressiva”. A escola
unitária insere-se nesse processo de luta revolucionária na constru-
ção de seres humanos de novo tipo e “em formação progressiva”.

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185
CAPÍTULO 7
S ubalterno e oprimido : D iálogo com
G ramsci e F reire

Cláudia Borges Costa,


Maria Emilia de Castro Rodrigues

Primeiras palavras

“[...] antes de aprender a dizer a palavra é fundamental que o oprimi-


do saiba ler o mundo”.

Paulo Freire (1976)

Ler o mundo diz respeito ao olhar atento e curioso, mas acima


de tudo questionador e crítico da realidade social em que se insere.
A sociedade brasileira vem, ao longo de sua história, vivenciando as
disputas e os conflitos inerentes ao sistema capitalista. As diretrizes
da economia brasileira, salvo raras exceções, sempre se pautaram na
busca do desenvolvimento econômico condicionado à manutenção
das desigualdades sociais e à submissão às pressões externas.
Transformações econômicas ocorreram nesse cenário, sobretu-
do no século xx, com a passagem da economia agrário-exportadora
para economia industrial. No entanto, a realidade brasileira gritava
a profunda desigualdade entre a população empobrecida, invariavel-
mente presente nas diversas regiões do país. A constatação de que as
mudanças não equalizaram a problemática da distribuição de renda
ou benefícios não foi acompanhada de esclarecimentos, o que resul-
tou nas mais variadas interpretações para essa realidade.
O caráter de um desenvolvimento econômico dependente,
com a internalização da divisão internacional do trabalho e todas as
contradições constituídas entre as classes dominantes e dominadas,

187
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

constitui a especificidade da economia brasileira. Na argumentação


de Francisco de Oliveira (2003), as especificidades do capitalismo no
Brasil refletem as tensões entre modos de dominação política, mo-
dos de acumulação de capital e modos de distribuição de renda e
de riqueza, pois a forma de viabilizar o desenvolvimento econômi-
co e passar por cima das crises pressupôs sempre novas definições
das condições institucionais; condições que estabeleceram modelos
apropriados para a consumação do lucro e a apropriação das sobras
entre capital e trabalho, entre as diversas representações da burguesia
interna, entre capitais internos e externos e entre dotações públicas
e privadas.
Esse mesmo autor revela que o desenvolvimento do capitalismo
moderno, no Brasil, foi emaranhado pelas formas socioeconômicas
arcaicas, que cultivavam elevadas taxas de lucro. O que se percebe ao
longo da história do Brasil é que, no âmbito econômico, a continui-
dade da dependência externa, a concentração de renda e a repetição
das relações de submissão política e pessoal sempre prevaleceram.
A especificidade do capitalismo brasileiro foi marcada pelas
formas de articulação entre o caráter de dominação política e os pro-
cessos próprios da economia que se apresentaram, quase sempre, sin-
tonizados com a dinâmica do capitalismo mundial. Ainda na percep-
ção de Francisco de Oliveira (2003), refletir sobre as especificidades
do capitalismo brasileiro exige discutir as características essenciais
das estruturas socioeconômicas e da situação institucional que de-
terminaram o surgimento dos períodos de expansão e de crise eco-
nômica. Exige discutir, também, as várias formas de preponderância
autocrático-burguesa, que possibilitaram valorizar o capital no Bra-
sil, na perspectiva de longa duração, o que terminou por enraizar as
transformações motivadas pela dinâmica do capitalismo monopolis-
ta mundial, concomitante às formas de dominação criadas e recria-
das constantemente, que limitam ou redefinem significativamente a
expansão econômica interna.
Para Florestan Fernandes (1975), há dois lados reveladores da
estrutura econômica: de um lado, a economia brasileira, que ele de-
nomina de tropical e, do outro, os centros de dominância da eco-

188
S ubalterno e oprimido : D iálogo com G ramsci e F reire

nomia capitalista. Em sua argumentação, a economia brasileira está


inserida no sistema capitalista, e sua característica é a de inserção
subordinada aos interesses econômicos e políticos das nações com
poder hegemônico. Porém, essa subordinação não deve ser com-
preendida como uma determinação externa, visto que ela se revela
como uma articulação dos interesses da burguesia brasileira, pois
a propagação das relações de dominação ideológica e a exploração
econômica compõem a hegemonia burguesa.
Esse arquétipo de hegemonia burguesa reafirma a razão con-
servadora em que prevalece o escopo de proteger a ordem, a proprie-
dade individual, a iniciativa privada, a independência da empresa e a
associação dependente, constituindo-se como instrumento de reafir-
mação do privilégio econômico, sociocultural e político. Essa com-
posição da hegemonia burguesa promove uma associação ao impe-
rialismo e, também, aos setores mais arcaicos da economia brasileira,
constituindo-se em uma dualidade de expropriação do excedente
econômico. Assim, a produção coletiva da riqueza pelos trabalhado-
res é fracionada entre a burguesia internacional e a brasileira, duas
caras de um mesmo traço de dominação. Na argumentação de Flo-
restan Fernandes (1968, p. 61), o capitalismo dependente determina
“ao mesmo tempo, o subdesenvolvimento econômico e o subdesen-
volvimento social, cultural e político. Em ambos os casos, ele une o
arcaico ao moderno e suscita, seja a arcaização do moderno, seja a
modernização do arcaico”.
Na argumentação do autor, essa condição de ausência de auto-
nomia combina modelo dependente de desenvolvimento e modelo
de mercantilização do trabalho e constitui, dessa forma, as bases do
arquétipo brasileiro de relação racial, que tem sua origem nas rela-
ções escravistas, mas que também é operacional à ordem burguesa.
Florestan Fernandes (1968) apontava a existência de saltos históricos
na trajetória de passagem da economia agrária para economia urba-
no-industrial, quando instituições e valores sociais foram copiados
de países centrais, mas adaptados ao capitalismo brasileiro.
Sobre o desenvolvimento desigual, o autor faz crítica às rela-
ções que se constituem com o poder hegemônico, através do acordo

189
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

de dominação entre a burguesia industrial e o setor agrário. Nesse


sentido, Florestan Fernandes (1975) postula que o conceito de de-
pendência é estabelecido na referência do desenvolvimento desigual
da economia capitalista internacional, pautada na relação centro e
periferia. A dependência cultural também se expressa nesses limites
de dominação. Enquanto no centro revelava uma produção intelec-
tual a partir das exigências das necessidades da sociedade, a peri-
feria absolvia essa construção intelectual, adaptada à revelia de sua
situação histórico-social. Em outras palavras, o Brasil não conseguiu
produzir um pensamento intelectual autônomo, e, quando havia a
necessidade de produção intelectual exigida pelo contexto histórico-
-social, a saída era buscar a produção dos países europeus.
Nessa condição de economia dependente e de desenvolvimen-
to desigual historicamente constituído, a desigualdade social, nas
suas várias dimensões, fez-se presente de forma marcante ao longo
da história da sociedade brasileira. Desde o modelo econômico es-
cravocrata, não havia participação na renda produzida; e, no início
da República, o modelo econômico agroexportador foi a tônica e deu
vigor ao nascente capitalismo no país. O trabalho era assalariado nas
fazendas de café e nas indústrias têxteis e tipografias da cidade. O
modelo político oligárquico rural incorporado à burguesia industrial
urbana, classe emergente no período, impunha altas jornadas de tra-
balho e baixos salários. Toda situação era regulamentada conforme
os ditames do grupo dominante. A pobreza e a desigualdade foram a
tônica nesse período.
O desenvolvimento econômico processado no período de 1930
a 1964 trouxe vigor e consolidação industrial no âmbito das indús-
trias metalúrgica, automobilística, química, petroquímica, alimen-
tícia e de eletrodomésticos, entre outras. Marcou-se também, nesse
período, o surgimento das políticas de salário mínimo, aposentado-
ria, regulamentação da jornada de trabalho, prevenção e saúde do
trabalhador e dos programas estatais de habitação, enfim, de políticas
públicas que buscaram diminuir a desigualdade social. A consolida-
ção de uma democracia política entre 1946 e 1964 foi marcada pelo
modelo nacional desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek e pelas

190
S ubalterno e oprimido : D iálogo com G ramsci e F reire

reformas de base de João Goulart. Nesse período, também se deu a


efervescência da organização social dos trabalhadores para assegurar
direitos sociais e melhores salários. Porém, a concentração de renda
do capital continuou nas mãos da elite industrial. A grande massa
dos trabalhadores sobrevivia com salários reduzidos, reafirmando as
desigualdades sociais. Por falta de políticas públicas no campo, inú-
meros trabalhadores vieram para as cidades, aumentando o índice de
desempregados e pobres no país.
A ditadura vigente entre 1964 e 1985 amparou-se nos capitais
nacional e estrangeiro e no Estado empresarial autoritário. Nesse
período, intensificaram-se as desigualdades sociais, mas também a
luta em defesa dos direitos sociais e a organização dos trabalhadores.
Dessa forma, os movimentos sociais sofreram um duro tratamento
por parte da polícia e do Estado, cujas ações visavam silenciar lide-
ranças e impedir qualquer forma de organização social.
A década de 1980 trouxe o tempo da redemocratização no Bra-
sil. O marco desse período ocorreu com o processo vivenciado pelos
atores sociais, entre 1985 e 1988, na defesa de diretrizes para uma
nova Constituição da República. Nesse movimento, para além das
disputas ideológicas, o ideário da cidadania política tomou espaço
significativo na sociedade brasileira. A Constituição de 1988 nasceu
da experiência de participação e cidadania política. As várias bandei-
ras de luta por políticas públicas, mudanças no rumo da economia
e defesas sociais e culturais refletiram-se de alguma forma no texto
promulgado e na promessa de busca da minimização das desigual-
dades sociais.
De 1995 a 2002, o governo de Fernando Henrique Cardoso
(fhc) alardeou-se por representar o período de reforma do Estado
brasileiro na direção da racionalização e da modernização conser-
vadora, o que implicou, principalmente, a privatização de empresas
públicas e a gestão de políticas sociais pautadas na descentralização,
esta fundada na perspectiva de desobrigação cada vez maior dos po-
deres públicos em relação às demandas da sociedade. As consequên-
cias desse modelo econômico flexível e neoliberal foram nefastas,
traduzindo-se em um desenvolvimento com concentração de renda

191
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

nas mãos da elite empresarial e alargando ainda mais as desigualda-


des sociais.
Durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) e de
Dilma Rousseff, inauguraram-se concretamente políticas sociais di-
rigidas, sobretudo, aos setores mais vulneráveis da população. Mate-
rializaram-se inúmeros programas envolvendo o fim da fome e polí-
ticas de prevenção e saúde, educação, emprego e cultura, diminuindo
assim o fosso da desigualdade social.
Desde 2016, no entanto, com o golpe contra o governo da presi-
dente Dilma, e até os dias atuais, o país vive uma avalanche de perdas
dos direitos sociais conquistados com grande esforço e organização
social. A investida neoliberal iniciada em 2016 impôs um máximo
de lucratividade para o capital e a correspondente minimização do
Estado na sua responsabilidade social, ou seja, uma precarização das
políticas sociais e o recrudescimento da desigualdade social.
A reflexão necessária a partir desse histórico persistente de con-
tradições e desigualdades é que, já há algum tempo, tem-se almejado,
de forma concreta, a igualdade social, que representa a construção de
oportunidades iguais para todas as pessoas; e, dessa forma, a defesa
de que as pessoas tenham as mesmas possibilidades de construção
social e econômica de suas existências. Compreende-se que a educa-
ção de qualidade faz parte de um potente processo de construção de
igualdade de oportunidades.
Pensar na possibilidade da educação plena para o indivíduo
é assegurar-lhe a oportunidade de viver inserido na sociedade com
condições de assumir qualquer posição, inclusive a de dirigente. No
entanto, tomando todo o contexto histórico da especificidade capi-
talista brasileira e da condição do desenvolvimento sem distribuição
de renda e com a reafirmação da desigualdade social para a maioria
dos indivíduos, a condição da mão de obra é, quase sempre, mo-
desta. Segundo Weffort (1967, p. 6), no prefácio do livro Educação
como prática da liberdade, “todo aprendizado deve encontrar-se in-
timamente associado à tomada de consciência da situação real vivi-
da pelo educando”, proporcionando-lhe compreender e analisar essa

192
S ubalterno e oprimido : D iálogo com G ramsci e F reire

realidade de forma crítica, para nela intervir e transformar, indivi-


dual e coletivamente.
Nesse sentido, a função da escola toma outra dimensão para
além do processo da alfabetização. Ela deve constituir-se em espa-
ço de força e produção do conhecimento, que possa criar condições
para que os indivíduos saiam da inércia, despertados pela sua própria
cultura, e possam ser sujeitos históricos na sociedade e, assim, con-
tribuir na transformação necessária que o contexto exige. Antonio
Gramsci116 (1891-1937) e Paulo Freire117 (1921-1997) demonstraram
conhecimento e envolvimento com os subalternos/oprimidos. Freire
(1987) inicia a sua obra mais traduzida, Pedagogia do oprimido, de-
dicando o livro “aos esfarrapados do mundo e aos que neles se des-
cobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo,
com eles lutam” (p. 23). Esses autores também tinham em comum a
certeza de que a educação pode ser uma possibilidade de transforma-
ção social, no Brasil, na Itália e em todo mundo. Gramsci defendia o
fim da opressão dos operários nas fábricas, e Paulo Freire postulava
que todas as pessoas, sobretudo os mais pobres, por meio da educa-
ção, poderiam conquistar a consciência crítica e política, e isso era o

116 Conforme a cronologia da vida de Antonio Gramsci, ele era “filho de Francesco e Giu-
seppina Marcias, quarto de sete filhos (Genaro, Grazietta, Emma, Antonio, Mario, Teresina,
Carlo). O pai, filho de um coronel da polícia militar, nascera em Gaeta em 1860, descenden-
te de uma família de origem albanesa. Concluído o ginásio, Francesco passou a trabalhar
no cartório de Ghilarza, 1881. Em 1883, casa-se com Giuseppina Marcias e, pouco tempo
depois, transfere-se para Ales. A mãe, nascida em Ghilarza em 1861, era sarda, por parte de
pai e mãe e tinha parentesco com famílias ricas de sua cidade” (Gramsci, 2004, p. 49).
117 De acordo com Beisiegel (2010, p. 13), Paulo Reglus Neves Freire, filho de Joaquim
Temístocles Freire e Edeltrudes Neves Freire, nasceu no Recife, no estado de Pernambuco,
em 19 de setembro de 1921. Viveu ali pouco tempo após a morte do pai, um capitão da
Polícia Militar de Pernambuco. Sua família era de classe média, mas, após a morte do pai,
Paulo Freire vivenciou a pobreza e a fome durante a depressão de 1929, o que o levaria a se
preocupar com os mais pobres. Estudou o primário em Jaboatão, e concluiu o estudo secun-
dário em Recife, no Colégio Oswaldo Cruz (devido a sua mãe ter conseguido uma bolsa de
estudos). Casou-se, ainda estudante do ensino superior, com Elza Maria Costa de Oliveira,
tiveram cinco filhos, e, após o falecimento da primeira esposa, em 1986, casou-se com Ana
Maria Araújo. Diplomou-se na Escola de Direito do Recife, em 1946, mas atuou em apenas
um caso, sem concluí-lo. Optou por continuar na profissão de professor. Freire atuou no Sesi
e no Movimento de Cultura Popular, onde teve origem o processo de alfabetização viven-
ciado e sistematizado por ele. Em 1962, Freire assumiu o Serviço de Extensão Cultural da
Universidade do Recife, que possibilitou aprimorar sua proposta educativa, que o levou para
o exílio. Faleceu em 2 de maio de 1997, em São Paulo (Freire; Guimarães, 1987).

193
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

primeiro passo dos oprimidos em direção à emancipação. Segundo


Freire, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela
tampouco a sociedade muda” (2000, p. 67), já que a “educação não
transforma o mundo. A educação transforma os homens. Pessoas
transformam o mundo” (1979, p. 84); e é essa educação crítica dos
homens oprimidos que lhes permite ter conhecimento e consciência
crítica e política para transformar individual e coletivamente a rea-
lidade social. Assim, refletir sobre os conceitos de subalternidade e
oprimido é um convite ao diálogo com Gramsci e Freire.

A subalternidade, os oprimidos e os intelectuais na tessitura da


emancipação
Gramsci, em seus escritos, utilizou diversas vezes a ideia de su-
balternidade, que, conforme o Dicionário gramsciano (2017), susci-
ta uma discussão acerca da impossibilidade da definição precisa de
“subalterno” ou de “grupo subalterno”. Mas é possível afirmar que
Gramsci identifica que o grupo subalterno não representa uma agre-
miação isolada e tampouco homogênea. Os grupos subalternos se
constituem para além da classe proletarizada, são “setores sociais si-
lenciados e pouco considerados pelas teorias políticas e pelo próprio
marxismo da época” (Semeraro, 2012, p. 58).
Gramsci, deputado comunista e um dos principais dirigentes
do Partido Comunista da Itália, empenhava-se em traçar a estratégia
da unidade italiana; portanto, era necessário buscar a unidade entre
os trabalhadores da cidade e do campo. Ou seja, nas palavras de Del
Roio (2007, p. 66),

encontrar na aliança operário-camponesa o núcleo gerador socialista. A fórmula


política única foi a chave para que Gramsci não só traduzisse Lênin para a parti-
cularidade da Itália, mas que pudesse encontrar um novo lugar pra o campesinato
na estratégia revolucionária. Esse sujeito revolucionário, tão importante quanto o
peso econômico e demográfico que desempenhava, foi, mais tarde – nos Cadernos
do cárcere –, colocado num conjunto denominado como “Classes subalternas”.

194
S ubalterno e oprimido : D iálogo com G ramsci e F reire

Gramsci compreendia a unificação das classes subalternas da


Itália como uma forma de contribuição para a organização da huma-
nidade na defesa de sua existência digna, sem opressão. Na reflexão
do autor, fazia-se necessária a unificação das classes subalternas com
a classe operária na perspectiva político-cultural, e essa unidade com
os camponeses deveria se estender para além da Itália, para o contex-
to internacional.
Para Paulo Freire (1987), os oprimidos são homens e mulhe-
res submissos a uma condição de violência, exploração e injustiça
social, de relações antagônicas de classe. Esses homens e essas mu-
lheres só podem se transformar em sujeitos da realidade histórica em
que estão inseridos e defender a liberdade de ser humano por meio
da desalienação. Nos escritos da Pedagogia do oprimido (1987), Pau-
lo Freire argumenta sobre a necessidade da comunhão dos homens
para se libertarem. Compreende que somente quando o oprimido
descobre que carrega um opressor dentro de si é que se torna capaz
de se comprometer no enfrentamento pela sua libertação. Nas pala-
vras do autor, os homens

descobrem que, não sendo livres, não chegam a ser autenticamente. Querem ser,
mas temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o outro introjetado neles, como
consciência opressora. Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou serem duplos.
Entre expulsarem ou não ao opressor de “dentro” de si. Entre se desalienarem ou
se manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre serem
espectadores ou atores. Entre atuarem ou terem a ilusão de que atuam, na atuação
dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não terem voz, castrados no seu poder
de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo. Este é o trágico dilema
dos oprimidos, que a sua pedagogia tem de enfrentar. A libertação, por isto, é um
parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo
que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a
libertação de todos. A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este
homem novo não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se
(Freire, 1987, p. 19).

195
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

Freire, no processo educativo libertador, afirma que “[...] nin-


guém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mes-
mo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mun-
do” (1987, p. 39). Trata-se da ação libertadora como consequência
da consciência crítica do povo, traduzida pelo caráter pedagógico
da transformação. O método proposto por Paulo Freire é a própria
consciência enquanto caminho em que educador e educandos, su-
jeitos do processo de conhecer, tomam a realidade com crítica para
desmistificá-la, reconstruindo o conhecimento e se constituindo, as-
sim, como sujeitos desse processo de construção do conhecimento.
Nessa discussão de oprimidos e opressores, os Escritos políti-
cos de Gramsci ponderam sobre a luta incessante da humanidade
118

para romper com o anseio de domínio sobre o outro. Em suas pala-


vras (2004c, p. 43):

O homem, que em certo momento se sente forte, com a consciência da própria


responsabilidade e do próprio valor, não quer que nenhum outro lhe imponha
sua vontade e pretenda controlar suas ações e seu pensamento. Porque parece um
cruel destino para os humanos serem dominados por este instinto, o de quererem
devorar-se uns aos outros, em vez de fazerem convergir as forças unidas para lu-
tar contra a natureza e torna-la sempre mais útil às necessidades dos homens. Ao
contrário, quando um povo se sente forte e aguerrido, pensa imediatamente em
agredir seus vizinhos para expulsá-los e oprimi-los.

Paulo Freire compreende que, enquanto a violência dos opres-


sores impede os oprimidos de serem, estes respondem através do de-
sejo da busca do direito de serem livres. Nos escritos de Pedagogia do
oprimido (1987, p. 23), ele afirma:

118 “Trabalho escolar, manuscrito, provavelmente de novembro de 1910, quando Gramsci


frequentava o último ano da escola média, no Colégio Dettori de Cagliari”. Gramsci, 2004c,
p. 43.

196
S ubalterno e oprimido : D iálogo com G ramsci e F reire

O importante, por isto mesmo, é que a luta dos oprimidos se faça para superar
a contradição em que se acham. Que esta superação seja o surgimento do ho-
mem novo – não mais opressor, não mais oprimido, mas homem libertando-se.
Precisamente porque, se sua luta é no sentido de fazer-se Homem, que estavam
sendo proibidos de ser, não o conseguirão se apenas invertem os termos da contra-
dição. Isto é, se apenas mudam de lugar, nos polos da contradição.

O diálogo que aqui se estabelece com base nos escritos de


Gramsci e Freire sobre oprimidos e opressores revela que a vocação
ontológica do ser humano é se constituir enquanto “existência em e
com o mundo” (Freire, 1977, p. 65). E, para Freire, predominar sobre
a existência é ter “domínio do trabalho, da cultura, da história, dos
valores – domínio em que os seres humanos experimentam a dialéti-
ca entre determinação e liberdade” (p. 66).
Nos vários Cadernos do cárcere, escritos por Gramsci e organi-
zados posteriormente, o Caderno 25, “Às margens da história (Histó-
ria dos grupos sociais subalternos)”, escrito em 1934, faz um desenho
de critérios metodológicos:

A história dos grupos sociais subalternos é necessariamente desagregada e epi-


sódica. É indubitável que, na atividade histórica destes grupos, existe tendência à
unificação, ainda que em termos provisórios, mas esta tendência é continuamente
rompida pela iniciativa dos grupos dominantes e, portanto, só pode ser demons-
trada com o ciclo histórico encerrado, se este se encerra com sucesso (Gramsci,
2002, p. 135).

A condição fragmentada dos grupos subalternos, na explica-


ção de Gramsci, justifica-se por esses grupos terem características
inerentes à situação social em que estão inseridos, subordinados à
exploração e à opressão. Na argumentação de Gramsci, essa condição
carece de ser superada historicamente, pois, à medida que os grupos
deixam a condição de subalternidade e entram no âmbito da disputa

197
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

hegemônica, constituem-se de forma organizada com a perspectiva


da totalidade.
Paulo Freire compreende que a educação como prática da liber-
dade é fundamental para libertar os sujeitos da condição de subor-
dinação. Essa proposta de educação transformadora toma a reflexão
crítica e a ação como componentes de um projeto social, voltando
o caráter político-pedagógico para a perspectiva da humanização,
da educação como instrumento de libertação da opressão. Propõe
também que os educandos/as envolvidos/as no processo de apren-
dizagem façam essa reflexão na medida em que também se sintam
conscientes de seu papel como educandos/as e sujeitos históricos de
uma sociedade. Freire (1979) destaca o sujeito e seu compromisso
com a realidade:

Nenhuma ação educativa pode prescindir de uma reflexão sobre o homem e de


uma análise sobre suas condições culturais. Não há educação fora das sociedades
humanas e não há homens isolados [...]. Se a vocação ontológica do homem é a
de ser sujeito e não objeto, só poderá desenvolvê-la na medida em que, refletin-
do sobre suas condições espaço-temporais, introduz-se nelas, de maneira crítica.
Quanto mais for levado a refletir sobre situacionalidade, sobre seu enraizamento
espaço-temporal, mais “emergerá” dela conscientemente “carregado” de compro-
misso com sua realidade, da qual, porque é sujeito, não deve ser simples especta-
dor, mas deve intervir cada vez mais (p. 61).

No pensamento de Freire, é necessário que o homem não so-


mente esteja na realidade, mas esteja com ela, pois assim poderá de-
senvolver relações contínuas que lhe possibilitem criar novos conhe-
cimentos e obter o domínio da cultura. A cultura, na argumentação
de Freire (1979), é a capacidade dos homens e das mulheres de criar
nas relações que vão tecendo ao longo da história. Para ele, o homem
se cultiva e cria a cultura no processo das relações que são construí-
das para responder aos desafios apresentados em sua existência e, ao
mesmo tempo, ser capaz de criticar e manifestar-se por uma ação

198
S ubalterno e oprimido : D iálogo com G ramsci e F reire

criadora a obter a experiência humana realizada pelos homens de


hoje e de antes.
A cultura, na argumentação gramsciana, torna-se material
bruto que pode incorporar a dominação ou a emancipação. Na pers-
pectiva de uma concepção crítica como princípio educacional, a no-
ção de estrutura e ação humana e o construto de cultura e autono-
mia recusam o entendimento de que a escola é um simples local de
instrução. Dessa forma, o conceito de cultura é politizado e aponta
também a necessidade de refletir na escola, como contradição e pos-
sibilidade de luta.
Em Gramsci (2004b), a educação é parte da esfera da cultura, e
a escola compõe parte dessa organização. A escola, necessariamente,
tem que estabelecer relações com todas as ações culturais, e o proces-
so educacional é visto como um trabalho intelectual que exige muita
disciplina, rigor e perseverança, devendo conduzir a uma elevação
intelectual e moral das massas. “A escola é o instrumento para elabo-
rar os intelectuais de diversos níveis” (2004b, p. 19). Nela, todos de-
vem ser formados para serem “dirigentes”, indo da técnica-trabalho à
técnica-ciência, numa concepção histórica e política.
Na reflexão gramsciana, a constituição de uma nova sociedade
depende de uma base teórica que tenha sustentáculo nas lutas popu-
lares para, de fato, romper com a cultura dominante e vencê-la. Por
isso, Gramsci faz um estudo cuidadoso sobre a temática Estado a
partir do contexto da modernidade, que apresentava uma engenha-
ria propícia à manutenção do poder hegemônico. A hegemonia no
conceito gramsciano “é [ético-política], não pode deixar de ser tam-
bém [econômica], não pode deixar de ter seu fundamento na função
decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade
econômica” (Gramsci, 2007, p. 48).
Gramsci afirma que é preciso haver condições adequadas e su-
ficientes para que a revolução se concretize. Assevera que a revolução
não é um momento e sim um processo no qual é possível lutar para
alcançar essas condições. A tarefa fundamental é desagregar a ideo-

199
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

logia e os intelectuais da classe dominante e construir o novo bloco


histórico.
Conforme o autor, por meio da organização das classes su-
balternas e da reforma intelectual e moral é possível romper com a
ideologia dominante. E é na filosofia, em estreita identidade com a
política, que está o segredo da ideologia. Para ele, todos os homens
são filósofos “porque na mais simples manifestação de uma atividade
intelectual qualquer, até na linguagem está contida uma determina-
da concepção de mundo, estando a filosofia contida na linguagem,
no senso comum, no bom senso, na religião popular e no folclore”
(1989, p. 11).
Gramsci argumenta que são os intelectuais os responsáveis
pela organização e pela propagação dessa concepção de mundo. Os
intelectuais são fundamentais no pensamento gramsciano e constitu-
tivos do próprio conceito do bloco histórico, pois cabe ao intelectual
articular organicamente os componentes do referido bloco. Confor-
me Portelli (1977, p. 104), “Gramsci, no estudo do bloco histórico,
insiste no caráter orgânico do vínculo que une estrutura e superes-
trutura: só cabe considerar as superestruturas ‘historicamente orgâ-
nicas, isto é, necessárias a uma certa estrutura’”.
Gramsci (2004b), ao discutir se os intelectuais são um grupo
autônomo e independente, ou se cada grupo social tem a sua própria
categoria especializada de intelectuais, aponta que, ao longo do pro-
cesso histórico, diversas categorias de intelectuais se constituíram.
Entre elas, destacou duas, os intelectuais orgânicos (da classe traba-
lhadora ou da classe dominante) e os tradicionais, devido ao lugar e
à função que ocupam:

1) Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no


mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente,
uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da
própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político
[...] caracterizada por uma certa capacidade dirigente e técnica (isto é, intelectual):
ele [o intelectual] deve possuir uma capacidade técnica, não somente restrita de

200
S ubalterno e oprimido : D iálogo com G ramsci e F reire

sua atividade e de sua iniciativa, mas também em outras esferas, pelo menos nas
mais próximas da produção econômica [...] deve possuir a capacidade de organizar
a sociedade em geral, em todo o seu complexo organismo de serviços, até o orga-
nismo estatal, tendo em vista a necessidade de criar as condições mais favoráveis à
expansão da própria classe (p. 15, acréscimo nosso).

2) Todo grupo “essencial”, contudo, emergindo da história a partir da estrutura


econômica anterior e como expressão do desenvolvimento desta estrutura, encon-
trou [...] categorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás, como re-
presentantes de uma continuidade histórica que não foi interrompida nem mesmo
pelas complicadas e radicais modificações das forças sociais e políticas. A mais
típica destas categorias intelectuais é a dos eclesiásticos (p. 16).

Os intelectuais têm uma autonomia relativa de escolha de vínculo orgânico com


uma determinada classe social, seja ela a classe trabalhadora ou a proprietária
dos meios de produção. Para esse autor, o intelectual não tem hierarquicamente
uma condição melhor ou superior à dos demais homens, haja vista que, enquan-
to condição humana e não apenas de alguns iluminados, todos os homens são
filósofos, pois todos têm a capacidade de fazer análises da realidade, ainda que
existam diferenciações e gradações nessa relação filosófica conforme o nível das
concepções de mundo elaboradas: senso comum, religiosa, filosofia tradicional,
filosofia da práxis. A filosofia é compreendida como concepção sistematizada e
coerente da realidade.

Para Gramsci (2004a, p. 100),

[...] um movimento filosófico só merece este nome na medida em que [...] no traba-
lho de elaboração de um pensamento superior ao senso comum e cientificamente
coerente, jamais se esquece de permanecer em contato com os “simples” e, melhor
dizendo, encontra neste contato a fonte dos problemas que devem ser estudados e
resolvidos. Só através deste contato é que uma filosofia se torna “histórica”, depura-
-se dos elementos intelectualistas de natureza individual e se transforma em “vida”.

Numa concepção popular, quando se “[tomam] as coisas com


filosofia”, busca-se refletir, tomar consciência de forma racional, não

201
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

se deixar levar pelos instintos, superar as paixões e explicações ele-


mentares, dando à própria ação uma direção intencional, a exemplo
da filosofia científica.
A filosofia do senso comum, também tida por Gramsci (2004a)
como “folclórica”, apresenta-se com traços de concepção do mundo e
da vida de inumeráveis formas: desagregada, caótica, difusa, disper-
sa, incoerente, com predomínio de elementos “realistas”, materialis-
tas, acríticos, equivocados, contraditórios e multiformes, orientados
conforme a posição social e cultural das multidões. Essa filosofia pos-
sui um núcleo sadio, o chamado bom senso, “que merece ser desen-
volvido e transformado em algo unitário e coerente” (Ibid., p. 98). Para
ele, quando um grupo social homogêneo ascende ao poder, elabora,
contra o senso comum, uma filosofia também homogênea, coerente
e sistemática. O senso comum não se configura em uma concepção
única e idêntica no tempo e no espaço, mas se renova ao longo do
contexto histórico, tendo como elementos principais aqueles forne-
cidos pelas religiões, os quais são, em geral, acríticos, “supersticiosos”
e superficiais. Para o autor, tanto os sistemas filosóficos tradicionais
quanto os religiosos limitam o pensamento original das massas po-
pulares de maneira negativa, sem criar a oportunidade de transfor-
mação do seu pensamento, mantendo-as subordinadas a uma hege-
monia das classes dominantes.
Já a filosofia da práxis, filosofia elaborada, sistematizada e crí-
tica da realidade, crítica do senso comum – após basear-se nele – e
da filosofia dos intelectuais, busca conduzir o povo a uma concepção
de vida superior, com vistas à ação intencional transformadora. Para
tanto, é uma exigência da filosofia da práxis o contato orgânico dos
intelectuais com os “simples” para forjar um bloco intelectual-mo-
ral, que torne politicamente possível a elevação intelectual e moral
das massas e não apenas de pequenos grupos intelectuais. A unida-
de e a organicidade intelectuais-massa, numa perspectiva dialética,
permitem aos intelectuais orgânicos serem os intelectuais daquelas
massas, constituindo um bloco cultural e social.
Para Gramsci (2004b), ser intelectual não se liga ao exercício
de funções “mentais” ou “manuais”, pois todo trabalho envolve ele-

202
S ubalterno e oprimido : D iálogo com G ramsci e F reire

mentos manuais e cerebrais. Para ele, o critério específico para essa


definição está no lugar e na função que o homem ocupa no conjunto
das relações sociais, em determinadas condições. Isso se dá inclusive
porque, na acepção gramsciana, no âmbito da potencialidade huma-
na, todos os homens são intelectuais, mas nem todos têm essa função
na sociedade, haja vista que, historicamente, formam-se categorias
especializadas para exercer a função intelectual, em conexão com
todos os grupos sociais e, especialmente, em conexão com os gru-
pos sociais mais importantes, as classes essenciais (a trabalhadora e
a dominante).
“A relação entre os intelectuais e o mundo da produção [...] é me-
diatizada, em diversos graus, por todo o tecido social, pelo conjunto das
superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os ‘funcioná-
rios’” (Ibid., p. 20), e a conexão com um grupo social fundamental é
mais ou menos estreita segundo as funções e as superestruturas em
que atuam. E há dois planos superestruturais: o da sociedade civil e
o da sociedade política. As funções básicas de organização e conexão
que os intelectuais desempenham são de hegemonia social (vincu-
lada à capacidade de direção cultural, ideológica e política) e de go-
verno político. Por isso, envolvem a função econômica (de direção
econômica e organização da divisão técnica do trabalho), a função
hegemônica (exercida nas organizações culturais e nos partidos com
vistas à obtenção da legitimação e do consentimento das classes do-
minadas), a função de coerção (exercida pelos aparatos administra-
tivos, políticos ou repressivos do Estado, para assegurar “legalmen-
te” a disciplina) e a função de suscitar uma concepção homogênea e
autônoma.
Os intelectuais orgânicos, conforme registro nos Cadernos do
cárcere (2004b, p. 16), possuem características distintas, pois “cada
nova classe cria consigo e elabora em seu desenvolvimento progres-
sivo” um grupo que a representa e defende seus interesses. Esse gru-
po é orgânico, porque está inserido no contexto de sua classe social,
possui vínculos e compromisso com sua formação ideológica. Esses
intelectuais estão envolvidos na sociedade de forma dinâmica.

203
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

Nesse sentido, é na compreensão do contexto dessa sociedade capi-


talista que os intelectuais orgânicos desse tempo podem contribuir
para construção da consciência crítica, elaborada a partir da filosofia
da práxis. Conforme Semeraro, para Gramsci, a filosofia da práxis

é atividade teórico-político e histórico-social dos grupos “subalternos” que pro-


curam desenvolver uma visão global de mundo e um programa preciso de ação
dentro do contexto em que vivem, com os meios que têm à disposição, visando
construir um projeto hegemônico alternativo de sociedade (2006, p. 69).

A construção desse projeto alternativo hegemônico de socie-


dade exige o rompimento com a ideologia dominante, e os conceitos
fundamentais de Gramsci contribuem para a reflexão dos educado-
res, no intuito de se constituírem como intelectuais orgânicos dos
“subalternos”, da classe trabalhadora. Nessa perspectiva, aos educa-
dores caberia não somente o envolvimento, mas também o compro-
misso político com os sujeitos em formação.
O compromisso fundamental, para Freire (1987), é a assun-
ção, o engajamento e o compromisso com a classe trabalhadora e
a serviço dela, o que demanda a escuta; ir até o povo, dialogar com
ele, tomar seus conteúdos essenciais (temas geradores) como objeto
de estudo e pesquisa; ver que o processo educativo não se restringe
à escola, vai além, nas lutas cotidianas do mundo do trabalho, na
organização social pelos direitos de todo homem a uma vida digna,
com qualidade social, e em uma práxis pedagógica que considere e
valorize a cultura local, ao mesmo tempo que possibilite o acesso aos
novos saberes sistematizados e que passe pela conscientização, pro-
porcionando elementos para a análise crítica da realidade social, in-
dividual e coletivamente, (re)construindo os saberes, compreenden-
do a realidade em um novo patamar de forma que se possa intervir
para transformá-la. Para Freire (1987, p. XX),

204
S ubalterno e oprimido : D iálogo com G ramsci e F reire

Só através da práxis autêntica que, não sendo “blábláblá”, nem ativismo, mas ação e
reflexão, é possível fazê-lo. [...] A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre
o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição
opressor-oprimidos. [...] A Pedagogia do Oprimido, como pedagogia humanista
e libertadora, terá dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão
desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua
transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta peda-
gogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo
de permanente libertação.

Trata-se de um processo de ação e reflexão, com vistas à ação


cada vez mais intencionada para a transformação e a libertação dos
homens, superando a opressão. E, nesse processo educativo, o ponto
de partida são os saberes de experiência feitos dos/as educandos/as e
como as/os educandas/os veem a sua realidade social, os problemas
advindos e vividos nessa realidade, uma situação limite, e como bus-
cam sistematizar os saberes de experiências feitos, revê-los quando
necessário, (re)construí-los a partir da apropriação dos conhecimen-
tos sistematizados, (re)elaborando novos saberes críticos, com vistas
a analisar criticamente sua realidade para que, individual e coletiva-
mente, possam transformá-la.
Para Gramsci (Manacorda, 2008), a escola predominante no
século xx traduzia-se pelo conceito de formação “interessada”. Para
ele, isso dizia respeito a uma formação com o mero objetivo de edu-
cação profissional, em detrimento da educação “desinteressada”, que
representava a formação fundante, propedêutica, cultural, capaz de
contribuir para o pensamento crítico e de promover os alunos a se-
rem dirigentes ou à condição de questionar os dirigentes.
A discussão gramsciana possibilita analisar que a educação
pode reproduzir a sociedade capitalista, em função da hegemonia
ideológica constituída pelos intelectuais oriundos da burguesia, mas
também pode constituir-se em uma posição contra-hegemônica e
participar do processo de construção de uma nova sociedade. Fri-
gotto (2002, p. 25) opina que é uma imprecisão analisar a “educação

205
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

no Brasil, em todos os seus níveis e modalidades [...] em si mesma e


não como constituída e constituinte de um projeto, situado em uma
sociedade cindida em classes, frações de classes e grupos sociais de-
siguais e com marcas históricas específicas”.
Retomando Gramsci, o desvelamento das desigualdades, con-
tradições e complexidades dessa sociedade é tarefa dos intelectuais
orgânicos que assumem a postura da contra-hegemonia em favor
dos grupos subalternos. A formação dos trabalhadores passa pela
necessidade de contar com educadores que possam se constituir em
intelectuais orgânicos, rumo à centralidade do trabalho como prin-
cípio educativo e como condição de esses trabalhadores se tornarem
sujeitos protagonistas de suas histórias.
Para Freire (1987), é fundamental o compromisso ético-políti-
co do/a educador/a com a classe trabalhadora, com vistas à promoção
do diálogo crítico e libertador, em que educandos-educadores e edu-
cadores-educandos atuem com o intuito de contribuir com a liber-
tação, ontológica e histórica, dos homens para serem mais homens.
Numa entrevista realizada com Paulo Freire, em março de
1989, pelo Sindicato dos Trabalhadores do Ensino de Minas Gerais,
ele foi questionado sobre o que é ser um trabalhador do ensino no
Brasil, ao que respondeu afirmando a não existência de um educa-
dor alheio ao seu tempo. Em sua opinião, o ato de ensinar é político.
Freire (2001, p. 49) afirma: “daí que me pareça fundamental que todo
trabalhador do ensino, todo educador ou educadora, [...] assuma a
natureza política de sua prática. Defina-se politicamente. Faça a sua
opção e procure ser coerente com ela”.
A atividade profissional do professor, enquanto intelectual e
filósofo, também perpassa variados graus: os criadores (pesquisado-
res) das várias ciências, da filosofia, da arte etc. pertencem ao grau
mais elevado; no mais baixo, os mais modestos “administradores”
e divulgadores da riqueza intelectual acumulada. Vale destacar que
todas essas atividades dos professores, nos seus graus variados, são
fundamentais para a formação dos intelectuais. Os professores, en-
quanto intelectuais, também podem estar ou não organicamente vin-

206
S ubalterno e oprimido : D iálogo com G ramsci e F reire

culados à classe fundamental dos trabalhadores, contribuir ou não


para elevação intelectual e moral das massas de forma a propiciar-
-lhes ferramentas de luta para a emancipação.
Gramsci argumenta que a discussão crítica é imprescindível
para a construção de um novo bloco histórico, e, para compreen-
der essa construção gramsciana, Portelli (1977 p. 131) postula que
o bloco histórico seja definido “como a articulação interna de uma
situação histórica precisa. Tal situação evolui, porém, e com ela a es-
trutura e a superestrutura desse bloco histórico. Esta se edifica, essen-
cialmente, em torno do sistema hegemônico da classe fundamental”.
De certa forma, o bloco está intimamente ligado à organização da
condição contra-hegemônica dos grupos subalternos. Nesse sentido,
a educação exerceria um papel fundamental nessa organização. Tan-
to Gramsci como Freire vislumbram a educação como prática social,
que pode acontecer em vários espaços: nos encontros dos partidos,
nas fábricas, na organização dos sindicatos, no processo das greves e
nas prisões, entre outros.
O espaço das fábricas se torna um lugar de aprendizagens que
devem ser sustentadas nos “centros” ou “círculos de cultura”. Confor-
me os Escritos políticos (2004c), em 1917, Gramsci propõe a criação,
em Turim, de uma associação proletária de cultura, na expectativa
de inserir a discussão sobre cultura na ação política e econômica so-
cialista. Em 1920, participou da “escola de cultura” promovida pela
revista L’Ordine Nuovo, ocasião em que trouxe discussões e análises
sobre a Revolução Russa. Na cidade de Turim, ele cria, no mesmo
ano, o círculo socialista sardo.
Para Paulo Freire (1967), os círculos de cultura representavam
um espaço de promoção das ideias transformadoras, processo dialé-
tico em que as vidas dos oprimidos eram entrelaçadas com a escola.
Os educadores, para Freire, e os intelectuais orgânicos, para Gramsci,
eram os divulgadores do processo da tomada de consciência para a
construção de uma nova hegemonia, a hegemonia do emancipado.
Gramsci defendeu a formação do movimento operário por
meio de uma “associação cultural”. Em sua opinião, essa associação

207
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

agrega ação política e econômica, sem excluir ações de cunho cul-


tural. Assim, os trabalhadores teriam assegurados os fundamentos
necessários para fortalecer a luta para as conquistas de classe.
Em 1926, no dia 7 de dezembro, Gramsci chegava a Ùstica, ilha
em que ficou preso. Conforme os Escritos políticos (2004d, p. 21),

Durante sua breve permanência na ilha, mora numa casa particular, em com-
panhia de Bordiga e de outros confinados. Com alguns companheiros e amigos,
organiza uma escola para os confinados: Gramsci dirige a seção histórico-literária,
enquanto Bordiga se encarrega da seção científica.

Conforme Mayo (2004), essa ideia foi ampliada para os vários


presídios que contavam com a presença de presos políticos. Para
Gramsci, a formação transformadora acontece nos mais diversos es-
paços em que os trabalhadores possam assegurar a consciência de
sua condição de grupo subalterno, bem como a força de classe na luta
contra-hegemônica.
Nessa mesma perspectiva, Freire (1987), no Brasil, construiu
uma proposta pedagógica, indo da alfabetização dos oprimidos à
universidade popular; porém, sua proposta, elaborada e vivenciada
nos movimentos de educação popular dos anos 1960, foi suprimida
pelo golpe de 1964. Tempos depois, após retornar do exílio, com a
abertura política dos anos 1980, ele pôde vivenciar na Prefeitura de
São Paulo, como gestor da pasta da Educação, sua práxis libertadora.
Essa práxis vem sendo vivenciada em vários municípios que imple-
mentam uma gestão democrático-popular.
Para Gramsci (2004b), não é possível separar a atividade inte-
lectual da ação que os homens realizam, pois ele vislumbra o homem
como agente de uma concepção de mundo. Ao discutir o sentido da
unidade teoria-prática, ressalta o trabalho na sua historicidade, como
afinidade social imprescindível, que não se restringe a ocupação, ta-
refa ou emprego, embora não os abandone. No entanto, ele amplia o
conceito de trabalho para a unidade das relações produtivas e cultu-

208
S ubalterno e oprimido : D iálogo com G ramsci e F reire

rais – ciências, tecnologias, artes, brincadeiras –, o que significa di-


zer, em outras palavras, a unidade teórica e prática, técnica e política.
Para ele, esse deveria constituir o fundamento das ações educativas
nas escolas, sindicatos, fábricas e prisões, enfim, em todos os espaços
capazes de contribuir para formação dos intelectuais necessários à
construção do novo bloco histórico.
Compreender como o poder e o conhecimento conectam a
instituição educacional à luta de classes gerada pela ordem social
vigente significa assumir uma concepção radical de educação, mar-
cando uma posição de resistência frente a uma produção unilateral
ditada como pronta e acabada. A busca de uma educação para a for-
mação integral do homem, na visão de Paulo Freire (1979), é aquela
que possibilita a homens e mulheres serem capazes de se perceberem
presentes no curso da existência humana, descobrirem-se enquanto
seres criadores e com potencialidade de serem transformadores de
uma realidade concreta que, muitas vezes, aparece distorcida.
A visão crítica trabalhada em um projeto de educação para a
autonomia poderá desvelar essa realidade capaz de suscitar nos ho-
mens uma visão contestadora. O grande desafio da educação, sob a
ótica do trabalho, está na interação entre teoria e prática. Uma edu-
cação que tenha como fator concreto a condição da atividade exis-
tencial, o trabalho. O conhecimento precisa ser buscado nas ativida-
des sociais que possam ser marcadas pela superação da divisão entre
teoria e prática. Dessa forma, na perspectiva de uma educação críti-
ca, concebe-se o sujeito autônomo e desconsidera-se a visão pedagó-
gica que vê o sujeito como integrante de uma massa a ser moldada
e enquadrada no mercado de trabalho. Freire (2005) propõe a orga-
nização do conteúdo programático da educação a partir do contexto
presente, existencial, concreto, pensando no conjunto das aspirações
do povo. Para ele, buscar a construção desse conteúdo é o que pro-
move o diálogo como prática de liberdade.
A força capitalista presente na sociedade brasileira, que cons-
tituiu a especificidade de uma economia dependente, elitista e de-
sigual, segue propiciando péssimas condições de existência para a
maioria da população. Gramsci e Freire reconhecem a força que os

209
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

subalternos/ oprimidos possuem, desde que se reconheçam como


sujeitos escritores de suas histórias. É preciso ter a própria concepção
de mundo e ter a capacidade de tomar posse de sua realidade para fa-
zer a crítica e a autocrítica em detrimento da aceitação passiva de que
sua formação esteja a cargo de outras mentes que pensam por todos.
Por isso, Paulo Freire enfatiza sempre que, no processo pedagógico,
“antes de aprender a dizer a palavra é fundamental que o oprimido
saiba ler o mundo” (Freire, 1967, p. 24).
Para Gramsci e Freire, a tomada de consciência é o primeiro
passo para a obtenção das condições necessárias aos subalternos e
aos oprimidos para conquistarem uma sociedade com valores mais
condizentes com a dignidade humana. A emancipação dos homens
e das mulheres da condição de subalternos e oprimidos advém do
acesso ao conhecimento que não está desligado da vida, pois é nessa
experiência social concreta que os indivíduos travam as lutas pela
hegemonia. Dessa forma, não é possível dissociar a filosofia, a teo-
ria produzida historicamente, da práxis, pois é nesse campo que a
formação como meta da liberdade integral do ser humano acontece.

Algumas considerações
A opção de traçar o percurso histórico refletindo sobre a espe-
cificidade do capitalismo no Brasil e a constituição das desigualdades
sociais nas suas mais diversas dimensões, sejam políticas, econômi-
cas, raciais, regionais ou culturais, teve o propósito de seguir a con-
cepção de Paulo Freire e Gramsci: do reconhecimento da realidade
para a tomada da consciência da situação de oprimido ou subalterno.
Desde o período colonial brasileiro, vivemos sob o jugo do modelo
escravocrata. Os pretos eram a principal mão de obra e não partici-
pavam da renda que produziam, assim como os demais trabalhado-
res pobres excluídos da posse das terras. A desigualdade social criou
um grande grupo de subalternos ou oprimidos, que reafirma o capi-
talismo como sistema de exploração e opressão.
Paulo Freire, no segundo capítulo de Educação como prática
de liberdade (1967), retoma a história do Brasil Colônia e do Impé-

210
S ubalterno e oprimido : D iálogo com G ramsci e F reire

rio e enfatiza a inexistência da participação popular, o que ocorreu


inclusive na passagem para o período republicano. Para o referido
autor, o país, desde o seu nascimento, desconhece a experiência do
diálogo. Em sua opinião, o diálogo presume a responsabilidade so-
cial e política do homem. Entretanto, a característica da sociedade
brasileira, desde o seu início, foi o acentuado poder combinado com
a submissão.
A discussão de Florestan Fernandes sobre o capitalismo depen-
dente no Brasil como especificidade assumida evidencia como esse
autor aponta, a partir dos paradoxos autonomia/heteronomia, duas
características: no âmbito externo, a ausência da autonomia, a hete-
ronomia, que se revela na dependência econômica, social, política,
ideológica e moral; e, no campo interno, a constituição do sistema de
classes sociais, que sustentam a referida dependência, mas que tam-
bém se contrapõem a ela em alguns contextos. Florestan compreende
que a transformação da sociedade contra essa estrutura capitalista
dependente é a condição para o desenvolvimento. Retomando Freire
e Gramsci, a transformação social depende da consciência política
dos grupos oprimidos e subalternos.
Gramsci e Freire são autores que revelam a enorme complexi-
dade da realidade social, sobretudo por buscarem saídas para os en-
traves vivenciados pelos grupos subalternos/ oprimidos. É possível
perceber, nesta tentativa de aproximar os escritos desses dois autores
ao atual contexto social, que subalternos e oprimidos são trabalhado-
res do campo e da cidade, homens e mulheres simples, que vendem
sua força de trabalho ou estão em busca de trabalho. Para os dois
autores, é o sujeito coletivo que cria condições para superar as condi-
ções de exploração imposta pelo capital.
Paulo Freire e Antonio Gramsci desenvolveram suas ideias a
partir do envolvimento com a situação concreta da existência dos
sujeitos. Perceberam os elementos da realidade em interconexão com
as relações sociais e históricas em que viveram. Essas relações sofrem
constantes mudanças provocadas pela dinâmica das forças sociais.
Dessa forma, pode-se dizer que há sintonia na forma de esses dois
autores conceberem o processo educativo de formação como capaz

211
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

de produzir conhecimentos na relação orgânica, entre teoria e práti-


ca, na integração das dimensões culturais, subjetivas e objetivas dos
sujeitos oprimidos/ subalternos.
A escola tem papel na desarticulação da ideologia dominante e
na elaboração de uma forma superior de cultura, uma nova concep-
ção do mundo. Gramsci compreende o significado da escola em sen-
tido ampliado, situando-a no próprio terreno da hegemonia como
síntese teórico-prática do movimento revolucionário de transfor-
mação social, em que os subalternos estejam organizados no pensa-
mento filosófico e na própria solidez organizativa e de centralização
cultural. A educação, para os dois estudiosos, é, portanto, caminho
de emancipação, e, concebida como política, propicia o estudo e a
análise do contexto social e promove condições de acesso à cultura
para o grupo subalterno/oprimido. O destaque do papel da escola na
construção dos intelectuais é percebido tanto nos escritos de Freire
como nos de Gramsci. Dessa forma, os oprimidos e subalternos são
pensados constantemente como sujeitos em processo de superação e
emancipação de suas condições de existência.
Os intelectuais orgânicos, para Gramsci, podem favorecer os
subalternos a desenvolver sua capacidade crítica de elaboração sobre
a realidade, compreendendo as condições estruturais da existência,
desmistificando-a e possibilitando-lhes voltarem-se sobre si mesmos
e compreenderem os elementos da realidade social em que estejam
inseridos, sendo capazes de, individual e coletivamente, contrapo-
rem-se a essa realidade, construindo e reconstruindo coletivamente
a sociedade em que vivem, transformando-a.
No processo de tomada de consciência da condição de classe, o
papel da educação escolar – dos intelectuais orgânicos para Gramsci
e dos educadores, para Freire – é fundamental. Por meio do desen-
volvimento da análise e da interpretação crítica da realidade social
imediata e realizando a leitura do mundo que os cerca, os intelec-
tuais orgânicos podem contribuir para a elevação cultural e moral
das massas, possibilitando-lhes que tenham ferramentas para uma
ação transformadora, refletida e intencional.

212
S ubalterno e oprimido : D iálogo com G ramsci e F reire

Em seus escritos, Freire assevera a relevância da tomada de


consciência crítica e do reconhecimento dos homens e das mulhe-
res como sujeitos históricos, para que conquistem sua autonomia de
pensamento e atuação e para que esse agir possa estar comprometido
com seus pares e com a mãe natureza. Para Gramsci, todos os su-
jeitos são filósofos no sentido mais amplo do pensamento e, assim,
possuem condições de se empoderarem e buscarem a superação da
subalternidade.
As categorias subalterno e oprimido de Gramsci e Paulo Freire
se encontram no mesmo estágio, a saber, transformar a condição de
subalterno e oprimido em sonho de humanizar a própria humani-
dade e, assim, assegurar que não haja mais dominador e opressor.
O cuidado na construção das conexões para a constante superação
da opressão/ subalternidade é a contribuição social para que todos
tenham acesso ao que é socialmente produzido, ou seja, o compro-
misso com a construção de outro projeto de sociedade, no qual a
centralidade esteja nos seres humanos e em suas relações com o ou-
tro e com a natureza.
É evidente a atualidade do pensamento dos dois autores.
Gramsci, em Escritos políticos (2004c), no texto “Oprimidos e opres-
sores”, redigido em novembro de 1910, defende a luta permanente
da humanidade para romper com todos “os vínculos que o desejo de
domínio de um só, de uma classe ou mesmo de todo um povo tenta
lhe impor” (p. 43). O atual contexto vem demonstrando as grandes
contradições da humanidade, como a comercialização da riqueza da
natureza em detrimento da fome e da miséria de muitas nações. A
fuga constante de populações de suas terras natais, seja por conflitos
religiosos, seja pela busca de sobrevivência, evidencia, mais do que
nunca, que a humanidade precisa encontrar um caminho de liberta-
ção do jugo dos poderosos.
Paulo Freire, nos escritos de Educação como prática da liberda-
de (1967), argumenta que a sociedade brasileira na década de 1960,
em processo de transição, com idas e vindas, avanços e recuos, apa-
rentava ser uma sociedade aberta, porém já não o era mais, e tam-
pouco totalmente fechada. Era uma sociedade que se abria, mesmo

213
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

correndo o risco dos possíveis retrocessos em um período em transi-


ção, “como o atual Golpe de Estado, de um retorno catastrófico ao fe-
chamento” (p. 53). Paulo Freire falava do golpe de 1964. Ele continua
opinando, no mesmo capítulo, nomeado “A sociedade brasileira em
transição”, que, no cotidiano, o que se percebia era o homem simples,
oprimido, abatido, enfraquecido e adaptado, conduzido pelo poder
dos mitos construídos pelas forças sociais elitistas. Freire via o ho-
mem assustado, receando a convivência e em dúvida sobre sua ca-
pacidade de ser. Junto com o medo estava a solidão, entendida como
“medo da liberdade”. “Qualquer semelhança é mera coincidência”:
no atual contexto, desde 2013, o país vive a ameaça e, a partir de
2016, a concretização do retrocesso e das perdas de direitos e con-
quistas sociais tão caras para os oprimidos/ subalternos.
Nos demais capítulos dessa obra, Freire sistematiza a prática
da educação baseada na conscientização e na busca da emancipação.
Essas ideias de Freire foram essenciais para a construção de outro
tempo neste país. Logo após, no período de redemocratização, na
década de 1980, além da discussão da Constituição, que buscou tra-
duzir os direitos humanos e a inclusão dos mais pobres, caminhou-se
para o processo de eleições e conquistas democráticas que culminou,
no início do segundo milênio, na ascensão dos governos democráti-
cos populares, conforme sinalizamos na primeira parte deste texto.
Foi possível viver um tempo em que a desigualdade social foi mini-
mizada e houve compromisso e responsabilidade do Estado, assegu-
rando políticas públicas: estudantil, de moradia para os mais pobres,
programas de saúde, programas para assegurar empregos, sobretudo
para os jovens, e programas culturais para todos, entre outros.
No campo da educação, por meio do Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento da Educação Básica, tirou-se o foco apenas do
ensino fundamental e ampliou-se o financiamento desde a educação
infantil até o ensino médio e a educação de jovens e adultos. Apro-
vou-se a Lei do Salário-Educação, criou-se uma rede nacional de for-
mação continuada de professores, ampliou-se o Programa Nacional
do Livro Didático com ofertas de livros também ao ensino médio. O
governo Lula estendeu o ensino universitário federal, com a criação

214
S ubalterno e oprimido : D iálogo com G ramsci e F reire

de novas universidades federais e novos campi em todo o país, assim


como construiu inúmeros Institutos Federais de Educação, Ciência e
Tecnologia. O programa Universidade para Todos (ProUni) conce-
deu bolsas de estudos integrais e parciais a estudantes de baixa renda
em cursos de graduação em instituições privadas de ensino superior.
O governo também aumentou os recursos para a alfabetização de
jovens e adultos, por meio do Programa Brasil Alfabetizado. Nesse
período, o mec seguiu na defesa da regulamentação do piso nacional
salarial dos professores da educação básica. Com a organização da
Conferência Nacional de Educação (Conae), com ampla participa-
ção dos segmentos da sociedade, foram discutidos os rumos da edu-
cação brasileira. O governo Dilma seguiu na promessa de mais inves-
timentos em educação e, em relação ao ensino técnico, iniciou seu
governo apostando na educação profissional. O Programa Nacional
de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), nos seus limites
de natureza, previa o financiamento de cursos profissionalizantes de
nível médio para estudantes de famílias de baixa renda. O programa
incluiu apoio às redes estaduais e oferta de bolsas de estudo para alu-
nos de escolas públicas em cursos profissionalizantes em instituições
privadas.
Esse período parecia apontar para a consolidação de uma for-
ma política ou uma forma de vida, como diz Paulo Freire, referin-
do-se à democracia. No entanto, a partir de 2013, a ameaça do re-
crudescimento político e do retrocesso tornou-se realidade e existe
concretamente nos dias de hoje. Mais uma vez, o país se encontra
conduzido por um mito, como dizia Freire na década de 1960. O
abandono da Constituição de 1988 e as reformas que retiram direitos
são a tônica do momento, assim como a ampliação da desigualdade
social. Conforme dado da Fundação Getulio Vargas, publicado no
site da revista Veja (16 ago. 2019), o aumento da desigualdade ocorre
pelo 17º trimestre seguido, e o desemprego é o principal motivo.
O cenário atual exige mais do que nunca a organização dos
oprimidos/ subalternos e a retomada das leituras de Freire e Grams-
ci, sobretudo no aspecto da consciência política desse contexto, na
organização dos oprimidos e na busca da velha/ nova utopia. É tem-

215
Cláudia Borges Costa, Maria Emilia de Castro Rodrigues

po de reinventar a organização, pois, como diz a música de Caetano


Veloso “ainda assim acredito/ ser possível reunirmos-nos/ [...] num
outro nível de vínculo”, o vínculo da emancipação dos oprimidos/
subalternos.

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218
CAPÍTULO 8
D ireito à educação e manutenção da
subalternidade

Maria Margarida Machado

Este texto é parte dos estudos e pesquisas que compuseram a


tese para o concurso de professor titular da Faculdade de Educação
da Universidade Federal de Goiás, defendida no final de 2018. Tem
por objeto de análise a política de Educação de Jovens e Adultos (eja)
implementada no Brasil, principalmente após a promulgação da
Constituição Federal de 1988, visando pensar como se tem efetivado
o direito à educação e que sentidos têm sido produzidos pela escola
destinada a esses sujeitos.
O referencial teórico gramsciano deu o suporte principal às
análises da tese, sobretudo a partir dos conceitos de educação, Estado
e política, para pensar o papel da sociedade política e da sociedade
civil na eja; da escola como espaço de formação humana; e dos inte-
lectuais que atuam de forma tradicional e orgânica nessa modalidade
de ensino.
Para este capítulo, apresentamos parte das reflexões que nos
remetem aos esforços realizados nos últimos trinta anos na eja, to-
mando como referência a promulgação da Constituição Federal de
1988 (cf/1988), com ênfase nas políticas voltadas para a educação
dos trabalhadores que, embora expressem um certo “otimismo da
vontade”, ainda não foram suficientes para superar a visão compen-
satória e aligeirada da escolarização destinada a esses sujeitos.

Lampejos de otimismo da vontade na gestão da eja

221
Maria Margarida Machado

Fui direto ao Box 1, pois não tínhamos sala de aula, me apresentei à professora de
português, a senhora Jasmim, uma das mais antigas da casa (dizia: “não vejo a hora
de me aposentar”). A pró Jasmim foi direta; “estes são os conteúdos, olhe aí! Co-
nhece? Estude e volte daqui a oito dias, se tiver dúvidas irei tirá-las e depois fará a
prova”. Assim eu fiz... [...] Com oito dias voltei cheio de dúvidas, pois não entendia
nada, falei que não sabia nada, então a pró disse, o que se trava os assuntos e me
deu a prova, cheio de medo e dúvidas respondi a prova, após entregá-la, a mesma
corrigiu e me deu a nota dizendo: “vá estudar! você tirou 2,3, volte com 15 dias!
Assim o fiz e minha nota foi 2,3... Fiz esse trajeto com um mês, depois três e depois
seis meses sem conseguir sair da primeira unidade, num conjunto de dez. Ela nem
anotava mais no meu “Cartão de Atendimento/Aluno”, no sexto mês, ao realizar
a avaliação, ela me disse: “Você não tem jeito! Não sabe nem ler e nem escrever...
Não vai pra lugar nenhum... Você faz o quê, meu filho?” Eu disse: “Vendo sapatos,
pró...”. Voltou a rebater: “Então se dedique a isso, é melhor, pois você não vai conse-
guir nada com os estudos. Você não é pra estudos!” Saí dali chorando e revoltado,
pois ninguém na escola sabia e nem eu mesmo que todas as minhas dificuldades
eram frutos da perda de minha mãe, que não havia superado, além do cansaço de
trabalhar na feira das 5:00 às 18:00 (exceto no dia que ia à escola) (Depoimento de
Amilton, doutorando da ufba).

Esse egresso da eja, hoje professor e pesquisador do campo,


reafirma a importância da necessidade da discussão, analisando as
políticas educacionais implementadas nos últimos trinta anos para
jovens e adultos, de que não é possível desconsiderar o lugar ocupa-
do pela pauta da eja na legislação e gestão educacional. Em grande
medida, esse espaço ocupado impulsionou o aumento das produções
e pesquisas no campo, expressas em todos os levantamentos de dis-
sertações e teses e na presença em periódicos específicos e livros pu-
blicados em todo o país.
Tanto as políticas implementadas quanto as pesquisas realiza-
das relacionam-se com a experiência de muitos Amiltons pelo Bra-
sil afora. A produção de conhecimento gerada sobre o campo,119 ao

119 Um dos espaços onde esta produção tem sido socializada e debatida são as reuniões
nacionais e regionais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa (Anped), em
especial no Grupo de Trabalho 18 ⸺ Educação de Pessoas Jovens, Adultas e Idosos.

222
D ireito à educação e manutenção da subalternidade

mesmo tempo em que apresenta as inúmeras experiências vividas e


em curso, desde a alfabetização à chegada à educação superior dos
egressos da eja, é espaço de denúncia sobre as contradições vividas
nos casos analisados, que vão de encontro à luta histórica por uma
educação de qualidade como direito para esses sujeitos.
No campo das políticas implementadas e da gestão da eja, ob-
serva-se um terreno fértil de entrelaçamento de concepções e práti-
cas que envolvem a sociedade civil e a sociedade política no período
analisado. A expressão dessa relação não se configura na materiali-
zação do que é chamado por Gramsci (2007) de Estado Integral, até
porque este não se consolida apenas num aspecto da vida societária,
ou seja, no caso, a educação, mas supõe uma constituição hegemôni-
ca muito mais ampliada, envolvendo os componentes da estrutura e
da superestrutura de um país. Ainda assim, esses conceitos grams-
cianos podem ser apanhados na análise para evidenciar uma efetiva
atuação e, por vezes, uma disputa de projetos para essa modalidade,
expressas nas pautas de seus representantes.
Embora a presença na produção do conhecimento em educa-
ção e sua disseminação no ambiente acadêmico revelem um certo
“otimismo da vontade”, que se expressa em “vontade-ação”, por se
tratar do real crescimento do campo da pesquisa em eja, sua mo-
bilização no espaço da gestão pública e da participação social ainda
não logrou os estigmas tão presentes nas experiências do Movimento
Brasileiro de Alfabetização (Mobral) e do Ensino Supletivo. Cabe,
portanto, analisar elementos contraditórios que nos indicam os limi-
tes para a materialização de outra concepção de eja, que se afaste do
aligeiramento dos processos formativos e da redução dos conheci-
mentos produzidos e acessados nesse retorno à escola.
O discurso do direito à educação no Brasil, referenciado nas
reflexões de Anísio Teixeira (1936), Paschoal Lemme (2004) e Jamil
Cury (2002), remete-nos a contextos de disputas dentro de socieda-
des ditas democráticas. Mas, a democracia que busca expressão no
campo da educação em realidade só se concretiza em consonância
a um conjunto de outros direitos, constituídos também historica-
mente. Na constituição histórica de direitos sociais, vale destacar que

223
Maria Margarida Machado

a Declaração Universal dos Direitos Humanos (dudh) completou


70 anos da sua proclamação pela Organização das Nações Unidas
(onu), tendo sua Assembleia Geral a apresentado

como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que
todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no es-
pírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses
direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional
e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação, universais e efetivos tanto,
entre as populações dos próprios Estados-membros, como entre as dos territórios
colocados sob a sua jurisdição (onu, 1948, p. 1).

A declaração aponta o ensino e a educação como veículos para


contribuir para o desenvolvimento do respeito a esses direitos e liber-
dades, ao passo que reforça em seu Artigo 26 que a própria educação
é um direito a ser garantido.

Artigo 26°

1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos
a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obriga-
tório. O ensino técnico e profissional dever ser generalizado; o acesso aos estudos
superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito
(onu, 1948).

Certamente, as mudanças por que passaram as nações no


mundo após essas sete décadas de proclamação da dudh já indicam
a necessidade de ampliação desse conceito de direito à educação. To-
davia, o cenário ainda revela que mesmo o “elementar” previsto nesse
texto segue sendo negado a milhões de pessoas. As informações pre-
sentes no relatório da Unesco, publicado em 2018, sobre o monitora-
mento global da educação, dentro da estratégia de acompanhamento
do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da Educação (odse),

224
D ireito à educação e manutenção da subalternidade

no levantamento feito entre 2017 e 2018 (onu, 2018), indicam que


264 milhões de crianças e jovens não frequentavam a escola e 100
milhões de jovens não sabiam ler. Quanto aos adultos, informam que

uma grande parcela da população adulta não concluiu a escola primária em países
de renda baixa e média. Mesmo assim, é improvável que eles retornem à escola
primária para concluir sua educação básica. No Quênia, somente um a cada dois
adultos completou a escola primária, mas a parcela de adultos nas matrículas da
escola primária é de apenas 3% (Ibid., p. 43).

Quanto à avaliação em torno da equidade de acesso à escolari-


zação, esse mesmo monitoramento afirma que

localização e renda são duas dimensões-chave que merecem um monitoramento


especial. Em 2010-2015, para cada 75 adolescentes de áreas rurais que concluíram
o primeiro nível da educação secundária, 100 adolescentes urbanos o fizeram. O
índice de paridade é pior para os mais pobres: mundialmente, 61 do quintil mais
pobre da população concluíram o primeiro nível da educação secundária para
cada 100 do quintil mais rico. Os números respectivos são 54 para cada 100 em
países de renda média e 14 para cada 100 em países de renda baixa. Embora a taxa
mundial de conclusão fosse de 69%, apenas 12% dos homens mais pobres e 8% das
mulheres mais pobres concluíram o primeiro nível da educação secundária (Ibid.,
p. 45).

O relatório finaliza apontando que

a responsabilização na educação começa com os governos, que têm o dever primor-


dial de garantir o direito à educação. Todos os países do mundo ratificaram pelo
menos um tratado internacional que ilustram seus compromissos com o direito à
educação. No entanto, em apenas 55% dos países, o direito à educação está sujeito à
jurisdição, ou seja, há leis que permitem aos cidadãos tomar medidas legais contra
as falhas do sistema educacional. As organizações da sociedade civil e a comunida-

225
Maria Margarida Machado

de internacional devem atuar em favor da garantia do direito à educação, inclusive


para torná-lo sujeito à jurisdição nos marcos legais nacionais (Ibid., p. 60).

Essas considerações iniciais nos remetem à difícil tarefa de en-


tender os desafios postos no mundo para a garantia de efetividade
da dudh, no que concerne à questão da educação. Esse debate sobre
direitos nos leva a concordar com Bobbio (2004, p. 11), quando afir-
ma que

a linguagem dos direitos tem indubitavelmente uma grande função prática, que é
emprestar uma força particular às reivindicações dos movimentos que demandam
para si e para os outros a satisfação de novos carecimentos materiais e morais; mas
ela se torna enganadora se obscurecer ou ocultar a diferença entre o direito reivin-
dicado e o direito reconhecido e protegido. Não se poderia explicar a contradição
entre a literatura que faz a apologia da era dos direitos e aquela que denuncia a
massa dos “sem-direitos”. Mas os direitos de que fala a primeira são somente os
proclamados nas instituições internacionais e nos congressos, enquanto os direitos
de que fala a segunda são aqueles que a esmagadora maioria da humanidade não
possui de fato (ainda que sejam solene e repetidamente proclamados) (Bobbio,
2004, p. 11).

Os dois aspectos destacados acima, o da responsabilização dos


governos e o da distância entre o proclamado e o efetivado, fazem-
-nos olhar a realidade brasileira da oferta de educação para jovens e
adultos trabalhadores e nos perguntar o que representaram as políti-
cas de escolarização voltadas a esses sujeitos, tomando como marco
jurídico a promulgação da Constituição Federal (Brasil, 1988). Da-
queles 55% de países anunciados no relatório da Unesco como pos-
suindo uma jurisdição sob o direito a educação, o Brasil é um deles.
A cf/1988 afirma:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida
e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento

226
D ireito à educação e manutenção da subalternidade

da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o tra-
balho. [...] Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante
a garantia de: [...] i. educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17
(dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que
a ela não tiveram acesso na idade própria; (Redação dada pela Emenda Constitucio-
nal nº 59, de 2009) [...] ii. progressiva universalização do ensino médio gratuito;
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 14, de 1996) [...] iii. atendimento
educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede
regular de ensino; [...] iv. educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até
5 (cinco) anos de idade; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)
[...] v. acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística,
segundo a capacidade de cada um; vi. oferta de ensino noturno regular, adequado
às condições do educando; vii. atendimento ao educando, em todas as etapas da
educação básica, por meio de programas suplementares de material didático-es-
colar, transporte, alimentação e assistência à saúde. (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 59, de 2009) [...] § 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é
direito público subjetivo. [...] § 2º O não oferecimento do ensino obrigatório pelo
Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade
competente. [...]; 3º Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino
fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela
frequência à escola (Brasil, 1988, grifos nossos).

Os destaques em itálico nesses dois artigos da cf/1988 cha-


mam a atenção para as prescrições que incluem a responsabilidade
do Estado para com o atendimento da população jovem e adulta
não escolarizada. As alterações que aparecem em destaque, a par-
tir de 2009, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 59 (ec
59/2009), resultaram de mobilizações para a ampliação do direito
à educação básica, que antes estava restrito ao ensino fundamental.
Além da ampliação desse direito, o texto prevê o atendimento dos
educandos pelos programas suplementares.
Os parágrafos que fecham o Artigo 208 são resultantes também
das mobilizações dos setores que defendem a eja, por entenderem
que há condicionantes históricos que precisam ser enfrentados, se,
de fato, queremos garantido o direito à educação. É preciso respon-

227
Maria Margarida Machado

sabilizar o poder público, caso ele não garanta a oferta, conforme de-
terminam os parágrafos primeiro e segundo; cabe a esse mesmo po-
der público reconhecer que a demanda de alunos para a eja precisa
ser mobilizada; por isso, o parágrafo terceiro trata de recenseamento
e zelo pela permanência dos alunos nos processos de escolarização.
Tais mecanismos expressam a tentativa de efetivação do direito e da
propalada democracia, conforme defendida por Teixeira (1936) e
Lemme (2004).
Tomando como referência essa questão das garantias de direi-
to previstas na cf/1988, que se desdobraram em outras leis, porta-
rias, decretos e resoluções, a eja acompanha um movimento de am-
pliação da sua presença nesses aparatos, principalmente, a partir da
ldb/1996, quando passa a ser considerada modalidade da educação
básica. Há diferentes posições entre os pesquisadores do campo a
respeito desse cenário. Há quem considere que essa medida distan-
ciou a eja da sua matriz histórica da educação popular, como expres-
sa Arroyo (2005; 2007) em algumas de suas publicações; e há quem
perceba nesse processo uma conquista do ponto de vista da formali-
zação da oferta escolar para jovens e adultos trabalhadores, como o
faz Haddad (2007).
Em publicação recente, Costa e Machado (2017) analisam as
principais iniciativas legais que envolveram o campo da eja, desta-
cando sua presença na cf/1988 (p. 62-63); na ldb/1996 (p. 65- 69);
no Parecer cne/ceb nº 11/2000, que orienta as diretrizes curriculares
para a eja (p. 55-56, 58-61, 73-74); na Resolução cne/ceb nº 01/2000
(p. 70); nas minutas de pareceres para as Diretrizes Operacionais para
a eja, que resultaram na aprovação da Resolução cne/ceb nº 03/2010
(p. 76-81); e nos documentos finais das conferências nacionais de
educação de 2010 e 2014, que influenciaram a Lei nº 13.005/2014, do
Plano Nacional de Educação 2014-2024 (p. 82-91).
Para a reflexão deste capítulo, não cabem reiterações acerca
da presença da eja no espaço da normatização das políticas educa-
cionais. Há análises que as apresentam como potencial para o reco-
nhecimento da escolarização de jovens e adultos trabalhadores, mas
também há as que revelam o que há de contraditório entre o propa-

228
D ireito à educação e manutenção da subalternidade

gado e o realizado;120 ou, ainda, as inúmeras possibilidades de inter-


pretação dessas leis em benefício de interesses que não coadunam
com a garantia de uma educação de qualidade. O que cabe reconhe-
cer, mesmo guardando essa ressalva de que a prescrição legal não
corresponde exatamente à efetivação do direito, é que, em torno dela
ou de maneira conjunta, pode-se perceber uma ocupação do espaço
da eja na gestão pública, ou na sociedade política, e nas organizações
sociais, que expressam a sociedade civil (Gramsci, 2007).
O destaque da atuação, no âmbito da sociedade política, evi-
dencia-se com a presença da eja nas estruturas administrativas nos
âmbitos federal, estaduais e municipais. Observando os organogra-
mas da administração pública federal, o Ministério da Educação
(mec) contava, em 1996, com uma coordenação de eja dentro da
Secretaria de Ensino Fundamental. A partir de 2004, com a criação
da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
(Secadi), é também criado o Departamento de eja, que, naquele con-
texto, nasceu com três coordenações: uma coordenação pedagógica,
uma coordenação de alfabetização e uma coordenação de educação
de jovens e adultos. Na estrutura do mec, até o final de 2018, o que se
manteve foi a Secadi, pois a política de inclusão passou a fazer parte
das atribuições dessa secretaria e a diretoria passou a denominar-se
Diretoria de Políticas para a Juventude e Alfabetização e uma coor-
denação de Educação de Jovens e Adultos, composta pelas coordena-
ções de Alfabetização, de eja e de Políticas para a Juventude.121
A presença da eja no âmbito das secretarias estaduais e muni-
cipais de Educação tem, no período analisado, configurações muito
diversas. Todavia, é notório que a indução das políticas federais, so-
bretudo com os editais de financiamento e a aprovação de prescri-
ções legais para a modalidade, influenciou também a constituição de
espaços próprios para a eja. Denominadas diretorias, coordenações,
gerências ou outras terminologias, o que se evidencia é que, à medi-

120 Beisiegel, 2003; Paiva, 2005; Di Pierro, 2005; Machado, 2009; Ireland, 2009.
121 Informações a partir do site do mec: http://portal.mec.gov.br/secretaria-de-educacao-
-continuada-alfabetizacao-diversidade-e-inclusao/quem-e-quem. Acesso em: 2 jun. 2020.
Essa secretaria foi extinta no governo Bolsonaro.

229
Maria Margarida Machado

da que a legislação nacional incorporou a eja como modalidade de


ensino e a vincula a programas e ações no Plano Plurianual (ppa),
os sistemas estaduais e municipais foram tensionados a incorporá-la
nas estruturas políticas e pedagógicas das secretarias.
O exemplo mais evidente dessa relação indutora da União e da
resposta dos demais entes federativos se percebe quando há o envol-
vimento de repasse de recursos definidos nos ppas. Os valores mais
próximos das aplicações em eja, descentralizados pelo governo fede-
ral entre 2006 e 2014, estão publicados num relatório sobre as ações
e programas implementados pelo Brasil, que avaliou o compromisso
do governo federal, seis anos após sediar a vi Conferência Interna-
cional de Educação de Adultos (vi Confintea),122 em 2009 (Brasil,
2016, pp. 52-56).123
Como a matrícula na eja é de responsabilidade, principalmen-
te, dos governos estaduais e municipais, os recursos descritos no re-
ferido relatório só podem ser considerados como complementares
para a ampliação e a manutenção da modalidade. Ainda assim, di-
mensionam esse movimento que diversificou os aportes financeiros,
incluindo recursos para alimentação, transporte, material pedagógi-
co, livro didático, formação e capacitação de profissionais da edu-
cação, aquisição de biblioteca de eja, bolsas para alfabetizadores e
coordenadores de turmas do Programa Brasil Alfabetizado, entre
outras ações. A dinâmica definida pelo departamento de eja do mec
foi, naquele contexto, a descentralização dos recursos para que esta-
dos e municípios executassem e prestassem contas à União.

122 A publicação organizada por Ireland e Spezia (2012) apresenta uma importante retros-
pectiva dessas conferências coordenadas pela Unesco, desde a primeira, em 1949, à última,
em 2009. Além de situar a contribuição dessas conferências para a política de educação de
adultos entre os países-membros da onu, a publicação traz no anexo todas as declarações
resultantes das seis conferências (várias delas traduzidas pela primeira vez para o portu-
guês).
123 O referido relatório consiste num registro histórico de avaliação da política de eja no
Brasil, elaborado por uma comissão intersetorial e com representação da sociedade política
e civil, contendo, além de diagnóstico da realidade, indicações importantes para a revisão
dessa política. A produção na íntegra pode ser acessada no endereço http://confinteabrasil-
mais6.mec.gov.br/. Acesso em: 2 jun. 2020.

230
D ireito à educação e manutenção da subalternidade

Um último aspecto ainda vinculado à questão do financiamen-


to da eja, muito discutido no período pós-cf/1988, é a presença ou
não dessa modalidade na lógica contábil do financiamento da edu-
cação, a partir da implantação das políticas de fundos, ou seja, desde
1996, com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef).124 Em 2007, a
ausência total de consideração das matrículas da eja no Fundef foi
substituída por uma presença marginal no Fundeb, o que analisare-
mos quando nos debruçarmos sobre os efeitos dessas políticas de fi-
nanciamento na sua relação com o movimento das matrículas da eja.
Todas essas iniciativas legais e administrativas de atuação da
sociedade política na pauta da eja contaram, para sua efetivação
como direito, com uma pressão e uma atuação diversificada de vários
setores da sociedade civil. Historicamente, a educação de adultos,
chamada de educação popular nos idos das décadas de 1950 e 1960,
foi um campo de disputa entre interesses, inclusive antagônicos. Se-
tores das igrejas, dos empresários, dos sindicatos, das organizações
não governamentais e dos movimentos sociais do campo e da cidade
estão presentes nas propostas e iniciativas de escolarização de jovens
e adultos. Essa ainda é a realidade que revela concepções de mundo
em disputa. As pesquisas e publicações que hoje estão disponíveis
acerca da eja podem ser uma das formas de acessar essas diferentes
concepções, como indicaremos a seguir, em diálogo com uma delas.

O movimento do real impondo-se às intencionalidades normativas


A constatação de que o “otimismo da vontade”, ou seja, a luta
permanente de representantes da sociedade civil e da sociedade po-
lítica, na defesa da educação como direito de todos, tem resultado na
ampliação do aparato normativo e na gestão da eja, principalmente a
partir da década de 1990, nos coloca diante da pergunta: que concep-
ção de eja está presente nesse aparato e nessas formas de gestão? Ou,

124 Lei nº 9.424, de 24 de dezembro de 1996. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/le-


gin/fed/lei/1996/lei-9424-24-dezembro-1996-365371-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso
em: 2 jun. 2020.

231
Maria Margarida Machado

ainda, é possível perceber mudanças na concepção de eja do século


xxi em comparação ao século xx?
Penso que, primeiramente, é preciso explicitar de que concep-
ção de eja estamos falando. Não há uma concepção. A história da
eja no século xx nos remete a concepções que se diferenciam, in-
clusive em função dos sujeitos a que se destinam, ou dos sujeitos que
a promovem. Não é possível neste capítulo tratar dessa diversidade
conceitual. Para os objetivos aqui propostos, reitero a intencionalida-
de de concentrar-me no foco da escolarização voltada para jovens e
adultos trabalhadores.
Concordando com a maior parte das análises históricas já feitas
por Beisiegel (1974; 2003), Paiva (2003) e Haddad (1987; 1994; 2000)
e dialogando com publicações mais recentes do campo, identifico em
três momentos da história da educação de jovens e adultos no Bra-
sil elementos para pensar as concepções que ainda permanecem na
eja e sua relação com a escolarização até os dias atuais. O primeiro
momento, até o final dos anos 1960, tributário das campanhas ofi-
ciais de alfabetização de adultos e das experiências dos movimentos
de educação popular; o segundo, com a forte presença do Estado na
ditadura civil-militar, através do Mobral e da legislação do ensino
supletivo (Brasil, 1971; 1972); e o terceiro momento, este que esta-
mos presenciando, desde a reabertura política e a promulgação da
cf/1988 (Brasil, 1988).
Quanto à concepção de eja do primeiro momento, quando
sua denominação ainda era educação de adultos (eda), retomo uma
pesquisa de cunho sociológico que busca pensar a eja como funda-
mental na afirmação do projeto burguês no Brasil. Nessa pesquisa de
doutorado, Garcia (2015) afirma que

nesse contexto domina um projeto de formação e especialização da classe trabalha-


dora que pretende reduzir a Educação a: i) alfabetização, opondo analfabetismo à
instrução e postulando a instrução como resolução da questão social e interditan-
do, sempre quando necessário e possível, o protagonismo da classe trabalhadora; e,
ii) a uma educação operacional, destituída de sentido e de conhecimento sobre os

232
D ireito à educação e manutenção da subalternidade

rudimentos das forças produtivas, que aprofunda o estranhamento do trabalhador


frente ao objeto de seu trabalho e frente a si mesmo. De outra parte, a constitui-
ção e desenvolvimento da classe trabalhadora põe em questão essa propositura
e, contraditoriamente, desafia as condições e possibilidades de sua emancipação.
Essa contradição, fruto do desenvolvimento da sociedade do capital, cria e recria a
proposta da eda conservando a sua base histórica contraditória, expressa princi-
palmente pelas ações de repressão política ocorridas com o Golpe Militar (Garcia,
2015, p. 9).

Essa pesquisa explicita as contradições, inerentes ao sistema


capitalista, de um projeto de educação com base em concepções de
alfabetização/ instrução como fórmula de interdição e treinamento
rudimentar de trabalhadores, frente às tentativas de experiências
emancipatórias de educação de adultos. O resultado dessa dispu-
ta nos encaminha para o segundo momento da concepção de eja,
que afirmo como sendo a consolidação daquela interdição e daquela
perspectiva de treinamento dos jovens e adultos que se expressam
nas experiências do Mobral e do ensino supletivo. Se a leitura da rea-
lidade da eda, tomando como referência teórica a obra de Florestan
Fernandes sobre a revolução burguesa no Brasil, revela como essa
educação está a serviço do projeto de modernização conservadora,
as reflexões de Paiva (2003) e Haddad (1987; 1994; 2000) reiteram a
continuidade e o aprofundamento dessa concepção até a chegada aos
anos 1990.
Nesse sentido, podemos afirmar que o processo de abertura
política, seguido da redemocratização e das reformas, implementa-
das após o final da ditadura militar, não alterou de forma substancial
essa concepção de eja. A concretude da eja como uma proposta de
escolarização aligeirada e compensatória serve aos interesses da in-
terdição e do treinamento de trabalhadores, correspondendo ao que
Gramsci (2000) indica como sendo a manutenção de uma subalter-
nidade aos interesses do capitalismo, em qualquer dos seus estágios
de desenvolvimento.

233
Maria Margarida Machado

Essa permanência não se dá sem os seus contraditórios, e o exem-


plo mais claro disso são os vários depoimentos de sujeitos da eja
presentes nas pesquisas sobre o campo – sinais de resistências às
inúmeras interdições impostas aos jovens e adultos trabalhadores,
assim como de busca de superação do determinismo imediato da re-
lação educação/ empregabilidade. Todavia, a expressão visível dessas
permanências está na forma como o arcabouço legal/ normativo
e a gestão política da modalidade legitimam práticas aligeiradas e
compensatórias de educação.
Um exemplo em relação às permanências, desde a cf/1988 e
chegando à Lei nº 13.005/2014 (pne 2014-2024) (Brasil, 2014), é o
fato de o texto normativo manter os termos equivocados erradica-
ção do analfabetismo, ensino regular, escolarização na idade própria,
contra todas as manifestações declaradas de pesquisadores e militan-
tes da eja sobre os problemas inerentes a cada uma dessas expres-
sões. Não se trata de questões semânticas, mas do significado político
de cada uma delas. Carregadas de preconceito e determinismos, em
termos de forma e tempo para estudar e aprender, essas concepções
historicamente construídas vão na contramão da defesa do direito
à educação ao longo da vida, conceito do qual o Brasil é signatário,
desde 1997, com a Declaração de Hamburgo (Unesco, 1997).
Para refletir, ainda, sobre as permanências, é preciso reconhe-
cer que, em relação a muitas delas, evidencia-se uma resistência no
campo da eja. Essa resistência, identificada por Garcia (2015) na de-
fesa de uma educação emancipatória nos anos 1960, pode ser reto-
mada aqui pela atuação intensa dos Fóruns de eja,125 por exemplo, no
debate que resultou na Resolução cne/ceb nº 3/2010. Infelizmente,
não alcançou êxito em parte de suas proposições o movimento de
resistência envolvendo as três temáticas centrais das diretrizes ope-
racionais para a eja: idade para matrícula, certificação por exames e
oferta de educação a distância (ead). Viu, ainda, reforçadas as possi-

125 O registro de toda a participação dos Fóruns de eja nesse debate, bem como os docu-
mentos elaborados para subsidiar essa discussão nas três audiências públicas que foram
promovidas pelo Conselho Nacional de Educação, pode ser encontrado em http://forumeja.
org.br/node/2224.

234
D ireito à educação e manutenção da subalternidade

bilidades, que hoje se concretizam, de ofertas ainda mais precariza-


das na modalidade.
Sobre a questão da idade, a resolução aprovada não apenas
confirma a idade mínima de 15 e 18 anos para a realização de exa-
mes de conclusão do ensino fundamental e do ensino médio, como
demarca essa mesma idade para a matrícula nos cursos de eja. O
resultado é a oficialização da modalidade como responsável pela
educação básica de adolescentes, que já não são mais bem-vindos à
escola diurna porque lá “dão trabalho”. Parte desses adolescentes não
tem sequer o direito de optar se querem ir para a modalidade ou não,
são transferidos para classes noturnas de eja e, no caso daqueles que
cumprem medidas socioeducativas, obrigados a permanecer ali até a
conclusão da educação básica.
Quanto à questão da certificação, esta parece ser das políticas
de interdição à educação a mais antiga. Recuperando o histórico
dos exames de madureza, exames de admissão, exames supletivos e,
mais recentes, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o Exa-
me Nacional de Certificação de Competências para Jovens e Adultos
(Encceja), as justificativas para sua criação e manutenção são as mais
diversas. Desde a possibilidade de concorrer a cargos públicos, como
no século xix, à garantia de uma vaga na educação superior, como
hoje. De todas as formas, os exames já foram defendidos. Talvez, ao
longo da história da educação brasileira, a justificativa mais since-
ra e que revela de fato a que serve, em grande parte, uma política
de exames dessa natureza, tenha sido a do secretário da Secadi/mec
quando, num debate durante a Conferência Nacional de Educação
(Conae), em 2010, afirmou que, se um adolescente não quiser ir para
a escola e quiser ter o certificado de conclusão da educação básica
via os exames, é direito dele. O que está por trás dessa afirmação é
a absoluta desconsideração do real papel da escola, seja para aquele
adolescente, para crianças, para jovens ou para adultos.
Os enfrentamentos a essa política de exames, em especial na
eja, existem desde os exames supletivos, normatizados pela Lei nº
5.692/71 (Brasil, 1971). Não há um estudo nacional sobre os im-
pactos da política de exames de certificação no Brasil, embora essa

235
Maria Margarida Machado

prática exista desde o século xix. Em relação ao Encceja, já houve


manifestações contrárias das coordenações de eja dos estados e dos
representantes estaduais dos Fóruns de eja,126 mas a aplicação segue
sendo feita pelo Inep, apesar das descontinuidades. No documento
nacional que fez o balanço da eja, seis anos após a vi Confintea, as-
sim aparece a questão do exame:

A execução do Encceja foi marcada por inconstâncias. Depois da edição piloto em


2002, a oferta do Exame foi suspensa e durante dois anos ele não foi aplicado no
Brasil, sendo mantida apenas a aplicação no Japão, para brasileiros residentes no
exterior; em 2009, a prova não aconteceu – ainda que tenham sido realizadas as
inscrições dos participantes; a edição de 2010 ocorreu apenas no início de 2011; e
o Exame deixou de ocorrer novamente em 2012 e 2015 (Brasil, 2016, p. 69).

Ainda desse documento (Brasil, 2016), apresentamos o quadro


abaixo, que revela a grande diferença entre o número de candidatos
inscritos que fizeram e o dos que não fizeram a prova, entre os anos
de 2006 e 2014, o que, no mínimo, levanta a questão do alto custo
dessa aplicação com tantas ausências. Outras perguntas podem ser
feitas quando analisamos os microdados disponíveis na página do
Inep (http://portal.inep.gov.br/microdados), que disponibilizam o
perfil dos candidatos segundo o questionário socioeconômico e os
resultados das provas. Todavia, para os fins desta pesquisa, que inten-
ta discutir esse mecanismo de certificação dentro da política nacio-
nal de eja, isso foi inviabilizado pela inconsistência das informações
e dos dados.

126 Ver http://www.forumeja.org.br/?q=node/723. Acesso em: 2 jun. 2020.

236
D ireito à educação e manutenção da subalternidade

Quadro 1 - Número de inscritos que realizaram ou não a prova


do Encceja
Ano Ensino Fundamental Ensino Médio Total
Não realizou Realizou Não realizou Realizou prova
prova prova prova
2006 15.713 18.516 20.000 31.986 86.215
2007 48.703 47.132 91.020 128.792 315.647
2008 207.735 119.388 295.991 287.651 910.745
2010 108.077 49.343 - - 157.420
2013 69.780 59.235 725 657 130.397
2014 77.690 69.437 1.061 930 149.118
Fonte: Brasil (2016)

Para esta pesquisa, buscamos ainda outras informações oficiais


acerca da aplicação desse exame, mas as informações enviadas por
e-mail são bem incipientes e contraditórias entre os próprios técni-
cos do Inep:

Sobre o Encceja, antecipamos que temos apenas os dados relativos aos anos de
2010, 2014, 2015, 2016 e 2017. Convém salientar ainda que em 2015 e 2016 foi
realizado somente o Encceja Exterior. Os microdados dos anos 2014, 2015 e 2016
já estão divulgados no portal do Inep. No caso específico do ensino médio, lem-
bramos que o Enem foi utilizado como exame de certificação do ensino médio no
período de 2009 a 2016. Os microdados do Enem de todas essas edições estão dis-
poníveis no portal do Inep. (Resposta enviada em 20 ago. 2018 pelo e-mail micro-
dados.daeb@inep.gov.br. Assinam: Equipe Microdados daeb. Coordenação-Geral
de Instrumentos e Medidas (cgim)/ Diretoria de Avaliação da Educação Básica
(daeb)/ Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira).

A busca pelos dados disponíveis nos microdados do Inep con-


firmou a descontinuidade na sua oferta, além da impossibilidade de
qualquer análise sobre o impacto dessa ação na política de eja, devi-
do à fragmentação das informações e dados no interior do próprio
instituto, responsável por sua aplicação em âmbito nacional. O que

237
Maria Margarida Machado

se pode afirmar é que a aplicação do Encceja, iniciada em 2002 e re-


tomada a partir de 2006, desmonta praticamente toda a estrutura que
havia nos estados da federação responsáveis pela aplicação dos exa-
mes supletivos. Essa introdução da política do Encceja como exame
nacional, “vendida” aos estados como vantajosa por não representar
gastos para esses entes federativos na elaboração, correção e divul-
gação dos resultados das provas, foi ao encontro dos interesses dos
gestores estaduais.
O que também se pode afirmar, dadas as ausências e desconti-
nuidades identificadas na aplicação do Encceja, é a impossibilidade
de avaliar o alcance de seus muitos objetivos propostos, conforme
consta no edital do Inep de 2018:

2.1.1 Construir uma referência nacional de autoavaliação para jovens e adultos por
meio de avaliação de competências, habilidades e saberes adquiridos em processo
escolar ou extraescolar.

2.1.2 Estruturar uma avaliação direcionada a jovens e adultos que sirva às secreta-
rias de educação, para que estabeleçam o processo de certificação dos participan-
tes, em nível de conclusão do Ensino Fundamental ou Ensino Médio, por meio da
utilização dos resultados do Exame, de acordo com a legislação vigente, nos termos
do art. 38, §§ 1º e 2º, da Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

2.1.3 Oferecer uma avaliação para fins de correção do fluxo escolar, nos termos do
art. 24, inc. ii, alínea c, da Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

2.1.4 Construir, consolidar e divulgar seus resultados para que possam ser utili-
zados na melhoria da qualidade na oferta da educação de jovens e adultos e no
processo de certificação.

2.1.5 Possibilitar a constituição de parâmetros para autoavaliação do partici-


pante, com vistas à continuidade de sua formação e à sua inserção no mundo do
trabalho.

2.1.6 Possibilitar o desenvolvimento de estudos e indicadores sobre educação bra-


sileira, entre outros (Brasil, 2018).

238
D ireito à educação e manutenção da subalternidade

Exceto no que concerne ao objetivo 2.1.2, os demais eviden-


ciam como as intencionalidades podem ser tomadas pelo movimento
da realidade. Por se tratar de uma política nacional, cabe perguntar
a que interesses serve a manutenção de exames nacionais aplicados
nessas condições descontínuas e precárias, principalmente em rela-
ção ao acesso a seus resultados e ao alcance dos objetivos propostos.
A última temática em destaque nas Diretrizes Operacionais
para a eja (Brasil, 2010) trata da educação a distância, tema que não
é novidade no histórico dessa modalidade. As estratégias de escolas
radiofônicas, cursos por correspondência ou telecursos têm muito a
dizer sobre as tentativas de alcançar o público da eja, desde o início
do século xx. A questão central que aparece no Artigo 9º da Reso-
lução cne/ceb nº 3/2010 é a da mediação pedagógica da produção
do conhecimento, com a utilização dos recursos tecnológicos, como
pode ser observado nos incisos vi a xi (Brasil, 2010) dessa resolução.
Não foi possível nesta pesquisa reunir elementos que contribuíssem
para a análise do que se faz hoje em termos de ead na eja, inclu-
sive porque os registros das matrículas com essas características só
passaram a ser especificados no Censo Escolar do Inep a partir de
2015. Para a discussão proposta sobre a manutenção ou a superação
da subalternidade, tendo a educação como um dos seus meios, esta
temática precisará ser retomada em pesquisas futuras.

Considerações parciais
À expressão, repetidas vezes dita por Freire, de que a educa-
ção sozinha não transforma a realidade, mas sem ela, essa realidade
tampouco poderá ser transformada, eu acrescentaria que é preciso
dizer, ainda, de que tipo de educação estamos falando. Consideran-
do a história da educação brasileira, com a ajuda de Anísio Teixei-
ra e Paschoal Lemme, entre outros, é inegável o reconhecimento da
expansão do acesso à escola, sobretudo nestes últimos trinta anos.
Porém, os dados aqui apresentados nas pesquisas sobre eja revelam
que o acesso não garantiu permanência nem aprendizado; por isso,

239
Maria Margarida Machado

chegamos ao século xxi com mais de um terço da população brasilei-


ra de 15 anos ou mais sem educação básica e fora da escola.
O exercício de reflexão aqui proposto indica que, apesar dos
inúmeros esforços empreendidos nos últimos trinta anos para que
a educação de trabalhadores se constituísse em política educacional
com garantia do direito ao conhecimento – o que permitiu a amplia-
ção do acesso aos processos de escolarização e certificação –, tais ini-
ciativas, todavia, não foram suficientes para superar uma concepção
de formação e educação aligeirada e compensatória, que acompanha
a história da eja, contribuindo para manter jovens e adultos trabalha-
dores, com ou sem educação básica, em condição de subalternidade.
Na eja, no Brasil, percebe-se uma quase total dependência do
papel indutor da esfera federal para que estados e municípios cum-
pram seu papel na oferta da educação básica. Nessa dependência,
pode-se identificar o movimento de ascensão na matrícula de eja, no
início do século xxi, que sofreu forte redução nos últimos doze anos,
com exceção de dois indicadores que não alcançam expressão em
termos quantitativos, como é o caso da matrícula de eja integrada
à educação profissional e a matrícula em eja de pessoas deficientes.
Infelizmente, a concepção de eja presente na política imple-
mentada pela maioria dos entes federativos segue com tempos e con-
teúdos reduzidos, ainda tomando como referência o ensino funda-
mental e o ensino médio para crianças e adolescentes. A construção
de currículos diferenciados e de iniciativas de formação de professo-
res para o campo acaba por sofrer descontinuidades, sobretudo pelas
ingerências das ações dos governos, que buscam resultados imedia-
tos e quantitativos. O fechamento das turmas de eja, nessas ações
descontínuas dos governos, tem sido justificado pela falta de alunos,
sem que se levem em consideração as políticas que impulsionam a
sua descaracterização e desmobilização e o não reconhecimento das
suas especificidades.

240
D ireito à educação e manutenção da subalternidade

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Maria Margarida Machado

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243
CAPÍTULO 9

E ntre missais e carabinas : O poder do

discurso ou o discurso de poder ?

Vera Lúcia Paganini

Aqui se descreve uma análise realizada em pesquisa sobre edu-


cação e política na prelazia127 de São Félix do Araguaia (mt), com
recorte nas décadas de 1980 e 1990, quando afirmamos que os pro-
cessos educativos influenciaram a política e trouxeram algumas mu-
danças para a região. Durante entrevistas e escutas de relatos orais,
a categoria educação foi se constituindo como elemento importante
para a construção de uma história/memória das narrativas acerca das
experiências de vida, religiosidade, trabalho e fixação de posseiros,
pequenos proprietários e peões à terra, e do direito de permanência
dos indígenas. Não se trata apenas da educação bancária de escola,
mas da educação no sentido amplo, defendida por Paulo Freire, rea-
lizada em todos os momentos e em todos os ambientes. Juntamos os
relatos ao estudo de documentos do arquivo histórico-documental
da Prelazia, confrontamo-los com a visão teórica de Gramsci sobre o
tema e apresentamos um enfoque sobre o sujeito histórico formado
ali a partir das experiências vividas, muitas vezes na impossibilidade
de outros caminhos.

127 Prelazia – Prelazia ou prelatura é um tipo de circunscrição eclesiástica erigida para


atender a necessidades peculiares em um território ou de um grupo. As prelazias são ligadas
diretamente ao papa. Possuem seu próprio clero e seus próprios leigos. A prelazia territo-
rial, na maior parte das vezes, é uma abadia, governada por um abade, que exerce funções
similares à do bispo diocesano. Conventos e mosteiros podem ou não pertencer a congrega-
ções que são prelazias; quando não o são, são subordinados ao bispo local. E há também as
prelazias pessoais. Diferentes de todas as demais estruturas institucionais que citamos aqui,
estas não possuem limitação territorial. Seus membros, de qualquer parte do mundo, ade-
rem a ela por escolha pessoal, e não por habitarem determinada localização. Exemplo: Opus
Dei. Disponível em: https://ocatequista.com.br/blog/item/14146-dioceses-arquidioceses-
-prelazias-entenda-as-varias-igrejas-que-formam-a-igreja-catolica. Acesso em: 1 jun. 2020.
Vera Lúcia Paganini

As décadas anteriores, especialmente os primeiros anos da dé-


cada de 1970, foram consideradas anos de chumbo. Muitos relatos de
invasões e demarcações de terras, às vezes com fronteiras confirma-
das “à bala”, conflitos e confrontos sangrentos, podem ser confirma-
dos em documentos armazenados pela Comissão Pastoral da Terra
(cpt-Goiânia), nos arquivos128 da prelazia de São Félix do Araguaia,
no museu histórico da cidade e em publicações da época, como jor-
nais, revistas e folhetos, não só da região, mas também de âmbito
nacional e internacional.
O resultado da análise indica que o processo político-social na-
queles territórios foi marcado pela condição do lugar e da identidade
dos protagonistas. Identificam-se como protagonistas os posseiros,
os colonos sulistas, a Igreja Católica, os latifundiários e o Estado. A
educação, a evangelização e a resistência são as categorias de análise
que nortearam o estudo. Destacam-se dois movimentos: um movido
por relações de poder próximas aos interesses e necessidades de gru-
pos sociais desfavoravelmente posicionados, voltado para valores,
significados e conhecimentos escolares; e outro, de manutenção das
relações de poder pela burocracia executiva do Estado, pela ordem
capitalista e pela lógica da racionalidade técnica. Resultante de dife-
rentes textos e contextos, forma-se o sujeito coletivo nas contradições
das próprias limitações, de onde emergem os intelectuais orgânicos
que empreendem um projeto contra-hegemônico cujas bases fazem
frente, durante algum tempo, ao projeto já consolidado pela máquina
governativa, inclusive em âmbito federal.

128 Quantitativamente falando, o arquivo da prelazia de São Félix do Araguaia ocupa apro-
ximadamente 30 m/l (metros lineares). Porém, o seu conteúdo supera amplamente aquilo
que se considera estritamente um “arquivo”: A sua composição se encaixa dentro dos três
tipos de patrimônio documental diferenciados jurídica e tecnicamente: biblioteca, centro de
documentação e arquivo. São aproximadamente 280 mil documentos, divididos em grandes
setores. Há desde informes paroquiais a documentos de relevância histórica. Documentos
que contam a áspera luta pela terra no Brasil, falam da repressão militar e de governos,
revelam a marcação cerrada do Vaticano sobre um religioso que veio em missão evangeli-
zadora para o Brasil e enveredou pela teologia da libertação. Há mais de 50 mil cartas, entre
as enviadas a Pedro e as respondidas por ele. Cartas de gente simples e de poderosos. Cartas
públicas e de teor sigiloso à época. E imagens, fitas, objetos, incluindo prêmios e títulos que
o bispo acumulou e agora repassa ao arquivo. Na base dos Arquivos sem Fronteiras dez
anos atrás, e atualizado em função das coisas mais recentes, foi um levantamento feito pelos
arquivistas sem fronteiras antes da digitalização, em 2006 (Zilda, 24 jul. 2018).

246
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

Diferentes frentes políticas revezam-se nas disputas e encabe-


çam projetos de educação tanto pelo lado do governo quanto pelo
da Prelazia, dando uma feição particular à política partidária nos
contextos que se formam. Destaca-se, então, a ação do intelectual
orgânico como força política e social da região, cuja resistência está
nas contradições e permanências dos dois blocos, alternando-se nos
governos das prefeituras locais, responsáveis pelos acontecimentos
sociais e políticos mais acirrados das décadas de 1980 e 1990, mas
que permeiam as relações até o tempo presente (2020).

Educação e política: elementos essenciais do projeto contra-hege-


mônico estabelecido na prelazia de São Félix do Araguaia (mt)
— décadas de 1980-1990
A discussão da ideia de contra-hegemonia se embasa em
Gramsci, porque a sua formação intelectual, segundo Chiarante
(2006), permitiu, de certo modo, que ele compreendesse com maior
profundidade a diversidade da constituição das classes trabalhadoras
no seu tempo/ lugar de luta. Sua militância política o fez perceber
que as particularidades deveriam confluir para a construção de uma
universalidade baseada na consciência dos indivíduos pela luta con-
tra as classes dominantes. Embora a distância espacial e temporal
tenha que ser levada em conta o tempo todo, essas questões o apro-
ximam da nossa realidade e continuam atuais na organização sócio-
-político-econômica dos países ocidentais.
Na realidade contemporânea de Gramsci, acima das diferenças
das diversas línguas faladas na Itália, das diferentes raízes dos povos,
das diferenças sociais e profissionais, havia uma unidade política e
econômica intensificada pela exploração da burguesia latifundiária
e industrial. Os escritos apontam para a formação hegemônica do
proletariado, que operou não somente na direção da estrutura eco-
nômica e da organização política, mas tinha o objetivo de conduzir,
no campo das ideias e da cultura, o consenso sobre seu projeto so-
cial. Para ser capaz de governar como classe, o proletariado deveria

247
Vera Lúcia Paganini

se despojar do resíduo corporativo, do preconceito ou incrustação


sindicalista:

[...] Significa que não só devem ser superadas as distinções existentes entre as di-
versas profissões, como também é necessário, para que se conquistem o consenso
e a confiança dos camponeses e de algumas categorias semiproletárias da cidade,
superar alguns preconceitos e vencer certos egoísmos, que podem substituir, e
substituem, na classe operária como tal, mesmo quando já desapareceram do seu
seio os particularismos de profissão (Chiarante, 2006, p. 649).

A possibilidade de um governo habilitado a estabelecer a rela-


ção entre estrutura e superestrutura, entre teoria e prática, entre forças
materiais e ideologia, só seria viável se os dirigentes fossem capazes
de pensar como membros de uma classe que pudesse dirigir os cam-
poneses e os intelectuais, apta a construir o socialismo, se auxiliada
e seguida pela grande maioria daqueles estratos sociais. Sem isso, as
classes subalternas não se tornariam classe dirigente. Para Gramsci
(1999, p. 146), aqueles extratos, que na Itália representavam a maio-
ria da população, permaneceriam sob a direção burguesa, dando “ao
Estado a possibilidade de resistir ao ímpeto proletário e de dobrá-lo”.
Através da análise da “questão meridional”, ele defende a construção
da hegemonia da classe, ressaltando as condições materiais para o
fortalecimento da unidade econômica entre o proletariado, o campe-
sinato e as demais classes exploradas pelo capital. Defende a direção
política da classe proletária, que deve estar à frente dos processos
produtivos da produção agrária e da indústria urbana. Demonstra
a necessidade de superação do senso comum e dos preconceitos, na
condução intelectual e moral do processo revolucionário.
Considerando as situações acima, a respeito do pensamento de
Gramsci (1999) sobre a hegemonia do proletariado, a constituição do
bloco histórico e a possibilidade de sucesso de um governo formado
pelas classes exploradas pelo capitalismo, deve-se ter em mente que
não basta a subida ao poder para que ele se realize. Para o autor,
como está registrado em sua teoria, a hegemonia não se dá apenas no

248
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

plano político e econômico, mas também no moral e cultural. Além


disso, o poder capitalista, isto é, o poder de quem detém os meios de
produção, raramente se alia ao poder de governos populares. Assim,
dificilmente o bloco histórico se concretiza em governos de partidos
voltados ao socialismo, ao comunismo ou outros partidos de origem
popular.
É notório que essa era a realidade da Itália do início do sécu-
lo xx. Mas a análise pode nos ajudar a pensar as forças produtivas,
governamentais e populares no Brasil e especialmente na prelazia de
São Félix do Araguaia, que em seu contexto traz coincidências estru-
turais. Esse pensamento se reforça, em se tratando dos acontecimen-
tos da década de 1980 e dos desdobramentos dos conflitos, das lutas
populares da elevação de povoados a municípios e da constituição de
governos municipais.
O Poder Executivo dos principais municípios, naquele tempo
e naquele território, era ocupado por intelectuais envolvidos nos tra-
balhos cotidianos de evangelização e de resistência. É possível afir-
mar que se concretizou em dado momento um bloco histórico na
forma como Gramsci (1999) descreveu, mas ele não se perpetuou e
não conseguiu agregar os poderes de forma a acalmar os conflitos.
A Igreja Católica, através da evangelização e do apoio aos pro-
cessos educativos empreendidos, influenciou a formação de intelec-
tuais cuja atuação possibilitou o desenvolvimento de um bloco con-
tra-hegemônico, que atuou na região atenuando conflitos, injustiças
e desgovernos como uma força opositora. Nas próprias palavras dos
entrevistados, podemos perceber a animosidade estabelecida entre,
pelo menos, dois lados, e que se perpetua até os dias atuais.
Importante destacar que, quando escrevemos “igreja da Pre-
lazia”, essa igreja não envolve apenas os religiosos e não se reduz ao
projeto idealizado por dom Pedro Casaldáliga.129 Em torno desse

129 Dom Pedro Casaldáliga (Balsareny, província de Barcelona, 16 de fevereiro de 1928) é


um bispo católico radicado no Brasil desde 1968. Bispo dirigente da Prelazia desde o seu
início, em 1970, até 2004. Hoje, emérito e residente na cidade de São Félix do Araguaia
(mt). Disponível em: https://prelaziasfaraguaia.wixsite.com/prelazia/bispo-emerito-d-pe-
dro. Acesso em: 1 jun. 2020.

249
Vera Lúcia Paganini

projeto há leigos que vestiram a camisa da miséria, dos conflitos e


da resistência. Uma igreja foi se constituindo nesse processo de luta
e confrontos. Quando dizemos igreja, estamos falando do coletivo
daquele sujeito que se constituiu em torno de um projeto contra-he-
gemônico. Mesmo as figuras do padre e da freira não representavam
um modelo religioso pronto e indicado para ser seguido, mas foram
se formando nessa realidade. Sem perder a crença que trouxeram
dos lugares de onde vieram, foram associando outra experiência à já
trazida, adquirida no dia a dia do trabalho. Assim, igreja da Prelazia
é um designativo para o sujeito histórico coletivo que se concretizou
nas batalhas do lugar. Parece confuso compreender esse processo,
porém o percurso mostra que o caminho dessa igreja foi se fazendo
no caminhar, por força das circunstâncias.
Não se pode dizer que havia ali um projeto apoiado pela Igreja
no seu âmbito geral. Essas estruturas foram se modificando confor-
me as necessidades, e, na década de 1980, quando a Prelazia apoiou
um partido político que defendia questões sociais, quatro cidades da
região tiveram prefeitos com uma visão socialista e ideias de esquer-
da. Muitos que já trabalhavam na Prelazia e outros que vieram, prin-
cipalmente de São Paulo e Minas Gerais, eram trazidos pelas prefei-
turas para escolas e postos de saúde e ingressavam no trabalho das
pastorais e de evangelização. Mas havia uma ala da Igreja que conde-
nava essa situação. Sem dúvida, formou-se uma rede de intelectuais
nas equipes dos que foram como missionários, colaboradores e, às
vezes, até curiosos, como a professora Águeda Borges, que relata em
entrevista que a sua vinda para a Prelazia foi decidida na mesa de
jantar da casa de um tio, quando a esposa do prefeito Diá, de Casca-
lheira (que era médica), em viagem a Belo Horizonte, conversava so-
bre a ida de algumas pessoas na área da saúde para trabalharem com
a medicina popular no município. A médica comentou que também
faltavam professores. Águeda tinha acabado de passar no vestibular
para economia em Brasília:

[...] gente, será que eu não posso ir? Eles riram, mas eu disse, não, tô falando sério!
Aí ela falou assim: Olha, tem uma agente de pastoral, mas que também é professora,

250
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

e que agora vai pra prefeitura, a Lucinha, e ela tá aqui justamente acertando com
professores. Eu falei assim, não então eu vou topar, sim, fazer uma experiência de um
ano. Eu vou topar de ir. Fui atrás da Lucinha. [...] tinha um grupo que era daqui, o
Juarez que também era agente de pastoral [...] foi treze dias e daí, vim. Minha mãe
achou um absurdo essa coisa de vir pro Mato Grosso, pro meio dos índios, né? E
eu com uma curiosidade incrível. Imagine. Gastei quatro dias de Belo Horizonte a
Cascalheira (Águeda, 8 set. 2017).

Conforme os agentes pastorais, houve modificações que po-


dem ser observadas no decorrer das décadas. Nos anos 1980, já com
mais municípios que na configuração inicial, a frente participativa
ocupou os espaços de poder com cargos eletivos de prefeitos, ve-
readores e outras representações que se fortaleciam nos grupos de
evangelização e nas associações. As comunidades progrediam. Aqui
é preciso discutir brevemente a ideia de progresso. Para Filemon (29
ago. 2018), seria o desenvolvimento econômico, a produção de bens
materiais e o aumento da produção de capital; para o povo da Pre-
lazia, é o desenvolvimento humano. Não negam os confortos mate-
riais, mas lutam para que o homem possa evoluir cultural e social-
mente e no mundo do trabalho. Gramsci (1999, p. 403) ajuda-nos a
compreender os objetivos de cada um:

Na ideia de progresso, está subentendida a possibilidade de uma mensuração


quantitativa e qualitativa: mais e melhor. Supõe-se, portanto, uma medida “fixa”
ou fixável, mas esta medida é dada pelo passado, por uma certa fase do passado,
ou por certos aspectos mensuráveis, etc. (Não que se deva pensar em um sistema
métrico do progresso.)

Gramsci (1999) afirmou que uma massa humana não conquista


sua autonomia sem se organizar, e não existe organização sem intelec-
tuais, sem aqueles que se ocupam de dar homogeneidade e consciên-
cia ao grupo ao qual pertencem. No processo de busca de uma cons-
ciência crítica, o grupo precisa dos seus organizadores e dirigentes,

251
Vera Lúcia Paganini

para que elaborem e reelaborem continuamente os princípios


teóricos necessários à cimentação de sua unidade enquanto grupo
cujos integrantes se identifiquem não só por sua posição econômica
no jogo das relações sociais, mas também e, essencialmente, por seu
posicionamento político, na busca pela transformação da realidade
social.
Assim, o conceito de intelectual desenvolvido por Gramsci
(2001) leva-nos a afirmar que, nas condições de conflito em que se
encontravam e no modo como reagiram às situações de posse e de
permanência na terra, à falta de atendimento adequado à saúde, às si-
tuações-limite que vivenciaram, os moradores dos patrimônios, pos-
ses e aldeias, assim como os que chegavam para trabalhar na Prela-
zia, iam se moldando como intelectuais da sua própria condição. Isso
significa que, especialmente nos momentos mais sérios de conflito, o
processo de fortalecimento da evangelização (e aqui falamos da atua-
ção dos agentes pastorais em todos os setores do conjunto: educacio-
nal, sindical, cultural, político) apoiado pela Prelazia interferiu deci-
sivamente na sua forma de pensar, viver e agir e propiciou condições
para o surgimento de intelectuais orgânicos que modificaram o meio
e interferiram no processo político e social das comunidades. Não há
como distinguir na formação qual das ações teve mais peso ou maior
importância, a não ser a aprendizagem da leitura e da escrita.
Como “povo da Prelazia”, os agentes pastorais representavam o
elemento unificador que poderia realizar a função conectivo-organi-
zativa entre as massas e o projeto contra-hegemônico de cunho so-
cialista que se pretendia estabelecer. Esses agentes estão habilitados a
exercer funções culturais, educativas e organizativas para assegurar a
hegemonia social e o domínio estatal da classe em que estão inseri-
dos. Nesse sentido, representam uma ameaça ao projeto hegemônico
em curso porque representam, em última análise, a Igreja contra o
Estado. Isto é, se os latifundiários representavam o poder econômico
apoiado pelo governo, as classes subalternas, posseiros, peões, índios
e populações urbanas representavam o povo subjugado que buscava
apoio na igreja.

252
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

Mesmo que as realidades sejam diferentes e os tempos histó-


ricos diversos, é interessante fazer uma aproximação de motivações
que se assemelham nas suas expectativas e realizações (Gramsci,
2001, p. 159):

§ 104. História dos intelectuais. Luta entre Estado e Igreja. Esta luta teve caráter
diverso nos diversos períodos históricos. Na fase moderna, é luta pela hegemonia
na educação popular; pelo menos, é este o traço mais característico, ao qual todos
os outros se subordinam. Portanto, é luta entre duas categorias de intelectuais,
luta para subordinar o clero, como típica categoria de intelectuais, às diretivas do
Estado, isto é, da classe dominante (liberdade de ensino — organizações juvenis —
organizações femininas — organizações profissionais).

O projeto contra-hegemônico que, por força dos conflitos e


dos enfrentamentos ao longo dos anos 1970, foi se consolidando, cer-
tamente é o responsável pelo caminhar e encaminhar dos progressos
políticos do partido de oposição. Podemos afirmar que a instrumen-
talização de um sujeito coletivo de certa forma coeso pesou decisiva-
mente nas escolhas que os intelectuais fizeram e na responsabilidade
que foram assumindo de liderar as comunidades onde se inseriam.
Se havia coesão, não se pode dizer que havia unanimidade. Mas pre-
valeceram a forma de organização e os recursos que adotavam para
se chegar a uma decisão coletiva: o voto das comunidades com poder
decisório dos direcionamentos apresentados.
Essa ocupação de poder governativo pelas classes consideradas
subalternas — formadas por quem estava na terra ou era da terra e
tinha um poder aquisitivo bem menor — contra os donos de lati-
fúndio e seus apoiadores consolida a função conectivo-organizativa
dos intelectuais orgânicos junto à massa aqui formada pelo “povo da
Prelazia”.
Isso implica pensar em algumas situações relevantes naquele
tempo histórico. Por exemplo: o que formou esses intelectuais foi a
sua ação concreta naquele lugar. Não o inverso. Os que chegaram de

253
Vera Lúcia Paganini

fora não vieram formados como intelectuais orgânicos. É possível


afirmar que vinham com a experiência e a formação do intelectual
tradicional descrito por Gramsci (2001). Os habitantes que já esta-
vam ou eram da terra, com a constituição da Prelazia e a atuação da
igreja na opção pelos pobres, foram se formando a partir do trabalho,
dos processos educativos existentes, da participação nos conflitos.
Esses habitantes agem como os intelectuais orgânicos que se mantêm
vinculados a sua classe social de origem ao atuar como porta-vozes
de um sujeito coletivo com interesses comuns.
Não há unanimidade em toda a Prelazia, mas há, sem dúvida,
a formação do sujeito coletivo que, em certo momento, constituiu o
bloco histórico e se configurou como um bloco contra-hegemônico.
Entretanto, não podemos afirmar que a Prelazia formou esses sujei-
tos individuais emergentes. Aquela conjuntura reuniu condições de
disputa política e teórica e de ações cotidianas que possibilitaram a
atuação dos sujeitos ao modo do intelectual orgânico. Se não olhar-
mos com cuidado o processo, fica parecendo que a igreja, ao chegar
ali, tinha um projeto formativo pré-estabelecido, e não tinha. À me-
dida que iam montando os processos de formação, estavam proble-
matizando uma realidade que viviam todos os dias. Foi um trabalho
exitoso durante algum tempo.
O projeto contra-hegemônico construído entre as décadas
de 1970 e 1990 pelas comunidades ligadas à Prelazia conseguira se
confirmar como classe dirigente. Mas, nos meados dos anos 1990,
passou a enfrentar uma situação de ameaça àquele consenso que tor-
nou possível a eleição dos dirigentes emergidos do povo. Os filhos de
líderes opositores que saíram da terra para estudar retornaram com
formação superior e ideias progressistas; essas ideias iam ao encon-
tro dos interesses de migrantes que cada vez mais chegavam à terra
para a produção agropecuária em escala comercial e com desejos de
desenvolvimento econômico com metas capitalistas que foram se
consolidando nos anos 2000. Então percebemos as duas forças polí-
ticas já existentes evoluírem em dois blocos: os que são apoiados pela
Prelazia e “os contra”.

254
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

Afirmamos aqui que, do sujeito coletivo que compõe a socie-


dade civil da prelazia de São Félix do Araguaia, cujo sujeito indi-
vidual encontra-se inserido nos aparelhos privados de âmbito da
sociedade civil, durante um certo tempo emergem os componentes
da sociedade política no aparelho governativo, nesse projeto contra-
-hegemônico. A estrutura de poder configurada até então teria que
mudar para colocar outro projeto em andamento. Assim, apesar das
contradições, concretizou-se uma discussão em torno do conjunto
de intelectuais orgânicos, formados nas experiências cotidianas da
região, que levou um ideal para a experiência da sociedade política.
O que aconteceu efetivamente nas disputas políticas de alguns muni-
cípios foi a concretização desse ideal, o projeto contra-hegemônico.
Entretanto os conflitos não terminaram, ao contrário, foram
perpetuados com embates, agora mais nas tribunas e nos púlpitos,
como atesta um acontecimento recente (2012), com reminiscências
do latifúndio Suiá-Missu (considerado na década de 1970 o maior
latifúndio particular do mundo), cujas terras foram divididas em
vários territórios, com ocupações nada pacíficas. Em 1992, 165.241
hectares foram demarcados para serem devolvidos aos Xavante. A
devolução não foi efetivada e as terras foram ocupadas novamente
ao longo de duas décadas por posseiros, grileiros e outros tipos de
proprietários com títulos comprados de terceiros. Até que, em 2012,
o governo federal, em observância ao que fora decidido em 1992,
realizou a desintrusão e a reintegração de posse aos Xavante.

Mesmo não sendo de autoria dela o decreto que criou a reserva Marãiwatsédé,
dos índios xavantes, a presidenta poderia receber o Silval e revogar o decreto. O
deputado observa ainda em sua palavra que o decreto que homologou a reserva
foi assinado pelo ex-presidente fhc, que “mal assessorado” permitiu a criação, de
forma fraudulenta, da reserva indígena na área da Suiá-Missú. (Guimarães, 2013,
p. 151).

As palavras de Kalixto Guimarães (2013) demonstram a visão


crítica do jornalista sobre essas demarcações indígenas. Ele foi um

255
Vera Lúcia Paganini

defensor das famílias retiradas da área em 2012. No portal de notí-


cias Pontal do Araguaia (2014), o jornalista destaca os conflitos no
campo entre índios e produtores e o travamento dos projetos de in-
fraestrutura (logística e produção de energia). O portal registra ainda
que Kalixto Guimarães não poupa ninguém, faz críticas a funcioná-
rios públicos que, segundo ele, se corromperam durante o processo.
Sobre a demarcação das terras, ele afirma que houve parcialidade e
conivência de autoridades, entre elas o bispo dom Pedro Casaldáliga:
“Foram antropólogos e fraudadores de documentos, Justiça cega e
submissa, onde, a Corte Suprema do País, o stf, aceitou essa intro-
missão” (Guimarães, 2013, p. 13).
Nas contradições e disputas, entretanto, percebemos um ponto
comum aos sujeitos analisados e a outras personagens ligadas a eles:
a vontade de agir na própria terra e, a seu modo, promover o de-
senvolvimento. Uns visando ao desenvolvimento econômico, outros
promovendo a ação social. Filemon (2018), assim como Guimarães,
opõe-se à política de trabalho da Prelazia e condena sua forma de
agir. Afirma que, na verdade, é o responsável pela criação de institui-
ções educacionais, questionando o que é afirmado em documentos
do arquivo sobre a atuação da Prelazia.

Olha, eu sempre digo que a Prelazia foi um mal necessário. Acho que até te falei isso
já, no telefone. Porque ela tem assim, porque ela tem esse lado. Ela nunca fez cem por
cento de nada que ela começa. Ela dá início, recua e você é que tem que dar conti-
nuidade. Os professores, nós tivemos professor aqui, tinha os de lá, eu fui diretor de
escola. Fui diretor, criei a escola José Fragelli, fui eu que criei, segundo grau aqui fui
eu e Gaspar que criamos, Tancredo Neves, Severiano Neves fui eu que construí aqui
junto com o Governo, foi. A Tancredo já foi na época do Pontim, a José Fragelli que
hoje é Ilda Rocha fomos nós... então, nós sempre corremos atrás, eu sempre corri atrás
de... da educação aqui. E o lado da Prelazia na época, inclusive tive problemas com
a Erotildes. Hoje em dia ela é minha amiga mas tive problema. Porque a Erotildes
obedecia só a eles. Da Prelazia (Filemon, 29 mar. 2018).

256
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

Poderíamos afirmar que, acima dos conflitos, entre os intelec-


tuais orgânicos que agem e participam das decisões nos territórios
da Prelazia há vontade coletiva na busca de desenvolvimento da pró-
pria terra. Mesmo nas contradições. Assim, fica clara a importância
de entender o mundo real em movimento na sua relação de forças
nesses lugares. A vontade coletiva implica também uma acomodação
das vontades individuais. Nos dias atuais, o poder da Igreja Católi-
ca sobre as decisões políticas locais é menor. As relações políticas e
governamentais têm gerado conflitos menos violentos nos últimos
vinte anos. No foco da produção agropecuária, predominam fazen-
das agrícolas, buscando na produção de grãos, especialmente a soja,
colocar o estado de Mato Grosso entre os maiores produtores do Bra-
sil. Os conflitos por territórios ainda formam um ponto de embates
confuso e acirrado. Possivelmente, o maior problema desta década,
nesse sentido, é decorrente das decisões de 2012 com relação à Suiá-
-Missu. É uma situação que ainda não teve decisão final e traz outros
problemas, como o embargo do projeto inicial de pavimentação da
rodovia br-158. Todos se ressentem das consequências.
O sujeito coletivo se molda por meio da vontade coletiva, que,
segundo Gramsci (2001), seria uma expressão da subsunção das von-
tades individuais. Em outras palavras, em uma relação hegemônica,
a vontade geral deve ter prioridade em relação às vontades particu-
lares. Não é possível homogeneizar sujeitos ou formar um bloco de
vontade única, mas é necessário que as vontades individuais se reor-
ganizem na compreensão da necessidade de trabalhar para que uma
vontade coletiva trabalhe para o bem comum.

A coletividade deve ser entendida como produto de uma elaboração de vontade e


pensamento coletivos, obtidos através do esforço individual concreto, e não como
resultado de um processo fatal estranho aos indivíduos singulares: daí, portan-
to, a obrigação da disciplina interior, e não apenas daquela exterior e mecânica.
Se devem existir polêmicas e cisões, é necessário não ter medo de enfrentá-las
e superá-las: elas são inevitáveis nestes processos de desenvolvimento e evitá-las
significa somente adiá-las para quando já forem perigosas ou mesmo catastróficas,
etc. (Gramsci, 2001, p. 232).

257
Vera Lúcia Paganini

Os intelectuais orgânicos originam-se como produto do desen-


volvimento histórico. O papel desse sujeito é promover a unidade
social e política da classe fundamental à qual se vincula e torná-la
consciente do seu papel histórico. E, assim também construir e man-
ter o consenso das demais classes e grupos sociais em torno da sua
hegemonia, transformando os seus interesses específicos nos inte-
resses gerais da sociedade; ou seja, os intelectuais orgânicos são o
elo do bloco histórico. Embora forjados nas contradições, os sujeitos
estudados configuram uma amostra dos intelectuais orgânicos que
foram se formando no cotidiano dos conflitos e dos embates, e que,
de modo muitas vezes antagônico, personificam a voz do sujeito
coletivo que se levanta no enfrentamento dos próprios problemas.
Observamos que há supremacia dos que detêm os meios de
produção sobre uma classe trabalhadora que nem sempre consegue
garantir os seus direitos. Há os mesmos processos de dominação do
capital sobre o trabalho que acontecem de modo geral no Brasil, e
nem todos conseguem o necessário para a sobrevivência. Por isso,
dependem da sua força de trabalho, que às vezes não é remunerada
com justiça; muitos são subjugados pelas necessidades cotidianas e
trabalham sob regimes de informalidade, quase de escravidão. E há
também as comunidades indígenas e outras comunidades sem patri-
mônios, em grande pobreza, que pouco são assistidas pelos órgãos
competentes, como deveriam fazê-lo.
A formação da consciência nacional-popular no pensamento
gramsciano depende da capacidade das classes subalternas do campo
e da cidade de se constituírem em uma alternativa de reorganização
social e política da sociedade. Essa questão está relacionada a uma
perspectiva que coloque em pauta o problema da construção de uma
hegemonia de novo tipo. Mas, segundo Martins (1995), a grande di-
ficuldade de organização dos trabalhadores no Brasil, nas últimas
décadas, está centrada na forma de se organizarem/desorganizarem
como classe e com um pensamento coletivo comum. A preocupação
de Gramsci (1999) com a passagem das classes subalternas à posição
hegemônica não se coloca apenas no terreno econômico, mas está
vinculada à necessidade de um novo projeto cultural que seja capaz

258
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

de propiciar a elaboração de uma concepção de mundo própria das


classes subalternas, que lhes dê autonomia em face do domínio ideo-
lógico das classes dominantes. Ou seja, liberando-as da racionalida-
de capitalista.
Os diferentes grupos que constituem as classes subalternas, nas
sociedades capitalistas, identificam-se muito mais pela pobreza e do-
minação político-ideológica do que pela inserção efetiva no processo
produtivo. Essa inserção é um elemento facilitador da constituição
política da classe, mas não é o único determinante das lutas políticas,
as quais podem se originar de outras questões além das estritamente
econômicas. As classes fundamentais se definem e se diferenciam na
esfera econômica pela relação de propriedade ou não propriedade
com os meios de produção, mas é no terreno político-ideológico que
o antagonismo entre as forças se explicita.
A reorganização hegemônica da sociedade é uma questão que
não se resolve sem que um núcleo organizativo se proponha clara e
explicitamente à tarefa de unificar as experiências parciais e setoriais
de cada um dos setores das classes subalternas em uma alternativa
política que sirva para dar impulso às lutas e que, ao mesmo tempo,
acene com as possibilidades de transformação mais profunda da so-
ciedade. Sem a presença da Igreja Católica, com as suas especificida-
des naquelas terras, o processo de sobrevivência e desenvolvimento
das classes subalternas seria mais difícil.
Sem uma força que, em determinado momento, fizesse frente
às situações de poder e de dominação que comprovadamente aconte-
ceram, especialmente entre 1970 e 1990, nos conflitos armados entre
latifundiários, grileiros, posseiros, índios e peões, possivelmente a
configuração territorial e econômica seria outra. Os estudos direcio-
nam a nossa compreensão para um cenário em que haveria grandes
produtores rurais, em latifúndios de grandes extensões. Os processos
econômicos do capitalismo teriam privilegiado a produção em de-
trimento de programas sociais para beneficiar pequenos produtores
rurais, trabalhadores urbanos e comunidades indígenas.

259
Vera Lúcia Paganini

Ainda que no nível de considerações, essas afirmações se sus-


tentam porque os documentos analisados registram como se organi-
zavam as políticas governamentais nas décadas citadas, cujos objeti-
vos centrais eram o desenvolvimento econômico ágil e rápido para
colocar a Amazônia Legal na linha de desenvolvimento dos outros
territórios brasileiros, especialmente as regiões Sudeste e Sul. E, dada
a situação em que foram apresentados os projetos de educação da
política de governo, a escolarização para todos não era uma priorida-
de. Conforme a entrevistada Erotildes, os grupos escolares na região
foram construídos no governo de Juscelino Kubitschek, ainda na dé-
cada de 1950:

Era grupo escolar padrão. Todos eram do mesmo jeito. Do Aragarças ao Pará. Tinha
o mesmo tamanho, o mesmo tipo de construção, cabia uns cinquenta alunos. Eram
duas salas... uma mais adiantada e uma mais atrasada. Tinha uma do primeiro ano
pra alfabetizar e a outra do segundo e terceiro ano... não tinha quarta série não
(Erotildes, 13 set. 2017).

Conforme fomos montando o painel nas entrevistas, observa-


mos nas falas que construir os prédios escolares não era garantia de
uma política de governo que sustentasse uma escola. Na maioria dos
casos, havia apenas alfabetização, e quando muito até a quarta série
primária. Os professores que lecionavam nos grupos não tinham for-
mação. Eram pessoas do lugar que apresentavam um nível de letra-
mento satisfatório para alfabetizar as crianças. Não há informações
sobre alfabetização de adultos até então. Podemos citar o exemplo de
Erotildes, que foi para a Barra do Garças estudar e, com a doença da
mãe, voltou para Luciara, onde moravam seus pais, tendo terminado
a quarta série:

Só com o Admissão e cinco meses de primeiro ano ginasial. Aí o Lúcio da Luz chegou
lá em casa. O dono da cidade de Luciara. Ele gostava de cantar serenata, fazer festa.
Ele falou: — O que você tá fazendo chorando aí? Você agora vai ser professora! Eu

260
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

falei: — Eu não dou conta! Eu só comecei estudar o ginásio lá. Ele disse: — Dá sim.
Você sabe mais do que todo mundo que tá aqui. Até do que eu. Ele não tinha estudo,
sabia muita coisa, mas não tinha estudo, só rabiscava o nome, não sabia nem ler
direito. Era ele e o Severiano. Eles eram líderes, pessoas educadas, gente que sabia
tudo mas não sabia ler e escrever. Isso aí não fazia falta para eles. Aí eu falei assim,
tá bom, então eu vou (Erotildes, 13 set. 2017).

Relato parecido é o de outra professora que começou na região


na década de 1960, a entrevistada Eva Mendes, mostrando que as po-
líticas educacionais, naquele tempo, não existiam. As lideranças dos
povoados, políticas ou não, tentavam minorar as impossibilidades
buscando entre si o que era possível para fazer funcionar as escoli-
nhas rurais.

E aí nesse meio tempo, já tinha muita gente lá discutindo, tinha bastante gente lá em
Santo Antônio... muitas crianças, adolescentes... aí decidiram botar uma aula, né?
botar uma escolinha. E seu Guilherme tinha uma sobrinha que já tinha terminado
o ginásio em Barra do Garças, aí ele falou que ia conseguir levar a sobrinha pra
lá. [...] Aí, com a Mariinha ir pra lá, e precisava de ajudante, eu comecei a ajudar
ela, né. Comecei a ajudar ela lá na sala de aula. Era sala mista. Desde os pequenos
até os meninos de doze anos, treze anos, né? Aí eu comecei a ajudar ela. E nisso eu
fui pegando prática na sala de aula, e fui gostando, e ela também gostando do meu
trabalho, aí eu fui aprendendo, né? Sei que quando ela saiu de lá, aí ela falou pro seu
Guilherme que eu podia muito bem substituir ela, né? (Eva Mendes, 8 set. 2017).

Percebemos, então, que, nas comunidades onde não havia gru-


po escolar, as pessoas que se destacavam como líderes dos patrimô-
nios procuravam formas de funcionamento para as escolinhas, orga-
nizando-as com as pessoas do lugar que já tinham aprendido a ler e
escrever. É o caso de Eva Mendes, que, tendo estudado até a quarta
série em Luciara, estava apta a ser alfabetizadora em Santo Antônio,
onde ficou por três anos. “Aí terminou o final do ano e eu vim em-
bora aqui pra São Félix, foi 1970” (Eva Mendes, 8 set. 2017). Como

261
Vera Lúcia Paganini

São Félix já era uma localidade maior, distrito de Barra do Garças,


ela disse que ouvira falar que já tinha o ginásio. Então resolveu ir em
busca de mais estudos:

Trabalhava nesse hotel e à noite a gente estudava pra fechar a admissão. Para fechar
o primário naquela época a gente fazia admissão. Aí eu estudei admissão. Quem
era diretora do grupo naquela época era irmã Noêmia, irmã Irena era enfermeira
da Prelazia. E a irmã Irene foi diretora do gea. Quando eu vim pra cá os padres e
as freiras já tinham chegado. Aí eu fiz a admissão, terminamos, eu e meus colegas
formamos, teve uma formatura muito bonita, né? Foi no Cine Samira, né? Encheu
de gente o Cine, foi um sucesso e aquilo pra nós foi uma das melhores festas. Foi em
1971. Em 70 eu vim pra cá... (Eva Mendes, 8 set. 2017).

Sobre o estado da educação no início da década de 1970 na


região leste de Mato Grosso, Erotildes também relata sua atuação e
mostra a realidade local:

Aí, eu vim para aqui, eu cheguei no ano que o bispo chegou aqui, ainda era padre.
Aí o bispo foi lá em casa. Porque eu era a chefa. Eles tinham me nomeado como
diretora. O Severiano foi lá na escola e disse: — Agora você vai ser a diretora. Porque
essas professoras daqui também era igual às da Luciara, sabe? Não sabiam muito.
Do grupo escolar. Elas não sabiam muito. Aí eu cheguei e ele falou que eu ia ser a
diretora, o senhor Severiano das Neves. Eu te conheço, você é filha do meu compadre,
eu sei que você já foi professora em Luciara. Então vai ser diretora aqui agora. Era o
subprefeito. [...] Aí eu fui meter a cara pra fazer no que precisasse; aí o bispo pergun-
tou: — O que a cidade mais precisa? Eu falei: — A escola. Precisa de escola. Aí eu já
tinha formado uma turma de quarta série. Aí fizemos a maior festa para os alunos.
Tinha muita gente. Eles de uniforme, de quepe assim, aqueles enfrentantes assim das
coisas... (Erotildes, 13 set. 2017).

O processo de evangelização visando à resistência desenvol-


veu-se como um núcleo capaz de realizar práticas pedagógicas que
concretizassem a participação das massas, cujo trabalho pudesse for-

262
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

mar a consciência da necessidade de quebrar seus limites e, de forma


organizada, construir novas relações hegemônicas. Não foi pacífico
nem fácil. Segundo Filemon (9 mar. 2018), desde a emancipação de
São Félix do Araguaia, a Prelazia tornou-se uma força adversária que
procurava demarcar seu alcance e poder: “Então eles tentavam, eles
tentavam mudar a educação. Como eu tinha uma linha diferente,
opa, aqui não! Ou vocês vão pelo lado que a Secretaria Estadual diz
que tem que ser cumprido desse jeito ou vocês não me servem como
professores”. E a igreja, ao atuar nas escolas e agir efetivamente na
construção do Ginásio Estadual do Araguaia (gea), estava toman-
do a posição que sempre guiou as suas ações naquele lugar, seja no
trabalho dos agentes pastorais como professores das escolas públicas
oficiais, seja no trabalho de alfabetização de adultos que empreende-
ram nas Campanhas Missionárias.
Os agentes pastorais, em determinado momento, agiram como
intelectuais orgânicos, segundo Gramsci (2001), quando viveram
a experiência de conviver, enfrentar a realidade cotidiana dos tra-
balhadores e, ao mesmo tempo, levar a educação e a evangelização
utilizando recursos locais, na forma como os trabalhadores com-
preendiam, com os métodos de Paulo Freire. A atuação da igreja nas
questões do Estado às vezes servia de combustível para acirrar os
ânimos:

Então aí juntou essa turma, o bispo mandou buscar mais gente. Mais professores lá
de São Paulo. O Vaine, o João Reis, o Pedro Mario Sola (Pedrito), o padre José Maria
Garcia Gil, o Elmo Amado Malagodi, o Canuto... o Canuto tá aí (eu — sim falei
com ele), a Eunice, o Luiz. Aí eles foram ajudando, né, dar aulas de ginásio. [...] Não
eles começaram a lecionar assim, sem o Ginásio. Na escolinha, eu também fui aluna
porque eu não tinha feito o ginásio. Tudo lá na escolinha. A gente lecionava de dia na
primeira, segunda, terceira e quarta série e de noite todo mundo estudando. Quando
os alunos falavam que não iam estudar eu ia lá na casa deles, aí eu falava, gente, nós
é que fundamos o ginásio, não tem escola aqui, vocês são os precursores. Faz isso não,
não sai da escola não, vamos estudar, gente! Que é isso!? Aí todo mundo voltava. Eu
ia lá na casa, pelejava e eles voltavam. E não foi só uma vez isso não, heim? Até que
quando chegou no final do ano, o Elmo foi lá em Cuiabá já registrou o ginásio, para

263
Vera Lúcia Paganini

fazer a formatura... aí mandou já fazer uniforme. Foi bonito demais, sabe? [...] Aí
tinha dia que eles brigavam tudo, saía da escola, e o povo da rua também falava que
mulher casada não era pra estudar, mulher casada que fosse estudar, tava indo pra
namorar com os padre. E começou a me atingir, né? muita gente começou a me atin-
gir... porque não queriam que eu lecionasse aqui não. As outras professoras falavam
que o Severiano me apoiava, que eu cheguei depois que elas já estavam e eu queria
mandar em tudo. Eu ia mesmo, sabe? O que era preciso fazer eu fazia (Erotildes, 13
set. 2017).

Os grupos políticos de lideranças locais, com vistas à eman-


cipação dos distritos, viam a atuação da Prelazia como uma ameaça
aos projetos de desenvolvimento no setor econômico de produção
em larga escala e às apropriações de terra por empresas que visavam
ao desenvolvimento rápido. A Prelazia causaria, na visão desses gru-
pos, o atraso econômico da região. Ainda mais quando a construção
gea passou a ser um projeto popular com verbas de ongs e outras
associações ligadas à igreja.

Aí chegou a tia Irene. A tia Irene, a tia Irene era a secretária. Aí ela falou: — Vamos
começar a construir um prédio. Em 1969. Todo mundo foi fazer o ginásio, ajudar...
o povo da rua todinho. Aí foi outra coisa. Nós fomos estudar, no final do ano de
1972 fizemos a formatura no final do curso. Nós fizemos uma festa tão grande. Esse
prédio aqui do museu era um cinema. Da dona Olindina. Ela e o marido era uns que
mandava aqui (Erotildes, 13 set. 2017).

Mas essa não é a visão de todos os habitantes sobre atuação


da igreja, como já vimos nas falas de Filemon. A posição política
não basta para a atuação do intelectual orgânico. Sem dúvida, os
processos educativos foram decisivos nos blocos de forças que atua-
vam conflitivamente em busca de hegemonia. A Prelazia fortaleceu
a possibilidade da construção do bloco contra-hegemônico durante
alguns anos, o que acabou por atenuar as consequências dos conflitos
armados. Assim como Filemon, que, comprovadamente, é um cida-

264
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

dão atuante e que diz ter amor à própria terra e não pretender sair
dela, temos também registros de dois escritores/ jornalistas que de-
nunciam a igreja como responsável pelo atraso econômico da região.
Um deles enfatizou o seu repúdio ao bispo dom Pedro Casaldáliga e
à Prelazia, no prefácio da obra do já citado Kalixto Guimarães:

Utilizando as várias etnias como pressuposto de defender o índio de seus irmãos


brasileiros, os invasores vão fazendo o que bem entendem de um país desgover-
nado e alijado de sua soberania. É diante desses absurdos que o jornalista Kalixto
Guimarães escreve e publica esta corajosa obra, para mostrar o quanto se arquiteta
em nome do poder de mando das organizações estrangeiras. O livro é uma mostra
clara e meridiana que prova documentalmente que o Brasil trafega na contramão
da História. A nação está entregue aos desejos daqueles que entendem que somos
uma republiqueta de bananas. Por tudo isso, desejo externar o meu mais profundo
respeito à iniciativa do autor desta esclarecedora obra. Diante do óbvio, atrevo-me
a dizer que: a funai, ongs, Prelazia e o pt são focos coercitivos e, pasmem todos,
desta forma, eles, os mandarins no poder vão transformando a nossa Pátria em um
novelo de desordens e retrocessos (Oliveira, apud Guimarães, 2013, p. 9).

Analisando o intelectual formado na sequência da criação da


Prelazia, procuramos observar com mais atenção a sociedade civil,
uma vez que as relações da sociedade aqui estudada evoluem para
um estágio menos repressivo, voltando-se para o terreno burocráti-
co. Há uma estrutura material diferente e as lutas caminham para o
viés intelectual; são os chamados aparelhos de hegemonia, que não
estão necessariamente na política e são relativamente autônomos.

[...] Hoje a conjuntura tá tão diferente, tão diferente. Olha, às vezes quando eu saio
por aí, vejo os companheiros daquela época, estão tudo numa outra condição. Penso:
como é que pode o pensamento da gente mudar tanto assim? Que eu queira mudar de
situação econômica, social, isso é normal. Todos nós queremos. Agora eu não posso
deixar, se eu alcanço isso, se eu alcanço essa minha vontade, eu não posso fechar meus
olhos como se não existisse mais nada à minha volta. A região hoje mudou. Tá bem

265
Vera Lúcia Paganini

melhor, tá. Existem problemas? Existem, e mais complexos que daquela época. Então
eu não posso fechar os meus olhos. Os sindicatos estão voltados para si. Acabou. E vi-
rou mesmo uma coisa burocrática. Tem mais papel do que trabalho. Estão pelegando
para os poderosos (Maria José, 25 jul. 2017).

Se, durante um tempo histórico, houve uma organização social


e política que constituiu, de certa forma, uma homogeneidade dentro
das contradições e dificuldades, forças externas foram dissolvendo
esse bloco homogêneo. E essas forças externas se personificam no
enfraquecimento dos partidos políticos apoiados pela Prelazia nas
prefeituras da sua jurisdição; nas decisões tomadas a partir do início
dos anos 2000, como a saída do bispo dom Pedro e de vários agen-
tes de pastorais; e na presença mais efetiva da Secretaria Estadual de
Educação, por meio de órgãos regionais que levaram os métodos e
técnicas de ensino que deveriam ser adotados por todas as unidades
de ensino público.
O perfil dos professores de hoje é muito semelhante ao perfil
dos professores do estado de Goiás: existem os efetivos e os de con-
trato temporário. De modo geral, seguem o que a Secretaria orienta e
têm pouco contato com as equipes da Prelazia, a não ser os que ainda
são agentes pastorais. Mas, como disseram Eliseo Gobatto, Zecão e
Juarez Dayrell, eles não se entusiasmam em se reunir e planejar jun-
tos as ações de sala de aula.
Com a saída da “velha guarda” de agentes pastorais, os novos
vieram imbuídos de ideias que acabaram interferindo na dinâmica
cotidiana da igreja. Mesmo os participantes ativos demonstram ter
objetivos próprios, que nem sempre contemplam as necessidades co-
letivas. Vítor Manuel, de São Félix do Araguaia, jovem de 16 anos, é
um exemplo desse novo perfil. É da escola de animador missionário.
Segundo ele, de uma família de boa condição financeira, participa
seguindo o exemplo do pai:

266
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

Gosto de participar da igreja, estou no grupo de jovens, coordeno um grupo de pré-a-


dolescentes. Comecei participando da assembleia do povo e gostei muito. Continuei
porque acho que é uma forma de conhecer o mundo e abrir caminho para a faculda-
de. Meu pai sempre foi ligado à Prelazia, a minha mãe também. O pai é cordelista
(Vítor, 22 jul. 2017).

Percebemos que a participação dos jovens muitas vezes se deve


à influência de pais que são agentes pastorais, mas seus interesses
visam a outros objetivos. Por exemplo, Vítor acredita que partici-
par possa facilitar o ingresso na faculdade. É a forma como atuam
as organizações profissionais, a aparelhagem da comunicação e até
mesmo os sindicatos e, em certo sentido, a Igreja. Os intelectuais se
acastelaram cada um na sua individualidade e os consensos se fazem
mais por necessidade de convivência do que por convicções reais.
Mas, de qualquer forma, as evidências comprovam que a educação
e a política ainda são molas propulsoras da sociedade em geral e da
sociedade da Prelazia de modo particular.

Menos carabinas e mais palanques: o poder de convencimento


Os intelectuais que vieram como agentes pastorais em tempos
anteriores tiveram atuação decisiva para alcançar um grande número
de pessoas carentes de recursos materiais e de educação formal. A
fé (e talvez a boa-fé) do povo, frente às necessidades de modo geral,
tornou mais fácil a inserção dos agentes pastorais; a forma como che-
gavam à população também foi um facilitador. Ao se inserirem nas
comunidades como se fossem um deles, isto é, morando, vivendo e
trabalhando junto com os moradores da terra, como já vimos, inspi-
raram confiança.
O trabalho de evangelização e de alfabetização (principalmen-
te dos adultos) era concomitante e não dissociado. Foi possível ob-
servar que evangelização e letramento eram atividades interligadas.
Os discursos veiculados nos materiais de informação e de formação
traziam sempre um tom de responsabilidade social. E convidavam

267
Vera Lúcia Paganini

o povo a participar e a assumir compromisso com a comunidade. A


evolução do trabalho ampliou os caminhos na formação do “povo da
Prelazia” quando a atuação nas escolas começou a acontecer de forma
mais efetiva. Os intercâmbios entre os agentes e professores das uni-
versidades com formação específica (especialmente da Unicamp e da
ufmg) possibilitaram o desenvolvimento de projetos educacionais,
ampliando os processos pedagógicos que, com seu direcionamento,
envolviam o povo em questões políticas, sociais e de responsabilida-
de com o lugar em que vivia.
A partir do trabalho com esses processos pedagógicos, do en-
volvimento na formação de sindicatos e do apoio real nos confrontos
e nos embates dos pobres contra o latifúndio e as injustiças nas ques-
tões trabalhistas, os agentes pastorais foram adquirindo a confiança
das pessoas; assim, paulatinamente desenvolviam o trabalho de cons-
cientizar e evangelizar. A luta lado a lado, contada pelas entrevistas
analisadas, a alfabetização dos adultos, a continuidade do trabalho
educacional e o incentivo à resistência nos textos do Alvorada e em
outras publicações afins nos trazem comprovações de que, no tempo
em que agiram na região, esses formadores conseguiram estabelecer
uma conexão entre as pessoas e os lugares em que atuavam, de modo
a criar um sujeito coletivo unido por um objetivo comum.

Que todos eles participavam da luta da terra. Estavam brigando pela terra. Defen-
dendo o que era deles, né? E eles, a maioria deles, eram membros dessa cooperativa.
A maioria analfabeta. Alguns sabiam vagamente desenhar o nome, ne´? Mas leitura
não tinham. Uma coisa que eu me lembro, é que a gente fazia essa aula de alfabetiza-
ção à noite. E que a gente, não era muito longe, mas a gente tinha que se deslocar, do
povoado ali, para a área rural, das posses, né? (Tadeu, 12 set. 2017).

No fortalecimento das comunidades, o povo da terra — pos-


seiros, peões, índios, moradores dos povoados — ia assumindo a
liderança dos sindicatos, cooperativas e associações, instituições de
ensino, tornando-se líder dos conterrâneos. Como Eva Mendes, que
se tornou presidente da associação das mulheres, e Lourdes Jorge,

268
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

que foi secretária municipal de Educação durante os dois manda-


tos do prefeito Uslei Gomes. A eficácia do discurso se comprova na
medida em que compreendemos a formação de um consenso para
apoio de um partido político, no qual os municípios emancipados
uniram-se em torno de um partido e elegeram prefeitos que perten-
ciam ao “povo da Prelazia”.130 Entre os eleitos, havia agentes pastorais
vindos de fora, como Tadeu, Pontim e Cascão, mas também líderes
formados ali, pelos processos pedagógicos, educacionais empreendi-
dos pela igreja, como Diá e, posteriormente, Uslei Gomes.
Essa ocupação de poder governativo pelas classes consideradas
subalternas, formadas por quem estava na terra ou que era da terra e
tinha um poder aquisitivo bem menor, contra os donos de latifúndio
e seus apoiadores consolida a função conectivo-organizativa dos in-
telectuais orgânicos junto à massa aqui formada pelo “povo da Prela-
zia”. Oração, serviço e missão constituíam as bases da evangelização
colocada em prática pelos agentes pastorais. Mas a igreja que leva-
vam como projeto de vida não dissociava a evangelização dos com-
promissos sociais e políticos. Pelo contrário, evangelizar era uma for-
ma de participar ativamente na organização de conselhos, sindicatos
e atuar nas instituições que formam a sociedade civil e servem como
mecanismos de articulação de uma sociedade em funcionamento.
O que se configurava como um projeto contra-hegemônico
consolidou-se e alcançou alguma relevância nas últimas décadas do
século xx. Atravessado por forças internas e externas, todavia, não
conseguiu se manter no poder, inclusive por não alterar as condi-
ções efetivas de exploração do capital na região. O que parece uma
contradição, já que o cenário geral da América Latina, na entrada do
século xxi, com o fim das ditaduras, de certa forma era propício aos
governos de esquerda. A influência externa aparece nas tendências
democratizantes de centro-esquerda que se tornaram componente

130 Os nomes citados acima são dos ditos “prefeitos da Prelazia”, que ocuparam as prefeitu-
ras dos municípios emancipados entre as décadas de 1980 e 1990, e, alinhados ao governo
do estado do Mato Grosso (que na década de 1980 era oposição ao federal), empreenderam
um projeto social relevante e trouxeram melhores condições sociais e qualidade de vida aos
menos favorecidos da região.

269
Vera Lúcia Paganini

fundamental no movimento histórico desse período. Porém, inicia-


tivas neoliberais no mercado externo e ações do governo federal na
salvação das economias internas criaram novas situações de disputas
e transições.
No Brasil e em grande parte da América Latina, os regimes
ditatoriais foram enfraquecendo. Enquanto a organização popular se
fortalecia pelos sindicatos, associações e movimentos sociais engaja-
dos, as correntes democráticas ganhavam força:

Entre 1979 e 1990, mais de uma dezena de países latino-americanos viveram a


transição democrática: na América do Sul, por exemplo, o fim do regime militar
ocorreu em 1982, na Bolívia; em 1983, na Argentina; em 1984, no Uruguai; em
1985, no Brasil, e em 1988 no Chile. [...] No entanto, ainda que existam muitas
especificidades nas histórias dos regimes militares latino-americanos e em suas
respectivas experiências de transição, pode-se afirmar que, em termos gerais, o
processo de democratização foi invariavelmente marcado por muitos conflitos e
negociações, ocorridos durante e após o fim das ditaduras (Villaça, 2018, p. 1).

O que deveria ser um cenário propício à continuidade de go-


vernos municipais e estaduais voltados para as camadas populares
não se realizou na região da Prelazia. E os anos 2000 tiveram, logo no
início, um governo muito voltado para o agronegócio (Blairo Maggi),
especialmente a monocultura da soja, no estado do Mato Grosso, que
incentivava e trabalhava para a produção agroindustrial. As estrutu-
ras de poder econômico sob influência de políticas nacionais e com
outra forma de investimentos dos governos democráticos na produ-
ção agropecuária aos poucos voltaram ao cenário da política local
com novas características.
Esse incentivo à produção da soja, que já era cultivada no Sul
em larga escala desde décadas anteriores, recebeu reforço do governo
federal e apoio da Embrapa na pesquisa de melhoramento de grãos.
Isso intensificou a migração dos sulistas. Os investimentos na pesqui-
sa de adaptação dos grãos a solos de clima quente chegaram às terras

270
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

de Mato Grosso, que passavam por uma espécie de “recolonização”.


Os antigos latifúndios adquiridos pelos arranjos dos governos mi-
litares estavam sendo vendidos ou mesmo abandonados pelos her-
deiros que não tinham interesse em enfrentar questões legais como
demarcações de terras indígenas ou legalizações de documentos de
propriedade e outras situações em que havia mais de um dono titula-
do para as mesmas terras.
Começou um novo cenário com novos proprietários em al-
gumas regiões, entre elas a da Prelazia. Conforme um entrevistado,
proprietário de terras e político da região, aquelas terras com que o
governo “[...] contemplava com títulos definitivos os coronéis que
ajudaram a desbravar o Mato Grosso” (José Eurípedes, 2017) esta-
vam sendo revendidas a preços baixos ou mesmo abandonadas:

Estas pessoas respectivamente retornaram a seus estados, não interessados pelas


terras venderam estes títulos, ou deram para alguém da família que eram novos e
tinham coragem para enfrentar as dificuldades daquela época e estes títulos foram se
desfazendo em escrituras e daí os documentos atuais. Faz lembrar que ainda existe
áreas de terras brancas com documentação montada, e as terras indígenas, que na
realidade não são “deles”, é da “União”. Índio é posseiro da União. São áreas demar-
cadas dando o direito a eles de sobrevivência nada mais que isto (José Eurípedes, 17
ago. 2017, destaques do autor da entrevista).

As chamadas “terras brancas” citadas pelo entrevistado eram/


são lotes de terra que, embora tenham documentação de proprie-
dade, não tiveram sua posse reclamada por seus donos. E também
existem os pequenos proprietários que ou eram/são assentados pelo
Incra, ou posseiros por invasão:131

131 É considerado posseiro por invasão, de acordo com o entrevistado, aquele que se
apropria de terras que não consideradas produtivas e constituem o que denominam áreas
brancas que, segundo o Dicionário Ambiental são terras devolutas: “Terras devolutas são
terras públicas sem destinação pelo Poder Público e que em nenhum momento integraram
o patrimônio de um particular, ainda que estejam irregularmente sob sua posse. O termo
‘devoluta’ relaciona-se ao conceito de terra devolvida ou a ser devolvida ao Estado” Disponí-

271
Vera Lúcia Paganini

Existe aqui dois tipos de posseiros, um assentado pelo Incra e outros por invasão em
áreas brancas ou nunca procuradas pelos legítimos donos. Os conflitos não existem
mais. Antes os mais espertos grilavam, colocavam pistoleiros, hoje não tem mais
invasão. [...] Eu cheguei em Mato Grosso em 1984, aqui estava em fase de desenvolvi-
mento, terras baratas, muitas dificuldades. Mas deu tudo certo e estou até hoje (José
Eurípedes, 17 ago. 2017).

O repovoamento de terras de área branca também foi feito pela


venda/revenda de lotes a quem chegasse e quisesse cultivar a soja.
Estímulos estaduais trouxeram os colonos para a produção em larga
escala, principalmente de regiões do Sul do Brasil.

A introdução da soja para além dos estados da região Sul só foi possível devido ao
desenvolvimento de cultivares adaptados ao clima mais quente. A adoção de téc-
nicas de plantio direto também contribuiu para a inserção do grão na agricultura
das regiões, Centro Oeste, Nordeste e Norte. O fato de que a soja permite a fixação
no solo de nutrientes essenciais para o plantio de outras culturas, como o feijão
e o milho, foi um aspecto positivo para a sua expansão no Brasil, pois permitiu a
adoção de uma entressafra produtiva. O desenvolvimento de cultivares tolerantes
a herbicidas chega ao Brasil em 1995, quando o Governo Federal aprova a lei de
biossegurança permitindo então o cultivo de plantas de soja transgênicas em ca-
ráter experimental. A lei é atualizada em 2005, regulamentando definitivamente o
plantio e a comercialização de cultivares transgênicas no Brasil (Aprosoja Brasil,
2018).

Com incentivos ficais do governo e outras decisões, como as


relativas aos cultivares transgênicos trazidos pelos sulistas em grande
quantidade para várias regiões de Mato Grosso, os grãos passaram a
ser produzidos em escala de grande comércio e houve uma explosão
de desenvolvimento agropecuário, com novas técnicas de plantio e
novas tecnologias de produção a partir da primeira década do século

vel em: https://www.oeco.org.br/dicionario-ambiental/27510-o-que-sao-terras-devolutas/.


Acesso em: 1 jun. 2020.

272
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

xxi. Ao contrário dos que chegaram como pequenos posseiros, sem


nenhum planejamento, nos anos 1960, 1970 e daí em diante, os do
Sul já vinham com objetivos bem definidos, com o dinheiro da venda
das suas propriedades para comprar terras em Mato Grosso e, como
foi dito por José Eurípedes (2017), encontravam terras baratas. Tra-
ziam maquinários, recursos de produção diferentes e outra cultura.
Sobre isso, dom Adriano Vasino132 explicou em entrevista:

A migração maciça do Sul, aqui na nossa região começa em Querência né, Vila Rica,
foi no, começou em 82. A entrada mesmo. Mas se firmou na segunda metade dos anos
80. E a organização como cidades foi no final dos anos 80. Então na década de 90 é
que houve esta presença efetiva do pessoal do Sul que mudou o perfil. [...] O modo
de ver a experiência religiosa do povo do Sul é muito mais estruturada, e muito mais
independente e nem sempre casa com o estilo da Prelazia. Eles traziam os próprios
padres... (Dom Adriano, 21 jul. 2017).

Percebemos, assim, que outras configurações na Igreja Católica


foram se misturando às práticas religiosas e modificando o cotidia-
no das pessoas. Coincidindo com essas mudanças na Prelazia, como
já mencionado neste trabalho, aconteceu a passagem de dom Pedro
Casaldáliga à posição de bispo emérito em 2004, aposentado por de-
terminação do Código de Direito Canônico. E também a decisão de
muitos agentes pastorais, que estavam na Prelazia desde a década de
1970, de voltar para seus lugares de origem.

Outros tempos, outros formatos, outros poderes


Segundo José Raimundo Ribeiro da Silva, o Zecão (diácono
permanente que chegou à Prelazia no início dos anos 1980), o projeto
desenvolvido, que teve como suporte a figura de dom Pedro Casaldá-
liga, não poderia resistir a outras visões. Porque era muito específico,
com uma forma peculiar. Nessa conversa, além de falar do trabalho

132 Atual bispo da prelazia de São Félix do Araguaia.

273
Vera Lúcia Paganini

do bispo, ele afirma que está tudo mudado e que gostaria que o tra-
balho fosse como antes, em comunidade. Antes, todos planejavam
juntos e depois iam às comunidades, onde ficavam por algum tempo
prestando assistência de evangelização, mas também de educação e
saúde, e procuravam ajudar na resolução dos conflitos. Atualmente,
as comunidades estão se transformando em paróquias. Ele diz que as
paróquias são pequenos núcleos independentes que não se relacio-
nam, necessariamente, entre si. Assim, o trabalho comunitário vai
ficando de certa forma fragmentado:

No início você falava assim, Vera, um sujeito, né, que impulsionou essa região. Então,
eu voltaria, queria voltar assim, esse coletivo, esse sujeito coletivo que impulsionou
essa região, que desencadeou um processo de construção da sociedade civil, chama-se
Prelazia de São Félix do Araguaia. Porque na instalação da Prelazia aqui, e anterior-
mente com a chegada de Pedro em 30 de junho de 1968, a Prelazia assumiu até então,
até meados da década de 1980, o papel de suplência de um Estado falido, porque
desde a saúde, a educação, a organização do povo, tudo era Prelazia. A educação
teve papel fundamental, na perspectiva freiriana. Vamos pegar como base a “Peda-
gogia do oprimido”, vamos pegar então para abrir os olhos do povo, não é? Nesse
entrelaçamento de educação e evangelização. Mas uma evangelização, não com uma
conotação intimista de uma igreja voltada para dentro dela mesma, mas uma igreja
aculturada, abraçando os rostos dessa igreja, que submergiam. Que era o rosto do
negro, do indígena, o rosto da mulher marginalizada, a mulher que era trazida assim
como o peão, né? Os peões para trabalhar nas fazendas e a mulher para trabalhar nos
bordéis (Zecão, 25jul. 2017).

A entrevistada dona Juliana Oliveira também afirma que a


igreja mudou muito, que não há mais muita participação. Ela mora
em Canabrava, mas nós conversamos em Porto Alegre do Norte, du-
rante um estudo para agentes pastorais.

A participação da igreja? Ela num é muito boa não. Mudou muito. Tem dia que tem
muita gente, mas tem dia que tem três quatro pessoa. O que nós espera é que ela

274
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

melhora. Nós tá trabalhano, batalhano pra vê se um dia bota ela melhor, né? É assim,
não adianta a pessoa dizer: eu sou católico, mas num é assim. Se você não vai na
igreja, se num faz uma oração, cê num é católico. Cê é daqueles ateu à toa.[...] todo
dia que cê fala: fulano, vamo pra igreja e num vai, num adianta. [...] Por que isso
acontece? Os gaúcho e os evangélico (risos) (Juliana Oliveira, 21 jul. 2017).

De acordo com a entrevistada, além da igreja diferente dos


gaúchos, há também um grande número de igrejas evangélicas pen-
tecostais que influenciam as ideias dos católicos. Assim, podemos
afirmar que, apesar dos esforços de sindicatos, associações e agentes
pastorais, o território não é mais o mesmo. Conforme José Eurípe-
des (2017), uma das vantagens é que não há mais conflitos arma-
dos. Consideramos que, com a atuação do intelectual orgânico, isto
é, os sujeitos coletivos que se constituíram e constituíram a Prelazia,
foi possível criar um consenso, produzido pela formação crítica das
massas, em torno de um projeto. Por meio desse consenso, realizado
paulatinamente no trabalho de evangelização, no enfrentamento de
conflitos e nas experiências vividas nos processos pedagógicos da es-
colarização, especialmente dos adultos, pode-se dizer que, em certo
momento, o modelo socialista se adensou, embora não conseguisse
fazer frente ao modelo capitalista; mas, em algum momento, preva-
leceu a contra-hegemonia da classe que não era dominante, mas tor-
nou-se dirigente.
Os mecanismos utilizados para criar o consenso em torno des-
sa sociedade ao mesmo tempo comunitária e de direito basearam-se
na busca de conscientização da massa quanto à luta para garantir o
direito, através da reunião em comunidades que formaram um su-
jeito coletivo fortalecido. A sociedade do direito aparece quando se
discute terra, índio e pequeno produtor, e uma das primeiras ações
nesse sentido foi a produção da “Carta pastoral” (1971),133 cujo con-
teúdo denunciava as injustiças contra a terra e contra o homem sem
recursos materiais de sobrevivência, escravizado para o trabalho;

133 Disponível em: http://servicioskoinonia.org/Casaldaliga/cartas/1971CartaPastoral.pdf.


Acesso em: 1 jun. 2020.

275
Vera Lúcia Paganini

denunciava também as invasões e o extermínio dos índios bem no


início da década de 1970. Assim, a igreja da Prelazia se posicionava
frente à classe dominante do momento.
As massas, de certo modo, foram formadas e conduzidas pe-
los consensos que foi possível estabelecer. Na medida em que esses
consensos vão se rompendo, os intelectuais perdem a conexão com
as massas. Mas onde esses consensos se romperam? Isso está situado
no campo da política. A partir das últimas décadas do século xx,
com o novo cenário de democracias restabelecidas pelo fim das di-
taduras, o interesse do coletivo foi dando lugar aos interesses indivi-
duais, tanto para os que atuavam como para as massas, que, segundo
Gramsci (2001), também são conservadoras. As massas também são
individualistas.
Pesou sobre o projeto societário, a partir da segunda década do
século xxi, como já dissemos, uma ideologia individualista. Então,
aquela construção discursiva, a narrativa de uma comunidade maior,
totalmente envolvida, perdeu terreno na igreja para a formação das
paróquias, com uma estrutura territorial e de poder independente e
um líder que exerce o seu domínio naquele pequeno território.
As paróquias são circunscrições eclesiásticas territoriais que
compreendem os fiéis de um determinado território cujo local de
culto é uma igreja. E essa igreja é entregue a um pároco/ padre que
tem responsabilidades sobre ela como se fosse um domínio particu-
lar. Várias paróquias compõem um bispado, uma diocese, uma pre-
lazia. A prelazia de São Félix sempre foi diferente. Constituía-se por
uma grande comunidade evangelizada pelas campanhas missioná-
rias, onde todos participavam das discussões e decisões diretamente
com as equipes pastorais e o bispo. Muitos seguidores dentro da pre-
lazia de São Félix do Araguaia pensam que, se houver territorializa-
ção paroquial, ocorrerá a fragmentação da ideia de coletividade, que
não conseguirá mais se sustentar.
Os participantes reconhecem que é preciso lutar sempre nas
bases da conscientização e da educação do povo. Muitas possibi-
lidades foram criadas a partir da Constituição de 1988, na qual as

276
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

questões sociais foram tratadas com mais abertura e com abordagem


mais real. As leis são bem-elaboradas. É preciso eficácia no seu cum-
primento, que, como sabemos, dificilmente se efetiva. Com o tempo,
as associações foram se dissolvendo e as iniciativas coletivas se indi-
vidualizando. Há sobreposição de projetos e, notam-se mais fortes,
dentro dessa sociedade, as ações e ideias capitalistas. Podemos dizer
que, independentemente do partido ou força governativa que esteja
no poder, o capitalismo tem maior voz.

[...] então, se pensava nessa ansa como mola propulsora da formação da educação
popular, e essa ansa que hoje tá aí, né, fomentando a formação da agricultura fa-
miliar, enfim, são n coisas que a gente sabe que tem um trabalho de perspectiva de
perpetuar esse trabalho que foi. Então, com emoção eu lembro da mulher visionária
que foi a Tia Irene, e hoje contemplando aí na apresentação do pessoal a gente vê
assim, tanta coisa em cada setor, o caminhar da história (Zecão, 24 ago. 2017).

Zecão mostra, no que está dito e no que está insinuado quando


diz “tanta coisa em cada setor, o caminhar da história”, e na emoção
com que se expressa, que esse discurso traz a memória de experiên-
cias vividas, diferentes das experiências atuais. Parece se ressentir
do desenvolvimento econômico e social pautado pela setorização
da instituição, pelo aumento do comércio e do consumo, que visa
ao lucro individual, e, no âmbito mais geral, pela dissolução dos su-
jeitos coletivos em detrimento da valorização da individualidade e
da relativização dos valores públicos. Esse comportamento resume o
ambiente diversificado e contraditório em que se encontra a Prelazia.
Mas, como ele mesmo afirma, é o caminhar da história.
Foi possível depreender de tudo isso que a formação foi fun-
damental para que o povo organizasse a resistência e o projeto con-
tra-hegemônico pudesse se concretizar. O caminho da escolarização
para os trabalhadores foi/é um instrumento para elaborar intelec-
tuais de diversos níveis e também para elevar o nível cultural e inte-
lectual das massas. O aprendizado da leitura e da escrita atuou decisi-
vamente no processo de reforma intelectual e moral (Gramsci, 2001),

277
Vera Lúcia Paganini

capacitando-os para a compreensão da necessidade de se libertar e


fazer o próprio caminho.
A escolha de Gramsci como suporte teórico para esta discus-
são foi imprescindível, porque sua teoria representa uma importante
contribuição ao aprendizado da luta e do incansável trabalho de re-
sistir. Trata-se de uma resistência ativa porque não se limita a efetuar
a crítica mostrando os limites, insuficiências e equívocos no trans-
curso do conhecimento do objeto estudado. Vai além, instrumentali-
za-os com verdades consistentes capazes de orientar a prática numa
direção transformadora.
Ao conceber o nosso trabalho nesta linha de pensamento, rea-
lizamos uma aproximação entre ideias e campos cronotopicamente
diferentes (Itália do início do século xx e Brasil-Mato Grosso-Prela-
zia de São Félix do Araguaia na segunda metade do século xx), mas
que possuem convergências sustentáveis. A nossa ideia de intelectual
é abrangente e foi identificada nas atividades de alfabetização na edu-
cação popular, nas trocas de experiências cotidianas do trabalho com
a terra, nas lides domésticas e sociais, e estava presente em todos os
setores porque havia um esforço da igreja em empreender um pro-
grama de evangelização que alcançasse e conscientizasse as pessoas
dos seus direitos e dos seus deveres de indivíduos livres. Trabalhamos
com a acepção do intelectual tradicional quando observamos um
formador que se deslocou da sua terra, em outras regiões do Brasil,
e veio para o nordeste do Mato Grosso (ou para a Amazônia Legal,
como foi chamada a região de povoamento induzido pelo governo,
a partir da década de 1970) com a intenção de trazer conhecimento
sistematizado por meio do trabalho como agente pastoral.
Identificamos o intelectual orgânico no comportamento dos
sujeitos de pesquisa na vida particular e social de uma sociedade ru-
ral de camponeses que buscavam/ buscam formas de defesa na dis-
puta da terra. Para compreender a vida coletiva dos sertanejos e as
configurações de desenvolvimento nela existentes, é preciso se apro-
fundar na análise dessa subordinação efetiva aos intelectuais. Assim,
não é possível afirmar que a conexão/ organização entre os intelec-
tuais e as massas tenha realmente se materializado. É mais coerente

278
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

dizer que, apesar de trabalharem lado a lado, os intelectuais agiram


mais como condutores nas decisões.
Nesse sentido, o nosso ponto de vista converge com o que
Gramsci (2001, p. 23) expõe quando fala sobre o desenvolvimento
orgânico das massas camponesas: “[...] todo desenvolvimento or-
gânico das massas camponesas, até um certo ponto, está ligado aos
movimentos dos intelectuais e deles depende”. No Brasil, como em
outras partes do mundo, o capitalismo muitas vezes lança mão do
trabalho escravo, ou em regime de escravidão, para conseguir o má-
ximo de lucro com o mínimo de gastos. E, muitas vezes, pessoas me-
nos instruídas na educação formal e/ou com nenhum recurso finan-
ceiro se sujeitam a esse tipo de arranjo para suprir as necessidades
básicas. A pesquisa comprovou que é uma prática que aconteceu e
possivelmente ainda acontece na região do nosso objeto de estudo e
em outros lugares do Brasil. Por isso, a convivência com os intelec-
tuais vindos de fora foi imprescindível para que a troca de saberes e
de experiências instrumentalizasse o camponês nos enfrentamentos
de conflitos. Afirmamos que a “instrumentalização”, de ambos os la-
dos, foi eficaz e produziu os intelectuais orgânicos que, nos embates
do dia a dia, defendiam si mesmos e a comunidade da forma como
lhes era possível. E, ainda, confirmamos que, em determinado mo-
mento histórico, o projeto contra-hegemônico se consolidou e tor-
nou possível uma política de cunho social com algumas garantias
conquistadas.
Outros estudos e pesquisas que têm sido feitos sobre a Prelazia
confirmam que houve de fato uma tentativa de construção desse pro-
jeto contra-hegemônico, que não se encontra em todos os pontos de
conflito no Brasil. Isso está materializado sobretudo na compreensão
desse coletivo conscientizado que precisa fazer intervenção por meio
da política. O caminho da política foi uma decisão importante na
construção dessa resistência.
O tempo todo lidamos com narrativas que trouxeram dados
e informações para nos mostrar que tanto os agentes pastorais que
chegaram de fora como os que foram se formando ali, nas trocas de
experiências, em algum momento agiram de fato como intelectuais

279
Vera Lúcia Paganini

orgânicos. Fizeram o papel de mediadores, aqueles que atuam na so-


ciedade, ou seja, são elos fundamentais para promover transforma-
ções sociais. E, nesse papel, são simultaneamente mestres e aprendi-
zes; estão ao mesmo tempo na condição de teóricos, que elaboram o
plano de ação, e de executores, que caminham ombro a ombro com
todos os envolvidos no projeto de vida onde se inserem. É a manifes-
tação genuína da práxis. É o corpo de liderança que estabelece a rela-
ção de organização e conexão entre a massa e desempenha a função
de ligar a lógica de Estado à disputa de um poder, isto é, outra forma
de organização societária.
Para Gramsci (2001), o intelectual orgânico é o que age, atua,
participa, ensina, organiza e conduz, que, enfim, se imiscui e ajuda
na construção de uma nova cultura, de uma nova visão do mundo,
de uma nova hegemonia. Esse intelectual se contrapõe àquele que
fica preso às teorias, mas não se aproxima da prática. Em sua obra,
Gramsci não apenas defendeu o engajamento do intelectual, mas
formulou um novo modelo, construindo um método que indica ser
necessário tirar os intelectuais das academias e colocá-los no cen-
tro da ação política. Assim, o intelectual que encontramos atuando
nas comunidades da Prelazia justifica a afirmação de que a formação
política empreendida pelos agentes pastorais e membros atuantes
das comunidades realmente construiu uma resistência e possibilitou
uma experiência contra-hegemônica naquele território.
A Prelazia, no seu momento primordial, por questões de so-
brevivência, viu-se obrigada a refazer os processos teológicos ao
olhar para a realidade encontrada pelos seus padres e agentes. A op-
ção por experiências de libertação levou-a a assumir posicionamen-
tos que, para além do campo religioso, influenciaram o campo social
e o campo político com um modelo de igreja feito a partir de uma
realidade de tensionamento entre capital e trabalho. O seu momento
de consolidação pode ser considerado a constituição de associações
e sindicatos, e mesmo a tomada de posição política ao apoiar a elei-
ção de representantes para as prefeituras de cidades da sua jurisdi-
ção religiosa. Talvez tão político quanto teológico, pode-se dizer que
esse foi o momento em que ficaram mais evidentes essas práticas de

280
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

libertação, que se tornaram tão fortes no mapa latino-americano, es-


pecialmente nas últimas décadas do século xx.
Embora seja inegável que tenha havido um processo de resis-
tência e, consequentemente, de libertação, os documentos, sobretu-
do o relatório do Levantamento Pastoral do Iser,134 também revelam
que a ação não se deu sem contradições. Isso mostra um fenômeno
comum no século xx. É a perspectiva da seita descrita por Weber
(1987) quando fala dos separados, íntegros e escolhidos, apartados
dos “falsos”. Essa ideia se estendeu, especialmente na segunda meta-
de do século, para outros setores, como os sindicatos, por exemplo;
os trabalhadores que não aderiam eram chamados de “pelegos” dos
patrões; os sem-terra que não aderiam aos projetos coletivizadores
eram rejeitados e tachados de individualistas.
Com o tempo e a chegada de imigrantes às zonas urbanas, in-
tensificaram-se o afastamento e as contradições. O discurso adotado
é universal, afinal a salvação é para todos, contudo a prática pastoral
privilegiava alguns setores da Prelazia, os que participavam e desem-
penhavam funções nas comunidades. Nesse sentido, ficam dificul-
tadas as aproximações e a possível integração entre antigos e novos
membros — o que também é motivo de conflito interno entre os que
acreditam numa possibilidade de trabalho cristão menos radical e os
que alegam que todas as dificuldades enfrentadas pelos membros da
Prelazia, em momentos anteriores, não devem ser banalizadas. E, as-
sim, assumem um papel de bastiões da moralidade, legitimado pelo
peso social da instituição que representam.
Mas as contradições também fazem parte do processo. E dele
surgem sujeitos com posicionamentos variados, muitas vezes anta-
gônicos, mas que se forjaram nos conflitos e, a seu modo, buscaram/
buscam o progresso da sua região. E os aqui denominados sujeitos
de enfrentamento constituem uma identidade de resistência, já ob-
servada por outros pesquisadores, como a professora Heloísa Gentil.

134 Levantamento Pastoral, elaborado pelo Instituto de Estudos da Religião, Rio de Janeiro,
1990.

281
Vera Lúcia Paganini

Em sua tese, ela destaca o papel desse sujeito coletivo que consegue
dar visibilidade aos excluídos da chamada história oficial:

Através desta pesquisa encontramos elementos que nos apontam a constituição


de uma identidade de resistência na região do Médio Araguaia: grupos sociais no
contexto de dominados no contexto sociopolítico e econômico maior e que vão,
através de sua própria história, construir uma forma de viver fundamentada em
princípios nem sempre os da classe dominante, tornam-se visíveis, adquirem a for-
ma de movimentos sociais posto que, através de suas ações, muitas vezes localiza-
das e em torno de questões que muitas vezes parecem necessidades momentâneas,
vão colocando em cheque todo o sistema, construindo uma possiblidade alterna-
tiva. Muitas vezes são princípios opostos àqueles dominantes, ou de certa forma
re-significados, como nos tem parecido o conceito de cidadania que orientou as
relações do Araguaia com as políticas públicas, no caso em estudo as educacionais
(Gentil, 2002, p. 119).

Apoiamo-nos nas palavras de Gentil (2002) para confirmar a


existência de um sujeito coletivo que transformou, em certo momen-
to, a situação social do povo. Confirmamos a ideia de que nesta e/
ou em outras localidades da parte norte do Brasil, durante a segunda
metade do século xx, houve confrontos e disputas por terras, moti-
vados pela política governamental de povoamento de regiões com
baixa densidade demográfica e menor desenvolvimento econômico
no aspecto capitalista.
O paradigma de desenvolvimento do país, especialmente no
que se refere ao campo, como no processo de modernização da agri-
cultura, gera esses conflitos através das formas de concentração e de
exclusão. A estratégia da modernização adotada pelo governo teve
como objetivo básico o aumento da produção e da produtividade da
terra e do trabalho. O modelo hegemônico não modificou a estru-
tura fundiária, pelo contrário, confirmou a opção por um modelo
concentrador, que começou a ser implantado a partir de 1970, com
a soja, e depois com o avanço das lavouras de cana-de-açúcar para a
produção de combustível. Esses cultivos, altamente capitalizados e

282
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

multiplicadores de capital, se expandiram pelas regiões centrais do


país, em substituição a cultivos tradicionais. A terra e os modos de
produção foram os principais pontos de conflito tratados aqui.
Parafraseando Martins (1995), podemos dizer que, nesse caso,
o avanço do capitalismo não dependeu da abertura de um espaço
livre para a ocupação do capital. O trabalhador já era expropriado.
Foi o próprio capital que, com a crise do trabalho escravo, instituiu
a apropriação camponesa da terra; uma contradição evidente num
momento em que o capital necessitava de força de trabalho, e se be-
neficiou de trabalhadores destituídos de sua própria força de traba-
lho. Por essa razão, o nosso camponês não é um enraizado. Ao con-
trário, o camponês brasileiro é desenraizado, é migrante, é itinerante.
Possivelmente é essa falta de enraizamento que ainda alimenta
um círculo vicioso que já deveria ter sido extinto, por exemplo, com
uma reforma agrária equânime, que não privilegiasse o capital em
detrimento do trabalho, uma vez que as suas relações são interde-
pendentes; evitaria a prática do trabalho escravo. Mesmo que tenha
suavizado a situação do conflito armado, que pelo menos não é tão
generalizada como já foi antes, os problemas de injustiças sociais e
confrontos localizados persistem. Em se tratando do nosso objeto de
pesquisa, o Alvorada continua a noticiar tais problemas. E eles con-
tinuam existindo. Ao que parece, a hegemonia do capital continua a
se sobrepor ao trabalho.

Referências
ALVORADA. Impresso da Prelazia de São Félix do Araguaia-MT. Arquivo do Cen-
tro Pastoral de São Félix do Araguaia “Tia Irene”, 1970-2013.

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nível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1824-1899/constituicao-
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283
Vera Lúcia Paganini

______. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. 35. ed. Brasília: Câ-
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tifúndio e a marginalização social. São Félix do Araguaia, 1971. Disponível em:
http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/dompedro/01CartaPastoralDomPe-
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Pesquisadores e Professores de História das Américas (anfphlac). Disponível em:
http://anphlac.fflch.usp.br/redemocratizacao-apresentacao. Acesso em: 4 jul. 2018.

WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. M. Irene de Q.


F. Szmrecsányi e Tomás J. M. K. Szmrecsányi. 5. ed. São Paulo: Livraria Pioneira
Editora, 1987.

284
E ntre missais e carabinas : O poder do discurso ou o discurso de poder ?

Entrevistas
21 jul. 2017 – Bispo dom Adriano Vasino.

25 jul. 2017 – Maria José Souza Moraes, advogada da Prelazia.

17 ago. 2017 – José Eurípedes Alcântara, político da região – Roteiro enviado pelo
correio.

1 set. 2017 – Professor José Raimundo (Zecão), São Félix do Araguaia.

8 set. 2017 – Professora Águeda Borges e professora Eva Mendes, São Félix do
Araguaia.

9 set. 2017 – Agente pastoral Luzia Bento.

11 e 13 set. 2017 – Erotildes Milhomem, escritora, Museu Histórico de São Félix


do Araguaia.

12 set. 2017 – Tadeu Escame, agente pastoral, funcionário do Incra.

29 mar. 2018 – Eva Mendes (segunda parte) e Filemon Limoeiro, São Félix do
Araguaia

21 jul. 2017 – Bispo dom Adriano Vasino e dona Juliana Barbosa de Oliveira, agen-
te pastoral.

22 jul. 2017 – Vítor Manuel, agente pastoral.

24 jul. 2018 – Zilda Martins Souza, arquivista, Goiânia.

285
CAPÍTULO 10
C artas do cárcere e a educação da
infância

Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

Introdução

“Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao


contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”.

Karl Marx (1978)

Compreender a amplitude, a profundidade e a potencialidade


da obra de Antonio Gramsci (1891-1937) é o desafio de seus intér-
pretes e inúmeros pesquisadores. No Brasil, essa empreitada passa
necessariamente pela questão do acesso à obra, o que envolve pro-
cessos de tradução, organização e disponibilização dos conteúdos.
Isso posto, o objetivo aqui é realizar uma primeira aproxima-
ção à concepção gramsciana de educação da infância. Tal proposta
parte do pressuposto de que há em Gramsci uma discussão sobre a
aprendizagem e o desenvolvimento da criança e de que nessa elabo-
ração ecoam princípios e fundamentos que evidenciam, ainda hoje,
força e vigor de análise. A intenção é mapear a concepção de educa-
ção da infância mediante as discussões e orientações de Gramsci no
que diz respeito à educação de seus filhos e de sua sobrinha Edmea.
Para isso, recorreu-se às cartas escritas durante o período do
cárcere, especificamente o epistolário traduzido e disponibilizado
pela editora Civilização Brasileira nos volumes 1 e 2 das Cartas do
cárcere (2005a, 2005b). Trata-se de correspondências enviadas por
Gramsci a seus familiares e organizadas segundo período em que fo-
ram escritas, compreendendo o intervalo de 1926 a 1937.

287
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

O levantamento das cartas foi realizado a partir do sistema de


busca existente na barra de ferramentas do software Adobe Acrobat
Reader, usado para visualização de pdfs. Utilizaram-se duas chaves
de busca: as palavras Delio (filho mais velho de Gramsci) e Edmea
(usou-se o termo Mea, apelido usado por Gramsci para se referir à
sobrinha). Nesse primeiro levantamento, chegou-se a 167 cartas en-
viadas por Gramsci, no período de 1926 a 1937, em que há ocorrên-
cias das palavras Delio ou Mea. No processo de leitura, duas cartas
foram descartadas por não terem, em seu conteúdo, as palavras elen-
cadas como chaves de busca.135
Assim, chegou-se a 165 cartas com menção ao filho ou à so-
brinha. Dessas, 49 foram enviadas a Giulia (esposa de Gramsci), 43 a
Tatiana (cunhada,) 32 a Giuseppina (mãe de Gramsci), 23 para Delio,
seis para Carlo (irmão), quatro para Teresina (irmã), três para Giu-
liano (filho de Gramsci), três para Grazietta (irmã), uma para Clara
(dona da casa onde Gramsci vivia na época da prisão) e uma carta
endereçada a Giulia e Tatiana.
É importante destacar que a concepção gramsciana da educa-
ção da infância não está restrita a essas 165 cartas. A fertilidade dessa
discussão estende-se aos Cadernos do cárcere (Gramsci, 2001, 2002a,
2002b, 2002c, 2007, 2017), aos Escritos políticos (Gramsci, 2004a,
2004b) e, talvez, a outras cartas que, segundo o critério aqui adota-
do, foram descartadas, além de cartas e textos gramscianos de difí-
cil acesso. Para este momento, aceitando os critérios já descritos, na
vasta produção gramsciana, o recorte se dá a partir dessas 165 cartas.
Recorreu-se também ao Dicionário gramsciano (Liguori; Voza, 2017)
e aos Cadernos do cárcere, a fim de compreender os termos e questões
desenvolvidos nas cartas.
Para a exposição da análise realizada, optou-se por uma or-
ganização a partir dos assuntos das cartas. Dessa forma, o primei-
ro movimento do texto é evidenciar os limites e possibilidades en-
frentados por Gramsci no que concerne à educação de seus filhos.
Nesse momento, o foco são as cartas em que Gramsci busca, além

135 Os termos surgiram nas notas da carta e não no texto principal.

288
C artas do cárcere e a educação da infância

de informações sobre o desenvolvimento dos filhos, aprimorar sua


relação com Giulia em uma perspectiva de mutualidade no processo
educativo.
Depois, investigam-se as cartas nas quais Gramsci estabelece
um diálogo direto com a concepção de educação de Giulia. Nesse
diálogo, Gramsci esclarece as mediações existentes para o trabalho
educativo da infância na perspectiva materialista histórico-dialéti-
ca. Em seguida, são analisadas as cartas em que Gramsci se dedica
a orientações sobre o desenvolvimento da atividade intelectual da
criança. Logo após, examinam-se as cartas nas quais problematiza o
lugar da questão territorial-cultural na infância, evidenciando o pa-
pel da realidade sociocultural na constituição da criança. Por fim,
algumas cartas em que Gramsci argumenta sobre aspectos de ordem
moral e política na formação dos filhos e da sobrinha.

Educar filhos no cárcere? Dedicação, mediação e mutualidade


Em agosto de 1924, Gramsci torna-se secretário-geral do Parti-
do Comunista da Itália (pci), atuando ativamente em Turim e Milão.
É nesse contexto que nasce Delio, o primeiro filho de Gramsci e Giu-
lia, em Moscou. Em 1926, Gramsci é preso em Roma e Giuliano, se-
gundo filho de Gramsci e Giulia, nasce também em Moscou (Grams-
ci, 2017). Nesse quadro, torna-se evidente a pouca ou nenhuma (no
caso de Giuliano) convivência concreta entre Gramsci e os filhos.
Ainda assim, nas Cartas do cárcere (Gramsci, 2005a, 2005b)
é possível perceber a atitude de pai que se interessa e se preocupa
com o desenvolvimento e a formação dos filhos. Mesmo com as limi-
tações impostas pela realidade do cárcere, Gramsci se empenha em
participar e nutrir um relacionamento com Delio e Giuliano.
Nesse sentido, Gramsci demanda informações sobre o desen-
volvimento e sobre o processo de formação dos filhos. As cartas n.
15, 35, 72, 73, 94, 97, 132 e 154 (Gramsci, 2005a), entre outras, exem-
plificam o apelo de Gramsci à família, especialmente a Giulia e Tatia-
na, por descrições da vida das crianças.

289
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

Embora não apresente uma discussão sobre a infância, essas cartas


com solicitação de informações sobre a vida e o desenvolvimento de
Delio e Giuliano revelam o interesse intenso, urgente e penetrante
que transcende a questão de teorizar ou compreender a infância, ao
mesmo tempo em que não se desvincula de uma concepção clara e
precisa de formação humana. Gramsci (2017, p. 299-300) explica a
natureza de seu interesse:

Leio muito, livros e revistas; muito, em relação à vida intelectual que se pode ter
numa prisão. Mas perdi muito do gosto pela leitura. Os livros e as revistas dão só
ideias gerais, esboços de correntes gerais da vida do mundo (mais ou menos bem
realizados), mas não podem dar a impressão imediata, direta, viva, da vida de Pe-
dro, de Paulo, de João, de indivíduos reais, sem compreender os quais não se pode
nem compreender o que se universalizou e generalizou. Faz muitos anos, em 1919
e em 1920, conhecia um jovem operário, muito ingênuo e muito simpático. Todo
sábado de tarde, depois da saída do trabalho, vinha a meu escritório para estar
entre os primeiros a ler a publicação que eu organizava. Ele me dizia muitas vezes:
“Não pude dormir, preocupado com esta ideia: o que é que o Japão vai fazer?” O
Japão, de fato, o obcecava, porque nos jornais italianos só se fala do Japão quando
morre o Micado ou um terremoto mata pelo menos dez mil pessoas. O Japão lhe
escapava; por isso, não conseguia ter um quadro sistemático das forças do mundo
e achava que não compreendia nada de nada. Eu, então, ria de um tal estado de
ânimo e zombava de meu amigo. Hoje o compreendo. Também tenho meu Japão:
é a vida de Pedro, de Paulo e também de Giulia, de Delio, de Giuliano. Sinto falta,
realmente, da sensação molecular: como poderia, mesmo sumariamente, perceber
a vida do todo complexo?

A despeito de toda a troca de correspondência e desse singu-


lar interesse, Gramsci reconhece a insuficiência de seu convívio e de
sua concreta compreensão acerca dos filhos: “A verdade é que sou
mesmo incapaz, psicologicamente, de estabelecer relação com eles
porque, concretamente, não conheço nada de sua vida e de seu de-
senvolvimento” (Gramsci, 2005b, p. 132). O mesmo se aplica aos fi-
lhos: “imagino que eu, para Delio e Giuliano, devo ser uma espécie

290
C artas do cárcere e a educação da infância

de holandês voador, que, por motivos imperscrutáveis, não posso me


ocupar e participar da vida deles” (Ibid., p. 132). O impacto do cárce-
re se impõe sobre o empenho e o comprometimento.
Os limites determinados pelo cárcere para a relação familiar
situam Gramsci na dependência da vinculação indireta, especial-
mente no que se refere aos filhos. Seu papel na educação dos filhos
é mediado, levando-o a se voltar para a esposa na sua atribuição de
mãe, situação que expõe as fragilidades e dificuldades enfrentadas
por Giulia.
Giulia Schucht casou-se com Gramsci em 1923. Mesmo antes
da prisão do marido, Giulia já enfrentava problemas de saúde que,
com a prisão de Gramsci em 1926, vieram a se agravar. É nesse con-
texto marcado por “longos períodos de repouso e várias formas de
terapia” que Giulia recebe e responde às cartas do cárcere. Além dessa
fragilidade físico-mental, também há a dificuldade no relacionamen-
to com Eugenia, irmã de Giulia, que, “pondo-se muitas vezes, doen-
tiamente, como ‘mãe e pai’” das crianças, exerce autoridade sobre
Giulia e forte influência sobre Delio e Giuliano136 (Gramsci, 2005a, p.
65). Em uma nota no volume 1 das cartas (Ibid., p. 426), há uma re-
ferência “às circunstâncias políticas repressivas em que Giulia vivia,
por causa do marido preso na Itália, mas suspeito de filotrotskismo”.
A complexidade da situação enfrentada por Giulia debilitará
ainda mais sua saúde, afetando a troca de correspondências com
Gramsci. A gravidade do estado emocional e físico de Giulia será
mais bem esclarecido a Gramsci em 1930 (Ibid., p. 426), o que engen-
dra mudanças no relacionamento epistolar com a esposa.

136 Gramsci se pronuncia sobre a situação: “Recebi vários de seus cartões por estes dias e a
longa carta na qual me transcreveu a carta de Genia sobre Delio. Você quer que lhe escreva
minha opinião a este respeito. É difícil escrever. Minha impressão é pouco lisonjeira, devo
confessar. Ela só é atenuada pela certeza de que não se trata certamente de Delio, mas de
Genia, porque me parece absurdo que um menino de pouco mais de oito anos seja infantil
e infantilizado de modo tão falso e mórbido, artificioso e bizantino. Só uma coisa parece
verossímil e causa angústia: que essa atmosfera falsa, adocicada, artificiosa possa influir de
modo sinistro sobre a educação de Delio e prejudicar sua vitalidade e força de caráter. Esta
é minha opinião franca. Não sei se pode lhe parecer muito dura. De resto, lamento imen-
samente quando penso que não tenho nenhum meio capaz de impedir que as coisas conti-
nuem assim” (Gramsci, 2005b).

291
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

Mesmo antes de estar inteiramente informado sobre a situação


de Giulia, Gramsci demonstra intensa preocupação com a vida da es-
posa. Além de encorajá-la, destaca o significado da presença de Giu-
lia na vida dos filhos e, ainda, as mudanças produzidas pelas crianças
ao atribuir-lhe outros traços e demandas ligadas à função materna.
Isso pode ser apreendido nas cartas n. 2, 15, 56, 68 (Gramsci, 2005a),
218 e 444 (Gramsci, 2005b), entre outras.
A questão enfatizada nessas cartas é a reciprocidade nas re-
lações mãe-filhos, Delio-Giuliano, Gramsci-Giulia-filhos, Grams-
ci-filhos. Uma carta de 1931, quando Gramsci já conhece o estado
emocional-físico da esposa, pode ser tomada como emblema dessa
questão:

De resto, você tem razão quanto ao fato de que em nosso mundo, meu e seu, toda
fraqueza é dolorosa e toda força é uma ajuda. Penso que nossa maior desgraça foi
a de termos estado juntos muito pouco, e sempre em condições gerais anormais,
separadas da vida real e concreta de todos os dias. Devemos agora, nas condições
de força maior em que nos encontramos, remediar estas falhas do passado, de
modo a resguardar todo o vigor moral de nossa união e salvar da crise o que de
belo também houve em nosso passado e vive em nossos filhos. Você não concor-
da? Eu quero ajudá-la, em minhas condições, a superar sua atual depressão, mas
também é preciso que me ajude um pouco e me ensine o melhor modo de ajudá-la
eficazmente, orientando sua vontade, arrancando todas as teias de falsas represen-
tações do passado que podem travá-la, ajudando-me a conhecer cada vez melhor
os dois meninos e a participar de suas vidas, de sua formação, da afirmação de suas
personalidades, de modo que minha “paternidade” se torne mais concreta e seja
sempre efetiva e, assim, se torne uma paternidade viva e não só um fato do passado
cada vez mais remoto. Ajudando-me assim também a conhecer melhor a Iulca de
hoje, que é Iulca + Delio + Giuliano, soma na qual o sinal de mais não indica só um
fato quantitativo, mas sobretudo uma nova pessoa qualitativa (Gramsci, 2005b, p.
20-21).

A recorrência da questão da reciprocidade no relacionamen-


to familiar está relacionada à concepção de formação humana de

292
C artas do cárcere e a educação da infância

Gramsci. O homem não é dado naturalmente. A “natureza” humana


não é natural, mas constituída na historicidade das relações huma-
nas. Assim, coerente com o marxismo histórico-dialético, Gramsci
entende que os homens “se formam historicamente de modo gra-
dual” (Liguori; Voza, 2017, p. 304). Nas relações histórico-sociais,
nas possibilidades dadas a partir dessas relações é que está a expec-
tativa de constituição de “uma nova pessoa qualitativa” (Gramsci,
2005b, p. 21).
Assim, a qualidade do relacionamento familiar e a mutualida-
de, significativa especialmente para a criança, instruem e habilitam,
ainda na primeira infância, para a complexidade da vida em socie-
dade. Esse posicionamento de Gramsci também fica evidente nas
orientações dadas a sua irmã Teresina:

Você deve se tornar ativa como no passado (não no sentido físico, pois, me pa-
rece, você nunca foi ativa neste sentido, mas no sentido intelectual) para poder
orientar bem as crianças fora da escola e não deixá-las abandonadas a si mesmas,
como muitas vezes ocorre especialmente nas famílias ditas “respeitáveis” (Gramsci,
2005a, p. 455).

A partir dessa compreensão, Gramsci estabelece diálogo com


Giulia, questionando a concepção da esposa sobre a educação da in-
fância e destacando o elemento coerção para o processo de formação
humana.

Concepções de educação da infância em debate


Mesmo não tendo acesso às cartas enviadas por Giulia, é possível perceber a con-
cepção de infância pela qual ela se orienta para conduzir Delio e Giuliano, espe-
cialmente nas cartas n. 157, 160, 170, 193 (Gramsci, 2005a), 227, 231, 233, 242, 272,
323, 407, 417 e 450 (Gramsci, 2005b). Nesses escritos, Gramsci questiona a forma
de compreensão de Giulia e argumenta e defende outra perspectiva de educação
da infância.

293
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

A questão central na discussão de Gramsci com a esposa está


na ideia de natureza infantil. A questão que engendra toda a discus-
são é a compreensão da subjetividade humana nos limites das fun-
ções orgânicas ou fisiológicas. A premissa é que a criança, ao nascer,
já possui faculdades, capacidades, aptidões, talentos e tendências que
amadurecerão ao longo do desenvolvimento. Essa premissa, cuja ori-
gem pode ser buscada em Rousseau, fundamentará o movimento da
Escola Nova e as pedagogias modernas (Charlot, 2013). De forma
prática, essa concepção resulta em mudanças profundas na forma de
entender a educação da infância, deslocando

o eixo da questão pedagógica do intelecto para o sentimento; do aspecto lógico


para o psicológico; dos conteúdos cognitivos para os métodos ou processos peda-
gógicos; do professor para o aluno; do esforço para o interesse; da disciplina para
a espontaneidade; do diretivismo para o não diretivismo; da quantidade para a
qualidade; de uma pedagogia de inspiração filosófica centrada na ciência da lógica
para uma pedagogia de inspiração experimental baseada principalmente nas con-
tribuições da biologia e da psicologia. Em suma, trata-se de uma teoria pedagógica
que considera que o importante não é aprender, mas aprender a aprender (Saviani,
2009, p. 8).

Giulia adere a essa concepção e, a partir dela, se relaciona com


os filhos. Gramsci (2005a, p. 360) descreve essa adesão: “sempre che-
go à conclusão de que, em vocês, exerceu grande impacto Genebra
e o ambiente saturado de Rousseau e do dr. Fulpius,137 que devia ser

137 Gramsci se refere a Charles Fulpius (1847-1916), fundador da Libre Pensée Suisse, asso-
ciação dedicada à defesa da separação entre igreja e Estado, sustentando a visão de mundo
baseada na ciência e na ética livre de dogmas. Fulpius envolveu-se em publicações de jor-
nais, revistas e livros relacionados ao darwinismo. Entre suas obras se destacam um manual
para a educação de crianças e um curso de ética social para adolescentes, ambos funda-
mentados no evolucionismo social. Ver http://worldcat.org/identities/viaf-249625437/ ht-
tps://hls-dhs-dss.ch/de/articles/011396/2012-11-13/ e https://frei-denken.ch/geschichte/
2008-100-jahre-fvs (acesso em: 2 jun. 2020). Gramsci se posiciona acerca do evolucionismo
aplicado ao conhecimento histórico-social-cultural segundo o modelo das ciências naturais
(Liguori; Voza, 2017). Para Gramsci, trata-se de “problemas teóricos” de uma “filosofia dos
não filósofos”, resultando em um evolucionismo vulgar (Gramsci, 2017, p. 150-151). A rela-
ção entre evolucionismo e educação da infância demanda aprofundamento. Ainda assim, a

294
C artas do cárcere e a educação da infância

tipicamente suíço, genebrino e rousseauniano”. Para melhor entender


essa colocação de Gramsci, é necessário lembrar que, em 1912, Édou-
ard Claparède cria, em Genebra, o Instituto Jean-Jacques Rousseau,
um importante centro de pesquisa e divulgação do escolanovismo.
Giulia nasce em Genebra em 1896 e parece absorver a efervescên-
cia genebrina em torno do escolanovismo, mesmo tendo se mudado
para Roma em 1908. Gramsci sinaliza essa questão: “eu lembro mui-
tas pequenas coisas da vida romana de Delio e também os princípios
dos quais você e Genia partiam ao lidar com ele” (Ibid., p. 360).
A adesão a essa concepção biopsicologizante do humano leva
Giulia a vários equívocos de compreensão e de ação em relação aos
filhos. A crença nas tendências profissionais dos meninos seria um
emblema desses equívocos. Gramsci contesta essa crença a partir dos
próprios relatos de Giulia:

Também aquilo que escreve sobre Delio e Giuliano e suas inclinações me fez
recordar que, há alguns anos, você acreditava que Delio tivesse muita inclinação
para a engenharia de construção, enquanto parece que hoje esta é a inclinação de
Giuliano e, ao contrário, Delio se volta mais para a literatura e a construção [...]
poética. Na verdade, devo dizer que não acredito nestas inclinações genéricas tão
precoces e confio pouco em sua capacidade de observar as tendências de ambos
para uma orientação profissional. Acredito que, em cada um deles, coexistam to-
das as tendências, tal como em todas as crianças, tanto para a prática quanto para
a teoria ou a fantasia, e que, de fato, seria correto guiá-los neste sentido, para um
ajuste harmonioso de todas as faculdades intelectuais e práticas, que podem se
especializar no tempo apropriado, com base numa personalidade vigorosamente
formada em sentido total e integral (Ibid., p. 224-25).

chamada psicologia diferencial (estudo das diferenças entre indivíduos ou grupos) e a noção
de adaptação do organismo ao meio da psicologia funcionalista são princípios associados
ao evolucionismo que influenciaram a discussão sobre a educação da criança (Jacó-Vilela
et al., 2013). Também é importante lembrar que o evolucionismo social está na base das
perspectivas eugenistas e higienistas.

295
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

Para Gramsci, não se trata de tendências inatas, mas da capaci-


dade de agir intelectualmente de todo ser humano, de pensar e refle-
tir sobre as ações, sobre a concepção de mundo e sobre a realidade. É
nesse sentido que Gramsci busca “demonstrar preliminarmente que
todos os homens são ‘filósofos’”. Todo homem tem, assim, capacida-
de para a atividade intelectual e para o trabalho, no sentido de obje-
tivação humana. A partir de processos formativos totais e integrais,
o homem pode “escolher a própria esfera de atividade, participar ati-
vamente na produção da história do mundo” (Gramsci, 2017, p. 93).
A concepção gramsciana procede do materialismo histórico-
-dialético: “a inovação fundamental introduzida pela filosofia da prá-
xis na ciência da política e da história é a demonstração de que não
existe uma ‘natureza humana’ abstrata, fixa e imutável” (Gramsci,
2002, p. 56). No debate com Giulia, isso se aplica à ideia “metafísica”
de tendências naturais das crianças. Para Gramsci, “a natureza hu-
mana é o conjunto das relações sociais historicamente determinadas”
(Ibid., p. 56).
Assim, é a partir dessas “faculdades intelectuais e práticas que
podem se especializar” em uma formação total e integral, descritas
na carta acima, que Gramsci entende, por exemplo, a possibilidade
de pensar a existência concreta de “Estado sem Estado”, “baseado no
pressuposto de que todos os homens são realmente iguais e, portan-
to, igualmente razoáveis e morais” (Ibid., p. 245). A classe subalterna,
a partir de uma direção consciente, pode agir como “classe para si”,
tendo presença na ação política de forma que o Estado seja regulado
efetivamente pela sociedade civil.
O principal problema na concepção de Giulia são suas conse-
quências práticas. Gramsci, mesmo no cárcere, percebe a disfunção
na forma de educar da esposa: “parece que o estágio de desenvol-
vimento intelectual de Delio, como se depreende daquilo que me
escreveu, está muito atrasado para sua idade, está demasiadamente
infantil” (Gramsci, 2005a, p. 384). Nessa carta, Gramsci realiza uma
breve comparação entre Delio aos dois anos, em Roma, e Delio aos
cinco anos em Moscou, e conclui que se trata de um comportamento
“muito atrasado e infantil”. Gramsci também recorre à sua própria

296
C artas do cárcere e a educação da infância

infância para corroborar sua análise e antecipa-se a qualquer dis-


curso de genialidade inata: “Não acredito ter sido excepcionalmente
precoce, longe disso” (Ibid., p. 385).
A razão para o atraso e a infantilidade de Delio é apresentada
na carta: a concepção de natureza infantil de Giulia e sua família, que
pressupõe “que na criança está em potência todo o homem e é neces-
sário ajudá-la a desenvolver o que já contém em estado latente, sem
coerções, deixando agir as forças espontâneas da natureza” (Ibid., p.
385-86). Em carta a Tatiana, Gramsci evidencia, de forma mais con-
creta, as consequências dessa compreensão do desenvolvimento hu-
mano para a formação de Delio:

Recebi as duas fotografias e o manuscrito de Delio. Realmente, não compreendi


nada e me parece inexplicável que ele comece a escrever da direita para a esquerda
e não da esquerda para a direita; estou contente com o fato de que escreva com as
mãos, já é alguma coisa. Se lhe desse na cabeça começar a escrever com os pés, cer-
tamente teria sido muito pior. Como os árabes, os turcos que não aceitaram as re-
formas de Kemal, os persas e talvez também outros povos escrevem da direita para
a esquerda, a coisa não me parece muito séria e perigosa; quando Delio aprender o
persa, o turco e o árabe, ter aprendido a escrever da direita para a esquerda lhe será
muito útil. Só uma coisa me surpreende: que haja muito pouca lógica no sistema.
Por que, desde a mais tenra idade, tê-lo obrigado a se acostumar a vestir como os
outros? Por que não ter deixado livre sua personalidade também no modo de vestir
e tê-lo educado segundo um conformismo mecânico? Teria sido melhor cercá-lo
com os objetos de uso e depois esperar que ele escolhesse espontaneamente: as
cuequinhas na cabeça, os sapatos nas mãos, as luvas nos pés, etc.; ou, melhor ainda,
era preciso pôr perto dele roupas de menino e de menina e lhe deixar a liberdade
de escolha. Não está de acordo? (Gramsci, 2005b, p. 39).

Partindo da ideia de natureza infantil, a prática que se estabe-


lece é dar liberdade à criança para um desabrochar por si mesma.
Por isso, Delio é quem escolhe a forma de escrever. Em outra carta,
Gramsci questiona mais uma vez a esposa: “mas me parece que, pra-
ticamente, você não consegue se livrar de certos hábitos tradicionais,

297
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

relacionados às concepções espontaneístas e libertárias” (Ibid., p. 64).


Gramsci parece indicar que a infantilidade e o atraso no desenvolvi-
mento intelectual de Delio são resultado de uma criança entregue a
si mesma e de um ambiente adocicado e artificial.
Contrapondo-se a essa atitude, Gramsci (2005a, p. 386) defen-
de um processo intencional, direto, consciente, disciplinar e coerci-
tivo: “eu penso que o homem é toda uma formação histórica obtida
com a coerção (entendida não só no sentido brutal e de violência
externa), e é só o que penso: de outro modo, se cairia numa forma
de transcendência ou de imanência”. A coerção, nesse momento do
texto, não tem sentido negativo, mas indica a existência de disciplina,
de instrução, de direcionamento consciente.
Gramsci não nega um certo valor à concepção de natureza in-
fantil: “Este modo de conceber a educação como o desenrolamento
de um fio preexistente teve sua importância quando se contrapunha
à escola jesuítica, isto é, quando negava uma filosofia ainda pior, mas
hoje está igualmente superado” (Ibid., p. 386). E está superado por-
que é necessário “tornar a geração que surge preparada para a nova
vida” (Gramsci, 2005b, p. 64). Nesse sentido, Gramsci analisa os prin-
cípios da chamada pedagogia moderna, escola ativa ou Escola Nova:

Investigar a origem histórica exata de alguns princípios da pedagogia moderna: a


escola ativa, ou seja, a colaboração amigável entre professor e aluno; a escola ao ar
livre: a necessidade de deixar livre, sob a vigilância, mas não sob controle evidente
do professor, o desenvolvimento das faculdades espontâneas do estudante. A Suíça
deu uma grande contribuição à pedagogia moderna (Pestalozzi, etc.), graças à tra-
dição genebrina de Rousseau; na realidade, esta pedagogia é uma forma confusa
de filosofia ligada a uma série de regras empíricas. Não se levou em conta que as
ideias de Rousseau são uma violenta reação contra a escola e os métodos pedagó-
gicos dos jesuítas e, enquanto tal, representam um progresso: mas, posteriormente,
formou-se uma espécie de igreja, que paralisou os estudos pedagógicos e deu lugar
a curiosas involuções (nas doutrinas de Gentile e de Lombardo-Radice). A “es-
pontaneidade” é uma destas involuções: quase se chega a imaginar que o cérebro
do menino é um novelo que o professor ajuda a desenovelar. Na realidade, toda

298
C artas do cárcere e a educação da infância

geração educa a nova geração, isto é, forma-a; e a educação é uma luta contra os
instintos ligados às funções biológicas elementares, uma luta contra a natureza, a
fim de dominá-la e de criar o homem “atual” à sua época (Gramsci, 2001, p. 62).

Gramsci destaca, assim, o valor da coerção e da instrução. Não


nos moldes da escola jesuítica, caracterizada por Gramsci como en-
fadonha, promotora da hipocrisia social, semifeudal, mesquinha, in-
tolerante e mecânica (Liguori; Voza, 2017). Nas cartas do cárcere,
é possível perceber o valor da infância e de viver plenamente esse
momento: “Acredito, aliás, que uma vida infantil como aquela de há
trinta anos seja hoje impossível: hoje, as crianças, quando nascem, já
têm oitenta anos, como o Lao-Tseu chinês” (Gramsci, 2005a, p. 353).
Mas, ao mesmo tempo, essa infância necessita de instrução e direcio-
namento intencional de forma a levar ao “enriquecimento progres-
sivo da pequena vida deles de homens em formação, da formação,
neles, de uma concepção de mundo embrionária” (Ibid., p. 432). Para
isso, Gramsci recomenda “que, com as crianças, até que sua perso-
nalidade chegue a um certo grau de desenvolvimento, um pouco de
pedantismo seja necessário e indispensável” (Ibid., p. 432).
E há o tempo certo para isso. Para Gramsci, a coerção é fun-
damental, especialmente na infância, momento em que “a criança se
desenvolve intelectualmente de modo muito rápido, absorvendo des-
de os primeiros dias depois do nascimento uma quantidade extraor-
dinária de imagens” (Ibid., p. 385). É nesse momento que o adulto
mais experiente deve agir, pois “renunciar a formar a criança signifi-
ca só permitir que sua personalidade se desenvolva acolhendo caoti-
camente, do ambiente geral, todos os motivos de vida” (Ibid., p. 386).
O erro é deixar passar esse período e entregar a criança a si mesma,
exercendo a função instrutiva e disciplinar mais tarde, “precisamente
quando é prejudicial, entre os 12 e os 16 anos, exceto quando nem
esta preocupação existe; mas, então, o resultado são os rapazes ‘fora-
-da-lei’” (Ibid., p. 432).
É por isso que Gramsci defende a existência de “uma rede de
creches e outras instituições nas quais, mesmo antes da idade escolar,

299
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

as crianças se habituem a uma certa disciplina coletiva e adquiram


noções e aptidões pré-escolares” (Gramsci, 2001, p. 38). E a formação
subsequente precisa ter caráter integral, sendo, assim, “o objetivo da
escola única de conduzir as crianças a um desenvolvimento harmo-
nioso de todas as atividades”. Nesse sentido, a organização e prática
formativa da escola deve “conduzir os estudantes por um caminho
que permita o desenvolvimento de uma cultura sólida e realista”
(Gramsci, 2005b, p. 412). Somente depois dessa sólida formação
cultural é que se investirá nas “inclinações mais profundas e perma-
nentes, porque nascidas num nível mais alto de desenvolvimento de
todas as forças vitais” (Ibid., p. 134).

O progresso intelectual da criança: instrução e direcionamento


consciente
Nas cartas, Gramsci faz algumas demarcações no desenvol-
vimento intelectual da infância. Esses marcos não devem ser en-
tendidos na perspectiva das faixas etárias. Isso porque, como ante-
riormente analisado, “a natureza humana é o conjunto das relações
sociais historicamente determinadas” (Gramsci, 2002, p. 56). Assim,
na carta 170, Gramsci destaca na infância — tempo de vida da crian-
ça — o momento antes do domínio de linguagem e o período de
aprendizado e desenvolvimento da linguagem (Gramsci, 2005). Um
terceiro momento é identificado como o final da infância, cuja refe-
rência está em uma carta escrita às vésperas do aniversário de sete
anos de Delio. Gramsci destaca a ocasião pelo significado no desen-
volvimento intelectual da criança:

Dentro de alguns dias Delio completará sete anos e, no fim do mês, Giuliano
completará cinco anos. Para Delio, a data é importante, porque comumente os
sete anos são considerados uma etapa importante no desenvolvimento de uma
personalidade. A Igreja Católica, que indiscutivelmente é o organismo mundial
que possui a maior acumulação de experiências organizativas e propagandísticas,
estabeleceu aos sete anos a entrada solene na comunidade religiosa, com a primei-
ra comunhão, e pressupõe na criança a primeira responsabilidade pela escolha de

300
C artas do cárcere e a educação da infância

uma ideologia que deve imprimir uma recordação indelével por toda a vida. Não
sei se você vai dar a este aniversário de Delio um caráter particular, que deixe em
sua memória um traço mais profundo e duradouro do que os outros aniversários
(Gramsci, 2005b, p. 63-64).

O final da infância também é demarcado pela entrada na ado-


lescência, quando a exigência de disciplina tende a ser “prejudicial,
entre os 12 e os 16 anos” (Gramsci, 2005a, p. 432). Essas demarcações
são pertinentes porque preconizam ações intencionais e conscientes
para o desenvolvimento da atividade intelectual da criança. Gramsci
destaca essa questão nas cartas n. 135, 195, 213 (Gramsci, 2005a),
224, 229, 236, 282, 291, 296, 312 e 383 (Gramsci, 2005b).
Nesse sentido, além das intervenções na educação dos filhos
e do debate com Giulia, também são relevantes as controvérsias de
Gramsci com a família no que concerne à educação de sua sobrinha
Edmea, filha do irmão mais velho, Gennaro. A questão apresentada
nessas cartas é a imprescindível, indispensável e inadiável necessida-
de de disciplina, hábito de estudo, rigor e correção do comportamen-
to desleixado, inconsequente e irrefletido na infância.
A objeção gramsciana, por conseguinte, é ao adulto respon-
sável pela condução da formação das crianças. Em carta à sua mãe,
Gramsci adverte a família: “Nannaro, pelo que vocês lhe escreveram,
tinha acreditado que a filha fosse sabe-se lá qual monstro de sabedo-
ria e de genialidade. Por isso, passou ao extremo oposto e esqueceu
que a menina tem apenas nove ou dez anos”. Na mesma carta ainda
acrescenta que “talvez vocês a tenham mimado demais, sem obrigá-
-la a se disciplinar. É verdade que eu também, Nannaro ou os outros
não fomos obrigados a nos disciplinar, mas nós mesmos nos discipli-
namos” (Gramsci, 2005a, p. 435).
O resultado da ação ou falta de ação da família para o desen-
volvimento da atividade intelectual da menina é apresentada: “Mea
me parece pueril demais para sua idade, até mesmo para sua idade,
me parece não ter outras ambições a não ser cuidar de aparências e
não ter vida interior”. Nesse sentido, cobra outra postura da família:

301
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

“Em suma, tentem acostumá-la a trabalhar com disciplina e restrin-


gir um pouco sua vida ‘mundana’: menos sucessos de vaidade e mais
seriedade em termos de substância” (Ibid., p. 435).
Em carta ao seu irmão Carlo (Ibid., p. 308), Gramsci é mais
pontual no que concerne às fragilidades na formação de Edmea: “co-
mete um número muito grande de erros de ortografia”, “pouco cui-
dadosa”, “suponho que, até quando fala, algumas vezes pareça um
redemoinho e coma a metade das palavras”, “não gostei do desenho
dela: não há nenhuma espontaneidade e nenhum gosto”. Em carta a
Grazietta, sua irmã, acrescenta: “sabe gritar, mas não sabe pensar e
refletir” (Ibid., p. 467). Em carta à mãe descreve: “não tem força de
vontade” (2005b, p. 32). E novamente cobra da família: “deve-se ter
o cuidado de mandá-la fazer os deveres com aplicação e muita disci-
plina” (2005a, p. 308).
Gramsci trata da questão partindo da lógica de uma rotina, de
costumes, de prática e uso diário da coerção e da disciplina. Nesse
sentido, explica ao irmão Carlo que deve-se ter “o cuidado de ha-
bituá-los ao trabalho metódico e disciplinado” (2005a, p. 308). Não
pela força ou violência, mas por meio da autoridade afetuosa do con-
vívio familiar. A criança não pode ser abandonada a si mesma, pelo
contrário, os responsáveis pela criança devem compreender que sua
formação não se dará no puro espontaneísmo e no subjetivismo irra-
cional. Em uma carta à mãe, Gramsci confidencia a situação do filho,
que também sofre por falta de direcionamento e instrução para o ple-
no desenvolvimento da atividade intelectual: “Delio também tentou
escrever uma carta (nunca o induziram a aprender a escrever, mas
deixaram que aprendesse por conta própria, levado por seu próprio
desejo ...)” (Gramsci, 2005b, p. 56).
É no trabalho dedicado e comprometido do adulto com a for-
mação da criança que se constroem hábitos e atividade intelectual.
A carta destinada a Teresina, irmã de Gramsci, exemplifica essa
compreensão:

302
C artas do cárcere e a educação da infância

Mais do que todas estas coisas me parece importante a “força de vontade”, o amor
pela disciplina e pelo trabalho, a constância nos objetivos, e neste juízo levo em
conta, mais do que a criança, aqueles que a orientam e têm o dever de fazer com
que adquira tais hábitos, sem sacrificar sua espontaneidade. A opinião que formei,
pelas palavras de Nannaro e de Cario, é precisamente esta: no caso de Mea, todos
vocês se descuidam de estimular a obtenção destas qualidades sólidas e fundamen-
tais para seu futuro, não pensando que, mais tarde, a tarefa será mais difícil e talvez
impossível. Vocês me parecem esquecer que hoje, em nosso país, as atividades
femininas enfrentam condições muito desfavoráveis desde os primeiros anos de
escola, como, por exemplo, a exclusão das meninas de muitas bolsas de estudo, etc.,
de modo que é necessário, na concorrência, que as mulheres tenham qualidades
superiores àquelas requeridas dos homens e uma dose maior de tenacidade e de
perseverança. É evidente que minhas observações se dirigiam não a Mea, mas a
quem a educa e dirige; neste caso, mais do que nunca, me parece que o educador é
que deve ser educado (Ibid., p. 32).

No trecho aqui apresentado, Gramsci destaca não somente os


graves prejuízos na formação de Edmea pela falta de comprometi-
mento da família, mas também as consequências para a inserção so-
cial da menina em um contexto desfavorável para mulheres que se
dedicam à atividade intelectual. Outra carta significativa para com-
preender a importância do direcionamento da infância e o impacto
disso para a vida em sociedade é a destinada a Carlo:

Sobre Mea, você não me parece que tem razão. Como a questão é importante e pode
decidir todo o futuro da garota, faço ainda algumas observações. Eu levei em conta o
ambiente no qual ela vive, naturalmente, mas o ambiente não justifica nada: me pare-
ce que toda a nossa vida é uma luta para nos adaptarmos ao ambiente, mas também,
e especialmente, para dominá-lo e não nos deixarmos esmagar por ele. O ambiente
de Mea, antes de tudo, são vocês aí de casa, depois seus amigos, a escola, e depois
todo o vilarejo, com seus Cozzoncus, com suas tias Tane e Zuanna Culemantigu,
etc., etc. De quais partes deste ambiente Mea vai receber os estímulos para formar
seus hábitos, seus modos de pensar, seus juízos morais? Se vocês renunciarem a in-
tervir e a guiá-la, usando a autoridade que vem do afeto e da convivência familiar,

303
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

fazendo pressão sobre ela de modo afetuoso e amoroso, mas inflexivelmente rígido
e firme, acontecerá, sem dúvida nenhuma, que a formação espiritual de Mea vai ser
o resultado mecânico da influência casual de todos os estímulos deste ambiente [...].
Um erro que se comete habitualmente na criação dos meninos e meninas me parece
o seguinte (pense em você mesmo e depois julgue se estou certo): não se percebe
que, na vida deles, existem duas fases muito distintas, antes e depois da puberdade.
Antes da puberdade, a personalidade da criança ainda não se formou e é mais fácil
guiar sua vida e fazê-la adquirir determinados hábitos de ordem, de disciplina, de
trabalho: depois da puberdade, a personalidade se forma de modo impetuoso e toda
intervenção alheia se torna odiosa, tirânica, insuportável. Na verdade, o que acon-
tece é que os pais sentem a responsabilidade em relação aos filhos exatamente neste
segundo período, quando é tarde: então, naturalmente, entra em cena o porrete e
a violência, que, no fim das contas, dão bem poucos frutos. Em vez disso, por que
não se ocupar da criança no primeiro período? Parece pouco, mas o hábito de ficar
sentado de cinco a oito horas por dia é uma coisa importante, que pode ser inculcada
até os quatorze anos sem sofrimento, mas em seguida não se pode mais. [...] Tenho a
impressão de que as gerações mais velhas renunciaram a educar as gerações jovens e
estas cometem o mesmo erro; o fracasso gritante das velhas gerações se reproduz tal
e qual na geração que agora parece dominar. Pense um pouco no que escrevi e reflita
se não é necessário educar os educadores! (Gramsci, 2005a, p. 439-440).

Alguns aspectos precisam ser destacados nessa carta: o direcio-


namento do adulto no sentido de disciplinar e educar a infância tem
impacto para a vida futura da criança; recusar ou retardar essa tarefa,
deixando para agir na adolescência, é um grave erro e pode levar ao
fracasso no processo de formação humana; há um peso significativo do
contexto social, mas este não pode ser tomado deterministicamente; o
trabalho do adulto implica coerção, disciplina e direção consciente de
forma amorosa e afetuosa, e ao mesmo tempo rigorosa e constante; há
uma responsabilidade entre gerações na condução dos seus filhos; e,
por fim, Gramsci questiona a formação desse adulto, questão que não
pode ser desvinculada da concepção de educação da infância.
Além disso, sobressai nas cartas a dedicação de Gramsci para
contribuir de alguma forma, na sua limitada condição, com a forma-
ção dos filhos e também da sobrinha. Nas cartas n. 236 e 312 (Grams-

304
C artas do cárcere e a educação da infância

ci, 2005b), parabeniza Edmea por seu desempenho nos exames de


admissão. Nas cartas n. 282, 291 e 296 (Ibid.), busca informações
sobre a escola que Edmea frequenta e incentiva a família no esforço
de direcionar a menina. Na carta n. 383 (Ibid.), encoraja e incentiva
Mea nos seus estudos. Na carta n. 146 (Gramsci, 2005a), relata que
está traduzindo histórias alemãs para a sobrinha, e em outras corres-
pondências (Ibid., pp. 351, 370 e 421) cita livros com os quais está
presenteando Edmea, tendo em vista seu aperfeiçoamento da escrita.
Com os filhos, é possível perceber o esforço para, de alguma
forma, direcionar os meninos. Na carta n. 151 (2005a, p. 342), Grams-
ci continua o letramento do filho Delio: “Assim, acho que já é muito
grande e em pouco tempo irá me escrever cartas. Enquanto espero
por isto, hoje mesmo você já pode fazer a mamãe escrever cartas,
ditadas por você, tal como me fazia escrever, em Roma”. Em muitas
cartas discute, indica e cita o envio de literatura a seus filhos.138
Nas cartas destinadas às crianças, cobra disciplina, comprome-
timento, esforço e esmero. Nas cartas n. 437 e 462 (Gramsci, 2005b),
chama a atenção de Delio pela forma apressada e descuidada de sua
carta. O mesmo é feito com Giuliano nas cartas 451 e 460 (Ibid.). Nas
cartas n. 439, 440, 447, 449, 459, 464 e 465 (2005b), ensina o filho tendo
em vista o desenvolvimento do senso crítico. Em outras cartas — 452,
466 e 468 (Ibid.) —, faz explicações detalhadas sobre assuntos de in-
teresse das crianças. Na sua limitada condição, Gramsci busca ser pai,
direcionando, disciplinando e demonstrando real afeto pelos filhos.

A educação da infância e a realidade sociocultural: apropriação e


superação
No diálogo com a família e buscando pensar o lugar e a forma
de entender a infância, Gramsci precisa atender duas realidades: a

138 Há um grande investimento de Gramsci na formação literária dos filhos. Nesse sentido,
envia livros para Delio, conversa com o filho sobre as histórias lidas, realiza críticas a
determinadas obras e autores, envia histórias nas cartas para serem lidas para os filhos,
conta histórias em suas cartas e coloca questões para os meninos refletirem. As cartas n. 233,
287, 314, 341, 385, 393, 397, 408, 409, 410, 435, 439 e 447 (Gramsci, 2005b), entre outras, são
emblemáticas dessa questão.

305
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

vida no interior da Sardenha, onde vivem sua mãe e alguns irmãos e


sobrinhos; e a realidade de Moscou, onde residem Giulia e os filhos.
As cartas n. 3 e 75 (Gramsci, 2017) ilustram a atitude de Grams-
ci para aproximar essas realidades, sobretudo no sentido de vincular
a família paterna e a família materna de Delio e Giuliano. Escrevendo
à mãe, relata:

Ainda não lhe havia escrito que nasceu meu outro menino: chama-se Giuliano, e
me escrevem que é forte e se desenvolve bem. No entanto, Delio, nestas últimas
semanas, teve escarlatina, se bem que na forma branda, mas neste momento não
sei de suas condições de saúde: sei que já tinha superado a fase crítica e que estava
se recuperando. Você não deve se preocupar com os netinhos: a mãe deles é muito
forte e com seu trabalho os criará muito bem (Gramsci, 2017, p. 76).

Essa necessidade de vincular as famílias talvez possa ser enten-


dida e relacionada à concepção gramsciana de constituição da crian-
ça. As famílias cumprem importante papel na constituição subjetiva
da criança. Em um de seus cadernos do cárcere, Gramsci (2001, p.
44) explica que “a consciência da criança não é algo ‘individual’ (e
muito menos individualizado): é o reflexo da fração de sociedade ci-
vil da qual a criança participa, das relações sociais tais como se ani-
nham na família, na vizinhança, na aldeia, etc.”.
Para além da questão familiar na educação da infância, Grams-
ci ressalta também a ação do contexto mais amplo na constituição da
criança. Na carta destinada a Carlo, já citada neste trabalho, Gramsci
explica o que constitui esse contexto: “o ambiente de Mea, antes de
tudo, são vocês aí de casa, depois seus amigos, a escola, e depois todo
o vilarejo” (Gramsci, 2005a, p. 439).
A questão do contexto mais amplo é significativa porque de-
marca as diferentes infâncias e as formas desiguais de viver e de-
senvolver a infância. Em uma carta a Giulia, Gramsci explica essa
questão: “entre um menino criado num vilarejo sardo e um menino
criado numa grande cidade moderna, já por este fato apenas, existe

306
C artas do cárcere e a educação da infância

a diferença de pelo menos duas gerações” (Ibid., p. 359). Em outra


carta a Giulia, Gramsci diferencia a formação recebida por Delio em
Moscou e o grau de instrução de um sobrinho na Sardenha:

Não consigo fazer uma comparação entre a “cultura” escolar dos meninos e a dos
países ocidentais: não posso fazer comparações, nem se pensar em minhas lem-
branças. Entretanto: recebi carta de meu sobrinho, que é mais jovem do que Delio
e, neste ano, vai para o ginásio. Parece-me que não tem a riqueza de sentimentos
e a amplitude de interesses e pontos de vista de Delio, mas é mais organizado in-
telectualmente e sabe o que quer (deve-se levar em conta que, até agora, viveu
a vida mesquinha e estreita de um vilarejo da Sardenha, não comparável a uma
cidade mundial para a qual convergem enormes correntes de cultura, interesses
e sentimentos, que alcançam até os vendedores de cigarro nas ruas!) (Gramsci,
2005b, p. 416).

Em outro momento, Gramsci demonstra seu incômodo com


o ambiente escolar de Moscou: “parece-me que Delio vive numa at-
mosfera ideológica um tanto mórbida e bizantina, que não o ajuda
a ser enérgico, mas, em vez disso, o enfraquece e debilita” (Ibid., p.
300). Até mesmo na forma do brincar, Gramsci percebe a pressão do
ambiente para a conformação de uma certa individualidade. Quan-
do Delio ganha o Meccano, um brinquedo de construção, Gramsci
se posiciona dizendo que é expressão da “cultura moderna (de tipo
americano)” e que fortalece uma mentalidade abstrata e mecânica
típica de um modelo determinado “por uma intoxicação matemá-
tica”. Nessa carta a Giulia, Gramsci demonstra sua preocupação em
relação ao brinquedo para a constituição do filho (Gramsci, 2005a,
p. 312). Em outra carta à mulher (Ibid., p. 353), esclarece os efeitos
da vida moderna para a infância: “o rádio e o avião destruíram para
sempre o ‘robinsonismo’’, que foi o modo de fantasiar de tantas ge-
rações. A própria invenção do Meccano indica como o menino se
intelectualiza rapidamente”.
Mesmo reconhecendo a força do ambiente e os limites e os
desafios que impõe para a formação da criança, Gramsci não assu-

307
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

me uma postura determinista ou de mero reprodutivismo social. Ao


mesmo tempo, também não supõe a existência de uma individua-
lidade naturalmente vigorosa que, por si só, se desvencilhe de toda
pressão do contexto mais amplo. Logo, a perspectiva gramsciana é de
formação, de educação das novas gerações, não somente “para nos
adaptarmos ao ambiente, mas também, e especialmente, para domi-
ná-lo e não nos deixarmos esmagar por ele” (Ibid., p. 439).
A perspectiva de educação da infância gramsciana está, assim,
atrelada às concepções de hegemonia, intelectuais, classe subalterna
e Estado, entre outros conceitos. Gramsci aposta em outra formação,
não para a subalternidade desagregada e impotente, mas para a auto-
nomia, o que significa se contrapor a toda uma “estrutura ideológica
da classe dominante” e implica uma “conquista progressiva da cons-
ciência”, que “requer um complexo trabalho ideológico” (Gramsci,
2001, p. 78). O trabalho de instrução e formação da infância pode ser
um elemento importante nesse processo.
Em uma carta a Giulia (2005b, p. 80), comentando sobre o
costume dos russos de manter as crianças limpas, Gramsci critica
um artigo em que o autor acredita que, passada a infância e já não
podendo mais exercer a coerção, os jovens russos vão “mergulhar
programaticamente na lama, como reação individual-liberal ao auto-
ritarismo do qual atualmente são vítimas”. Gramsci entende o poten-
cial da educação da infância. Não no sentido determinista de que, se
realizado um bom trabalho com a criança, tudo já está resolvido para
o adulto. Em um dos seus cadernos do cárcere, Gramsci explica que
a “elaboração nacional unitária de uma consciência coletiva homo-
gênea requer múltiplas condições e iniciativas”. É nesse sentido que
deve ser entendido o lugar da educação da infância, pois é “pueril
pensar que um ‘conceito claro’, difundido de modo oportuno, insira-
-se nas diversas consciências com os mesmos efeitos” (2001, p. 205).
Isso posto, a relação com ambiente que perpassa a obra gramscia-
na envolve apropriação e superação.139 É essa perspectiva que direciona

139 Não há aqui qualquer referência à superação das contradições sociais pela via da
cultura. Para Gramsci, a relação estrutura-superestrutura deve ser compreendida em sua

308
C artas do cárcere e a educação da infância

o olhar sobre a infância, entendida como período singular e caracte-


rístico para a apropriação dos elementos histórico-culturais que cons-
tituem a humanidade. Nesse sentido, Gramsci (2005a, p. 133) orienta
sua irmã Teresina: “Para mim, foi um erro não terem deixado que Ed-
mea, quando bem menina, falasse livremente em sardo. Isto prejudi-
cou sua formação intelectual e colocou uma camisa-de-força em sua
fantasia. Não cometa este erro com suas crianças”. O uso e aprendizado
de várias línguas está ligado à qualificação da atividade intelectual e,
no caso da sobrinha, também significa a superação das limitações do
dialeto falado na Sardenha. A apropriação da língua, para Gramsci, é
também apropriação de uma concepção de mundo, ampliando a visão
por meio de uma “riqueza capaz de oferecer os instrumentosde acesso
aosgrandes processos mundiais” (Liguori; Voza, 2017, p. 931).
Nessa perspectiva, Gramsci escreve a sua mãe sobre as dificul-
dades que Edmea poderá enfrentar se continuar a sua formação em
Milão. Sair de uma aldeia sarda e enfrentar uma grande cidade exige
um grande esforço para adaptação e domínio:

Com seu quinto ano primário, Mea, numa escola de Milão, poderia no máximo ficar
no terceiro primário: em geral, um menino de cidade, só pelo fato de viver na cidade,
está pelo menos um ano mais adiantado do que um menino de aldeia (e não falemos
de uma aldeia sarda); no caso de Mea, o fato se agrava por causa de seu desleixo e
aquilo que hoje, em Ghilarza, faz com que a julguem inteligente seria motivo de riso
pelas costas em Milão, iria torná-la ridícula na escola. Ela dependeria, em grande
parte, de sua própria iniciativa e boa vontade (Gramsci, 2005b, p. 32-33).

dialeticidade, evitando-se, assim, tanto o objetivismo mecanicista quanto o subjetivismo


irracional. Nesse sentido, o Dicionário gramsciano esclarece: “Coloca-se aqui a extrema re-
levância da pergunta e do problema gramsciano: ‘Como nasce o movimento histórico com
base na estrutura’ [...]. Tal pergunta, urgente, situada bem no centro da revolução passiva,
embora não encontre respostas prontas, implica a exigência de elaborar uma teoria da sub-
jetividade política, da constituição política dos sujeitos — sujeitos que em G., como foi ob-
servado, nunca são dados, mas se formam e se definem processualmente, por meio da ação
ou da práxis política” (Liguori; Voza, 2017, pp. 1388-89).

309
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

Gramsci não ameniza as dificuldades que a sobrinha enfren-


tará e aponta as fragilidades de educação por ela recebida. Em uma
carta a Tatiana, discorrendo sobre o procedimento dos adultos com
as crianças em questões sérias, Gramsci reforça a questão do direcio-
namento consciente, para não permitir que “a formação da criança
seja deixada ao acaso das impressões do ambiente e à mecanicidade
dos encontros fortuitos” (Gramsci, 2005a, p. 463). Para adaptar e do-
minar o ambiente, faz-se necessário o trabalho formativo, atuando
para que a criança se aproprie do que a qualificará, direcionando-a
em meio aos muitos e variados estímulos e disciplinando-a para a
atividade crítico-intelectual:

De quais partes deste ambiente Mea vai receber os estímulos para formar seus hábitos,
seus modos de pensar, seus juízos morais? Se vocês renunciarem a intervir e a guiá-la,
[...] acontecerá, sem dúvida nenhuma, que a formação espiritual de vai ser o resultado
mecânico da influência casual de todos os estímulos deste ambiente (Ibid., p. 439).

Formação moral e política da infância


O assunto da formação moral e política do homem é desen-
volvido com maior aprofundamento nos Escritos políticos (Grams-
ci, 2004a, 2004b) e nos Cadernos do cárcere (Gramsci, 2001; 2002a;
2002b; 2002c; 2007; 2017). Ainda assim, é possível depreender al-
gumas chaves de compreensão das cartas para uma reflexão sobre a
formação moral e política da criança. Nesse sentido, as cartas n. 22,
24, 39, 106, 128, 138, 211 (Gramsci, 2005a), 224, 251 e 366 (Gramsci,
2005b), trazem alguns elementos para pensar essa questão.
Um tema recorrente nas cartas é a exposição do cárcere para
as crianças. Parece existir, especialmente na família Schucht, a com-
preensão de que o cárcere não lhes deve ser revelado.140 Em uma car-

140 Em uma nota na carta n. 211, destinada a Tatiana, há a seguinte observação: “Delio e
Giuliano não foram informados da prisão do pai nos termos aqui defendidos”. Na intro-
dução às cartas de Tatiana aos familiares, Giuliano afirma: “Só soube que meu pai estava
na prisão pouco antes da sua morte. A verdade me foi revelada por um vizinho” (Gramsci,
2005a, p. 464).

310
C artas do cárcere e a educação da infância

ta à mãe, Gramsci pede que não apaguem o carimbo do cárcere exis-


tente no verso de uma fotografia. E explica o porquê: “Não só não me
envergonho de estar no cárcere, mas, para ser mais exato, me sinto
extremamente honrado; certamente, este será também o sentimento
do menino quando for capaz de compreender estas coisas” (Gramsci,
2005a, p. 261). Gramsci entende o cárcere como parte da constitui-
ção moral e política dos filhos. A estratégia da família de escondê-lo
das crianças é entendida por Gramsci como um grande erro:

Não consigo imaginar por que esconderam de Delio que estou na prisão, sem re-
fletir que ele poderia descobrir indiretamente, isto é, da forma mais amarga para
um menino, que começa a duvidar da credibilidade de seus educadores e começa
a pensar por conta própria e a ter vida autônoma. [...] que não é correto nem útil,
em última análise, esconder dos meninos que estou no cárcere: é possível que a
primeira notícia provoque neles reações desagradáveis, mas o modo de informá-
los deve ser escolhido com critério. Eu penso que é conveniente tratar as crianças
como seres já razoáveis e com os quais se fala seriamente até das coisas mais sérias;
isto lhes causa uma impressão muito profunda, reforça o caráter, mas especial-
mente evita que a formação da criança seja deixada ao acaso das impressões do
ambiente e à mecanicidade dos encontros fortuitos (Ibid., p. 463).

Não há elementos nas cartas para explicar essa escolha da fa-


mília. Mas é recorrente que as famílias escondam ou “poupem” as
crianças de problemas ou fatos dolorosos por acreditar que trarão
prejuízos psíquicos-emocionais. Ao contrário dessa visão, Gramsci
aponta duas consequências para a atitude da família: a ruína da credi-
bilidade dos adultos, afetando a condição fundamental de confiança
necessária no processo formativo; e a privação de um rico momen-
to de sólida formação moral que irá causar “uma impressão muito
profunda”, fortalecendo o caráter. Daí a defesa veemente de que os
filhos não somente saibam que o pai está preso, mas, principalmente,
entendam o motivo do cárcere. Gramsci explica à mãe como realizar
essa formação com Edmea:

311
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

Como Edmea também deve seguir seu próprio caminho, é preciso pensar em for-
talecê-la moralmente, impedir que ela vá crescendo cercada só pelos elementos da
vida fossilizada do vilarejo. Penso que vocês devem lhe explicar, com muito tato,
naturalmente, por que Nannaro não se ocupa muito dela e parece deixá-la de lado.
Devem lhe explicar que seu pai hoje não pode voltar do exterior e isto se deve ao
fato de que Nannaro, tal como eu e muitos outros, pensamos que as muitas Edmeas
que vivem neste mundo deveriam ter uma infância melhor do que a que tivemos e
ela mesma tem. E devem lhe dizer, sem nenhum subterfúgio, que estou na prisão,
assim como o pai dela está no exterior. Certamente, devem levar em conta sua idade
e seu temperamento, bem como evitar que a pobrezinha se aflija excessivamente,
mas devem também dizer a verdade e, assim, acumular nela lembranças de força, de
coragem, de resistência às dores e às adversidades da vida (Ibid., p. 121-22).

É evidente, no trecho acima, que explicar o motivo do cárcere


é também um posicionamento político, mostrando às crianças que a
forma como o mundo funciona não é natural, mas constituída a partir
de desigualdades, violência e expropriação. Negar a verdade à crian-
ça é impedir sua formação consciente da realidade histórico-social.
Gramsci também critica a atuação da família ao reforçar as-
pectos moralmente degradantes, desvirtuados e corrompidos do am-
biente mesquinho e falsificado. Na carta à mãe do dia 27 de junho de
1927 (Ibid., p. 165), Gramsci condena o apego de Edmea ao dinhei-
ro: “Você acha que este é um bom modo de educar as crianças? Eu
me pergunto se uma menina educada assim pode sentir vergonha
de se prostituir, pois lhe ensinaram que o dinheiro vale por si mes-
mo”. Em outra carta à mesma destinatária, Gramsci alerta para o fato
de as crianças perceberem quem de fato as considera e explica as
consequências de um ambiente de violência no trato com a criança.
Gramsci (Ibid., p. 313) adverte que “pancadas” e “intimidações auto-
ritárias” não vão resolver o problema, pelo contrário, “só conseguem
tornar hipócritas as crianças e amargurá-las sem razão”. Em uma car-
ta a Carlo, censura a família por colocar Edmea contra a mãe:

312
C artas do cárcere e a educação da infância

Acreditam que, um dia, Edmea não possa vir a saber muitas coisas e sentir que
hoje tenha falseado seus sentimentos? Escrevo estas coisas porque eu mesmo sofri,
quando criança, por ter feito maus julgamentos e alguns destes sofrimentos deixa-
ram cicatrizes em minha consciência (Ibid., p. 293).

E, por fim, desaprova a excessiva valoração da beleza externa


e da vaidade feminina em detrimento de valores substancialmente
superiores como honra, seriedade moral e capacidade intelectual.
Sobre Edmea, Gramsci afirma que há “o desejo de fazer uma bonita
figura de modo aparente e superficial”, mas falta “a autoestima e o
sentido de honra intelectuais e a seriedade moral, isto é, a vontade
de ter valor realmente e não só parecer ter, de saber e não só parecer
saber” (Gramsci, 2005b, p. 32).
A questão, portanto, é a formação moral e política da criança,
que está intrinsecamente relacionada às ações dos adultos que a ins-
truem: “é evidente que minhas observações se dirigiam não a Mea,
mas a quem a educa e dirige” (Ibid., p. 43). Nesse sentido, Gramsci
reporta-se à noção de “enriquecimento progressivo”, de alimentar e de-
senvolver “uma concepção de mundo embrionária” na criança (2005a,
p. 432). É evidente que o adulto que não dispõe dessa sólida formação
político-moral tampouco exercerá uma instrução espontânea e vigoro-
sa de forma a conduzir a criança a uma consciência histórica autôno-
ma. Por isso, Gramsci destaca a necessidade de educar os educadores.

Algumas considerações
O recorte aqui escolhido expressa a potencialidade da obra de
Antonio Gramsci. A partir da investigação do epistolário do cárcere,
com uma amostra de 165 cartas, tornou-se possível uma aproxima-
ção à concepção gramsciana de educação da infância, que revela uma
fértil discussão sobre o desenvolvimento humano e os processos de
ensino-aprendizagem da criança.
No diálogo de Gramsci com Giulia e com a família na Sarde-
nha, evidencia-se a tese de que “a natureza humana é o conjunto das

313
Adriane Guimarães de Siqueira Lemos

relações sociais historicamente determinadas” (Gramsci, 2002, p.


56). Nessa amostra do epistolário, também é possível compreender
as implicações dessa tese para a educação da infância.
Na observação atenta do que está sendo realizado ou não na
educação dos filhos e da sobrinha, se manifesta o questionamento
de Gramsci acerca de concepções de educação que se fundamentam
em uma perspectiva psicobiológica de desenvolvimento humano. A
natureza humana é histórico-social. Nesse sentido, Gramsci refuta a
perspectiva que busca na própria criança, em um desabrochar por
si mesma a partir de tendências congênitas, o fundamento para a
prática educativa. A criança deixada a si mesma, escolhendo seu pró-
prio percurso ou abandonada em meio às mais variadas influências e
processos formativos para a subalternidade, não é compatível com o
marxismo histórico-dialético.
Como consequência dessa questão, Gramsci destaca a im-
portância das possibilidades dadas às crianças tendo em vista o seu
desenvolvimento qualitativo. Gramsci entende a necessidade do en-
riquecimento progressivo, para o qual se faz necessária a ação cons-
ciente, intencional, direta, instrutiva, coercitiva e disciplinar de uma
geração sobre a outra. Trata-se de elementos de um projeto mais
amplo de direcionamento político-intelectual, tendo em vista outra
realidade qualitativa para a organização social, sem desconsiderar a
relação entre estrutura e superestrutura.
Esses elementos da concepção gramsciana ainda hoje podem
contribuir para a discussão do campo da educação infantil, especial-
mente no debate acerca da escolarização da infância. As possibili-
dades dadas pela perspectiva gramsciana de educação da infância
também se estendem para demandas existentes na educação bási-
ca, perpassando questões ligadas a currículo, organização do ensi-
no, disciplina, hábitos acadêmicos, atividade intelectual e formação
ético-política.
Não se trata de transpor, adotar ou incorporar este ou aquele
elemento evidenciado por Gramsci, mas de entender as condições e
desdobramentos desse pensamento para o desenvolvimento históri-

314
C artas do cárcere e a educação da infância

co hodierno. A perspectiva gramsciana é de formação, de instrução


e de direcionamento intencional das novas gerações, a fim de que se
apropriem e superem a estrutura massacrante.

Referências
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liguori, G.; voza, P. (Orgs.). Dicionário gramsciano: 1926-1937. 1. ed. São Paulo:
Boitempo, 2017.

marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. 2. ed. São


Paulo: Abril Cultural, 1978.

saviani, D. Escola e democracia: Teorias da educação, Curvatura da vara, Onze


teses sobre a educação política. 41. ed. Campinas: Autores Associados, 2009.

315
S obre os autores

Adriane Guimarães de Siqueira Lemos


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Edu-
cação da Universidade Federal de Goiás. Mestra em Educação. Especialista em
Psicologia dos Processos Educativos; em Docência no Ensino Superior; em Psico-
pedagogia. Graduada em Pedagogia com complementação na área de Português
em Curso de Formação Pedagógica.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/1823263991104670.

E-mail: adrianegsiqueira@hotmail.com

Cláudia Borges Costa


Licenciada em História. Mestre e doutora em Educação, professora aposentada da
Rede Municipal de Educação de Goiânia. Professora da Unialfa. Participante do
Projeto de Pesquisa Centro Memória Viva — Documentação e Referência em EJA,
Educação Popular e Movimentos Sociais (FE/UFG). Membro do Fórum Goiano
de EJA.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/5189182534267867

E-mail: cbc2111@gmail.com

Gaudêncio Frigotto
Graduado e bacharel em Filosofia; graduado em Pedagogia; mestre em Adminis-
tração de Sistemas Educacionais e doutor em Educação: História, Política, Socie-
dade. Professor associado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor
titular (aposentado) da Universidade Federal Fluminense.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/4535332644982596

E-mail: gfrigotto@globo.com

316
S obre os autores

Gianni Fresu
Professor de filosofia política na Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em
pesquisa filosófica pela Università degli Studi “Carlo Bo” de Urbino e presidente da
International Gramsci Society Brasil.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/0917580148264621

E-mail: giannifresu@ufu.br

Giovanni Semeraro
Graduado em Filosofia. Mestre em Teologia e Filosofia da Educação. Doutor em
Educação. Professor titular na Universidade Federal Fluminense. Coordenador do
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia Política e Educação (NUFIPE).

Lattes: http://lattes.cnpq.br/6956417347930716

E-mail: gsemeraro07@gmail.com

Júlio César Apolinário Maia


Licenciado em Educação Física. Pós-graduado em Docência com Ênfase na Edu-
cação Profissional. Mestrado (em andamento) em Educação pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Jataí (UFJ).

Lattes: http://lattes.cnpq.br/1566093335953705

E-mail: jcesarm@outlook.com

Maria Ciavatta
Licenciada em Filosofia e em Letras Clássicas, mestre em Educação e doutorado
em Educação. Professora titular de Trabalho e Educação na Universidade Federal
Fluminense. Atualmente é associada ao Programa de Pós-Graduação em Educação
- Mestrado e Doutorado – da Universidade Federal Fluminense.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/5368554854684382

E-mail: maria.ciavatta@gmail.com

317
Maria Emilia de Castro Rodrigues
Licenciada em Pedagogia. Mestre e doutora em Educação. Professora aposentada
da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Participante do
Projeto de Pesquisa Centro Memória Viva — Documentação e Referência em EJA,
Educação Popular e Movimentos Sociais (FE/UFG). Membro do Fórum Goiano
de EJA.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/2648444233565239

E-mail: me.castrorodrigues@gmail.com

Maria Margarida Machado


Professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás.
Licenciada em História, mestre e doutora em Educação. Coordenadora do Projeto
de Pesquisa Centro Memória Viva — Documentação e Referência em EJA, Educa-
ção Popular e Movimentos Sociais (FE/UFG). Membro do Fórum Goiano de EJA.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/3133555536143694

E-mail: mmm2404@gmail.com

Marise Ramos
Licenciada em Química, mestre e doutora em Educação. Especialista em Ciên-
cia, Tecnologia, Produção e Inovação em Saúde Pública da Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz). Professora
associada da Faculdade de Educação da UERJ. Docente credenciada no quadro
permanente dos Programas de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação
Humana (PPFH/UERJ) e de Educação Profissional em Saúde (EPSJV/Fiocruz).

Lattes: http://lattes.cnpq.br/3796863111902233

E-mail: ramosmn@gmail.com

318
S obre os autores

Peter Mayo
Professor de Artes, comunidades abertas e educação de adultos da Faculdade de
Educação da Universidade de Malta.

E-mail: peter.mayo@um.edu.mt

Simone Aparecida de Jesus


Professora da Rede Municipal de Ensino de Aparecida de Goiânia, doutoranda em
Educação pela UFG. Graduada em Letras Português/Inglês e em Pedagogia. Mes-
tre em Educação; especialista em Formação de Professores em Língua Portuguesa;
e especialista em Psicologia dos Processos Educativos – UFG, 2015.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/8544801733673326

E-mail: sisiaje@gmail.com

Vera Lúcia Paganini


Graduada em Letras, mestre em Letras e Linguística com ênfase em Estudos Lite-
rários, doutora em Educação (UFG). Atualmente é professora titular da Universi-
dade Estadual de Goiás (UEG) e professora titular IV (aposentada) da Secretaria
de Estado da Educação.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/2947592937662056

E-mail: verapaganini50@gmail.com

319
SOBRE O LIVRO
Formato: 16x24 cm
Tipologia: Off-Set 75g
Papel de capa: Triplex 250g
Número de páginas: 319
Tiragem: 150
Suporte do livro: Impresso / E-book
Impressão: Bartira

EDITORA SOCOTTI
Av. República do Líbano, nº 2311 - CEP 74125-125 Goiânia-GO
(62) 98121-6148 | (62) 3211-3458
E-mail: contato@editorascotti.com

2020
Impresso no Brasil | Printed in Brazil
PARTE II

Gaudêncio Frigotto, Maria


Ciavatta e Marise Ramos
Gramsci: A historicidade da filosofia
da práxis e a educação
Cláudia Borges Costa e Maria
Emilia de Castro Rodrigues
Subalterno e oprimido: Diálogo com
Gramsci e Freire
Maria Margarida Machado
Direito à educação e manutenção da
subalternidade
Vera Lúcia Paganini
Entre missais e carabinas: O poder
do discurso ou o discurso de poder?
Adriane Guimarães de Siqueira
Lemos
Cartas do cárcere e a educação da
infância
E
ste livro resulta do esforço conjunto, de pesquisadores
mais experientes e de jovens pesquisadores, para proble-
matizar algumas das questões relevantes que identifica-
mos, a partir dos referenciais gramscianos, no campo da política e
da educação hoje no Brasil e fora dele. Foi pensado como espaço
de socialização de inquietações e reflexões originadas na disciplina
“Ler Gramsci para pensar a política e a educação”, ofertada desde
2017 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade
de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG). Portan-
to, conta com capítulos de professores e alunos desse programa.
Conta ainda com a valiosa interlocução de colegas pesquisadores
membros da International Gramsci Society (Brasil) e de outros pes-
quisadores que, espalhados pelo Brasil e pelo mundo, se reencon-
tram nesta obra através de seus olhares diversos sobre a força do
pensamento de Gramsci, para nos auxiliar a pensar o hoje.

Maria Margarida Machado

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