Você está na página 1de 66

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/267027891

CAPÍTULO VII ORIGENS DO MISTICISMO NUMÉRICO (CHAPTER VII ORIGINS OF


NUMERICAL MYSTICISM)

Chapter · January 2009

CITATIONS READS

0 3,246

1 author:

Manoel Campos Almeida


Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR)
56 PUBLICATIONS   74 CITATIONS   

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Prehistory of Mathematics View project

Contributions to the history of the state of Paraná, Brazil. View project

All content following this page was uploaded by Manoel Campos Almeida on 17 October 2014.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


CAPÍTULO VII

ORIGENS DO MISTICISMO NUMÉRICO

Tudo dispuseste com medida,


número e peso.
Sab., 11, 20.

TUDO É NÚMERO

Preliminares - Pitágoras e sua escola

É notoriamente conhecida a posição da escola pitagórica, de que tudo é


número; neste capítulo examinaremos as origens dessa concepção.
Pitágoras de Samos, indubitavelmente, constitui personagem extremamente
importante para o desenvolvimento da Matemática, talvez o primeiro matemático
puro registrado pela história. Relativamente pouco se sabe sobre a sua vida ou
sobre as suas realizações matemáticas. O transcorrer do tempo conferiu-lhe
proporções míticas, tornando difícil joeirar o lendário do histórico. Mesmo
biografias antigas, meritórias pelo seu uso de fontes originais, hoje incompulsáveis,
devem ser lidas cum grano salis1, pois lhe atribuem poderes quase divinos, em
tentativa de apresentá-lo como um semideus.
A escola que criou era permeada por uma mescla de ciência e religião, e
alternava espírito científico com misticismo. Seu código de ética pregava o segredo
de sua doutrina, talvez para valorizar seus ensinamentos perante a comunidade.
Essa aura de mistério, que caracteriza a figura de Pitágoras, originou-se na
antigüidade, prevalecendo até o presente.
Pitágoras nasceu em torno de 570 a.C.. O pai, Mnesarco, era gravador de
gemas, mercador proveniente de Tiro; a mãe, Pitais, era nativa de Samos. Pouco se
sabe sobre a sua educação, exceto que foi aluno de Ferecides. Quando tinha entre

1
Com um grão de sal, isto é, com uma pitada de cautela.
18 e 20 anos visitou Tales, então de idade avançada, em Mileto. Anaximandro,
aluno de Tales, lecionava nesta cidade, tendo Pitágoras presenciado suas preleções.
Tanto Tales quanto Anaximandro contribuíram para desenvolver o seu interesse em
matemática e astronomia.
Em cerca de 535 a.C. visitou o Egito, atendendo a uma sugestão de Tales.
Provavelmente levou carta de recomendação de Polícrates, tirano que controlava
Samos, e que mantinha alianças com a terra do Nilo. Ali visitou muitos templos,
participando de discussões com os sacerdotes. É possível que muitos dos
ensinamentos sobre costumes adotados pela sua escola, bem como questões de
geometria, tenham sido coletados nesta viagem.
Cambises II, rei da Pérsia, invadiu o Egito em 525 a.C.. Polícrates desistiu
de sua aliança com os faraós e enviou 40 navios para reforçar a armada persa. Os
persas venceram a batalha de Pelésio, no delta do Nilo, e capturaram Menfis e
Heliópolis, derrotando as forças egípcias. Pitágoras foi feito prisioneiro e levado
para a Babilônia. É possível que nesta ocasião tenha tido conhecimento do teorema
que leva o seu nome, o qual já era conhecido dos babilônios mais de mil anos
antes.
Em cerca de 520 a.C. Pitágoras retornou a Samos. Logo após fez uma
viagem a Creta, para estudar seu sistema de leis. De volta a Samos, estabeleceu
uma escola, que denominou Semicírculo. Aproximadamente em 518 a.C. viajou
para o sul da Itália, onde fundou uma sociedade filosófica e religiosa em Crotona.
Esta sociedade contava com dois círculos de seguidores. O interno, cujos
adeptos eram conhecidos como mathematikoi, ou estudantes, viviam
permanentemente na sociedade, não tinham posses pessoais e eram vegetarianos.
Eram ensinados pessoalmente por Pitágoras. Já os do círculo exterior, os
akousmatikoi, os ouvintes ou aforistas, viviam nas próprias casas, freqüentando a
sociedade apenas durante o dia. A estes era permitido terem posses e não havia
restrições quanto ao seu regime alimentar.
Neste período havia muitos ritos cercados de mistério, boa parte com
origem no oriente, que prometiam aos seus seguidores vida eterna. Para citar
alguns, lembramos os profetas órficos, que circulavam entre a Itália e a Grécia; o
culto de Dionísio, onde homens e mulheres mergulhavam em êxtases selvagens.
Um modo mais pacato de se obter a eternidade era por meio da iniciação nos
mistérios de Demeter e Perséfone, em Eleusis.
Todos esses cultos começavam com purificações rituais, para liberar a
alma dos eflúvios terrenos, para então aspirar à unidade com o divino. Havia então
um renascimento na divindade, e assim ganhava-se a vida eterna.
Os pitagóricos praticavam ritos de purificação e de iniciação, bem como
adotavam estilos de vida monásticos, ascéticos, o que também era comum em
outros cultos. O que os distinguia dos demais era o caminho que propunham para a
elevação da alma e comunhão com Deus, que era principalmente por meio da
matemática. Deus era a unidade e ordenara o universo por meio de números. O
mundo era a pluralidade e consistia em elementos contrastantes. É a harmonia que
restaura a unidade entre as partes contrastantes, moldando-as em um cosmos
uniforme. Ela é divina, e consiste em razões numéricas. Quem dominava esta
harmonia numérica adquiria caráter divino e imortal. É dentro desta doutrina
mística que se desenvolveu a ciência exata dos pitagóricos.
Em 513 a.C. Pitágoras retornou a Delos, pois fora informado de que seu
antigo professor, o sírio Ferecides, estava agonizando. Ali permaneceu por alguns
meses, até o sepultamento do mestre.
Por volta de 510 a.C. irrompeu uma guerra entre Crotona e uma poderosa
cidade vizinha, Sibaris. Pitágoras parece ter-se envolvido, de alguma forma, na
disputa. Sibaris foi derrotada e seu território incorporado ao Estado crotonense.
Em torno de 508 a.C. um aristocrata crotonense, chamado Cílon, incitou
uma multidão contra a sociedade pitagórica. Pitágoras se refugiou em Metaponto,
onde se difundiu um boato acerca do seu suicídio; porém muitas autoridades
antigas afirmam que ele morreu bastante idoso. Pitágoras, em 508 a.C., teria pouco
mais de sessenta anos, o que não justificaria essas afirmações. Resta buscar,
portanto, comprovações da sua sobrevivência após os calamitosos eventos desta
data. A data da sua morte é, portanto, uma questão ainda em debate.
O pitagorismo sofreu eclipses periódicos, como os provocados pela revolta
de Cílon e a posterior, mais grave, de 450 a.C., quando a sociedade foi dispersa
pela Itália; porém o movimento prosseguiu neste país até o ano 300 a.C., quando
Aristoxeno entrou em contacto com os remanescentes da comunidade, que foi
sucessora direta da sociedade de Crotona, em Tarento.
Durante os séculos III e II a.C. os pitagóricos levaram uma vida ascética,
errante. No século I antes da nossa era, quando os romanos já tinham conquistado
quase todos os territórios helenísticos, o pitagorismo mais uma vez se tornou uma
força expressiva no florescente Império Romano.
Inúmeras religiões orientais, como por exemplo o judaísmo alexandrino e a
religião egípcia, que tinham sofrido influência da filosofia grega, garimpavam
argumentos racionais, extraídos dos ensinamentos pitagóricos, em defesa de
crenças, muitas vezes absurdas e irracionais.
É a época dos pseudo-ensinamentos de Hermes Trimegisto, repletos de
idéias pitagóricas, com tintas de religião egípcia, ou de figuras semicharlatanescas,
como Apolônio de Tiana, que afirmava ser um avatar de Pitágoras.
Em Roma, Ovídio e Nigídio Fígulo reavivaram o interesse pela filosofia de
Pitágoras. Nicômaco de Gerasa, que viveu no século II D.C., redigiu interessante
estudo sobre a matemática dos pitagóricos e escreveu uma “Vida de Pitágoras”.
Nesse mesmo século surgiu Numênio de Apaméia, o qual sustentava que Platão era
apenas mais um pitagórico, combinando, assim, os ensinamentos desses dois
filósofos.
No século seguinte, Plotino e Amélio, discípulos de Numênio, ajudados
por obras de Platão, contribuíram para esclarecer teorias metafísicas de Pitágoras.
Porfírio, discípulo de Plotino, também escreveu outra importante biografia de
Pitágoras.
Esses sábios, juntamente com outros, como Moderato, Teon, Crônio e
Trásilo, deram novo ímpeto ao pitagorismo, originando o movimento renovador
hoje conhecido como neopitagórico. Gorman (1979) argumenta, com razão, que é
difícil discernir se são neopitagóricos ou neoplatônicos, em virtude das similitudes
e complementaridades dessas concepções filosóficas.
Quando os cristãos assumiram, no século IV D.C. o controle do estado
romano, os pitagóricos tornaram-se uma minoria perseguida, porém suas idéias
continuaram a ser disseminadas na antiga escola de Platão, a Academia de Atenas,
e em Alexandria. Essa situação perdurou até o século VI, quando Justiniano, o
Imperador do Oriente, fechou a Academia e proibiu o ensino de filosofias e
doutrinas pagãs.
Por um período de mil e duzentos anos, do século VI a.C. ao século VI
D.C., as doutrinas de Pitágoras foram pregadas abertamente. Depois, a Idade das
Trevas se encarregou de obliterar esse conhecimento. Somente o Renascimento
Italiano conduziu a um renovado interesse pelo pensamento pitagórico, com a
redescoberta dos escritos clássicos.
A principal doutrina da filosofia pitagórica consistia na crença de que tudo
era número, ou assemelhava-se e harmonizava-se a ele. Jâmblico (c.250-325 D.C.)
registra, em sua “Vida de Pitágoras”, que o mestre repetia freqüentemente aos seus
discípulos: “Todas as coisas se assemelham ao número” (GUTHRIE, 1.988, p.97;
GORMAN, 1.979, p. 146). Esta é a origem do conhecido mote da escola pitagórica
“Tudo é número”. Iremos, na seqüência, procurar investigar as origens dessa
concepção.

b) Nominação

A nominação de um fenômeno sempre antecede o trabalho intelectual da


sua compreensão e justificação. Esse é o processo que transforma o mundo de
impressões sensoriais, que compartilhamos com os animais, em um mundo próprio
do homem, isto é, cognitivo, um universo de idéias, explicações e significados.
Toda a cognição teórica tem como ponto de partida um mundo pré-moldado pela
linguagem, observa CASSIRER (1.953), desse modo qualquer cientista,
historiador, filósofo ou religioso lida com seus objetos somente após a linguagem
tê-los apresentado.
O liame original entre a lingüística e a consciência mítico-religiosa é
expresso no fato de que estruturas lingüísticas aparecem também como entidades
míticas; a Palavra torna-se então uma espécie de força primária, da qual todas as
ações e seres provêm (CASSIRER, 1.953). A noção de que nome e essência de um
dado ser estão intrinsicamente relacionados, mediante uma correspondência
necessária e interna, e que nome não apenas denota mas realmente é o próprio ser,
bem como a potência do ser real está contida em seu nome, eis o que parece um
dos conceitos fundamentais da consciência mítico-religiosa primitiva.

Doutrina do Nome

Os mitos de criação geralmente procuram justificar a origem do universo,


dos seres vivos e da matéria em geral como produto da intervenção divina. Entre as
formas dessa intervenção podemos identificar duas, de interesse mais próximo. A
primeira diz respeito à criação como produto de uma ação divina: Deus fez (fiat). A
segunda é a criação pela palavra: Deus disse. Bastava ao Deus criador estabelecer
um plano, emitir uma palavra e pronunciar um nome para que a coisa prevista
viesse a existir.
Essa, em síntese, era o que se pode denominar, seguindo CONTENAU
(1950, p.167), de doutrina do nome: uma coisa não existe até que receba, por
intervenção divina, um nome. Em conseqüência, se uma coisa não porta um nome,
ela não existe. Por coisa (res) entenderemos qualquer objeto material, animado ou
inanimado. Essa doutrina encontrava-se amplamente difundida por todo o Oriente
Próximo antigo. Pode-se suspeitar que suas raízes provavelmente mergulham no
neolítico dessa região, imersas na pré-história.

Bíblia

Os estudiosos identificam pelo menos três correntes principais de


diferentes tradições que contribuíram para a composição literária da Bíblia cristã. A
primeira, a tradição javeísta, é assim chamada porque emprega o nome divino
IAHWEH desde a narração da criação. Teve origem provavelmente em Judá e
talvez tenha sido escrita, no essencial, durante o reino de Salomão.
A segunda, a tradição eloista, emprega o nome ELOHIM para designar
Deus. Estima-se ser mais recente que a javeísta, e em geral é relacionada às tribos
do norte.
A terceira, a tradição sacerdotal, se preocupa com as leis, a organização do
santuário, sacrifícios e ofertas. Exprime o espírito legislativo e litúrgico. Esta
tradição se deve aos sacerdotes do templo de Jerusalém, embora preserve
elementos antigos. Salomão iniciou a construção do templo de Jerusalém logo
depois de 970 a.C. Nesta tradição, a criação obedece a um esquema semanal,
litúrgico, tendo Deus descansado no sétimo dia, o sábado, dia do repouso sabático.
A primeira descrição da criação, Gênesis 1,1 – 2,4, pertence à tradição
sacerdotal, a segunda descrição (2,4 b –3,24) é de lavra da tradição javeísta.
As duas formas de intervenção divina mencionadas estão bem
documentadas na tradição bíblica cristã, no Gênesis: "Deus fez o firmamento, que
separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão acima do
firmamento, e Deus chamou ao firmamento "céu""(Gen:1,7 - grifo nosso). É a
criação como produto de ação: Deus primeiro fez (criou) o firmamento, depois
nominou-o: céu. Outros exemplos da criação pela ação figuram nos versículos 16,
os astros; 25, os animais terrestres; 26, o homem. A criação pela ação está mais
bem explicitada na segunda descrição da criação, narrada nos versículos Gên.:2,
4b-25, possivelmente uma tradição mais antiga.
A criação pela palavra aparece em diversas outras instâncias, como em
Gên.: 1,3: "Deus disse: "Haja luz" e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus
separou a luz e as trevas. Deus chamou a luz "dia" e as trevas "noite" (grifo nosso).
Observe-se que primeiro Deus criou a luz por meio da palavra (Deus disse),
denominando-a posteriormente: luz.
A criação pela palavra reaparece em Salmos 33,6:

“O céu foi feito com a palavra de IAHWEH,


e o seu exército com o sopro de sua boca.”

Este salmo faz parte da coleção atribuída ao rei David (c.1.010-970 a.C.),
embora não se tenha certeza acerca da data de sua composição.
Talvez a mais notável expressão do poder criador da palavra apareça no
Evangelho de São João, versículo 1,1:
"No princípio era o Verbo

e o Verbo estava com Deus


e o Verbo era Deus".

Outras culturas primitivas

Paralelo direto encontramos entre as tradições dos índios Uitoto: “No


princípio, a Palavra deu ao Pai sua origem” (PREUSS, apud CASSIRER, 1.953,
p.45). Do mesmo modo, encontramos na Índia a exaltação do poder da Palavra
mesmo acima do poder dos deuses: “Da Palavra falada todos os deuses dependem,
[e] todos os animais e homens; na Palavra vivem todas as criaturas...; a Palavra é o
Imperecível, o primogênito da lei eterna, a mãe dos Vedas, o umbigo do mundo
divino” (Taittirya Brahm., 2,8,8,4; apud CASSIRER, 1.953, p.48).
Entre os polinésios também encontramos mitos de criação em que o poder
de criação da Palavra é posto em evidência. Segundo um desses mitos, no início só
existiam as Águas e as Trevas. Io, o deus supremo, separou as águas pelo poder do
pensamento e pelo poder das suas palavras, criando assim o céu e a terra. Ele disse:
“ Que as Águas se separem, que se formem os Céus, que a Terra surja”(ELIADE,
1963, p.32). Outro mito similar envolve o deus Tananoa. A idéia básica é que
Tananoa induz o processo de criação pela remoção do silêncio original (Mutuhei)
através da produção da Palavra (tom) (CASSIRER, 1.953, p.46).

Como a Palavra é a primeira a aparecer, também é considerada o poder


supremo. Não poucas vezes, culturas primitivas consideraram o nome da
divindade, e não o próprio deus, como fonte real de eficácia.

Mesopotâmia

O Gênesis conta a história de Abraão, nascido em "Ur dos caldeus"


(Gên.:11,28). Sabe-se hoje que Ur era cidade da Suméria. Os ancestrais de Abraão
eram nômades semitas que habitavam a Mesopotâmia. Gên.12,1 narra que Deus
ordenou a Abraão sair da Mesopotâmia para a terra que lhe mostraria. É geralmente
aceito que Abraão passou a viver em Canaã por volta de 1.850 a.C., o que nos
permite afirmar que os relatos da criação descritos no Gênesis provêm de tradições
que remontam, no mínimo, ao final do terceiro milênio antes da nossa era, e que
podem ter sido influenciadas por narrativas similares sumérias.
Aos Sumérios é geralmente creditada a invenção da escrita, por volta de
3200-3000 a.C. Imediatamente em seguida, os seus vizinhos Elamitas
desenvolveram a sua escrita, que mostra clara influência da suméria.
A visão dos povos mesopotâmicos acerca do sobrenatural é uma mistura
inextricável de origem suméria e acádica, influenciada por crenças de uma
população-substrato de origem desconhecida. Como o eminente sumerólogo S. N.
Kramer já sublinhara, é muito possível que haja "traços de influência semítica
mesmo na mais antiga mitologia suméria, tanto quanto são encontrados no caso da
língua suméria" (apud HEIDEL, 1.963, p.12). Isto reforça as conexões entre os
mitos de criação sumérios e os semitas hebraico - bíblicos.
Muito da literatura suméria foi escrito por falantes de acádio, quando o
sumério já era língua extinta. Os acadianos falavam uma língua semítica, podendo
ter estado presentes na Mesopotâmia desde o tempo em que os sumérios chegaram,
ou se haverem difundido pela região logo após. As suas culturas se mesclaram e
devem ter vivido conjuntamente de forma pacífica, gradualmente tornando-se parte
integral da cultura suméria. Sobre tabletes sumérios de argila, encontrados em Fara,
datados de 2.900-2.800 a.C., nomes semíticos (acádicos) são atestados pela
primeira vez. Pode-se conjecturar, por conseguinte, que os antepassados de Abraão
mantinham relações com eles.
O mito de criação sumério Enûma Elish principia com as seguintes
palavras:

1. "Quando no alto o céu (ainda) não tinha sido nomeado;


2. (E) abaixo a terra não tinha (ainda) sido chamada por um nome;"
(HEIDEL, p.18).
Isto mostra que para os sumérios as coisas (o céu, a terra), só passavam a
existir após receberem um nome: é o poder criador da palavra. Os acadianos
tinham uma expressão para designar uma coisa qualquer: "Tudo isto (aqui) que
porta um nome" (CONTENAU, p.167).
HEIDEL (1.963) considera que o poema que ilustra esse mito, na forma
como o conhecemos, foi composto provavelmente durante a primeira dinastia
babilônica (1.894-1.595 a.C.), afirmando, porém, que o mito está indubitavelmente
baseado na cosmologia suméria.

Nomes e números

A propriedade que os números possuem de poderem ser combinados de


vários modos, de se poder escrever cada um de várias maneiras, sugere possuírem
algo de sagrado, induzindo a considerá-los como uma espécie de língua universal,
capaz de tudo expressar. A associação de números com nomes é muito antiga na
cultura suméria.
Uma das primeiras manifestações do poder dos números encontra-se no
panteão sumério, onde existe uma hierarquia numérica dos deuses. Ao deus
supremo, o deus do céu An(u), associava-se o número "perfeito", a unidade (base)
60, o que nos permite inferir a antigüidade deste sistema. A série numérica
atribuída aos deuses, que traduz também a sua importância hierárquica dentro do
panteão sumério, é a seguinte (cf. DHORME, 1.949; IFRAH,1.981, p.310),

An (Anu), deus supremo, deus do céu, 60


Enlil, deus da terra, filho de An, 50
Ea (Enki), o deus das águas, 40
Sin (Nannu), deus-lua, 30
Shamash ((Utu), deus-sol 20
Ishtar (Inanna), deusa-vênus, 15
Nergal, deus dos infernos 14

Marduk, e também Gibil e Nusku 10


O panteão sumério-babilônico, com os símbolos e números associados aos
deuses, pode ser apreciado nas figuras seguintes.

Fig. Símbolos de An 60 e Enlil 50 Ea 40

Fig. Sin 30 Shamash 20 Ishtar 15

Fig. 7.1 Nergal 14 Marduk 10


Os mesopotâmios tiveram a idéia de atribuir um valor numérico aos signos
de seu silabário, de modo que todo o nome pudesse ser expresso por um número. A
criptografia denomina correspondências um-a-um entre sinais e numerais de
“substituição cifrada”. Por exemplo, Sargão II (722-705 a.C.), rei da Assíria, por
ocasião da construção do palácio de Khorsabad, procurou criar um elo entre sua
identidade e a muralha que o defendia, fazendo inscrever: "De 16.283 cúbitos, o
número de meu nome, eu fiz a medida de sua muralha" (RUTTEN, p.197, grifo
nosso). Deste modo estabeleceram a igualdade nome = número.
Dada a importância desta inscrição, convém examiná-la com maior
profundidade. É conhecida na literatura como a famosa Nameninschrift (inscrição
do nome), e provém de um cilindro, mas também foi encontrada inscrita em um
touro e em outros objetos. Reza o seguinte:

No mês de Abu, o mês do descenso do deus fogo, destruidor da vegetação


[cultivada] crescente, quando [se] assenta a plataforma de fundação para a
cidade e a casa. Eu assentei a muralha de fundação, eu construí o seu
trabalho de tijolos. Templos substanciais, construídos firmes como as
fundações da eternidade, eu construí neste ponto para Ea, Sin, Nergal,
Adad, Shamash, Urta. Palácios de marfim, amoreiras, cedros, juníperos,e
madeira de pistache eu construí ao seu comando divino para minha
moradia real. Um bit-hillani [?], uma cópia de um palácio hitita [sírio], eu
construí em frente de suas portas. Vigas de cedro e cipreste eu assentei para
os telhados. De 16283 cúbitos, o número de meu nome, eu fiz a medida de
sua muralha, estabelecendo a plataforma de fundação sobre o leito de
rochas da alta montanha (FOUTS, 1994).

A interpretação desta inscrição permanece em debate. Não parece uma


hipérbole literária com números, ou seja, o embelezamento intencional de um
número com o propósito de glorificar determinado monarca. Isto era um recurso
literário relativamente comum na Mesopotâmia daqueles tempos. Por exemplo,
podemos citar as inscrições de Rimush e de seu pai, Sargão I (c. 2.350 a.C.). Na de
Rimush o número de convidados para festejar (54.016) é convenientemente cerca
de dez vezes o número de convidados de seu pai. Um fenômeno similar pode-se
constatar durante os reinos de Shalmanasar I (c. 1.275-1.245 a.C.) e de seu sucessor
Tukulti-Ninurta I (c.1.245-1.208). A inscrição do primeiro cita a captura de 14.400
prisioneiros, enquanto o segundo afirma que capturou 28.000, convenientemente o
dobro do antecessor.
Outro notável exemplo poético de hipérbole literária numérica
encontramos em uma inscrição de Ugarit:

Deixe seu poderoso exército ser numeroso,


Trezentos dez-milhares.
Conscritos sem número,
Soldados para além de contagem.

Notem-se os termos hiperbólicos “sem número” e “para além de


contagem”, em um paralelismo sinônimo de 3.000.000.
O acádico é uma língua semita, juntamente com o hebreu, o árabe, o
aramaico etc. Ele tem três dialetos: o acádico antigo, o assírio e o babilônico. Pode-
se dizer, portanto, que qualquer coisa escrita em babilônico ou assírio está também
escrita em acádico. Os falantes do acádico emprestaram e adaptaram o silabário
sumério para a sua escrita.
Existe pequeno número de textos, denominados textos numérico-silábicos,
que estabelecem correspondência entre os sinais do silabário (A), com números.
Entre esses textos encontram-se os registrados nos tabletes: W22825+22808,
Rm.806, BM 46603+46609, BM 47732+48191, BM 77233, MMA 86.11.364.
Estudando esses textos, PEARCE (1.996) mostrou o seguinte: 1) existe um
sistema consistente de atribuir correspondência entre numerais e sinais do silabário
(A); 2) a presença de tabletes, que preservam essa paridade, em diferentes sítios,
argúi contra a existência de um “conhecimento secreto”.
Já no terceiro milênio encontramos o aparecimento em textos de valores
numéricos para sílabas, principalmente na ortografia de nome de deuses e de
elementos em nomes pessoais, relacionados a essas divindades. O corpus de
inscrições de Susa proporciona alguns dos mais antigos exemplos encontrados no
segundo milênio. Nas inscrições de Kidinû, cerca de 1.465 a.C. , aparece o valor
3,20 como o equivalente numérico de “rei”. Também figuram 15 - 2,30 e 1,20
como equivalentes numéricos para “direita”, “esquerda” e “trono”,
respectivamente. No primeiro milênio, encontramos numerais freqüentemente
representando nomes divinos.
Embora seja difícil identificar o propósito para o qual esses textos
numérico-silábicos foram compilados, bem como o seu uso na prática cotidiana do
escriba, eles certamente contribuíram para a preservação e manutenção da tradição
de ensino dos escribas, especialmente nos princípios do primeiro milênio em geral,
e no período Seleucida em particular. A cópia fiel de textos tradicionais era parte
integrante da formação do escriba.
Heródoto conta que os gregos aprenderam a escrever com os fenícios. Os
gregos denominam suas letras de phoinikeia, isto é, coisas fenícias; a derivação da
letras gregas do alfabeto fenício é confirmada por uma série de similaridades nos
seus nomes, no modo em que eram escritas e pela sua ordenação, de alpha a tau.
As mais antigas inscrições gregas, rabiscos em pedaços de cerâmica, datam de 730
a.C., embora os gregos já praticassem a escrita algum tempo antes.
No século VI a.C., os gregos desenvolveram um sistema de numeração
escrita de 1 a 24 por meio de letras alfabéticas, conhecido como ático, baseado no
princípio acrofônico, segundo o qual a letra inicial da palavra para o número era
seu numeral. Nesse sistema, os números de um a quatro eram representados por
riscos verticais repetidos; para o cinco adotou-se um novo símbolo, a primeira letra
da palavra grega para cinco: pente (Π ou Γ). Para números de seis a nove
combinava-se o símbolo Γ com riscos unitários verticais: Γ era sete. Para as
potências positivas da base dez, empregava as letras iniciais das palavras
correspondentes: ∆, para deka, dez; H para hekaton, cem; X para khilioi, mil; M
para myrioi, dez mil.
Após a introdução das letras minúsculas na Grécia, surgiu o sistema
alfabético ou jônio, onde a correspondência dos números era feita com as letras
minúsculas.
Como a escrita grega era alfabética, herança dos fenícios, e não silábica,
como a babilônica, o passo natural era associar cada letra a um número, como já os
babilônios o tinham feito, associando cada sílaba a um número. O passo cognitivo
é o mesmo: associar cada signo da sua escrita a um número.
Os Hebreus também adotaram um sistema acrofônico similar. Os seus
numerais usam as vinte e duas letras do seu alfabeto, na mesma ordem das do
alfabeto fenício, do qual elas derivam, para representar, de aleph a tet, as primeiras
nove unidades; então de yod a tsade, as nove dezenas; finalmente de kof a tav, as
primeiras quatro centenas.

Fig. 7.2 Sistemas de numeração grego (jônio) e hebreu

Esses sistemas foram as sementes de grande parte do misticismo numérico


posterior, divulgado entre os gregos principalmente pela escola pitagórica,
constituindo a raiz da gematria e da cabala hebraica, e da numerologia moderna.

Egito

Encontramos também a doutrina do nome entre os egípcios. A importância


da preservação do nome entre eles era fundamental. O filho que ajudava a manter
vivo o nome do pai e, em conseqüência, a sua memória, cumpria meritória
obrigação. Acreditava-se que o corpo físico do homem era acompanhado, de um
lado, por seu Ka, ou duplo e, por outro, pelo seu nome, como uma espécie de duplo
espiritual. O nome era parte essencial do indivíduo; o seu apagar correspondia à
sua destruição. Sem nome ninguém poderia ser identificado no julgamento final,
assim como o homem somente passava a existir nesta terra após haver sido
pronunciado o seu nome. Do mesmo modo, a vida futura só podia ser atingida
depois que os deuses do mundo de além-túmulo se tivessem familiarizado com ele
e pronunciado o seu nome.
Sir E. A. Wallis Budge nos ensina que o mito da criação egípcio, escrito no
papiro de Nesi-Amsu, relata que, antes de que o mundo e tudo o que nele se
contém começasse a existir, só havia o grande deus Neb-er-tcher, pois ainda nem
mesmo os deuses tinham nascido. Chegado o tempo em que ao deus caberia criar
todas as coisa, disse: "Produzi (i.e., criei) a minha boca, pronunciei o meu próprio
nome como palavra de poder e, assim, me expandi sob as evoluções do deus
Quépera (=Neb-er-tcher), e desenvolvi-me a partir da matéria primeva, que
produzira multidões de evoluções desde o princípio do tempo"(BUDGE I, p.104).
Para os egípcios, portanto, a criação resultaria da pronunciação do nome do deus
Neb-er-tcher, ou Quépera, por ele mesmo, notável caso de autogeração. Em outra
versão este deus se confunde com Osíris.
No Capítulo XVII do Livro dos Mortos, encontramos o seguinte
enunciado: "Sou o grande deus Nu, que pariu a si mesmo, e fez do seu nome a
companhia dos deuses" (BUDGE I, p.105). Na seqüência, é perguntado: "Que
significa isto ?" ou "Que é isto? " Ao que é respondido: "É Ra, criador dos nomes
dos seus membros, que veio a existir na forma dos deuses que estão no séquito de
Ra". Pode-se constatar que todos os "deuses" do Egito não passavam de
personificações dos nomes de Ra, cada deus era um dos seus "membros"; o nome
do deus era o próprio deus. Se o egípcio morto não conhecesse os nomes dos
deuses e demônios do mundo inferior, passaria por maus bocados, com o bloqueio
dos seus caminhos e portas fechadas, até que forças hostis lhe dessem cabo; por
isso, como lembrete e guia condutor da sua trajetória de além-mundo, o egípcio
procurava levar para o seu túmulo uma cópia ou resumo do Livro dos Mortos.
O nome de um egípcio que fosse objeto de maldição acarretava o mal ao
seu dono, como o que fosse objeto de benção ou de prece era agraciado com muitas
coisas boas. Esta é uma concepção muito difundida entre sociedades primitivas,
mesmo na nossa era. É costume, em muitas tribos, os aborígines possuírem dois
nomes, um verdadeiro, que deve ser mantido no máximo segredo, e outro de uso
habitual, cotidiano. Acredita-se que, se um feiticeiro vier a conhecer o nome
verdadeiro de alguém, terá grande poder sobre esta pessoa, podendo causar-lhe
malefícios, lançando feitiços e sortilégios sobre o seu nome. Isso mostra que a
identidade entre o nome de uma pessoa e a própria pessoa é noção extremamente
difundida em todo o globo, em todos os tempos. Mostra como a doutrina do nome
pode ser considerada quase como concepção arquetípica, enraizada no inconsciente
de significativa parcela da humanidade.

Outras civilizações

Em Roma, quando o conceito de “pessoa legal” foi formalmente


articulado, esse status foi negado a certos sujeitos físicos, a quem também foi
negada a posse oficial de um nome próprio. Por conseguinte, sob a lei romana, um
escravo não podia ter um nome legal, porque não era enquadrado como “pessoa
legal” ao amparo da lei.
As cidades antigas possuíam divindades protetoras, cujos nomes eram
ciosamente guardados. Quando as legiões romanas sitiavam uma cidade, os
sacerdotes apressavam-se em dirigir orações ou encantamentos à divindade
protetora do lugar, convidando-a a se afastar ou a passar aos romanos,
assegurando-lhe que seria bem tratada, ou melhor do que anteriormente.
O nome da principal divindade protetora de Roma estava envolto no mais
profundo mistério. Temia-se que os seus inimigos pudessem atrai-la, fazendo-a
abandonar Roma. Do mesmo modo a própria cidade possuía um nome secreto, que
jamais poderia ser pronunciado ou escrito, nem mesmo nas cerimônias religiosas,
para afastar conjurações malévolas. A menção do nome da divindade ou do nome
secreto da cidade acarretava a pena de morte. Tão escrupulosamente foi isso
observado, que até hoje se ignora o nome secreto da cidade. Já se conjecturou que
talvez fosse Quiris, de onde advém quirites, cidadão romano, ou então Valentia.
Para os israelitas do antigo testamento, o nome de uma pessoa não apenas a
designa, mas determina sua natureza; uma mudança em seu nome marca uma
mudança em seu destino. Para alterar o fado de Abrão e de sua esposa Sarai, Deus
troca seus nomes para Abraão e Sara (cf. Gen 17, 5; 17, 15). Gen 35,10 registra que
Deus mudou o nome de Jacó para Israel, reordenando seu destino, para assinalar
que sua descendência constituiria a nação de Israel.
Os Esquimós acreditavam que o homem é composto de três elementos:
corpo, alma e nome.
Os indígenas australianos conservam os seus nomes em segredo,
porquanto, se o inimigo os conhecer, poderá prejudicá-los. Após o primeiro dos
ritos de passagem, cerimônias que lhes conferem direitos de homens maduros, a
que se submetem, abandonam, para sempre, os seus nomes.
Em outras tribos da Austrália Central, além de seu nome próprio, usual,
todo homem, mulher ou criança possuem outro, secreto, conferido pelos anciões.
Este só é conhecido dos membros já iniciados do grupo, e enunciado apenas em
ocasiões solenes. Fora disso, apenas é pronunciado após muitas precauções, para
não ser ouvido por pessoas estranhas ao convívio.
Os povos da Costa dos Escravos, na África, crêem na existência de um
liame real, material entre o homem e o seu nome, acreditando que, por meio deste,
pode-se causar-lhe mal.
Entre as tribos que acreditam que revelar o nome aos estrangeiros lhes
concede poder sobrenatural sobre os seus membros, encontram-se os seguintes: os
Araucanos, do Chile; selvagens da Güiana inglesa; Guamis, do Panamá; Apaches,
do Novo México, Arizona e Texas; Sicsicas ou Blackfeet, da família algonquina.
Já entre os que substituem os nomes indígenas, secretos, pelos dados pelos
europeus, agrupam-se: Navajos, do Novo México; Tonkawes, do Texas; Nishinam,
da Califórnia.
Os indígenas brasileiros, civilizados ou semicivilizados, possuem
freqüentemente dois nomes, sendo que um, o da língua nativa, mantém caráter
mais ou menos reservado, enquanto o outro, o da língua portuguesa, é o que
empregam para gozar das regalias de cidadão no convívio na comunidade. Porém
há tribos que costumam dar aos filhos mais de um nome indígena, como entre os
Bororos, do Mato Grosso, ou ainda os Caingangues, do Paraná.
Entre os Apopocuvas (Guaranis), o nome é como um pedaço da alma do
seu portador, idêntico a ele e, portanto, inseparável. O indígena não “se chama”
isso ou aquilo, na verdade é “isso ou aquilo” (GUÉRIOS, 1.956). Os pais, ciosos
dos seus filhos, especialmente quando em contato com estranhos, mantêm os seus
nomes em segredo, atribuindo-lhes alcunhas. Muitas vezes, quando os pais falecem
prematuramente, sem comunicarem aos filhos os seus verdadeiros nomes, estes
permanecem o resto da vida inteira sem os conhecer.
O folclore brasileiro registra vários exemplos de magia simpática, baseados
na onipotência do nome: “escrever o nome de alguém num papel e fazê-lo queimar
é agouro certo”; “colocar o nome escrito [de um desafeto] em um formigueiro ou
cupinzeiro, para que seja destruído”, é infortúnio certo ( CASCUDO).
Na Rússia, costumava-se denominar o recém-nascido de ono, pronome
neutro da terceira pessoa, pelo receio de assalto de espíritos malignos. Talvez seja
esse o motivo de que, em várias línguas, a criança é do gênero neutro. O neutro é o
gênero inanimado, dos seres inertes, desprovidos de fluidos vitais ou alma,
portanto, inatingíveis por meio da magia.

Considerações finais

Como mostramos, a doutrina do nome, de que uma coisa passa a existir


quando recebe um nome, constituía concepção muito difundida entre os povos da
antigüidade, especialmente entre os mesopotâmios. Também estes desenvolveram
o conceito de que nome = número. A doutrina do nome pode ser reformulada
assim: uma coisa passa a existir quando recebe um número = nome. Logo, todas as
coisas que existem têm número. Ora, isso nada mais é do que a doutrina da escola
pitagórica: "Tudo (todas as coisas que existem) é número".
Dificilmente se pode negar a influência mesopotâmica nessa doutrina da
escola pitagórica. Embora a vida de Pitágoras seja pouco conhecida, obscura,
envolta em lendas, relatos tradicionais afirmam que ele estudou no Egito e na
Babilônia. Mesmo o conhecimento do teorema, ao qual o nome de Pitágoras ainda
está ligado, de que em um triângulo retângulo a soma do quadrado da sua
hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos seus catetos, provavelmente provém
dos babilônios.
Embora minúscula, uma pista dessa influência pode ter sobrevivido.
Jâmblico, um comentarista tardio (c.250-c.325), escreveu uma "Vida de Pitágoras",
onde menciona que entre os pitagóricos havia duas formas de filosofia, praticadas
por dois grupos, os ouvintes ou akousmatikoi e os estudantes ou mathematikoi. A
filosofia dos Ouvintes consistia em palestras, nas quais, segundo Jâmblico, não
eram empregadas demonstrações ou raciocínios lógicos, mas apenas emitidas
orientações sobre como as coisas deveriam serem feitas, ou sobre quais
comportamentos deveriam ser adotados. Eram-lhes apresentados dogmas divinos
inquestionáveis que, sob juramento, não deveriam ser revelados. As palestras eram
de três tipos: no primeiro apenas se dissertava sobre certos fatos; noutro,
elucidavam-se estes fatos; no terceiro, prescrevia-se o que deveria ou não ser feito
acerca deles. As palestras subjetivas estudavam a natureza especial de um
determinado objeto, como o exemplo registrado por Jâmblico:

"Qual é a coisa mais sábia?


Número. A próxima coisa mais sábia é o poder de dar nome2." (grifo nosso
- GUTHRIE, 1.988, p. 77).

Encontramos aqui a associação entre número e o poder de dar nome,


característico da doutrina do nome, o que pode testemunhar a influência
mesopotâmica sobre a doutrina pitagórica, isso se a tradução e a interpretação
empregadas estiverem corretas, e se Jâmblico preservou fielmente a tradição sobre
a questão.
Também nessa região pode localizar-se a fonte para as concepções sobre o
misticismo numérico pelas quais essa escola se tornou conhecida.
A influência dos “bárbaros” (egípcios, caldeus, hindus, etc.) sobre as idéias
gregas já era amplamente admitida na antiguidade. Por exemplo, Clemente de
Alexandria (séc. II D.C.- morreu em 215), no seu livro Stromatei (Miscelâneas),

2
the naming power.
em seu Capítulo XV, cujo título muito sugestivo é “A filosofia grega em grande
parte originada dos bárbaros”, então escrevia:

E é bem sabido que Platão estava perpetuamente celebrando os bárbaros,


relembrando que ambos, ele e Pitágoras, aprenderam a maioria e os mais
nobres de seus dogmas entre eles. ...E refere-se que Pitágoras foi discípulo
de Sonches, o arquiprofeta Egípcio; e Platão, de Sechnuphis de Heliópolis;
e Eudoxo, de Cnidius de Konuphis, que também era Egípcio. ...Alexandre,
em seu livro Sobre os símbolos pitagóricos, relata que Pitágoras foi um
aluno de Nazaratus, o Assírio...Assim a filosofia, uma coisa da mais alta
utilidade, floresceu na antiguidade ente os bárbaros, lançando suas luzes
sobre as nações. Posteriormente veio para a Grécia. Em suas primeiras filas
estavam os profetas do Egito, e os Caldeus entre os Assírios, e os Druidas
entre os Gauleses; e os Samaneanos entre os Báctrios; e os filósofos dos
Celtas; e os Magos da Pérsia, que anteviram o nascimento do Senhor, e
vieram para a terra da Judéia guiados por uma estrela. Os gimnosofistas
hindus estão também nesse número, e outros filósofos bárbaros....

Há, evidentemente, uma mistura heterogênea de diversas tradições antigas,


cada qual com maior ou menor grau de veracidade, que deve ser ponderada com
cautela; porém, a atribuição aos “bárbaros” de significativa parcela da filosofia
grega parece consistente.
Clemente cita a obra perdida De Symbolis Pythagoricis de Alexandre
Polyhistor (fl. ca. 50 a.C.), que colocava as raízes da filosofia grega entre os
bárbaros. Alexandre clamava que a filosofia tinha florescido antes dos gregos entre
os profetas do Egito, os Caldeus da Assíria, os Druidas da Gáulia, os xamãs da
Bactria, os philosophati dos Celtas, e os Magos da Pérsia.
Hoje a influência mesopotâmica e egípcia sobre várias idéias gregas,
doutrinárias ou científicas, é reconhecida. Ver, por exemplo, autores como
NEUGEBAUER (1969), SARTON (1993-Ancient...), FOWLER (1999).
Quanto à criação pela palavra, ATWELL (2.000, p. 465) resume bem a
opinião atual sobre a questão:

A criação pela palavra divina era um conceito comum, disseminado no


antigo Oriente Próximo. Não era expressão tardia e refinada da atividade
divina na criação; mas já era um conceito vivo na antiga Suméria. Sua
origem parece penetrar profundamente na crença primitiva no poder do
nome e na magia associada às palavras. Assim como uma imagem pode
repartir a essência da coisa que representa, também a palavra pronunciada
tem o potencial da coisa que significa. Está intimamente relacionada com a
crença que um ato ritual evoca verdadeiramente a realidade que ele
representa.

O Número da Besta e a Tradição Apocalíptica

O número da besta surge no Apocalipse (Revelações) do apóstolo João,


13:18, prenunciando o aparecimento do Anticristo: “Quem é inteligente calcule o
número da Besta, pois é um número de homem: seu número é seiscentos e
sessenta e seis.”
Esse número é, provavelmente, o mais famoso e importante dentro da
história da cristandade. Inúmeras versões já lhe foram dadas e continuam a
emergir, mesmo no presente. Não poucas dessas interpretações vaticinaram
desgraças, provações, ocasionando conflagrações, desalentos e convulsões
sociais, com graves conseqüências para a humanidade.
Ao longo da história vários matemáticos se devotaram ao assunto, em um
determinado momento de suas vidas. Mencionaremos apenas alguns.
John Napier, o inventor dos logaritmos, publicou em 1.593 um caustico e
amplamente lido ataque à Igreja de Roma, intitulado “Uma descoberta integral
das Revelações de João”, no qual propugnava provar que o Papa era o Anticristo
e que o Criador estava disposto a terminar com o mundo entre 1.688 e 1.700.
Esse livro contou com 21 edições, das quais ao menos dez durante a sua vida.
Napier acreditava sinceramente que sua reputação posterior seria devida a esse
livro.
O matemático Michael Stifel, amigo de Lutero, “provou” que as letras do
nome do Papa Leão X (LEO DECIMVS) correspondiam ao número da besta,
666. Em 1.528 Lutero conseguiu-lhe um lugar na paróquia de Lochau, onde
cometeu o erro de prever o fim do mundo. Ao se comprovar que estava errado,
foi preso e demitido de seu posto.
Isaac Newton estudou as profecias apocalípticas, dando sua própria
interpretação sobre elas em seu ensaio “Observações sobre as profecias”.
O interesse por esse número é compartilhado não apenas pelos
matemáticos mas também por sua ciência, a matemática. Nas últimas duas
décadas houve um recrudescimento no interesse no mesmo dentro da matemática,
talvez incentivado pela chegada do novo milênio. Vejamos alguns desses
desenvolvimentos recentes (α)3 .
Dentro da teoria dos números, notou-se que o número da besta além de ser
igual a soma dos quadrados dos primeiros sete números primos:
2 2 + 32 + 5 2 + 7 2 + 112 + 132 + 17 2 = 666 ,
6 x 6 = 36
também é igual à soma dos 36 primeiros números inteiros: ∑ i = 666 , ou seja,
i =1

é igual à soma dos números que figuram em uma roda de roleta.


Um número que tenha 666 dígitos é um número do apocalipse. Números
do apocalipse primos são dados por 10 665 + n , para n = 123, 1.837, 6.409, 7.329,
8.569, 9.663,...
Um número apocalíptico é um número da forma 2n que contenha os dígitos
666. Os primeiros valores de n que satisfazem ao requerido são n = 157, 192,
218, 229,...
Um número do demônio é um número x no qual os n primeiros dígitos de
sua parte fracionária [frac(x)] somam 666. O número pi (π) é um número do
demônio, para n = 144; também a razão áurea (Φ) o é para n = 146.
O número (10 666 )! é denominado número leviatã, onde 666 é o número da
besta e ! denota o fatorial de um número.
GRATTAN-GUINNESS, em um brilhante artigo (2.001) já notava que os
vínculos entre a matemática e o cristianismo ainda não foram ampla e
devidamente estudados. Concordamos integralmente com essa opinião. Embora

3
Quando algum fato ou documento mencionado no texto do presente trabalho puder ser
localizado em um site específico da Internet, este site será referenciado por letras gregas
minúsculas, sendo a data da consulta e seu endereço indicado nas referências bibliográficas.
exista uma vasta literatura marginal ao assunto, ela é, em sua quase totalidade,
fantasiosa, especulativa, sensacionalista e esotérica, vazia de conteúdo científico.
Nessa pseudo-literatura podemos identificar duas principais correntes nos
dias de hoje: na primeira, o autor erige em torno de alguns fatos históricos,
bastante ou pouco conhecidos do público, toda uma trama, com elementos de
romance, aventura e suspense. Reconhece, porém, o caráter fictício da narrativa,
geralmente identificando o que é real (histórico) e o que é de sua lavra. Essas
obras devem ser apreciadas pelo que proporcionam, isto é, entretenimento. Às
vezes têm o mérito de chamarem a atenção do grande público para algum fato
histórico obscuro, gerando um interesse saudável pela história Nota 1.
Já na segunda corrente o autor, com base em alguns fatos históricos, de
modo geral enviesadamente apresentados, pretensamente efetua “descobertas”,
decifra “códigos” e gera “previsões”. É característica dessa corrente que os dados
históricos normalmente sejam distorcidos, ou mostrados parcialmente,
trabalhados e moldados para que se encaixem dentro dos desígnios do autor, em
completo desrespeito às exigências de uma obra científica. Essa corrente é
perniciosa, pois induz erroneamente o público ingênuo a acreditar nela e nas suas
“previsões” Nota 2.
Nos textos de história da matemática hoje disponíveis, como por exemplo
IFRAH (1.981, p.332; 2.000, p.260), MENNINGER (1.992, p.267), EVES
(1.984, p.219), entre outros, o número da besta é apresentado como uma
aplicação singela da gematria. Esse enfoque é, em nossa opinião, apenas parcial,
pois não leva suficientemente em consideração o contexto em que esse número
surge, isso é, sua aparição dentro do corpus conhecido como literatura
apocalíptica.
O simbolismo envolvido não é devidamente apreciado e isso é sumamente
importante para o esclarecimento da questão. Também o que GRATTAN-
GUINNESS (op.cit.) denomina de inter-relações entre as religiões e a
matemática, frisando oportunamente que foram pouco estudadas, não merece o
devido tratamento.
A análise dessas questões é equivalente, acreditamos, ao estudo da
etnomatemática dos apóstolos e de seus discípulos, ou seja, à compreensão da
etnomatemática dos primeiros cristãos. A etnomatemática dos primeiros cristãos
estava impregnada de misticismo numérico. A Palestina nessa época era um
caldeirão onde fervilhavam várias correntes de misticismo numérico, tais como o
misticismo numérico grego, o gnóstico, o hebreu (cabala), bem como o
misticismo de vários cultos de mistério em voga na época. Seu misticismo era um
amálgama desses. Para melhor compreendê-la, necessitamos conhecer as origens
históricas desse misticismo.
Para efeito do presente trabalho, dividiremos a história da Palestina em:
período aquemênida (539-332 a.C.), período helenístico (332-37 a.C.), período
romano (37 a.C.-312/476 d.C.).

Origens

A propriedade que os números possuem de poderem ser combinados de


vários modos, de se poder escrever cada um de várias maneiras, sugere possuírem
algo de sagrado, induzindo a considerá-los como uma espécie de língua universal,
capaz de tudo expressar. A associação de números com nomes é muito antiga na
cultura suméria.
Uma das primeiras manifestações do poder dos números encontra-se no
panteão sumério, onde existe uma hierarquia numérica dos deuses. Os
mesopotâmios, como constatamos, tiveram a idéia de atribuir um valor numérico
aos signos de seu silabário, de modo que todo o nome pudesse ser expresso por um
número, estabelecendo deste modo a igualdade nome = número.
Heródoto conta que os gregos aprenderam a escrever com os fenícios. Os
gregos denominam suas letras de phoinikeia (“coisas fenícias”), e a derivação das
letras gregas do alfabeto fenício é confirmada por uma série de similaridades nos
seus nomes, no modo em que eram escritas e pela sua ordenação, de alpha a tau. A
data em que os gregos derivaram seu alfabeto do alfabeto fenício é ainda hoje
objeto de controvérsias. BERNAL (1.990) acredita que isso ocorreu em torno de
1400 a.C., ou mesmo em data mais recuada, cerca de 1.700 a.C., enquanto que
NAVEH (1997) sustenta que não pode ter ocorrido antes de 1.100 a.C.. As mais
antigas inscrições gregas, rabiscos em pedaços de cerâmica, datam de 730 a.C.,
embora os gregos já praticassem a escrita algum tempo antes.
Como a escrita grega era alfabética, herança dos fenícios, e não silábica,
como a babilônica, o passo natural era associar cada letra a um número, como já os
babilônios o tinham feito, associando cada sílaba a um número. O passo cognitivo
é o mesmo: associar cada signo de sua escrita a um número.
Os helenos empregavam, como vimos, dois alfabetos na representação de
números: um, o milesiano ou jônio, empregava todas as letras do alfabeto, outro, o
ático ou herodiânico, empregava a letra inicial da palavra para o número como
numeral.
Durante a idade helenística (de hellen = grego), após as conquistas de
Alexandre, a língua grega, a koiné, se tornou uma língua internacional, e a idéia
inovadora de usar letras (símbolos de sons) para denotar números, por meio do
alfabeto milesiano, se espalhou pelo Mediterrâneo e pelo Oriente Médio. Esse
sistema foi adotado pelos egípcios, persas, fenícios, árabes e judeus. No Egito, o
sistema milesiano parece ter sido adotado durante o reino de Ptolomeu Filadelfo
(246-221 a.C.).
A doutrina do nome, que prega o poder criador da palavra, de que uma
coisa passa a existir somente quando recebe um nome, constituía concepção muito
difundida entre os povos da antigüidade, especialmente entre os mesopotâmios.
Também estes desenvolveram o conceito de que nome = número. Podemos
reformular a doutrina do nome assim: uma coisa passa a existir quando recebe um
número = nome. Logo, todas as coisas que existem têm um número. Ora, isso nada
mais é do que a doutrina da escola pitagórica: "Tudo [todas as coisas que existem]
é [tem um] número". Provavelmente essa é a origem do misticismo numérico
desenvolvido pela escola pitagórica, o qual influenciou profundamente o
simbolismo numérico posterior, inclusive a numerologia moderna.
Denomina-se de gematria, gematria numérica, ou isopsefia (a palavra grega
para gematria) ao sistema criptográfico onde se atribui às letras (de um alfabeto) ou
às sílabas (de um silabário) valores numéricos convencionados. A palavra isopsefia
vem do vocábulo grego isopsephos, onde iso- significa igual e psephos significa
seixo, pois os gregos empregavam seixos (ou calculi, em latim) nos cálculos com o
ábaco, e posteriormente na formação dos números figurados. A etimologia da
palavra gematria é duvidosa. Argüi-se que pode provir da palavra grega geometria
(γεωµετρία), terra-medida, apresentando-se como prova a evidência do uso da
gematria na construção de templos e outros edifícios oficiais, tais como o Partenon
e o templo de Apolo em Didyma. De qualquer forma, seu uso é aparente na Grécia
por volta do século V a.C., embora a idéia geral possa ter sido bastante difundida
ao redor do Mediterrâneo em uma data anterior.
A gematria grega que nos é familiar requer 27 letras para representar três
eneadas (nônuplas) numéricas (1-9, 10-90, 100-900), empregando o sistema
alfabético. Porém, cumpre observar que três letras arcaicas (Digamma-6, Coph-90,
Sanpi-900) se tornaram obsoletas no meio literário e caíram em desuso, mas foram
mantidas nos cômputos numéricos e na gematria grega, pois do contrário não se
disporiam das 27 letras necessárias para completar as três eneadas.
Os hebreus também adotaram um sistema de gematria similar. O antigo
alfabeto hebreu era muito parecido com o fenício. O alfabeto hebreu mais recente,
cujo uso nos é familiar na gematria, é denominado de hebreu quadrado; parece ter se
originado do alfabeto aramaico e se consolidado em torno do III-II século a.C. Seus
numerais usam as vinte e duas letras do seu alfabeto, na mesma ordem das do
alfabeto fenício, do qual elas derivam, para representar (de aleph a tet) as primeiras
nove unidades, então de yod a tzzadi, as nove dezenas, e finalmente de qoph a tau ,
as primeiras quatro centenas. Como são necessárias 27 letras para a completa
representação das três eneadas, aproveitou-se o fato que cinco letras (kaph, mem,
nun, pe, tzzadi) desse alfabeto têm formas duais, conforme aparecem em posições ou
inicial e medial ou final nas suas palavras. Os mais antigos exemplos do emprego
desse sistema surgem nos fins do séc. II a.C. e no início do séc. I a.C.,
contemporâneos aproximadamente do período do Macabeus. Antes disso não são
conhecidos achados arqueológicos que comprovem o uso de letras hebraicas como
números. A Tabela I mostra os valores numéricos convencionados para os alfabetos
jônio, maiúsculo e minúsculo, e hebreu quadrado.

Tabela I

O uso do sistema de numerais alfabéticos gregos aliou a cada palavra escrita


em um dos antigos alfabetos, como o grego, o hebreu, o árabe, um valor numérico,
desde que o valor de cada letra pudesse ser somado até formar um único número,
correspondente ao número da palavra.
A aritmologia pode ser considerada como a filosofia dos poderes e virtudes
de determinados números inteiros. Já a aritmomancia é a prática da adivinhação ou
da previsão por meio da interpretação das propriedades mágicas dos números.

Misticismo numérico pitagórico


Pitágoras de Samos (570-508 a.C.) e sua escola deram origem ao misticismo
numérico mais antigo que se pode identificar com razoável grau de certeza. Pode-se
afirmar que esse misticismo exerceu extraordinária influência sobre a humanidade,
desde sua origem no século VI a.C. até praticamente os dias de hoje.
Os pitagóricos consideravam "os princípios das matemáticas" (os números)
como os princípios de todas as coisas, materiais ou não. Os números, portanto,
davam origem a todo o mundo material real. Mesmo coisas imateriais, tais como
justiça, alma e razão, originavam-se de "modificações" (combinações?) dos números.
Consideravam "os elementos" dos números serem "os elementos" de todas as coisas,
os “átomos” do mundo material real. O misticismo numérico pitagórico afirmava
que: o número um é o gerador de todos os números e o número da razão; o dois é o
primeiro número par, ou feminino, o número da opinião; três é o primeiro número
masculino verdadeiro, o da harmonia, sendo composto da unidade (1) e da
diversidade (2); quatro é o número da justiça ou retribuição, indicando o ajuste de
contas; cinco é o número do casamento, união dos primeiros números
verdadeiramente femininos e masculinos e seis é o número da criação.
O 10, a tetractys ou década sagrada, representava o número do universo,
pois é a soma de todas as dimensões geométricas. Um ponto (a unidade - 1) gera as
dimensões; dois a reta de dimensão um; três pontos (3) não coplanares determinam
um triângulo com uma área de dimensão dois; quatro pontos (4) não coplanares
determinam um tetraedro com volume de dimensão três; portanto a soma dos
números que representam todas as dimensões dimensões é 1+ 2 + 3 + 4 = 10, o
número perfeito. O número um não era considerado um número para os
pitagóricos, mas sim o princípio gerador de todos os números e, por conseqüência,
o princípio gerador de todas as coisas.
O misticismo numérico grego às vezes é denominado de Cabala Grega.
Não empregaremos essa nomenclatura, porque o termo Cabala é tradicionalmente
aplicado para nominar uma determinada corrente mística de origem hebraica, como
veremos na seqüência, a qual é posterior e sofreu influência do misticismo
numérico grego, o que pode suscitar interpretações incorretas.
Os neopitagóricos e os neoplatônicos
Com a dispersão da escola pitagórica em 450 a.C., o pitagorismo
praticamente desapareceu da história, exceto por uns poucos remanescentes. Por
volta da metade do século I a.C., ressurgiu o interesse nas idéias de Pitágoras por
meio de um movimento denominado de neopitagórico, que floresceu nos primeiros
séculos de nossa era. Sob a influência de Cícero, Nigidius Figulus (98-45 a.C.), seu
amigo, tentou reviver o pitagorismo em Roma. Outros neopitagóricos de
importância foram Philo de Alexandria (20 a.C.- 40 d.C.), um judeu helenizado;
Apolônio de Tyana (fl.c.50 d.C.), figura algo charlatanesca, que se considerava
reencarnação (avatar) de Pitágoras; Moderatus de Gades (fl. segunda metade do
séc.I d.C.), que criticou acerbamente Platão por ter se apoderado das idéias de
Pitágoras sem lhe ter dado o devido crédito; Theon de Smirna (fl.c. 125 d.C.), que
escreveu um tratado “A matemática útil para compreender Platão”, o qual
sobreviveu; Nicômaco de Gerasa (fl.c. 140-150 d.C.), sua obra “Introdução à
Aritmética” é uma de nossas principais fontes sobre a matemática pitagórica, sendo
que sua influência se estendeu pela idade média até a renascença; Numenius de
Apamea (fl. 160 d.C.), cuja mistura dos pensamentos platônico médio e
neopitagórico começa a transformar esse movimento em neoplatônico.
É muito difícil estabelecer uma diferenciação clara entre os movimentos
neopitagóricos e neoplatônico, em virtude das similitudes e complementaridades
dessas concepções filosóficas. O movimento neoplatônico se originou no Egito e,
embora produto do pensamento helenístico, foi largamente influenciado pelos
ideais religiosos e tendências místicas do pensamento oriental.
Ammonius Saccas (nasceu em 242 d.C.) é considerado o fundador do
neoplatonismo, embora não tenha deixado obras escritas; Plotino (205-270 d.C.) é
considerado o primeiro sistematizador dessa escola, foi influenciado por Numenius
e discípulo de Ammonius, escreveu 54 tratados, as Eneadas, que sobreviveram.
Porfírio de Tiro (233-303 d.C.), seguidor de Plotino e Iâmblico (morreu c.330),
aluno de Porfírio, ambos escreveram biografias de Pitágoras. Proclus (410-485
d.C.) é considerado o mais sistemático dos platonistas; escreveu vários tratados
sobre os pensamentos de Platão, bem como diversas obras sobre matemática.
Pensadores cristãos, praticamente desde o começo do cristianismo,
encontraram no espiritualismo de Platão um poderoso aliado na defesa da
concepção da alma humana, conceito que os pagãos rejeitavam. Quando as idéias
de Plotino começaram a prevalecer, os pensadores cristãos se aproveitaram disso
para suportar a doutrina de que há um mundo espiritual real, diverso do da matéria.
Posteriormente filósofos cristãos, como Nemésio (fl.c. 450), incorporaram todo o
sistema do neoplatonismo de tal maneira que foi considerado consoante com o
dogma cristão. Foi Agostinho (354-430 d.C.), que conhecia os trabalhos de Plotino
em uma versão latina, quem se encarregou de depurá-los, adequando-os ao
pensamento cristão.
Um conceito platônico, já presente no Timeus, o do Demiurgo, o do
Grande Artífice ou Fabricante, Arquiteto do Universo, mediador entre Deus, a
fonte primeira e suprema de todas as coisas, e o mundo material, teve importantes
conseqüências para as correntes filosóficas posteriores, principalmente os
gnósticos, os quais estudaremos a seguir. O mundo material foi criado pelo
Demiurgo, pois Deus se restringia à sua orbe, distante das coisas mundanas.

A Cabala
O termo Cabala (do hebreu Kabbalah, o recebido, o tradicional) é
empregado como um termo técnico para uma doutrina mística ou esotérica
concernente a Deus e o universo. Inicialmente consistia apenas de um conjunto de
conhecimentos e tradições populares, em contraposição à lei escrita (Torah), mas
sob a influência dos neopitagóricos (ou neo-platônicos) e dos gnósticos assumiu
um caráter especulativo. Sua principal característica era que, ao contrário da lei
escrita, era reservada apenas a uns poucos eleitos. Os dois livros que expõem esse
sistema são a) o Sefer Yezirah (O Livro da Criação (ou da Formação), e b) o Zohar.
O Zohar, conhecido como a Bíblia da Cabala, é um tratado compilado na
idade média, portanto não influiu no período que nos interessa, ou seja, próximo da
origem da cristandade. Já o Sepher Yezirah (γ) aufere de maior antiguidade. A data
de sua composição ainda é objeto de controvérsia; alguns atribuem sua autoria ao
Rabbi Akiba (c. 120 d.C.), outros sugerem que foi escrito em torno do ano 200
d.C., ou mesmo mais tarde. Porém, ao menos parte de seu material pode remontar
ao segundo século antes da era cristã. O Sefer Yezirah é um tratado curto, que
professa ser um monólogo do patriarca Abraão, no qual, na forma de sentenças
oraculares, enumera as trinta e duas formas de sabedoria pelas quais Deus criou o
universo. O espírito de Deus, os três elementos primordiais (ar, fogo, água), e as
seis dimensões do espaço (altura, profundidade, leste, oeste, norte, sul) formam os
Dez Sefirot. O termo Sefirot se origina do substantivo hebreu “sefirah”, que
significa originalmente “número”ou “categoria”.
O ar (ou espírito) produziu a água primal, a qual, por sua vez, foi
condensada no fogo. A água se condensava em neve, e esta em terra. Essa
concepção de água primal é uma concepção Semítica bastante antiga, a do oceano
primal, conhecido como Apsu pelos babilônios. A doutrina dos elementos primais
provavelmente é de origem semítica, sendo posteriormente adaptada e adotada
pelos gregos. A teoria dos quatro elementos (água, ar, terra e fogo) de Empédocles
(c.495-435 a.C.) foi a que maior influência exerceu na história da ciência,
resistindo como hipótese de trabalho até o início do século XVII da nossa era.
Assim como os números de dois a dez são oriundos do número um, os Dez
Sefirot também são oriundos do um, o espírito de Deus. Isso evidencia a influência
pitagórica nessa doutrina, sendo que os dez Sefirot representam a tectractys
sagrada. As vinte e duas letras do alfabeto hebreu produziram o mundo material,
são a fundação e a origem de todas as coisas, bem como os poderes criadores de
toda existência e desenvolvimento. A relação entre as letras e os Dez Sefirot não é
claramente definida no Yezirah. Porém, elas, pelo seu “peso” (valor intrínseco),
sua combinação e seu intercâmbio produziram toda a criação. As letras são os
instrumentos pelos quais o mundo real, que consiste em essência e forma, foi
produzido a partir dos Sefirot, os quais são meramente essências sem formas.
Enquanto os três elementos primais constituem a essência das coisas, as vinte e
duas letras do alfabeto hebreu constituem a forma.
A literatura apocalíptica do segundo e primeiro século pré-cristãos já
continha os elementos principais da cabala; de acordo com Josefo (c. 37-100 d.C.)
tais escritos estavam de posse dos essênios, que os guardavam zelosamente. Além
da Palestina, a Alexandria do século primeiro da era cristão, ou provavelmente bem
mais cedo, com a sua complexa ebulição de culturas egípcia, judaica, babilônica e
grega, forneceu o solo e as sementes para que essa filosofia mística, a qual sabia
como misturar a sabedoria e os desatinos dos antigos, emprestando a qualquer
prática ou crença supersticiosa um significado profundo e reverenciado.
A partir do exílio, no século VI antes da nossa era, os hebreus começaram a
se difundir pelo Oriente Médio e ao longo do Mediterrâneo Oriental. No século I
a.C., calcula-se que havia um milhão de judeus só no Egito (ALEXANDER,
p.497); boa parcela da população de Alexandria era judaica e a maior parte das
grandes cidades registrava a presença de uma colônia judaica e de uma sinagoga.
Esses eram conhecidos como os judeus da dispersão, ou da diáspora, em grego.

Gnosticismo
Gnosticismo é conhecido como a teoria da salvação pelo conhecimento.
Gnosis, em grego, significa conhecimento. Esse esotérico sistema de teologia e
filosofia representa um dos mais obscuros e complicados problemas na história
geral das religiões. Sua origem antedata a cristandade, suas raízes já foram
buscadas na Índia, Síria, Pérsia, Babilônia e nas religiões de mistério helenísticas,
permanecendo na obscuridade. Originalmente era uma ciência secreta, uma
disciplina arcani 4, ensinada apenas aos iniciados. Existiu uma multiplicidade
de doutrinas gnósticas, cujo estudo vai muito além dos objetivos do presente
trabalho. Vamos nos restringir à exposição de algumas das suas idéias centrais,
bem como de determinadas correntes que interessam ao nosso propósito.
Quando Ciro conquistou a Babilônia em 539 a.C., duas grandes correntes
de pensamento se fundiram. A idéia da grande luta entre o mal e o bem, idéia
central do mazdeismo iraniano, se uniu com as concepções astrológicas
babilônicas, de que os astros, principalmente os sagrados sete: Lua, Mercúrio,
Vênus, Marte, o Sol, Júpiter e Saturno, tinham uma influência fatalística nas
questões terrenas. Os sete astros, simbolizados por milênios pelas torres em

4
Disciplina do segredo, como os ensinamentos dos primeiros cristãos eram considerados
durante as épocas de perseguições.
degraus (zigurates) babilônicas, deixaram de serem deuses, mas permaneceram
como archontes e dynameis, regras e poderes que eram respeitados pelo homem.
Dessa combinação surgiu a crença que a alma humana deveria passar através das
sete esferas planetárias (os sete astros) para atingir a esfera de Deus. Essa ascensão
da alma através das esferas planetárias para o céu além, uma idéia desconhecida
mesmo nas antigas especulações babilônicas, começou a ser concebida como uma
luta entre poderes adversos, o bem e o mal, e se tornou a primeira e predominante
idéia no gnosticismo.
O segundo grande componente do pensamento gnóstico é a mágica, isto é,
o poder de uma mistura de sons, nomes estranhos, gestos e ações produzir efeitos
sobrenaturais desproporcionais às suas causas. Esse componente provavelmente
sofreu a influência da Babilônia e Assíria, pois milhares de tabletes cuneiformes
contendo fórmulas mágicas ali foram encontrados.
Na concepção gnóstica o Demiurgo foi criado por uma série de emanações,
as quais também trouxeram ordem ao caos e ânimo espiritual à matéria sem vida.
Essas emanações são associadas aos aeons, os poderes criativos do cosmos, os
quais na cabala judaica correspondem aos Sefirot.
Até a descoberta recente dos códices de Nag Hamadi, de treze textos
gnósticos encerrados em um vaso de argila encontrado perto de Nag Hamadi, no
Egito, em dezembro de 1945, as únicas informações relativamente detalhadas sobre
as seitas gnósticas provinha dos escritos dos Pais da Igreja Católica. Durante o
acalorado debate com os gnósticos no segundo e terceiro séculos, Irineu, Hipólito,
Tertuliano, Clemente e Orígenes apresentaram refutações contra os ensinamentos
que consideravam heréticos, definindo no processo pela primeira vez muito do que
hoje é considerado doutrina cristã.
A fase judaica do gnosticismo no primeiro século é conhecida como
Gnosticismo Sethiano, pois seus seguidores acreditavam serem descendentes de
Seth, o terceiro filho de Adão. Também no primeiro século uma figura gnóstica
proeminente foi Simão o Mago, a quem os Pais da Igreja atribuem a origem do
gnosticismo cristão, porém mais conhecido por sua menção no Novo Testamento e
por sua disputa com o apóstolo Pedro. Numa fase posterior encontramos o
Gnosticismo de Valentiniano, liderado por Valentinus de Alexandria (110-175
d.C.), que foi responsável por uma importante síntese do pensamento gnóstico no
segundo século. Outros gnósticos notáveis foram Basilides (fl.c.130 d.C.), Cerinto
(contemporâneo de João), Marcion (fl.c.140d.C. ) e Marcus (fl.c.150 d.C.).
O misticismo numérico grego desempenhou um papel proeminente no
desenvolvimento das doutrinas gnósticas. Por outro lado, a extremamente próxima
relação então existente entre o gnosticismo e os primeiros cristãos ressalta a
influência gnóstica na introdução desse misticismo no pensamento cristão
primitivo.
O sacrossanto caráter de que o número foi investido, do primeiro ao quinto
século da era cristã, parece ter sido o resultado de um gradual porém poderoso
influxo de “disciplinas do mistério” orientais no Império Romano. A vacuidade
espiritual do paganismo oficial romano produziu um vazio, o qual tornou o
poderoso misticismo do oriente particularmente atrativo. Uma divindade após outra
fulgurava e desvanecia em popularidade no panteão romano, até que todas foram
eclipsadas, primeiro pelo culto egípcio de Isis e Osíris, depois pelo mitraismo da
Pérsia e, finalmente, pela cristandade.
Irineu (125-203 d.C.), que foi bispo em Lyons no século segundo, escreveu
um tratado em cinco volumes “Contra as Heresias” (β), no qual nos fornece um
relato sobre a teologia do gnóstico Marcus. Marcus considerava as letras do
alfabeto grego conectadas aos aeons; sua interpretação mística do papel do alfabeto
grego na criação do universo é intrigantemente similar à do Sefer Yezirah, onde o
alfabeto hebraico desempenha igual papel. Ele também dividiu o alfabeto em oito
grupos gramaticais: sete vogais (Η,Ω,Α,Ι,Υ,Ε,Ο), oito semi-vogais
(Ζ,Λ,Μ,Ν,Ξ,Ρ,Σ,Ψ) e nove consoantes mudas (Β,Γ,∆,Θ,Κ,Π,Τ,Φ,Χ).
Outro gramático gnóstico, Marsanes, considerava que as letras do alfabeto
grego são “a nomenclatura dos deuses e dos anjos”, e que quando mudavam elas
se submetiam [invocavam] a deuses ocultos “por meio de batidas e tons e silêncios
[pausas] e impulsos” (BARRY, p.112-117). Esse conceito é central na magia
helenistica, como podemos constatar através dos papiros mágicos gregos, onde
figuram longas listas de nomes enigmáticos (voces magicae), combinações de
vogais e permutações de letras. Vários amuletos, pedras gravadas (glíptica),
grafites contendo exemplos dessa magia grega sobreviveram.
Como a letra grega α (alfa) geralmente representava o primeiro princípio, o
simbolismo gnóstico a utilizava como um nome de Jesus. O próprio Jesus parece
ter empregado esse misticismo numérico algumas vezes, como a Bíblia registra:
“Eu sou o Alfa e o Omega, o principio e o fim” (Apocalipse 1,8, 21,6 e 22,13); no
antigo testamento (Isaias 44,6). Essas passagens foram consideradas pelos
primeiros cristãos como liberatórias do uso do misticismo numérico grego na
interpretação da sua própria fé, dado que o próprio Salvador o usava. Cabe registrar
que esse misticismo estava de tal forma impregnado nos hábitos e costumes da
época, que o seu uso não constituía nada excepcional, sendo perfeitamente
compreensível no contexto cultural da época.
Irineu (Contra Heresias, livro I, cap. 15)(β) e Hipólito (Refutações de
Todas as Heresias, VI, 45)(β) nos fornecem a interpretação numérica gnóstica do
nome de Jesus: (grego) ΙΗΣΟΥΣ = 10+8+200+70+400+200= 888. Hipólito
(op.cit.,VI, 47) também nos indica a interpretação gnóstica da palavra AMEM =
(grego) AMHN = 1+40+8+50= 99.
A correlação de Cristo, indicado como alfa e ômega, ΑΩ = 1+800 = 801,
com a pomba (grego) ΠΕΡΙ – ΣΤΕΡΑ = (80+5+100+10)+(200+300+5+100+1) =
801 (Irineu, op. cit, I, 14-16), símbolo da Santíssima Trindade, do Espírito Santo
na crença cristã, é uma ilustração do uso de isopsefia para associar palavras ou
frases de igual valor.
Abriremos aqui um pequeno parênteses para tratar das origens da doutrina
da trindade. Pais da Igreja como Clemente e seus discípulos Hipólito e Orígenes,
que viviam nos maiores centros do movimento gnóstico, no século segundo,
inevitavelmente buscavam inspiração nos modelos com os quais estavam em
contacto. Na época, uma das mais espinhosas fraquezas da doutrina, evidenciada
pela heresia ariana, que negava a divindade de Jesus, era o caráter dual da deidade:
Deus (Pai) e Deus (Filho).
Muitos gnósticos incorporavam os credos neopitagóricos (cf. Plotino,
Iâmblico, Proclus) sobre a trindade, a tríade mística. Para eles 1 e 2 não eram
números, mas somente princípios ou números potenciais, sendo que 3 era o
primeiro número real. Três representava toda a realidade, não somente sua imagem
superficial, e também tinha um começo (1), meio (2) e fim (3). Por meio da tríade,
a unidade (1) e a diversidade (2), que compõem a tríade (1+2=3), têm sua harmonia
restaurada, porque o 3, atuando como mediador, une os outros dois (1,2) em uma
única ordem completa. Desse modo, a ordem divina tinha um caráter triplo, pois a
tríade era a unidade perfeita.
A presença de tríades divinas em todos os credos gnósticos com certeza foi
um fator determinante na criação da doutrina cristã da trindade, porém sua
inspiração última certamente provém do pensamento neopitagórico. Que o Pai e o
Filho eram Um era uma afirmação questionável, tanto em base numérica como
filosófica, mas que o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram inquestionavelmente Um
era um fato, por virtude de serem Três!
Muitos dos mais antigos cristãos, incluindo o apóstolo Paulo, não parecem
ter conhecimento dessa doutrina. Por isso as duas citações do Novo Testamento, a
primeira (Mateus 28,19) referente a uma tríade (Pai, Filho e Espírito Santo) e a
outra (I João 5,7) referente à trindade (o espírito, a água e o sangue), são suspeitas
de serem interpolações, especialmente a última. Referências à Trindade somente se
tornaram comuns após o século terceiro, sendo que essa doutrina somente recebeu
a aprovação oficial da Igreja no Concílio de Constantinopla (381 d.C.).
Graças a Hipólito (op.cit., IV,14) temos uma descrição de uma técnica
usada na numerologia gnóstica, conhecida como pythmenes (tronos, ou raízes). Ë
equivalente à regra tradicionalmente conhecida como “regra dos noves”, ou “noves
fora”. Quando um número é dividido por nove, o resto é o mesmo daquele obtido
se a soma dos dígitos do número original é divisível por nove. Os cabalistas
hebreus empregavam o pythmenes sob o nome de aiq beker, também conhecido
como Cabala das Nove Câmaras. Hipólito também menciona a aplicação do
pythmenes em um sistema numerológico empregado pelos egípcios: “...eles
calcularam a palavra “Deidade” e encontraram que ela reverte em uma quíntupla
com uma nônupla subtraída” (op.cit., IV,44). A palavra para divindade em grego e
copta é theos, ΘΕΟΣ = 9+5+70+200 = 284, mas 284=2+8+4=14=5+9, ou, de outra
maneira, 284 dividido por 9 é 31, com um resto 5.

Oráculos e Invocações
Um dos mais antigos exemplos de isopsefia conhecidos é descrito pelo
pseudo-Calístenes, que escreveu uma biografia (Vida de Alexandre) no século III
a.C. Relata que um deus apareceu em um sonho a Alexandre, declarando-se seu
protetor, e seu nome seria reconhecido da seguinte forma : “Tome duzentos e some
um; então cento e um, e quatro vezes vinte, e dez; e tome o primeiro número e faça
ele o último; e conheça para sempre que deus eu sou” (BARRY, p.90). É dito que
Alexandre interpretou o sonho como: 200+1+100+1+(4x20)+10+200=592, número
que corresponde ao das letras do deus Grego-egípcio SARAPIS: Σ Α Ρ Α Π Ι Σ
=200+1+100+1+80+10+200 =592. O nome Sarapis, ou Serapis, provavelmente é a
composição dos nomes de dois deuses egípcios, Osiris e Apis. O culto de Serapis
foi introduzido em Alexandria por Ptolomeu, o general sucessor de Alexandre no
Egito.
Outros exemplos de isopsefia como método pelo qual os deuses podem
revelar segredos à humanidade, podem ser encontrados nos denominados Oráculos
Sibilinos. Na forma em que hoje os possuímos, compõem-se de quinze livros
compilados por judeus ou cristãos entre os séculos II e IV da nossa era. As Sibilas
eram profetisas com uma longa história no mundo grego-romano, já figuravam, por
exemplo, nos escritos do comediante grego Aristófanes (c.447-380 a.C.) e nos do
poeta romano Virgílio (70-19 a.C.). Há citações de Pausanias, Plutarco, Lívio e
outros afirmando que livros contendo essas profecias eram mantidas em Roma, e
só eram consultados em tempos de perigo ou de acontecimentos anormais. Porém o
capitólio romano, onde esses livros eram mantidos, foi destruído pelo fogo no
tempo de Sulla (84 a.C.) e novamente no tempo de Vespasiano (60 d.C.).
Provavelmente só fragmentos restaram desse corpus antigo, que
possivelmente foram incorporados aos livros que hoje possuímos, os quais são um
pastiche das mitologias helenística e romana pagã, de lendas judias, tais como
referências ao jardim do Éden e da torre de Babel, bem como de uma longa lista de
imperadores romanos; de homilias gnósticas e cristãs primitivas e também de
escritos escatológicos. Os rituais associados às profecias, que os antigos romanos
podiam ter lido, foram removidos pelos editores judeus e cristãos.
O Livro V, que provavelmente foi escrito por um judeu egípcio nos fins do
I século da nossa era, aproximadamente contemporâneo, ou mesmo antecessor, do
Apocalipse de João, do qual alguns acreditam que pode ter sido o protótipo, é
notável pelas passagens apocalípticas ali contidas. Suas primeiras linhas
descrevem, de uma maneira pseudo-profética, mas obviamente retrospectiva, os
imperadores romanos até Marco Aurélio, seguindo curiosamente a ordem sugerida
por Suetônio, o historiador romano.
Depois dos bebês que a loba tomou como crias, virá um rei [imperador] o
primeiro e todos, a primeira letra de cujo nome irá somar duas vezes dez; ele será
vitorioso na guerra; e por seu primeiro sinal ele terá o número dez; então após ele
reinará um que terá a primeira letra como sua inicial; perante ele a Trácia irá
encolher-se, depois a Sicília, então Mênfis, Mênfis se humilhou por falha de seus
líderes, e de uma mulher arrojada, que caiu na onda (sic). Ele dará leis ao povo e
trará todos em sujeição, e depois de um longo tempo seu reinado reverterá para um
que terá o número trezentos como sua primeira letra, e o nome bem conhecido de
um rio, cujo domínio irá alcançar os persas e a babilônia: ele os medas com a
lança. Então reinará um cujo nome-letra é o número três; então um cuja inicial é
vinte: ele alcançará a maior distância da maré do oceano, rapidamente viajando
com sua companhia Ausoniana. Então um com a letra cinqüenta irá ser rei, um
dragão caído exalará atroz guerra, que levantará a sua mão contra seu próprio
povo para matá-lo, e então espalhará confusão, representando o atleta, auriga,
assassino, um homem de muitas ações doentias; ele cortará através da montanha
entre dois mares e os manchará de sangue; ainda ele se desvanecerá até a
destruição; então ele irá retornar, fazendo a si próprio igual a Deus; assim Deus
revelará sua insignificância. Depois dele três reis perecerão cada um na mão do
outro; então virá um grande destruidor de divindades, cujo número setenta
cabalmente mostra. Seu filho, revelado pelo número trezentos, tomará o poder.
Após ele virá um tirano devorador, marcado pela letra quatro, e então um homem
venerável, pelo número cinqüenta, mas após ele um que leva o signo inicial de
trezentos, um celta, ....(apud BARRY, p.91-92).
É uma passagem deveras instrutiva para o nosso objetivo, pois exemplifica
um contexto apocalíptico contemporâneo a e talvez conhecido por João. A lenda
atribui a fundação de Roma aos gêmeos Rômulo e Remo, que foram adotados e
criados por uma loba. Após eles, virá o primeiro rei (imperador), cuja primeira letra
de seu nome (sobrenome) somará vinte: K, a inicial de César (KAISAR), vale 20;
e por primeiro sinal (primeira letra- I) de seu nome Julius (IULIUS), vale 10. É
interessante notar que Suetônio adota Julius César como o primeiro rei, o que
provavelmente indica que o editor desse livro provavelmente o adotou como fonte
da seqüência de reis. O próximo “terá a primeira letra como inicial”, apontando
para o sucessor de Julio César, Augusto (ou Otaviano), cuja inicial do nome é A,
que derrotou Marco Antônio e Cleópatra, sem dúvida a “mulher arrojada”
mencionada. Então vem Tibério, cujo nome começa com a letra T, equivalente a
300, e está ligado ao nome do rio Tibre (Tigre). As menções crípticas a seguir são
indicadas pelos valores numéricos 3=G para Gaius; 20=K para Claudius; e 50=N
para Nero.
É importante notar aqui as menções ao caráter doentio de Nero, bem como a
referência à então popular lenda do retorno de Nero após a morte, Nero Redivivus,
quando então conduziria um exército para o oriente; e a menção que ele se igualará
a Deus, ou seja, será um Anticristo, o qual será derrotado pelo Deus verdadeiro.
A noção do herói, líder ou tirano revivido é um arquétipo recorrente na
história da humanidade. Talvez seu mais antigo exemplo seja o de Alexandre o
Grande. Como morreu repentinamente nos confins do império macedônico, lendas
se formaram acerca de sua morte ou não morte, permanecendo em seus súditos a
impressão de que regressaria brevemente. Exemplos mais recentes encontramos
nos casos de Frederico I (o Barba Ruiva), que pereceu nas cruzadas em 1190,
distante do seu feudo, gerando assim a lenda de um Frederico futuro, revivido, o
Imperador dos Últimos Dias; e de Hitler, cujo suicídio em 1.945 foi testemunhado
por poucos, permanecendo no inconsciente coletivo a impressão de que o insano
retornaria.
Também encontramos aqui a descrição alegórica da Besta de sete cabeças do
Apocalipse (17,3;13,1), sendo que a Besta representava o poder imperial romano e
as sete cabeças os sete imperadores romanos (até Nero). A alegoria da besta como
o poder imperial já estava presente na visão de Daniel. Os “três reis”seguintes são
Galba, Otho e Vitélio. Os imperadores restantes indicados por suas letras gregas
iniciais são: Domiciano (∆=4), Nerva (N=50) e Trajano (T=300), que na realidade
não era Celta mas Espanhol.
No Livro I encontramos menção ao valor numérico do nome de Jesus,
como sendo na ordem de oito centenas, o que certamente coincide com a
interpretação gnóstica: ΙΗΣΟΥΣ = 10+8+200+70+400+200= 888.
Outra forma comum de misticismo numérico grego, além da isopsefia, era
o uso de acrósticos, ou notarichon, no qual as letras iniciais de uma frase ou de
uma passagem formam uma palavra. Talvez o acróstico mais famoso da história
seja o que ocorre no Livro VIII, no qual as letras iniciais dos versos formam:
ΙΗΣΟΥΣ ΧΡΙΣΤOΣ ΘΕΟΥ ΥΙΟΣ ΣΟTΗP (Jesus Cristo, Filho de Deus,
Salvador). Agostinho de Hipona (354-430 d.C.) ressalta que as letras iniciais desse
acróstico formam a palavra grega ΙΧΘΥΣ, que significa peixe, a qual sugeriu aos
antigos cristãos o uso do peixe como emblema da cristandade.
Numerosos exemplos do misticismo numérico grego aparecem em um
corpus de papiros greco-romanos conhecido como Papiros Mágicos Greco-
Romanos. Contém uma variedade de hinos, rituais, fórmulas mágicas, invocações,
etc., datando do primeiro ao quinto século da nossa era. Palavras mágicas (voces
magicae), como AKRAKANARBA, da qual deriva a nossa abracadabra, parecem
ser simples algaravia. Também eram populares palíndromos, palavras que podem
ser lidas em ambas as direções, comuns em amuletos, das quais a mais famosa era
ABLANAHTHANALBA.
Jerônimo (342-420 d.C.), o autor da Vulgata, observou que o nome
da divindade solar Mithras/Meithras (MEIΘPAΣ) tinha o valor numérico de
365; o mesmo valor do nome da divindade gnóstica solar Abrasax
(ABPAΣΑΣ=365), conhecido como senhor do ano de 365 dias, conforme
notou Irineu.
A composição dos livros do Antigo Testamento
A história do povo de Deus, de Abrão até a entrada na terra de Canaã, bem
como a história das origens do mundo e do homem, o que compreende um período
de doze a treze séculos, foi registrada no Pentateuco (a Lei, ou a Torah), entre os
séculos X e V a.C., aproximadamente. O Pentateuco compreende os livros do
Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e o Deuteronômio. As tradições judaica e a
cristã sempre consideraram Moisés como o autor do Pentateuco, daí a expressão
Lei Mosaica.
Presentemente a posição doutrinária continua a afirmar que Moisés é o autor
intelectual do Pentateuco, embora conceda que possa ter se servido de
colaboradores ou secretários; e que para se descobrir a intenção dos hagiógrafos5
deve-se levar em conta os gêneros literários a que pertencem (Dei Verbum,
Concílio Vaticano II).
As críticas à posição de Moisés como o autor material do Pentateuco
começaram a surgir pelo fim do século XVI e início do XVII (da nossa era),
quando se prestou atenção às notáveis incongruências literárias evidentes em seus
livros. Entre outros autores, Astruc, médico pessoal de Luis XV, no século XVIII,
distinguiu neles a existência de duas fontes documentárias: uma chamava a Deus
de IAHWEH, a outra, de ELOHIM. Foi, assim, o inventor da denominada Teoria
Documentária. Posteriormente, J. Wellhausen (1.844-1.918) incorpora essa teoria
no estudo da história da religião em Israel.
H. Gunkel, em 1.895, criou o método da história das formas, cujos
princípios são:1.) estuda-se a história das formas literárias e sua inserção na vida (=
Sitz im Leben); 2.) usa-se o método comparativo, comparando as formas literárias
bíblicas com as de outras literaturas orientais; 3.) acentua-se o elemento
sociológico: a Bíblia é enquadrada no mundo em que ela surgiu (no seu contexto
histórico).
I.R. de Vaux é o autor atual que melhor integrou as conclusões da crítica
literária com a crença tradicional de ser Moisés o autor do Pentateuco. O núcleo
5
Autor dos livros da Bíblia.
central do Pentateuco refere-se à época de formação do povo de Israel, onde,
indubitavelmente, Moisés teve um papel relevante, sendo o líder organizador do
povo no campo religioso e nacional. A crítica literária revela no Pentateuco a
presença de várias tradições, ou documentos, as quais conservadas e transmitidas
junto aos vários santuários, cristalizaram-se paulatinamente em ciclos literários,
sob a pressão do ambiente e do influxo de alguma personalidade importante, como
assevera a hipótese da história das formas.
Vaux reconhece quatro tradições, a saber: 1.) a Javista (J), fixada por escrito
no sul da Palestina, no tempo de Salomão (c.972-933 a.C.); 2.) a Eloísta, ao norte,
pouco posterior à Javista; 3.) a Sacerdotal (P, do alemão Priestercodex = código
sacerdotal), do clero de Jerusalém, durante o exílio babilônico (séc. VI a.C.); essas
três primeiras deram origem aos quatro primeiros livros do Pentateuco: Gênesis,
Êxodo, Levítico e Números; 4.) a Deuteronomista (D), responsável pelo quinto
livro, o Deuteronômio, a qual teve sua origem no norte, sendo depois levada para
Jerusalém (após 722 a.C.), sendo encontrada no Templo na época de Josias (640-
609 a.C.). O estudo comparativo das literaturas do Oriente antigo nos mostra que
essas quatro tradições espelham o ambiente histórico não da época em que foram
registradas por escrito, mas sim do tempo ao qual se referem, ou seja, das origens
de Israel.
Cada hagiógrafo reuniu as várias tradições de que dispunha, provindas de
um longo testemunho oral, e elaborou esse material de uma forma bastante própria,
imprimindo-lhe a sua personalidade e suas perspectivas teológicas pessoais,
adaptando-o e atualizando-o às exigências da sua época e dos seus
contemporâneos. Dessa forma, o autor intelectual, o inspirador dos livros do
Pentateuco é realmente Moisés, porém cada autor específico corporificou seu livro,
o qual nos oferece uma esplêndida síntese das várias fontes isoladas de que ele
dispunha. Os livros da Bíblia, portanto, convém ressaltar, não foram escritos por
Deus, mas sim inspirados por Ele. A única parte da Bíblia escrita diretamente pelo
dedo de Deus (cf. Êxodo 31,18; Deuteronômio 9,10) são as tábuas da lei (do
Testemunho), recebidas por Moisés no monte Sinai.
Outro ponto que devemos esclarecer é quanto à falácia que apresenta o
hebreu como uma língua sagrada, divina, empregada por Deus quando “escreveu”
os livros da Bíblia. Para isso, necessitamos recapitular alguns pontos sobre o uso
histórico do hebreu. O hebreu foi comumente falado na Palestina até c. 300 a.C. De
300 a.C. até 70 d.C., não era mais habitualmente empregado, tendo sido substituído
pelo aramaico, a língua de Cristo e dos apóstolos, todavia permanecia importante
porque era a língua do Pentateuco e a do Templo de Jerusalém. O terceiro estágio
começa com a destruição do Templo pelos romanos (c.70 d.C.) e se estende até
após a cristianização do império romano, no séc. IV. Nesse período, o hebreu teve
uma importância marginal, pois embora o templo e a Torah retivessem sua
centralidade simbólica, perderam muito de sua influência política.
Nos textos mais antigos, notadamente no Pentateuco, o hebreu nem ao
menos é mencionado, nem se prescreve seu uso no culto público ou na oração
privada. Em toda a Bíblia hebraica, há uma única passagem onde o hebreu é, pela
primeira vez, identificado como uma língua distinta da de seus vizinhos
(Nehemias.13:23-30). Só isso já basta para desmistificar o hebreu como uma
“língua sagrada”. Esse conceito só surge muito mais tarde. Uma de suas primeiras
aparições, senão a primeira que pode ser identificada, surge no apócrifo Livro dos
Jubileus (ξ), uma imitação do Gênesis, alegadamente transmitida por um anjo;
escrito em hebreu no segundo século antes da nossa era, e que só sobreviveu
inteiramente em uma tradução em etiópico antigo. A passagem diz (Jubileus 12:25-
27):
“E o Senhor Deus disse para mim [o anjo]: “Abra as orelhas e a boca [de
Abrão] para que ele possa ouvir e falar com sua boca na língua que é revelada
porque ela cessou [de ser falada] da boca de todos os filhos dos homens desde o
dia da queda [de Babel ?]”. E eu abri sua boca e suas orelhas e seus lábios e eu
comecei a falar com ele em hebreu, na língua da criação. E ele tomou os livros de
seus pais – e eles eram escritos em hebreu – e copiou-os. E começou a estudá-los.
E eu permiti que ele soubesse tudo que ele era incapaz de compreender.
Isso influenciou alguns escritos rabínicos posteriores, bem como o Sefer
Yezirah, onde o conhecimento de que o universo foi criado por meio da escrita e da
língua hebraica conduziu a complexas especulações sobre as relações entre suas
letras, suas palavras e a realidade física.
Várias obras (cf. Apocalipse Abraão (15:7, β,ι); Apocalipse Zephaniah (8,
λ); 2 Corintios 12:4)) mencionam que os anjos falavam em uma linguagem
ininteligível pelos homens; o Livro dos Jubileus afirma que essa língua era o
hebreu, e que ele será o idioma dos Fins dos Dias.

A Literatura Apocalíptica
A palavra apocalipse provém do verbo grego apokalypto, que significa
revelar. Por isso, o último livro da Bíblia canônica se denomina Apocalipse ou
Revelações.
O período que vai de 200 A.C a 100 d.C. foi um dos mais atribulados em
toda a história dos judeus. A voz dos profetas se exaurira há tempos e, ao invés da
idade de ouro que predisseram, sobreveio a derrota, a ocupação e uma violenta
perseguição religiosa. Esses ingredientes propiciaram o surgimento de um novo
gênero literário, o que não seria de se admirar em semelhante período de tensões: a
literatura apocalíptica.
O Livro de Daniel, composto na segunda metade do segundo século antes da
nossa era (c, 165 a.C.), pode ser considerado como o mais antigo exemplo de um
apocalipse judaico, o qual inspirou vários outros apocalipses. O elemento
apocalíptico, que já existia nos profetas, por exemplo em Zacarias (1-6) , em
Tobias (XII), pode ser rastreado até as visões de Ezequiel (1-3), as quais talvez
formam o protótipo do gênero. No Novo Testamento encontramos exemplos de
episódios apocalípticos em Lucas (21), Mateus (24-25) e Marcos (13).
É muito difícil se estabelecer uma fronteira entre o gênero apocalíptico e o
profético, do qual de certa forma não é mais que um prolongamento. Encontramos
uma explicação do mecanismo das visões no Apocalipse de Maria Madalena (ζ), na
passagem onde ela pergunta ao Salvador se o vidente vê por meio da alma ou do
espírito (sic). A resposta do Senhor é:”Ele não vê nem através da alma nem
através do espírito, mas a mente que está entre os dois é o que vê a visão e ela é...”
nesse ponto, frustrantemente, o texto é interrompido, pois as quatro páginas
seguintes não sobreviveram no manuscritos disponíveis. Mas é claro que é a mente,
o intelecto, que é o vetor intermediário das visões.
Essas visões não têm valor por si mesmas, mas sim pelo simbolismo que
encerram. Em um apocalipse quase tudo tem um valor simbólico: os números, as
coisas, as partes do corpo e até mesmo as personagens que entram em cena. Um
símbolo é a representação visível de um objeto ou de uma idéia. No judaísmo
primitivo, era denotado não apenas por um signo, mas também por qualquer
característica da relação mística entre Deus e o homem. Simbolismo pode, para
nossos propósitos, ser considerado como o ato de dotar coisas ou ações externas
com um significado interior, notadamente para a expressão de idéias religiosas.
Na sua descrição da visão, o vidente traduz em símbolos as idéias que lhe
foram sugeridas por Deus, registrando assim coisas, cores, personagens, números
simbólicos, sem se preocupar com a incoerência do todo. Para entendê-lo, seria
necessário aprender sua técnica e retraduzir em idéias os símbolos que ele propõe,
senão seus escritos não passariam de uma algaravia desconexa e ininteligível.
De um modo geral, os apocalipses partilham de algumas características em
comum, entre outras, tais como: a) são revelações de coisas misteriosas, as quais
estão além do conhecimento humano ordinário; b) o desvendamento da sabedoria
oculta se dá através de uma visão ou sonho; c) os portadores das revelações
normalmente são os anjos; d) a principal preocupação desses escritos é com o
futuro, o modo como Deus tratará o homem, bem como seus propósitos últimos; e)
o emprego do mistério como fator preponderante em sua composição, além do uso
de figuras fantásticas e de um simbolismo mistificante; f) a utilização de linguagem
simbólica para se referir a certas pessoas, coisas ou eventos.
Muitas vezes os autores dos apocalipses, para valorizar sua mensagem,
escrevem sob o pseudônimo de alguma eminente personagem veterotestamentária,
colocando-se em um ponto de vista passado, tornando-se assim capazes de
“predizer” eventos que acontecem no presente. Os livros assim escritos recebem a
denominação de pseudoepígrafos.
Os apocalipses são fundamentalmente escatológicos. A escatologia é a
doutrina que trata das últimas coisas (ta eschata - em grego), da consumação dos
tempos e da história.
O apocalipse de João é o único representante desse gênero literário
incluído nos livros canônicos6 da Bíblia, o que induz erroneamente a se considerar
que é o único apocalipse existente. O que é pouco conhecido é que existem outros
apocalipses, em um número relativamente considerável, porém não canônicos.
A tradução dos livros do Antigo Testamento conhecida como a tradução dos
Septuaginta é a mais antiga, e os judeus fizeram uso dela bem antes do início da
era cristã. Foi primeiramente aceita pelos judeus alexandrinos, posteriormente se
difundindo entre todos os povos que falavam o grego. No tempo de Cristo era
reconhecida como um texto legítimo, e era utilizada na Palestina até mesmo pelos
rabinos. Os apóstolos e os evangelistas a empregaram, emprestando citações dela,
principalmente em relação às profecias. Sua história é bem conhecida: Ptolomeu II
Filadelfo (287-247 a.C.), rei do Egito, queria enriquecer a recém fundada
Biblioteca de Alexandria com uma cópia dos livros sagrados dos judeus, traduzida
para o grego, a koiné, a língua internacional da época. Foram convocados setenta e
dois sábios, seis de cada tribo de Israel, os quais foram isolados na ilha de Pharos,
onde trabalharam por setenta e dois dias nessa tradução. Findo esse prazo, sua obra
foi julgada em perfeita consonância com o original hebreu e o rei ficou altamente
satisfeito, entronizando solenemente o trabalho na Biblioteca.
Entre os livros considerados inspirados existe um grupo de sete livros do
Antigo Testamento, e outros sete do Novo, que são denominados de
deuterocanônicos, do grego deuteros, segundo, como se pertencessem a um
segundo cânon, posterior ao primeiro. O primeiro, o cânon hebraico, posterior à era
cristã, é fruto de uma série de disputas que se prolongaram desde a queda de

6
Os livros da Escrituras são denominados canônicos, isto é, pertencem a um cânon,
ou registro, catálogo, e constituem um conjunto de textos inspirados por Deus, que
determinam a regra da fé cristã, e tal é o sentido de kanon: cana para medir, régua, logo
regra.
Jerusalém em 70 d.C. pelo menos até o século II d.C. Foi uma época muito difícil
para os judeus que, para manter a unidade de sua fé, procuraram estabelecer um
cânon de seus livros sagrados. Esses eram divididos em Hat-Torah (A Lei); Nebiim
(Os Profetas) e wa-Kéthubim (Os Escritos). Os doutores hebraicos para estabelecer
esse cânon se basearam em dois critérios, ao que parece: se o livro fora escrito na
Terra Santa (Palestina) e na língua sagrada (hebraico).
O segundo cânon, o alexandrino, elaborado pelos judeus alexandrinos no
século I d.C., reconhecia como sagrados também os livros deuterocanônicos, que
não compunham o cânon hebraico. A Igreja Católica considerou válido o cânon
alexandrino, no tocante aos livros do Antigo Testamento, outrora usado por Jesus e
pelos Apóstolos, seguindo fielmente a Tradição. Isso foi estabelecido nos Concílios
de Hipona (393 d.C.), de Cartago (397 d.C.) e de Constantinopla (692 d.C.). Os
Concílios Tridentino (1.546 d.C.) e Vaticano I (1.870) consagraram
definitivamente o cânon das Sagradas Escrituras.
Os livros não canônicos recebem a denominação de apócrifos, palavra que
se origina do grego apokryphos, que quer dizer escondido. Modernamente a
palavra apócrifo se revestiu de uma conotação negativa, significando algo não
autêntico. Pelo contrário, muitos dos livros apócrifos são testemunhos
contemporâneos ou transmitem tradições fiéis de fatos ou relatos dos quais nunca
teríamos conhecimento de outra forma, sendo assim fontes preciosas, em certos
casos únicas, da história. No presente trabalho nos limitaremos ao estudo dos
apocalipses apócrifos.
O mais antigo documento conhecido sobre os apócrifos, o fragmento de
Muratori, datado do final do séc. II d.C., já menciona que somente os apocalipses
de João e de Pedro, este último com ressalvas, podiam ser lidos nas Igrejas. O
elenco mais extenso de escritos do Novo Testamento considerados apócrifos é o
chamado Decreto Gelasiano, escrito esse que usa o nome do Papa Gelásio
(falecido em 496 d.C.), publicado entre 412 e 532, mas que pode remontar em parte
ao séc.III. Enumeram-se nele sessenta livros rotulados de apócrifos.
Listamos, a seguir, alguns dos principais títulos desse gênero literário7, a
literatura apocalíptica: 1. O Livro de Enoch (Etiópico; partes mais antigas
compostas em cerca de 120 a.C.)(λ); 2. Assunção de Moisés (escrito
provavelmente em hebreu no início da nossa era, c. 4 a.C.-10 d.C.) (θ); 3. O Livro
dos Segredos de Enoch (Enoch Eslavônico; escrito em hebreu provavelmente na
primeira metade do séc.I d.C.)(λ); 4. O Apocalipse de Baruch (preservado inteiro
somente em siríaco, escrito provavelmente no início do séc. II d.C.)(λ); 5. O
Apocalipse de Abraão (séc. I-II d.C.)(Testamento de Abrão;β,ι); 6. Esdras (II ou 4
Ezra, semítico, aparentemente hebreu, composto aproximadamente no ano 90
d.C.)(β,δ,κ,λ); 7.Os Oráculos Sibilinos (op.cit.)(λ,η); 8.) Os Testamentos dos Doze
Patriarcas (provavelmente um escrito do século I da nossa era, escrito em
hebreu)(λ); 9. a Ascensão de Isaias (séc. II d.C.)(θ); 10.O Apocalipse de Elias
(Elijah, séc. I-IV? d.C.)(λ); 11. O Apocalipse de Sofonias (Zephaniah; séc. I a.C.-II
d.C.)(λ); 12. O Apocalipse de Moisés ou A Vida de Adão e Eva (provavelmente
escrito em hebreu, data incerta)(δ); 13.O Apocalipse de Sedrach (séc. II-V?
d.C.)(λ); 14. O Apocalipse de Pedro (grego, contemporâneo do Apocalipse de João,
c.130 d.C.)(β, δ); 15. O Apocalipse de Paulo (c.380 d.C.?)(δ); 16. O Apocalipse de
Maria Madalena (grego, séc. II d.C.)(ε, ζ); 17. O Apocalipse de Bartolomeu (séc.
III-V d.C.)(grego) (η); 18. O Apocalipse de Adão (séc.I-II d.C.) (δ, ε, λ); 19. O
Apocalipse de James (séc. II-III d.C.)(ε, δ, η); 20. Apocalipse de Maria (da
Virgem; séc.IX d.C.?)(β).
As origens desses apocalipses, se judaicas, cristãs ou gnósticas, ou ainda
uma combinação dessas, ainda hoje são objeto de discussões e controvérsias.
Indicaremos algumas delas: a) judaicas: 1; 2; 3; 4; 5; 6 (4 Ezra); 7 (livros III-V); 13
; b) cristãs: 7 (Livro II); 9; 14; 15; 16; 17; 19; 20; d) judaicas+cristãs:6; 7 ; 8; 10;
11; 12; e) gnóstica:18. Algumas dessas obras sofreram influências gnósticas em
vários graus, por exemplo (7;18;19), entre outras.

7
Como muitos dos documentos a seguir figuram em mais de um site, indicaremos ao menos
um endereço para consulta, embora os outros sites indicados possam também ser
compulsados. Caso pairem dúvidas sobre informações extraídas de websites, pode-se
compulsar uma versão impressa da maioria dos textos referenciados a sites no presente
trabalho nas seguintes obras: WISE (1.999) e ROBINSON (1.990).
Ë importante observar que os primeiros cristãos, seguindo a tradição
judaica, consideravam a história dividida em duas eras: a que antecedia e a que
sucedia ao advento triunfante do Messias. A diferença entre as duas correntes, a
cristã e a judaica, é que enquanto os cristãos consideram Cristo como o Messias, os
judeus ainda estão a aguardar por Ele. O Apocalipse de João narra que, após a
vinda do Messias, “as almas dos que tinham sido decapitados por causa do
testemunho de Jesus e da palavra de Deus... tornaram à vida e reinaram com
Cristo durante mil anos. Os outros mortos não tornaram à vida antes que se
completassem os mil anos.” (Apocalipse.20; 4, 5). No fim desse período – o
Milênio – seguir-se-á a ressurreição geral dos mortos e o Juízo Final. Essa é origem
dos movimentos milenaristas (Nota 1), que prevêem o fim do mundo no término do
milênio. Somente no século V, quando o cristianismo se tornou a religião oficial do
império romano, a desaprovação ao milenarismo se tornaria enfática.
Foi Agostinho, em sua obra Cidade de Deus, que propôs que o Apocalipse
deveria ser interpretado como uma alegoria espiritual e, quanto ao milênio, que ele
tinha começado na origem do cristianismo e estava plenamente realizado na Igreja,
não devendo ser interpretado literalmente como um intervalo de tempo; o que
constitui a doutrina ortodoxa cristã ainda hoje vigente quanto ao assunto.
A idéia de que as escrituras continham um significado oculto não é nova.
Porém, no século XII, surgiu uma nova espécie de escatologia, derivada dos
apocalipses e dos Oráculos Sibilinos. Joaquim de Fiore (1.145-1.202 d.C.), abade e
eremita calabrês, recebeu, entre 1.190 e 1.195, uma inspiração que lhe revelava um
novo sentido escondido nas escrituras, de imenso valor profético. A sua idéia
inovadora era de que os métodos tradicionais de interpretação das alegorias nelas
contidas se aplicariam não apenas para fins morais e dogmáticos, mas também
serviriam para compreender e prever o desenvolvimento da história. Elaborou
então uma interpretação da história como uma sucessão através de três idades, cada
uma presidida por uma das pessoas da Santíssima Trindade. A primeira idade era a
idade do Pai ou da Lei, uma época de terror e servidão; a segunda idade era a do
Filho ou do Evangelho, uma idade de fé e de submissão filial; a terceira seria a
idade do Espírito, uma era de amor, alegria e liberdade. Suas idéias foram
encorajadas por nada menos que três papas, embora fossem contra a concepção
agostiniana de que o reino de Deus já tinha sido realizado sobre a terra, no
momento em que a Igreja nasceu, e que não se poderia esperar outro milênio
A influência de suas idéias pode ser detectada ainda nos dias de hoje como,
por exemplo, na concepção da história de Augusto Comte, com suas três fases
sucessivas: a fase teológica, a fase metafísica e a fase científica. Também na
dialética marxista reconhecemos sua influência, notadamente nas três etapas de sua
consecução: o comunismo primitivo, a sociedade de classes e um comunismo final,
que deveria ser o reino da liberdade e no qual o Estado terá desaparecido.
Igualmente a expressão “O Terceiro Reich”, de triste memória, e que foi cunhada
em 1923 pelo publicitário Moeller Van den Bruck para designar “a nova ordem”, a
qual deveria durar um milênio, ecoa as idéias de Fiore.

O Apocalipse de João
O autor do Apocalipse se autodenomina João e que se encontrava na ilha de
Patmos quando recebeu a revelação (Apocalipse.1:9). Esse João era o apóstolo
João, o filho de Zebedeu, o discípulo amado de Cristo, que tinha sido banido para
Patmos no reinado de Domiciano (de 81 a 96 d.C.), segundo uma tradição
registrada na mais antiga História da Igreja que possuímos, escrita por Eusébio
(260-341 d.C.), bispo de Cesaréia, na Palestina. Patmos é uma de um grupo de
pequenas ilhas próximas da costa da Ásia Menor, situadas a cerca de vinte
quilômetros de Éfeso.
Desde a antiguidade a atestação de sua autoria pelo apóstolo João é
contestada. A relação entre o apocalipse e o quarto evangelho tem sido discutida
por inúmeros autores, tanto antigos como modernos, uns negando, outros
garantindo sua semelhança mútua.
Já no século segundo a seita herética dos Alogi (contrários à doutrina do
verbo, da palavras: a-logos), não aceitavam nem o Evangelho nem o Apocalipse de
João, pois acreditavam que essas obras tinham sido escritas por um herege de nome
Cerinto. Essa opinião foi compartilhada por alguns poucos pais da igreja, como
Caio e Dionísio.
Dionísio, bispo de Alexandria de 247 a 264 d.C., já listava um rol de
diferenças entre eles, como: enquanto o evangelho é anônimo, o escritor do
apocalipse prefixa seu nome; a terminologia característica do evangelho, essencial
à doutrina joanística, está ausente no apocalipse, termos como vida, luz, graça,
verdade não figuram no último; no evangelho o grego é escorreito, enquanto que a
linguagem do apocalipse parece a Dionísio bárbara, desfigurada por erros de
sintaxe. Embora os defensores de uma autoria comum argumentem que essas
diferenças se devam às naturezas peculiares de cada obra (no apocalipse
encontramos visões e revelações, já o evangelho é escrito como um registro
histórico), a maioria dos autores atuais considera-os frutos de dois autores
independentes. É certo, porém, que o autor do apocalipse pertenceu ao círculo dos
discípulos de João, sendo herdeiro fiel de parte valiosa dos seus ensinamentos. Isso
pode ser comprovado, entre outros detalhes, pela importância que em ambas as
obras se dá ao termo Logos, o Verbo, a Palavra (João 1:1; Apocalipse 19:13; 1
João 1:1). Embora alguns autores se refiram ao hagiógrafo do apocalipse como
João o Presbítero, optaremos por designá-lo doravante como João de Patmos.
Ë um escrito de circunstância, destinado a robustecer o ânimo e a esperança
dos primeiros cristãos, açoitados que eram por um período de perturbações e
violentas perseguições contra sua igreja nascente. Em seu estado atual, seu texto
apresenta certo número de duplicações, de cortes na seqüência das visões e de
passagens aparentemente fora de contexto. Múltiplos argumentos acorrem aos
comentadores no intuito de explicar essas anomalias: compilação de fontes
diferentes; deslocamento acidental de certas passagens ou capítulos; interpolações,
espúrias ou não; etc. A parte propriamente profética (Apocalipse 4-22)
aparentemente é composta por dois apocalipses distintos, escrito pelo mesmo autor
em datas diferentes e depois compilados em um só texto por uma outra mão.
A datação do apocalipse se baseia na afirmação de Eusébio, cujo mestre,
Policarpo, tinha estado entre os discípulos do apóstolo João, de que o seu exílio em
Patmos se deu no décimo quarto ano do reinado de Domiciano, o que nos dá o ano
de 95 d.C., data tradicionalmente aceita para a obra, apesar de que sua autoria
permaneça contestada. É aceito, porém, que partes do mesmo já estariam redigidas
desde o tempo de Nero, ou seja, pouco antes de 70 d.C., ou de Vespasiano, que o
sucedeu.
Quanto à sua canonicidade, o testemunho mais antigo que possuímos, o
fragmento Muratori, já o menciona como inspirado, porém a polêmica sobre sua
inclusão ou não no cânon foi prolongada. Sobre essa questão Eusébio não se
define; o Peshito, a Vulgata Síria, não o aceita, bem como Cirilo de Jerusalém
(315-386 d.C.); assim como não figura na lista de livros canônicos dos sínodos de
Laodicéia (325 ?) e no de Gregório de Nazianzus (381). Até o século V as igrejas
da Síria, Capadócia e da Palestina não o incluíam no cânon das escrituras, prova
que não o consideravam obra de um apóstolo. Lutero descartou-o, bem como
Zwinglio e Erasmo. Somente com o concílio de Trento (1.545-1.563) foi
definitivamente incluído no rol dos livros canônicos.
Toda a literatura apocalíptica se fundamenta em um dualismo ético e
cosmogônico: o Princípio e o Fim; o Bem e o Mal; o Céu e a Terra; Jerusalém e
Babilônia; Ocidente e Oriente; Deus e Satã; o Cordeiro e a Besta; Cristo e o
Anticristo; 888 e 666. Esse dualismo, representado pelo embate entre as forças da
luz e as das trevas, também desempenhou um papel preponderante no gnosticismo
e no mitraismo, podendo suas origens serem rastreadas até o zoroastrismo persa.
Nos deteremos agora na análise do papel representado pela Besta do Apocalipse.

O Anticristo, ou a Besta do Apocalipse


Esse papel maligno é representado no apocalipse por três atores: o dragão
(Apocalipse 12; 3-17), com sete cabeças e dez chifres e, nas cabeças, sete
diademas, que aparece no céu (12:3); a primeira besta, com dez chifres e sete
cabeças, sendo que sobre os chifres tinha dez diademas, que emerge do mar (13;1-
8); a segunda besta (13:11-18), com dois chifres, que surge da terra, também
designada como o falso profeta (16:13; 19:20). Outras menções sobre esse papel
aparecem em: 11:7 (a besta que surge do abismo); 17:7-8 (a besta que sobe do
abismo, com sete cabeças e dez chifres); 20:7 (Satanás solto de sua prisão). O
desempenho de tal papel é quase unanimente atribuído ao que se costuma
denominar de Anticristo, ou Besta do Apocalipse, embora os comentadores
divirjam quanto ao ator que o representa, ou seja, ao versículo que o designa.
Quanto à natureza do Anticristo, as opiniões se dividem: a) é um princípio
demoníaco, porém incorpóreo, não sendo assim nem pessoa nem entidade; b) é
uma pessoa, ou do passado (Nero, Diocleciano, Calígula, etc.), ou do presente, ou
do futuro; c) é uma entidade (o papado, o império romano, etc.), antiga, moderna
ou por vir.
O dragão, com segurança, pode ser identificado com o Diabo, ou Satanás,
conforme esclarece o versículo 12: 9 : “Foi precipitado [à terra, por Miguel e seus
anjos] o grande dragão, a antiga serpente, aquele a quem chamam Diabo e
Satanás, o sedutor do mundo inteiro”. Já a primeira besta, a que sobe do mar, um
lugar maléfico segundo a mentalidade hebraica, e recebe seu poder do dragão
(Satanás), é uma criatura híbrida, cujos traços são reminiscências das quatro bestas
que representam os sucessivos impérios do mundo em Daniel 7. Seus diademas e
seus chifres (ícones de soberania e poder), fazem dela a imagem do estado
autoritário (o império romano, sendo César seu representante supremo), inimigo de
Deus. O dez chifres são habitualmente interpretados como os reis vassalos sob a
supremacia de Roma. A segunda besta, a que fala com a voz de Satanás (13:11), é
a religião oficial, dominada pelo estado, identificada como o falso profeta (16:13;
19:20). O dragão e a primeira besta eram uma imitação do Pai e do Filho, a
segunda besta é um arremedo do Espírito; assim, o caráter trinitário dessas
entidades malignas é um simulacro caricatural da Trindade, havendo na realidade
um único papel malévolo, o do Anticristo ou da Besta do Apocalipse.
João de Patmos supõe que a doutrina concernente à vinda do Anticristo já é
conhecida dos seus leitores; muitos exegetas8 acreditam que essa doutrina tornou-
se conhecida na Igreja por meio dos escritos de Paulo (2 Ts 2:3-10).
O versículo 13:16-17 reza: “[a segunda besta] Faz também com que todos,
...recebam uma marca na mão direita ou na fronte, para que ninguém possa
comprar ou vender se não tiver a marca, o nome da Besta ou o número do seu

8
Pessoa que pratica a exegese; exegese é minuciosa interpretação de um texto ou palavra,
especialmente da Bíblia.
nome”. Essa marca com que todos são assinalados é a imagem (ícone) do
imperador, notadamente nas moedas do reino. Esse parece ser o significado dessa
passagem, de que todas as transações comerciais, sejam compras ou vendas,
seriam impossíveis para aqueles que não tivessem a marca da besta, ou seja,
moedas com a efígie do imperador ou com o seu nome. Contra essa interpretação
argüi-se que os judeus no tempo de Cristo não tinham escrúpulos em manusearem
moedas com a efígie de César: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus, o
que é de Deus” (Mateus 22:15-22). Porém cabe lembrar que o horror dos judeus
por imagens de imperadores era devido principalmente à sua repulsa à idolatria que
Calígula tinha adrede anteriormente adotado: o culto ao César Imperador como
divindade. Ele confiscara diversas sinagogas, transformando-as em templos pagãos
nos quais sua estátua era venerada e, absurdo dos absurdos, em 40 d.C. entronizara
uma imagem sua no sacrossantíssimo Templo de Jerusalém! Não à toa Calígula
sempre foi forte candidato à Besta do Apocalipse.
Analisemos agora o versículo 17: 9-11: “[as sete cabeças] São também sete
reis, dos quais cinco já caíram, um existe e o outro ainda não veio, mas quando
vier deverá permanecer pouco tempo. A Besta que existia e não existe mais é ela
própria o oitavo e também um dos sete, mas caminha para a perdição”. As sete
cabeças da Besta são sete imperadores; cinco deles, diz João, já caíram: Augusto,
Tibério, Calígula, Cláudio e Nero. “Um existe”, diz o autor, ou seja: Vespasiano
(70-79 d.C., época aproximada da redação da primeira parte do apocalipse),
constituindo-se assim no sexto imperador. O sétimo “ainda não veio, mas quando
vier deverá permanecer pouco tempo” provavelmente é Tito, que reinou apenas
por dois anos (79-81).
O oitavo é Domiciano (81-96). João de Patmos identifica-o como a Besta,
porém acrescenta: “...que existia e não existe mais é ela própria o oitavo e também
um dos sete, mas caminha para a perdição”. Isso soa muito enigmático, de sabor
oracular. A pista para a solução dessa charada é fornecida por um mito popular
muito difundido nesse tempo. A morte de Nero tinha sido testemunhada por
poucos. Principalmente no extremo do império, no oriente, permaneceu a
impressão de que Nero ainda estava vivo. Testemunho disso encontramos no Livro
V dos Oráculos Sibilinos, como já mencionamos. Desse modo, os contemporâneos
de João acreditavam piamente em seu retorno. Nero ganhara reputação por sua
licenciosidade e extrema crueldade; no seu reinado (de 54 a 68 d.C.) a primeira
grande perseguição aos cristãos ocorrera: culpou-os pelo incêndio que arrasou
Roma em 64 d.C. Nessa época, o apóstolo Pedro foi crucificado de cabeça para
baixo e Paulo decapitado, ambos em Roma. A segunda grande perseguição ocorreu
sob Domiciano, o que conduziu João a considerá-lo um segundo Nero, “Nero
redivivus”. Desse modo, conta Domiciano como o oitavo e, ao mesmo tempo,
também um dos sete precedentes, a saber Nero.
Essa é a interpretação textual dessa parte do apocalipse, aceita atualmente
pela maioria dos exegetas. Vejamos agora a explicação do número da Besta (Ap
13:18) à luz da gematria.

O Affair Nero Reavaliado


A passagem que nos interessa é: “Quem é inteligente calcule o número da
Besta, pois é um número de homem: seu número é seiscentos e sessenta e seis
(Apocalipse 13:18).”
Como vimos, no início da era cristã dois alfabetos, o grego e o hebreu,
correlacionavam suas letras a valores numéricos, capacitando-os assim a
propiciarem às palavras por meio deles escritas interpretações pela gematria.
Como o Apocalipse foi originalmente escrito em grego, e no texto o número 666
é Χ Ξ F, ou χ ξ F em minúsculas, isso no autoriza a argumentar que o alfabeto em
que João de Patmos pensava quando escreveu esse texto era o grego, e
primeiramente deveríamos procurar sua interpretação em palavras desta língua.
Alguns poucos documentos muito antigos consignam 616 ao invés de 666.
Duas explicações são propostas para esse fenômeno: a primeira, já aventada por
Irineu (Adversus Haereses,V, 30), afirma que a letra medial xi (csi, 60: Ξ,ξ) foi
copiada erroneamente como iota (10: Ι, ι), tratando-se, portanto, de um erro do
copista. É a mais aceita, tendo-se em vista que a maioria dos documentos registra
666. A segunda explicação será apresentada mais adiante.
Praticamente desde o surgimento do Apocalipse tem-se procurado quem
atenda ao prescrito nessa passagem Irineu, já no século II, nos proporciona as
mais antigas interpretações que possuímos desse enigmático versículo. No seu
livro Adversus Haereses (V, 30; β) propõe que os Latinos em geral, ou seja, ou
romanos, atendam ao requerido no apocalipse, pois a interpretação pela gematria
da palavra grega lateinos (ΛΑΤΕΙΝOΣ=30+1+300+5+10+50+70+200=666) nos
dá o número da besta, 666. Não satisfeito, sugeriu ainda o nome EVANTHAS e o
deus TEITAN (Titã), como possíveis candidatos. Ë interessante observar que
Irineu admitia apenas o cálculo gemátrico grego.
Como vimos, o candidato ao título de Besta do Apocalipse mais aceito
pelos exegetas é Nero. Como Porém, seu nome em grego, complementado pelo
seu título CÉSAR (NEPΩN KAEΣAP= 50+5+100+800+50+20+1+5+200+1+100
= 1332) não soma 666. Há evidências que João de Patmos conhecia algo de
hebreu, pelo seu uso de termos dessa língua, como Armagedon e Abadon. Por
isso, tentou-se a transposição do seu nome para essa língua:
NRUN=50+200+6+50=306, QSR=100+60+200= 360, 306+360=666. Essa é a
interpretação usual do Número da Besta que figura nos livros de história da
matemática citados, e é apresentada como exemplo padrão da gematria. Se o N
(nun, 50) final de NRUN for excluído, tem-se então NRU QSR, e valor do nome
passa a ser 616; é o que alguns autores propõem para justificar a escrita 616 ao
invés de 666. Todavia, essa segunda explicação teve uma aceitação restrita.
Contudo, vários comentadores (BARRY, p.145) têm observado que essa
transposição é imperfeita, pois a letra inicial de César deveria ser K=kaph=20 ao
invés de Q=qoph=100, o que forneceria para o nome um valor numérico de 586 e
não 666. Além disso, o nome verdadeiro de Nero era Lucius Domitius
Ahenobarbus, o qual não perfaz 666 nem em grego nem em hebreu; somente
quando foi adotado pelo imperador Cláudio, que casara com sua mãe Agripina, é
que passou a se chamar Nero Claudius Caesar Drusus Germanicus. Era um
caráter brutal, que raiava a insanidade, tendo mandado matar a própria mãe em 59
d.C. Suetônio, o historiador romano autor da Vida dos Doze Césares (início do
séc.II d.C.), registra que nas muralhas de Roma podia-se ler o seguinte grafite:
“Conte os valores numéricos das letras do nome de Nero, e os em “ele matou sua
própria mãe”, e você achará que sua soma é a mesma”.
Realmente, se notarmos que Nero (NEPΩN=50+5+100+800+50=1005)
equivale a 1005, e que “ele matou sua própria mãe” (grego I∆IAN MHTEPA
AΠEKTEINE =
10+4+10+1+50+40+8+300+5+100+1+1+80+5+20+300+5+10+50+5 = 1005)
igualmente soma 1005, não é de se admirar que seus contemporâneos
acreditassem que a gematria atestava a natureza de seu caráter; isso também
comprova que o seu uso era amplamente disseminado entre o vulgo. Porém, em
que pese a maioria das interpretações textuais apontarem-no como o candidato
mais provável à Besta do Apocalipse, os cálculos de gematria geralmente
apresentados como prova dessa identificação são, como vimos, pouco
convincentes, se levarmos em conta os critérios dessa prática tradicionalmente
aceitos na época.
O segundo candidato mais provável, como mencionamos, era o imperador
Diocleciano (Diocletian Augustus). Seu nome, quando consideradas somente as
letras que são numerais romanos (em maiúsculas: DIoCLes aVgVstVs =
500+1+100+50+5+5+5 = 666) também somaria 666; todavia, o emprego de
numerais romanos é questionável, pois não era tradição na prática da gematria.
Inúmeros outros candidatos foram surgindo, como, por exemplo, Antemos,
Iapetus, Gerbert, Maomé, Lutero, Calvino, Luis XIV, Bonaparte, etc. Em um
período turbulento da história da igreja, um papa cognominava seu opositor de
Anticristo, designação que lhe era devolvida em seguida. Em 1.584, Peter
Bungus, um místico católico, “demonstrou” que Lutero era o Anticristo, pois o
seu nome, em um alfabeto numeral romano, dava 666: LVTHERNVC =
30+200+100+8+5+80+40+200+3=666. Em revide, os discípulos de Lutero não
demoraram a retrucar o apodo, observando que os numerais romanos contidos na
frase VICARIUS FILII DEI (Vigário do Filho de Deus), que está na tiara papal,
igualmente perfazem 666:
VICarIVs fILII De I = 5+1+100+1+5+1+50+1+1+500+1 = 666.
Pela escolha deliberada de um determinado alfabeto, palavra ou nome, bem
como do sistema de gematria a adotar, é possível “deduzir” aproximadamente
qualquer significado que se queira de uma dada palavra, nome ou passagem. A
interpretação depende apenas da criatividade e da fantasia do praticante. É
igualmente óbvio que nenhum valor numérico simbólico pode ser interpretado
com um razoável grau de certeza sem que se tenha uma pista do alfabeto
empregado e da intenção do autor.
Cabe ao autor observar que, dentro do seu conhecimento e compulsando o
corpus apócrifo a que teve acesso, a passagem registrada em Apocalipse 13:18 é
única no contexto da literatura apocalíptica. Como, portanto, não é um traço
comum a esse gênero literário, é válido indagar se essa passagem não é apenas
uma interpolação posterior na profecia concernente à Roma. Essa opinião é
compartilhada por vários autores, como por exemplo Toy e Kohler (cf. verbete
Book of Revelation, Jewish Encyclopedia, ν). Nesse caso, 13:18 teria seu valor
profético significativamente diminuído, restando talvez apenas sua importância
como um exemplo histórico da aplicação da gematria. É importante observar que
a Igreja Católica nunca avalizou uma interpretação literal de 13:18, em que pesem
as quizílias históricas já mencionadas.
É provável que a motivação para essa interpolação tenha sido a
manutenção do equilíbrio do dualismo Cristo - Anticristo; como o Cristo era
reconhecido na época9 numericamente por 888, optou-se arbitrariamente por 666
para representar o Anticristo. Portanto, embora essa debatida interpolação possa
talvez ter sido inserida com a melhor das intenções, e contenha possivelmente
algum valor profético, sua interpretação literal deve ser tomada cum grano salis10.

Alguns Exemplos de Pseudogematria Apocalíptica Moderna


Dentro da pseudogematria apocalíptica moderna, praticamente qualquer
trapaça é válida para justificar as intenções dos “numerólogos”. Vejamos algumas.
William Henry Gates III, o presidente da Microsoft, é conhecido como Bill Gates

9
Jesus: (grego) ΙΗΣΟΥΣ = 10+8+200+70+400+200= 888.
10
Com uma pitada de cautela.
(III). Convertendo seu nome em valor numérico, empregando os valores tabulados
do ASCII (American Standard Code for Information Interchange), temos:
BILL GATES 3 : (66+73+76+76)+(71+65+84+69+83)+(3) = 666.
A batota aqui é que o valor do número 3 no ASCII é dado por 51 e não 3.
Mas é interessante a escolha do ASCII como um alfabeto em gematria.
Outra interpretação fantasiosa, envolvendo agora a Internet, a World Wide
Web – WWW, é a seguinte: sua sigla www, quando escrita em letras hebraicas é ‫ווו‬
(VauVauVau); como ‫( ו‬Vau) vale 6, teríamos www = 666 = ‫ווו‬, a besta apocalíptica
informática. Aqui o logro é que o valor dado pela gematria para www é 6+6+6=18,
não 666, pois a gematria prega que deve-se somar os valores de cada letra, não
simplesmente justapô-los. A mesma explicação se aplica ao exemplo seguinte.
Observou-se que cada um dos nomes do ex-presidente do E.U.A. Ronald
Wilson Reagan tem 6 letras, logo o nome forma 666. Outra tentativa aplicada ao
mesmo presidente envolve a adoção do alfabeto a=101; b=102;...;z=126; e a
observação que a pronúncia fonética do sobrenome desse presidente (REAGAN) é
algo como REAGUN, cujo valor nesse alfabeto é 118+105+101+107+121+114 =
666. Aqui há dois engodos: o primeiro, a escolha do alfabeto; o segundo, a opção
pouco convincente pela pronúncia fonética do sobrenome.
Para encerrarmos, uma última interpretação referente ao fundador da
“dinastia Bush”. Empregando-se o mesmo alfabeto aplicado ao Reagan, notou-se
que I. G. BUSH (que foi seu vice-presidente), vale
109+107+102+121+119+108=666, daí a “dinastia apocalíptica”. Aqui o embuste
envolve a escolha das letras do nome. O seu nome completo verdadeiro é George
Herbert Walker Bush, não havendo a inicial I no nome, nem sendo admissível
tomá-la pelo numeral romano I (um, primeiro). O seu filho, o atual presidente, se
chama George Walker Bush, cujo nome também não satisfaz.

Numerologia Moderna
Os pitagóricos, como mostramos, com sua idéia de que tudo era número,
podem ser considerados como os precursores do misticismo numérico. Os seus
sucessores, os néo-pitagóricos, mais de meio milênio depois, ampliaram e
aprofundaram as propriedades místicas atribuídas aos números inteiros. No
transcorrer da idade média, o misticismo e o simbolismo numérico fervilhavam na
Europa, embora idéias inovadoras sobre o assunto não surgissem.
O misticismo numérico tradicional, grego de origem, associava nomes
(pessoas), palavras ou passagens a números. Com o exemplo do número da besta,
vimos como um caráter maligno (o Anticristo) foi correlacionado a um número
(666), o qual, eventualmente, poderia servir para identificá-lo. Porém, somente nos
fins do século XIX, surgiu a idéia revolucionária de que, além de se associar um
número a uma pessoa, as propriedades místicas desse número influíssem nela. Essa
noção conduziu a muitos adeptos da numerologia moderna a alterarem seus nomes,
mudando assim seus números associados, optando por números/nomes com
aspectos benfazejos.
Provavelmente essa idéia surgiu de um paralelo com a astrologia, pois os
astrólogos por muitos séculos vêm correlacionando signos astrológicos às pessoas,
e aplicando propriedades místicas desses signos para elaborar previsões e dar
conselhos.
DUDLEY (1.997) atribui essa idéia à Josephine Balliet, de Atlantic City,
New Jersey, que considera como a fundadora da numerologia moderna, embora
admita que ela possa ter tido predecessores.
Sobre a vinda do Anticristo e de seus sinais, à guisa de conclusão, o melhor
conselho a seguir é o dado por Irineu de Lyon no século II, ainda
surpreendentemente válido e atual, que endossamos: “É assim mais acertado, e
menos perigoso, aguardar o cumprimento da profecia do que fazer conjecturas e
previsões acerca de qualquer nome que se possa aventar, visto que muitos nomes
podem ser encontrados que possuem o número mencionado [666]; e esta questão
irá, apesar de tudo, permanecer insolúvel” (Adversus Haereses, V, 30, β).

NOTAS AO CAPÍTULO VII

Nota 1. Dentro dessa corrente destacaremos apenas duas obras: O Nome da Rosa (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1.983), de Humberto Eco, e o Código Da Vinci (New York,
Doubleday, 2.004), de Don Brown. O pano de fundo da primeira obra é perpassado pela
influência das diversas heresias milenaristas no vulgo da época em que se passa a ação,
bem como não aceitação da propriedade de bens materiais por parte dos primeiros
franciscanos, que pregavam a humildade e a pobreza, o que ocasionou sérios embates com
a cultura materialista então vigente na Igreja. Para melhor compreensão desse background
recomendamos a leitura de COHN (1.980). Já na segunda obra, o pano de fundo envolve
tanto alguns conceitos (Fibonacci, criptografia, número de ouro, etc.) verdadeiros, como
entidades, algumas reais (Opus Dei, Templários), outras imaginárias (Priorado), e alguns
artefatos pseudo-históricos, como o “criptex” atribuído à Leonardo, na verdade inexistente.
Mistura, portanto, elementos históricos reais com inventados; embora no início da obra o
autor afirme que é um obra de ficção, mencionando que se baseou em fatos reais, listando
uns poucos, no seu desenrolar a ficção e a realidade estão entretecidas. O perigo reside no
fato de que a maioria do seu público leitor não possui um conhecimento da história sólido e
é incapaz, portanto, de separar o joio do trigo, sendo induzida a acreditar que todos os
elementos do enredo são reais. Essas obras, como afirmamos, valem pelo entretenimento
que proporcionam.

Nota 2. Como exemplo dessa corrente selecionamos o best seller O Código da Bíblia (São
Paulo, Cultrix, 2.002), de Michael Drosnin. Nessa obra o autor constrói uma teia de
conjecturas baseada em um pseudo-código que “descobriu” nos livros da Bíblia hebraica.
Considera, pois, o hebraico a língua sagrada. Afirma que “Moisés recebeu de Deus a
Bíblia” (p.25), que as letras hebraicas de seus livros contém um “código secreto”, que pode
ser descoberto se selecionarmos em um dado trecho uma letra, pulando na seqüência um
número fixo de letras, então uma outra, e assim por diante, mediante um programa de
computador. Essas letras reunidas formam palavras, nomes, profecias escondidas no
“código da Bíblia”. O autor demonstra um total desconhecimento, provavelmente
intencional, de como os livros históricos da Bíblia foram realmente compilados, de como o
hagiógrafo reuniu, por vezes, várias fontes, acrescentou interpolações, redigindo a forma
final segundo seu estilo. O hebreu, particularmente no Torah, como vimos, nunca foi
considerado uma língua sagrada. Além disso, em qualquer trecho escrito, em qualquer
língua, de qualquer autor, podemos descobrir “significados ocultos” se empregarmos seu
“método”, bastando escolhermos o trecho, o inicio da mensagem, e o salto por que
optarmos de forma intencionalmente enviesada. Desaconselhamos a leitura desse tipo de
obra.
Nota 3. Sites da Internet

Dada a volatilidade do material disponível na Internet, bem como a mutabilidade


de seus endereços, será indicada, entre parênteses, a data da consulta ao site respectivo.

α) Mathworld (07/jan/05): http://mathworld.wolfram.com


β) Enciclopédia Católica (/05/jan/05): http://www.newadvent.org/cathen/
γ) (/07/jan/05): http://www.webcom.com/hermit/page/sefer.htm
δ)(10/jan./05): http://wesley.nnu.edu/biblical_studies/noncanon/index.htm
ε) The Gnostic Society Library: (12/jan./05):
http://www.gnosis.org/naghamm/nhlcodex.html
ζ) (/12/jan/05):
http://www.thenazareneway.com/the_gospel_of_mary_magdalene.htm
η) (/15/jan./05) : http://www.comparative-religion.com/christianity/apocrypha/
θ) (/12/jan./05): http://www.piney.com/Testament-Moses.html
ι) (jan./05): http://www.oxleigh.freeserve.co.uk/pt01c.htm
κ) Early Church Fathers (/05/jan./05):
http://ccel.org./fathers2/ANF-08/anf08-106.htm
λ) Early Jewish Writings (/07/Jan.05): http://www.earlyjewishwritings.com/
µ) Early Christian Writings (/05/jan./05) : http://www.earlychristianwritings.com/
ν) Jewish Encyclopedia (/08/jan./05) :
http://www.jewishencyclopedia.com/index.jsp
ξ) (09/fev/05): http://www.ccel.org/c/charles/otpseudepig/jubilee/

Referências Bibliográficas (Resumidas)

A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Ed. revista. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.


2.366p.

ALEXANDER, David. O Mundo da Bíblia. São Paulo, Paulinas, 1.985. 693p.

ATWELL, James E. An Egyptian Source for Genesis I. Journal of Theological


Studies, N5, Vol.52, Outubro 2.000.

BARRY, Kieren. The Greek Qabalah. Maine: Samuel Weiser Inc., 1.999.295p.

BERNAL, Martin. Cadmean Letters. Winona Lake: Eisenbrauns, 1.990. 156p.

BUDGE, E.A.Wallis. A Magia Egípcia. São Paulo: Cultrix, s.d.145p.

A Religião Egípcia. São Paulo: Cultrix, s.d. 119p.

CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Edições


de Ouro, s.d. 930p.

CASSIRER, Ernest. Language and Myth. New York: Dover, 1.953. 110p.
COHN, Norman. Na Senda do Milênio. Milenaristas Revolucionários e
Anarquistas Místicos da Idade Média. Lisboa: Editorial Presença, 1.980.

CONTENEAU, Georges. La Vie Quotidienne à Babylone et en Assyrie. Paris,


Hachete, 1.950. 320p.
DHORME, Édouard. Les Religions de Babylone et d`Assirie. Paris, Presses
Universitaires de France, 1.949. 433p.

DUDLEY, Underwood. Numerology. Washington: Mathematical Association of


America, 1.997.316p.

FOUTS, David M. Another look at large numbers in assyrian royal inscriptions.


JNES 53 no 3 (1.994).

FOWLER, David. The Mathematics of Plato´s Academy. 2. ed. Oxford: Clarendon


Press, 1.999. 441p.

GORMAN, Peter. Pitágoras - Uma Vida. São Paulo: Cultrix – Pensamento, 1.979
236p

GRATTAN-GUINESS, I. Manifestations of Mathematics in and round the


cristianities: some examples and issues .In: Revista Brasileira de História da
Matemática, p.21-56, vol 1 nº1 (2.001).

GUÉRIOS, Mansur. Tabus Lingüísticos. Rio de Janeiro: Organizações Simões,


1.956. 256p.

GUTHRIE, Kenneth Sylvan. The Pythagorean Sourcebook and Library. Michigan,


Phanes Press, 1.988.361p.

HEIDEL, Alexander. The babylonian genesis. Chicago: The University of Chicago


Press, 1.963.

IFRAH, Georges. Histoire Universelle des Chiffres. Paris: Seghers, 1981. 567p.
Os Números. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1.989. 367p.

The Universal History of Numbers. New York: John Wiley & Sons, 2.000.633p.

JÂMBLICO (Atribuído à). The Teology of Arithmetic. Michigan, Phanes Press,


1.988. Trad. Robin Waterfield. 130p.

MENNINGER, Karl. Number Words and Number Symbols. New York: Dover
Publications, 1.992. 480p.
NEUGEBAUER, O. The Exact Sciences in Antiquity. 2a ed. New York: Dover.
1.969. 240p.
Astronomy and History - Selected Essays. Berlin. Springer Verlag, 1.983. 538p.
ROBINSON, James M. The Nag Hammadi Library.New York: Harper Collins,
1.990. 549p.

RUTTEN, Marguerite. La Science des Chaldéens. 2a ed. Paris: Presses


Universitaires de France. Col. Que Sais-Je? 1.970.128p.

SARTON, George. Ancient Science Through the Golden Age of Greece. New
York: Dover, 1.993. 646p.

WISE, Michael; ABEGG, Martin; COOK, Edward. Dead Sea Scrolls. New York: Harper
Collins, 1.996. p.513.

View publication stats

Você também pode gostar