FREUD, Sigmund. O homem Moisés e a religião monoteísta. Trad. de Renato Zwick.
Porto Alegre: LP&M,2014. 187 p.
O Homem Moisés e a Religião Monoteísta é um conjunto de três ensaios
publicados em 1939 por Sigmund Freud, pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial. Com o nazismo e a repressão nazista, Freud evita a publicação do seu texto por algum tempo, como expõe no terceiro ensaio, com medo de que a psicanálise fosse perseguida. Percebendo forte onda de antissemitismo, Freud se questiona sobre quais foram os motivos que levaram os judeus a atrair tanto ódio. Esse livro é a combinação de pesquisa historiográfica com interpretação e invenção em que o autor, com o auxílio de ferramentas psicanalíticas, tenta reconstruir a origem de Moisés, líder religioso dos Hebreus. Freud está lidando com uma série de dados que, ao longo da história, foram apagados, sofreram alterações ou que não necessariamente tenham existido. Dessa maneira, podemos ver essa reconstituição como exercício de interpretação e por que não de criação literária? Para o povo judeu, Moisés foi um libertador, legislador e fundador da religião. Por pertencer a tempos tão remotos, a primeira questão que se coloca é se Moisés foi de fato uma personalidade histórica ou uma lenda. Se viveu, foi no século XII ou XIV. Boa parte dos historiadores acredita que Moisés viveu e que o êxodo do Egito aconteceu. “Afirma-se com boas razões que a história posterior do povo de Israel seria incompreensível se não se admitisse esse pressuposto.” (FREUD, 2018, p.35) Freud mostra, em primeiro lugar, interesse pela etimologia do nome Moisés. A explicação, presente no capítulo 2 do relato do êxodo, mostra a relação entre a etimologia do nome e a suposta origem de Moisés. Uma das explicações era de que a princesa egípcia, após salvar o menino abandonado no Nilo, deu-lhe esse nome que significaria “Por que das águas o tirei”. Para Freud, no entanto, essa explicação é insuficiente. Segundo o autor da Enciclopédia Judaica trata-se de uma etimologia popular com a qual não se pode harmonizar a forma hebraica ativa. “Mosche” pode significar, no máximo, “aquele que tira”. O autor traz dois argumentos que sustentam a insuficiência da explicação. O primeiro de que não se pode atribuir à princesa Egípcia a derivação de um nome a partir do hebraico e a segunda de que água em que a criança estava provavelmente não tenha sido o Nilo. Freud retoma as formulações de autores que dizem que o nome “Moisés” veio do vocábulo egípcio. Para J.H Breasted, a palavra egípcia “Mose” significa “filho de”, como os reis egípcios de Ah-mose, Thut-mose, Ra- mose. Provavelmente, então, o pai de Moisés teria dado ao filho um nome composto. Muitos dos autores que reconheceram o nome Moisés como egípcio, no entanto, não avançam na reflexão a ponto de concluírem ou ao menos considerarem a possibilidade de que o portador de um nome egípcio também fosse egípcio. Freud suspeita que a ausência dessa dedução sobre Moisés se dê por respeito à tradição bíblica. A ideia de um Moisés hebreu, segundo ele, talvez fosse monstruosa demais. Freud traz as ideias de O mito do nascimento do Herói, de O. Rank, seu discípulo e colaborador que analisa os mitos de Moisés, Karna, Édipo, Paris, Telephus, Perseu, Gilgamesh, Cyrus, Tristan, Romulus, Hercules, Jesus, Siegfried e Lohengrin. Com esse estudo, podemos ver que quase todos povos civilizados importantes glorificaram em poesias e lendas seus heróis conferindo à história elementos fantásticos e que acabam tendo elementos simbólicos recorrentes, como a água, a luta por nascer em meio a adversidade, a vitória sobre o herói. Nos mitos, o herói é filho de nobres ou de um rei. Sua geração é precedida por uma série de dificuldades e, durante a gravidez, ou antes, um sonho ou um oráculo que adverte sobre o seu nascimento. O herói é sacrificado pelo pai ou abandonado. Muitas vezes, como no caso de Moisés, colocada em uma caixinha na água. Ele é salvo por animais ou pessoas e alimentada por eles, reencontra os pais, se vinga deles e atinge a fama. O herói é, portanto, aquele que se rebelou contra o pai. Freud observa, então, as representações simbólicas presentes no mito do herói:
a) abandono num cesto: nascimento
b) Cesto: útero c) Água: líquido amniótico d) Família real ou nobre: família fictícia e) Família humilde: verdadeira família
Em seguida, o autor reflete sobre os primeiros anos da infância em que a criança
é dominada pela supervalorização do pai para em seguida, influenciada pela rivalidade e desilusão real, desligar-se dos pais, sobretudo do pai. Freud percebe uma inversão na suposta história da origem de Moisés. A primeira família não é nobre, e sim modesta. Moisés seria filho de Levitas Judeus. Já a segunda família faz parte da nobreza. Historiadores supuseram que a lenda fosse outra, no entanto, “por motivos nacionais”, ela teria sido modificada. Freud chega, com uma série de ressalvas, ao ponto central do seu estudo: a lenda original de Moisés não pode ter existido, Moisés era egípcio, provavelmente um nobre. A lenda, de acordo com Freud, deve ter sido criada e modificada pelo povo judeu, uma vez que seria inapropriado para o povo transformar em sua grande lenda um estrangeiro. Ao afirmar que Moisés era um egípcio, Freud tem diante de si um novo enigma, como entre tantos que surgem ao longo do estudo e que serão difíceis de responder. Como saber o que levou um egípcio nobre a se colocar à frente de um grupo de estrangeiros imigrados, culturalmente atrasados, e abandonar com eles o país? Freud aponta para a improbabilidade desse acontecimento, uma vez que os egípcios desprezavam os povos estrangeiros. Freud supõe que essa seja a razão que leva os historiadores a não aceitarem que Moisés era, de fato, egípcio. Moisés era um líder político dos judeus estabelecidos no Egito, legislador, educador e que os obrigou a servir uma nova religião chamada mosaica. “Mas será que é tão fácil assim um único homem criar uma religião?” (FREUD, 2018, p. 49) De acordo com Freud, o povo egípcio tinha religião e se Moisés era egípcio, não se pode negar a possibilidade de a religião de Moisés também ser egípcia. No entanto, algo atrapalha essa possibilidade: a oposição entre a religião judaica e a religião egípcia. A primeira é monoteísta, a segunda, politeísta. A primeira crê numa existência após a morte, a segunda renuncia a ideia de imortalidade. Segundo Freud, houve um monoteísmo anterior ao hebreu e ele justamente teria surgido Egito. “É possível que a religião que Moisés deu a seu povo judeu fosse, final, sua própria religião, uma religião egípcia, embora não a egípcia.” (FREUD, 2018, p.51) Na XVIII dinastia subiu ao trono um faraó chamado Amenófis e que mudará mais tarde seu nome para Akenaton. Esse rei impôs aos egípcios uma nova religião. Essa nova religião, calcada por um monoteísmo rigoroso, foi influenciada pela situação política do Egito que havia se tornado uma potência mundial graças a feitos bélicos de Tutmés. Ao império Egípcio, agregaram-se a Núbia, a Palestina, a Síria e uma parte da Mesopotâmia. O imperialismo Egípcio refletia na religião, que já não se podia mais adorar deuses locais, mas sim um deus universal. A divindade elegida foi Aton, deus do Sol. Amenófis durante seu reinado ordenou a exclusão de tudo que era místico, mágico, encantatório. O rei foi tão rigoroso que mandou que fossem examinados monumentos com palavra Deus no plural. Houve também um silêncio sobre o Osíris, o deus dos Mortos e sobre o reino dos mortos. Já o deus do Sol foi representado por meio um disco redondo de onde emanam raios que terminam em mãos humanas. Moisés era, portanto, egípcio. Talvez da casa real de Akenaton, um servo importante de Akenaton, governante ou sacerdote de algum tipo. Após a derrocada do seu rei, ele parte com povos semíticos, imigrantes, escravos e parte para fazer o êxodo afim de conservar sua antiga religião monoteísta. Freud afirma que não necessariamente Moisés tenha sido uma pessoa que conheceu Akenaton, pode ser um seguidor de Akenaton que resgatou a religião e trouxe ao seu povo. A circuncisão, segundo Heródoto, prática egípcia e também fenícia, convém a Moisés por se tratar de uma prática que ajuda a diferenciar um povo de outro. A circuncisão, então, teria sido introduzida aos judeus por Moisés. O homem Moisés era impaciente, violento. Dizem que matou um egípcio que maltratava um escravo semita, que quebrou as tábulas da lei irritado com os pecados de seu povo e, castigado por Deus, nunca pisou na terra prometida. Dizem que tinha um problema de linguagem. Para Freud, no entanto, Moisés, não falava o idioma dos judeus e só se expressava através de Aaron. Para Freud, possivelmente Moisés tenha sido assassinado pelo seu povo, insistindo na ideia que sempre lhe acompanha, do crime na construção da humanidade. A passagem do tempo talvez tenha embaralhado a história e por meio de um processo traumático, o mito tenha sido reprimido. E essa negação, em determinado momento, retornou em algum momento da história.