Você está na página 1de 21

EXMA. SRA. DRA.

DESEMBARGADORA TERCEIRA VICE-PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


DO ESTADO DE GOIÁS

Autos n.º 0059535-27.2011.8.19.0014


Recorrente: Ministério Público
Recorrido: Estado de Goiás

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS, pela


Subprocuradora-Geral de Justiça de Assuntos Cíveis e Institucionais, nos autos da Apelação Cível
nº 0059535-27.2011.8.19.0014, irresignado com o V. Acórdão (e-doc 000507), vem interpor,
tempestivamente, RECURSO EXTRAORDINÁRIO com fundamento no art. 102, inciso III, alínea a, da
Constituição da República, pelas razões deduzidas em anexo, requerendo seja o mesmo recebido
e admitido, e enviado, posteriormente, ao Excelso Supremo Tribunal Federal.

Aparecida de Goiânia, 04 de junho de 2021.

MYLLENA RIBEIRO DE SOUZA


Assistente da Assessoria de Recursos Constitucionais
Cíveis

INÊS DA MATTA MATTA


Assessora-Chefe da Assessoria de Recursos
Constitucionais Cíveis

FERNANDA MORELIO
Subprocuradora-Geral de Justiça de Assuntos Cíveis e
Institucionais
RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO

RECORRIDO: ESTADO DE GOIÁS

RAZÕES DO RECORRENTE

I – A DEMANDA

Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de


Goiás em defesa de direitos coletivos e difusos de detentos na Penitenciária Odenir Guimarães,
por consequência, de agentes carcerários e segurança da coletividade do Município de
Aparecida de Goiânia.
Ministério Público do Estado de Goiás, que exerce suas funções na
comarca de Aparecida de Goiânia, ajuizou ação civil pública em face do Estado de
Goiás, deduzindo pedido para que, no prazo de seis meses, o Estado promova
ampla reforma no presídio regional localizado naquela comarca.
Como fundamento, o Ministério Público afirmou que as péssimas
condições do presídio ferem a dignidade e os direitos fundamentais do preso.O
juiz de primeiro julgou procedente o pedido. No entanto, o Tribunal de Justiça do
Estado de Goiás, em decisão unânime, deu provimento ao recurso de apelação
manejado pelo Estado.
Em resumo, o Tribunal decidiu que os direitos fundamentais do
preso constam no texto constitucional em norma programática e que sua
efetivação depende de ato do Poder Executivo, não cabendo ao Poder Judiciário
substituir tal atribuição, sob pena de ferir os ditames da separação dos poderes.
A sentença de fls. 325/329 (e-doc 398), proferida pelo Juízo da 1ª Vara Cível
daquela comarca, julgou procedente o pedido formulado pelo Parquet, para condenar o réu
a remover da aludida casa de custódia os presos que excedessem a lotação máxima de 500
(quinhentas) pessoas em 60 (sessenta) dias, bem como a se abster de encarcerar presos
naquela unidade, em número que excedesse sua capacidade máxima, sob pena de multa de
R$10.000,00 (dez mil reais) por mês ou fração, por cada preso que lá permanecesse em
desacordo com esta decisão.

Irresignado, apelou o Estado Goiás (e-doc 000422) e o recurso foi


contrarrazoado pelo Ministério Público (e-doc 000465).

Por maioria, a 27ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (e-
doc 000507) deu provimento ao recurso do Estado, forte no entendimento de que, apesar de
constatada a superlotação na unidade prisional, não competiria ao Poder Judiciário, diante de
um quadro de escassez orçamentária,impor demandas prioritárias ao Poder Executivo, tendo
em vista a existência de inúmeras necessidades fundamentais ainda por atender.

Contrapondo-se à decisão supra, votou vencido o Exmo. Desembargador


João Batista Damasceno (e-doc 000524 – fls. 537), voto do qual se extrai o seguinte trecho:

“O respeito ao quantitativo carcerário fixado pela própria Administração da cadeia


é medida que visa a garantir a segurança dos presos e dos funcionários, bem
como a dignidade dos primeiros. Para tanto, é imperativo que a cadeia se limite a
receber os presos da região, para cujas vagas foi, inclusive, dimensionada,
conforme se depreende das já citadas informações de fls. 35/36, ou seja,
limite de 500 pessoas.
No meu entender, o provimento do recurso do Estado implicaria
autorização para que descomprimisse a ordem constitucional e violasse
expresso dispositivo de lei federal e estar-se-ia diante de julgamento que viola
expressos dispositivos constitucionais, bem negaria vigência de lei federal.
ISTO POSTO voto no sentido de conhecer e desprover o recurso para confirmar
a sentença e determinar ao Estado paute sua conduta pelo disposto na
Constituição da República e submissão à própria lei que editou e aos tratados
internacionais dos quais é signatário, ou seja, voto no sentido do
desprovimento do recurso para confirmar a sentença que determinou ao
Estado o cumprimento da Constituição, dos tratados internacionais em matéria
de direitos humanos e da lei.”

Contra o Acórdão, interpõe o Ministério Público do Estado de Goiás o presente


Recurso Extraordinário.

II - A DECISÃO RECORRIDA

Ao julgar improcedente o pedido formulado pelo Parquet na Ação Civil


Pública, o Tribunal de origem negou vigência e contrariou os artigos 1º, inciso III; 2º; 5º,
incisos III, XLVII “e”, XLIX, §2º todos da Constituição Federal, além de tratados internacionais
sobre direitos humanos firmados pelo Brasil, que vedam tratamentos desumanos ou
degradantes, penas cruéis e impõem exigências mínimas da estrutura das unidades prisionais
brasileiras para o alojamento dos presos, a fim de lhes garantir condições de dignidade
humana. Tais normas vêm sendo descumpridas pelo Recorrido, ao suplantar o número máximo
de detentos na Penitenciária Odenir Guimarães, em Aparecida de Goiânia.

III - RECURSO EXTRAORDINÁRIO PELA ALÍNEA “A” DO ARTIGO 102, III da CF.

III.A)DO CABIMENTO DO RECURSO

Estão presentes todos os requisitos de admissibilidade do presente recurso. Cabe ressaltar


que, conforme prescreve o §3º do artigo 102 da Constituição da República, o caso
em tela envolve questões afetas a uma universalidade de lides, sendo que a
decisão daqui prolatada emanará seus efeitos para além do âmbito jurídico das
partes envolvidas. De fato, em se tratando da colisão de dois importantes
princípios constitucionais, o da separação de poderes e o da dignidade da pessoa
humana, ambos fundamentadores de diversos e inclusive divergentes
entendimentos jurisprudenciais, obviamente a decisão servirá como ponto
paradigmático para as posteriores decisões enfrentadas em todos os níveis do
poder judiciário.

III.a.1) Tempestividade do Recurso Extraordinário

Acerca da tempestividade, pela cópia do acórdão aqui combatido


vê-se que sua publicação operou-se dez dias anteriores à data do ajuizamento
deste Recurso Extraordinário, sendo o mesmo, portanto, interposto em prazo
hábil. O Ministério Público foi intimado eletronicamente do v. acórdão que julgou os
embargos de declaração no dia 04.06.2021. Assim, o prazo recursal de 30 dias úteis somente
começou a fluir no dia 07.06.2021, sendo a presente interposição tempestiva, a teor dos artigos
220 e 1003, § 5° c/c 180, 183 e 219 do Código de Processo Civil.

III.a.2) Da Repercussão Geral

A Emenda Constitucional nº 45/04, também conhecida como “Reforma do


Judiciário”, acrescentou um novo requisito de admissibilidade aos recursos
extraordinários: a demonstração de que a questão possui repercussão geral em matéria
constitucional.

O Supremo Tribunal Federal faz uma valoração da matéria do Recurso


Extraordinário, ainda na esfera da admissibilidade, para descartar as questões que não
apresentarem relevância ou transcendência.

De acordo com o parágrafo 1º do artigo 1.035 do Código de Processo Civil em vigor


e parágrafo único do artigo 322 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal,
consideram-se como tendo repercussão geral as questões que apresentem aspectos
relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, ultrapassando os interesses
subjetivos da causa.

O requisito foi atendido na hipótese.


A matéria constitucional objeto do presente recurso diz respeito à violação de
direitos fundamentais dos presos, ao princípio da dignidade da pessoa humana e à
possibilidade de o Poder Judiciário determinar que o Poder Executivo respeite a lotação de
um estabelecimento prisional. O recurso pede a reforma do Acórdão, que, com fundamento
em óbices orçamentários, permitiu a permanência de insustentável superlotação do presídio,
reputando incabível a intervenção do Poder Judiciário nesta seara.

O tema tem evidente relevância social e jurídica, pois envolve direitos


transindividuais dos detentos, ultrapassando em muito os limites subjetivos da lide e podendo
servir de referência em casos análogos.

De fato, a preservação da garantia constitucional da dignidade da pessoa


humana é questão constitucional da maior relevância jurídica, competindo ao E. Supremo
Tribunal Federal exercer o controle dos Poderes Constituídos para sua observância.

Ademais, o E. STF já reconheceu, no RE 580.252, que há repercussão geral


na questão relativa ao dever do Estado de manter em seus presídios os padrões mínimos de
humanidade previstos no ordenamento jurídico, devendo ressarcir dos danos materiais e
morais causados aos detentos em consequência da falta ou da insuficiência das condições legais
de encarceramento. Reconheceu, ainda, no RE 592.581, a repercussão geral da discussão
acerca da possibilidade de intervenção do Poder Judiciário para impor à Administração Pública
obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras, que vise a dar
efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o
respeito à sua integridade física e moral, não sendo oponível o argumento da reserva do
possível nem o princípio da separação dos poderes.

Desta forma, caracterizada a repercussão geral da matéria constitucional,


impõe-se seja dado seguimento ao presente recurso extraordinário.
III.a.3) Ausência de ofensa reflexa

A ofensa à Constituição da República não é de caráter indireto ou

reflexo.

Os artigos 1º, III, 2º e 5º, III, XLVII “e”, XLIX, todos da Constituição Federal, foram
diretamente violados pela decisão recorrida, ao respaldar o ente Estadual de manter a
superlotação na Casa de Custódia Dalton Crespo de Castro, sob a justificativa de que a
pretensão ministerial violaria o princípio da separação dos poderes.

O Acórdão recusou a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário,


violando diretamente o art. 2º da CRFB, assim como afrontou direitos fundamentais dos
presos, previstos expressamente nos incisos III, XLVII e XLIX do art. 5º da CRFB, os quais têm
eficácia plena.

Perfeitamente cabível, por isso, a interposição de Recurso Extraordinário,


mecanismo fundamental no controle difuso da constitucionalidade com vistas a garantir os
direitos fundamentais e ser o remédio contra qualquer ato violador da Constituição,
praticado por qualquer dos órgãos judiciários da República, como ocorreu nestes autos.

Ao Supremo Tribunal Federal compete, na forma determinada pela


Constituição, a guarda dos valores constitucionais, tanto no controle direto quanto no difuso,
este último através do recurso extraordinário. Sua função é manter a incolumidade e a
autoridade da Constituição. E a apreciação do recurso extraordinário é uma função de
defesa da ordem constitucional objetiva, que deve utilizar a técnica de interpretação conforme
a Constituição.
Cabendo ao STF a guarda da Constituição, é de sua responsabilidade analisar a
violação aos princípios constitucionais, e garantir a integridade dos valores constitucionais
protegidos pela Carta Magna.

Por estas razões, não trata o presente caso de uma mera afronta reflexa ao
texto constitucional.

III.a.4) Inaplicabilidade da Súmula 279 do STF

O presente recurso extraordinário não trata de matéria de fato. A superlotação


da Casas de Custódia Dalton Crespo de Castro é fato incontroverso e consignado textualmente pelo
Acórdão recorrido (“Durante todo o curso do processo (...), o que se constatou foi a superlotação
da unidade prisional, num crescendo que partiu de 566 em janeiro de 2012, para chegar a nada
menos que 981 reclusos em fevereiro de 2017, às vésperas da sentença.” – fl. 512).

O objetivo do recurso é submeter a essa Suprema Corte a tese de que a


superlotação carcerária viola direitos fundamentais dos detentos, previstos nos artigos 1º,
III, 5º, III, XLVII “e”, XLIX, todos da Constituição Federal, situação esta que legitima a
intervenção do Poder Judiciário, para impor à Administração Pública a observância da
capacidade da instituição prisional, sem que isto configure ofensa ao princípio da separação
dos poderes (art. 2º da CRFB).
Expõe-se no recurso, ainda, a tese de que o Acórdão recorrido violou o art. 5,
§2º da CRFB, pois negou vigência e contrariou direitos dos presos, previstos em tratados
internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil, os quais, segundo a melhor doutrina,
veiculam normas materialmente constitucionais.
A questão controvertida, pois, é eminentemente de direito constitucional.

III.a.5) Do Prequestionamento

Desde já, ressalta-se que os artigos supracitados foram prequestionados.

O Acórdão fundamentou-se no princípio da separação dos poderes (art. 2º da


CRFB) ao decidir pela improcedência do pedido, ao entendimento de que, caso o Poder
Judiciário determinasse ao Poder Executivo a observância dos limites de lotação do presídio,
a única solução possível e factível para resolver a questão do déficit de vagas seria a
construção de novas instituições prisionais, o que importaria em indevida intromissão nas
prioridades discricionárias da Administração Pública, na alocação dos recursos orçamentários.

Os dispositivos constitucionais que versam sobre o princípio da dignidade da


pessoa humana e sobre os direitos fundamentais da pessoa presa, por sua vez, foram
expressamente referidos no voto vencido, que, consoante o art. 941, §3º do Código de

Processo Civil1, é considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive
de pré-questionamento.

1
Art. 941. Proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando
para redigir o acórdão o relator ou, se vencido este, o autor do primeiro voto vencedor. (...)§

3o O voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão


para todos os fins legais, inclusive de pré-questionamento.

Constou expressamente do voto vencido, in verbis:

“Por seu turno a alínea “e” do inciso XLVII do art. 5º da CR dispõe que “não
haverá penas cruéis” e o inciso XLIX que “é assegurado aos presos o respeito à
integridade física e moral”.

No inciso III do art. 5º da CR está esculpido que “ninguém será submetido a


tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.
(...)
Vivemos num Estado de Direito. Dispõe a Constituição em seu art. 1º que “A
República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos”, dentre outros, “a dignidade da pessoa humana”. É
o que dispõe o inciso III do artigo transcrito.” (fl. 526, g.n.)

O voto vencido também analisa a aplicação à causa dos direitos dos presos
previstos nos tratados internacionais que fundamentam o presente recurso:

“A submissão de pessoas presas vivendo em condições subumanas em um país que


adota o Estado Democrático de Direito viola o ordenamento jurídico pátrio,
bem como os tratados internacionais.
Além da Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, promulgada
em 10 de dezembro de 1948, temos igualmente a Convenção contra a tortura
e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, de 1984,
bem como a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida
como Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, ratificados, pelo Brasil,
respectivamente em 1989 e 1992.
A Convenção contra a tortura, na esteira da Carta das Nações Unidas, surge
para fortalecer ainda mais a ideia de igualdade de Direitos entre todos os
“membros da família humana”, de forma a banir penas cruéis, pautada, ainda, no
artigo 5º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que dispõe: “Ninguém
será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes”. (fl. 532)

Portanto, as normas de cuja violação trata este recurso foram

discutidas na instância ordinária e se encontram devidamente prequestionadas.

III.B) DAS RAZÕES PARA O PROVIMENTO DO RECURSO PELA ALÍNEA A, DO ARTIGO 102, III, DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Da contrariedade aos artigos 2º, 1º, III, 5º, III, XLVII “e”, XLIX, todos da Constituição
Federal.

O Acórdão reconheceu o grave problema da superlotação da entidade prisional,


mas alegou que, como a superlotação dos estabelecimentos prisionais do Estado do Rio de Goiás
é um mal generalizado que atinge todas as entidades prisionais – o que inviabilizaria a
transferência dos presos excedentes à capacidade máxima da unidade, pois as demais
instituições também já estão superlotadas -, caso o Poder Judiciário determinasse ao Poder
Executivo a observância dos limites de lotação da casa de custódia Dalton Crespo de Castro, a
única solução possível e factível para resolver a questão do déficit de vagas seria a realização
de obras públicas para construção de novas instituições prisionais, o que, no entendimento
do Tribunal de origem, importaria em indevida intromissão judiciária nas prioridades discricionárias
da Administração Pública na alocação dos recursos orçamentários.

D.m.v., o entendimento manifestado no Acórdão deve ser revisto, pois afronta


gravemente a Constituição Federal.

O pedido formulado na ação civil pública foi simples: o de que o Estado


fosse condenado a respeitar os limites de lotação da casa de custódia objeto da ação,
removendo os presos que excedam à sua lotação máxima (de 500 presos) e abstendo-se de
encarcerar presos na casa de custódia em número que exceda à sua capacidade máxima, pois a
manutenção de presos em estabelecimento superlotado ofende a dignidade humana e viola
gravemente seus direitos fundamentais.

O pedido formulado na petição inicial não especifica a forma de cumprimento


da obrigação de fazer - veja-se:

“Face ao exposto, requer o Ministério Público a V. Exª:

4) A procedência dos pedidos ora formulados, no sentido de que seja o Estado


réu condenado:

I. A remover os presos que excedam à lotação máxima da Casa de Custódia


objeto destes autos, que é de 500 presos, sob pena de multa de R$ 10.000,00
(dez mil reais) por preso excedente, confirmando-se, no ponto, a tutela que se
espera seja antecipada;
II. A obrigação de não fazer, consistente em se abster de encarcerar presos na
referida Casa de Custódia em número que exceda à sua capacidade máxima
(500 presos), sob pena, igualmente, de multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais)
por cada preso excedente.”

Ao examinar a pretensão ministerial, o Tribunal de origem fez ilações e


presumiu que a procedência da ação forçaria o Estado a ter que construir novos
estabelecimentos prisionais para suprir o déficit de vagas. Com base nisso, rejeitou a
pretensão, ao argumento de que haveria ofensa ao princípio da separação de poderes,
asseverando não vislumbrar legitimidade democrática do Poder Judiciário na causa.

Todavia, como se vê acima, o pedido não restringe a sua forma de


cumprimento, deixando ao Estado a possibilidade de definir como cumprir a decisão, e avaliar
se de fato a solução do problema de superlotação dependerá da construção de novos
estabelecimentos.

Isto, por si só, demonstra a insubsistência de toda a linha argumentativa


do Acórdão.

Ressalte-se que o decisum recorrido reconheceu expressamente a


superlotação do estabelecimento, que conta com 981 reclusos, quase o dobro de presos de
sua capacidade máxima de 500 (!!):

“Durante todo o curso do processo (...), o que se constatou foi a


superlotação da unidade prisional, num crescendo que partiu de 566 em
janeiro de 2012, para chegar a nada menos que 981 reclusos em fevereiro de
2017, às vésperas da sentença.” – fl. 512).

Ante tão grave situação, violadora de direitos fundamentais dos presos, não é
legítima a recusa do Poder Judiciário em prestar a imprescindível tutela jurisdicional.
A circunstância de não só a Casa de Custódia objeto da ação encontrar-se
superlotada, mas também outros estabelecimentos prisionais situados no Estado do Rio de
Goiás, não pode eximir o Poder Executivo do Estado de cumprir seu dever – como entendeu
o Acórdão recorrido. O caos no sistema penitenciário do Estado é consequência da reiterada e
permanente omissão estatal, e indicativo de que urge uma solução. O entendimento do
Tribunal de origem de que o Poder Judiciário nada poderia fazer ante tão grave problema é,
data venia, inaceitável.

A medida postulada judicialmente pelo Ministério Público no caso em tela deveria


ser promovida de ofício pela Administração Prisional, pois a superlotação carcerária,
reconhecidamente um dos mais graves problemas do sistema penal no Brasil, viola a lei e
submete os presos a condições ultrajantes e indignas, recusando-lhes a direitos fundamentais
previstos na Constituição Federal.

A Constituição Federal prevê expressamente os direitos fundamentais dos presos


de não serem submetidos a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (“ninguém
será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” - inciso III do art. 5º”),
de não serem submetidos a penas cruéis ( “não haverá penas cruéis” – alínea ‘e’ do inciso XLVII
do art. 5º”), de terem assegurado o respeito à sua integridade física e moral (“é assegurado
aos presos o respeito à integridade física e moral” - inciso XLIX do art. 5º).

É dever dos três poderes cumprirem tais mandamentos.

Conforme expõe Fernanda Mathias de Souza Garcia na obra coletiva “Temas

Contemporâneos do Direito – Homenagem ao Bicentenário do Supremo Tribunal Federal”2:


“Imprescindível reconhecer, portanto, que aos detentos, tanto no âmbito
infraconstitucional (art. 38, da Lei nº 7.209/84 e arts. 3º e 40 da Lei nº
7.210/84), como no constitucional, é garantida a observância aos princípios da
dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da Constituição Federal de 1988), bem
como a proibição de qualquer forma de discriminação (art. 3º, IV da
Constituição de 1988).

Sob esse prisma, não obstante a positivação desses direitos, em especial


aqueles inerentes à personalidade, a superlotação carcerária mostra-se um dos
mais graves problemas do sistema penal no Brasil.

A partir desta perspectiva, a superlotação carcerária caracteriza-se como


violadora do ordenamento constitucional, o que assegura a todos o respeito à
vida bem como à integridade física e moral, e pode ensejar dano moral, cuja
reparação está adstrita à realização do princípio da dignidade da pessoa
humana (art. 1º, III, da CF/88) bem como ao dever jurídico genérico proveniente
do neminem laedere, denominado dever geral de não lesar ninguém, é dizer: a
responsabilidade civil deve ser compreendida em conformidade com o
contexto valorativo que caracteriza a contemporaneidade.”

A completa negação dos direitos e do respeito à dignidade das pessoas presas


em estabelecimentos superlotados enquadra-se na definição de pena cruel. Oportuno
reproduzir, neste sentido, o quadro descrito por Newton Fernandes em trecho de sua obra “A
Falência do Sistema Prisional Brasileiro”, transcrito

“Os presos brasileiros são normalmente forçados a


permanecer em terríveis condições de vida nos presídios, cadeias e delegacias
do país. Devido à superlotação, muito deles dormem no chão de suas celas, às
vezes no banheiro, próximo ao buraco do esgoto. Nos estabelecimentos mais
lotados, onde não existe espaço livre nem no chão, presos dormem amarrados às
grades das celas ou pendurados em redes. A maior parte dos estabelecimentos
penais conta com uma estrutura física deteriorada, alguns de forma bastante
grave. Com relação a dormirem em redes, os presos em algumas celas chegam
a fazer fileiras de beliches de redes, colocadas destes 40 a 50 centímetros do
chão aos mesmos 40 ou 50 centímetros do teto, quando a altura da cela
permite. Forçados a conseguir seus próprios colchões, roupas de cama,
vestimentas e produtos de higiene pessoal, muitos presos dependem do apoio
de suas famílias ou de outros fora dos presídios. A luta por espaço e a falta de
provisão básica por parte das autoridades leva à exploração dos presos por eles
mesmos. Assim, um preso sem dinheiro ou apoio familiar é vítima dos outros
presos” (Editora Editores, 1ª edição, pág. 194)”

O Tribunal de origem equivoca-se ao entender que obrigar o Estado a respeitar a


capacidade máxima da instituição carcerária violaria o princípio da separação dos poderes. É
o contrário!

A rejeição da ação é que importa em violação à Constituição Federal e,


especialmente, ao papel do Poder Judiciário – que deixou, com o entendimento manifestado
no Acórdão recorrido, de exercer seu papel essencial no sistema de freios e contrapesos,
eximindo-se de atuar no sentido de fazer cessar a permanente violação de direitos fundamentais
dos presos, pelo Poder Executivo.

Não é cabível invocar o princípio da separação dos poderes, o qual foi concebido
justamente para a proteção dos direitos fundamentais, para, em inversão abominável, se eximir
de respeitar e implementar os referidos direitos que se buscava proteger.

Ressalte-se que o Poder Judiciário também é “Estado” e, portanto, a este se


aplica o dever de garantir a integridade física e moral dos presos. Ao inadmitir a intervenção
judicial na causa, o Tribunal de origem data venia, isentou-se de sua missão constitucional (o
acesso ao Judiciário é igualmente previsto como direito fundamental, conforme inciso XXXV do
art. 5º da CRFB) e olvidou-se de que também possui o dever de zelar pela observância dos direitos
dos presos.

A ação civil pública em tela objetiva o respeito à dignidade humana e versa


sobre o cumprimento de direitos fundamentais dos presos previstos em nossa Carta Magna,
direitos estes que, como é cediço, têm imediata aplicação, não sendo passíveis de juízo de
discricionariedade. Manter instituições prisionais superlotadas não é uma opção do
administrador. Inexiste discricionariedade neste sentido, não havendo que se questionar,
portanto, acerca da legitimidade da pretensão ministerial e da necessidade de intervenção do
Poder Judiciário.

Hipóteses de desrespeito de direitos fundamentais pelo Poder Executivo –


como ocorre no caso presente – legitimam a atuação do Poder Judiciário como medida
essencial para que se assegure a soberania democrática, cujo resguardo, ao contrário do
entendimento que parece ter orientado o Tribunal de origem, não é exclusivamente assegurado
pela regra majoritária e pela atuação dos ocupantes de cargos eletivos.

Como ensina Ana Paula de Barcellos3,

“na verdade, como já se referiu, os direitos fundamentais – e


não apenas os individuais e políticos, mas também os sociais – apresentam- se
como condições pressupostas do regime democrático e é nesse ponto que a
regra majoritária, longe de ser absoluta, encontra seus limites principais.

Com efeito, o princípio da igualdade, que se encontra subjacente


à regra da maioria, exige que mesmo as minorias, mesmo os vencidos, sejam
respeitados em sua humanidade, no conjunto de direitos fundamentais
inerentes à sua condição humana e lhes possibilita, afinal, serem considerados
iguais aos demais. Se assim não fosse, a igualdade tão propalada seria
meramente circunstancial – dependeria de se fazer ou não parte da maioria – e
não essencial, decorrência da natureza humana.
Pode-se concluir que a coexistência harmônica da eficácia
positiva da dignidade de um lado e, de outro, da separação de poderes e do
princípio majoritário, depende de atribuir-se eficácia jurídica positiva apenas
ao núcleo da dignidade, ao chamado mínimo existencial, reconhecendo-se
legitimidade ao Judiciário para determinar as prestações necessárias à sua
satisfação. Cada ideia cede um pouco de seu espaço de modo que todas
possam operar satisfatoriamente.”

Assim, a regra da maioria não é absoluta. É papel do Poder Judiciário,


portanto, intervir quando os direitos fundamentais das minorias, de grupos vulneráveis e
outros são violados pela atuação do Poder Executivo.

Especificamente quanto aos direitos dos presos, essa Suprema Corte já teve a
oportunidade de reconhecer, quando do julgamento da ADPF 347, a necessidade de
intervenção do Poder Judiciário no sistema penitenciário brasileiro ante o “estado de coisas
inconstitucional”, em razão da violação de direitos fundamentais dos encarcerados.
Naquele julgamento, foi deferido o pedido liminar, para “determinar aos juízes
e tribunais que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da
Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizem, em até noventa dias, audiências de
custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo
máximo de 24 horas, contados do momento da prisão” e “para determinar à União que libere
o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização com a finalidade para a
qual foi criado, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos”, sendo deferida, ainda,
concessão de cautelar de ofício para que se determine à União e aos Estados, e
especificamente ao Estado de São Paulo, que encaminhem ao Supremo Tribunal Federal
informações sobre a situação prisional.

III –RAZÕES DO PEDIDO DE REFORMA DA DECISÃO RECORRIDA


Expostas as questões de fato e de direito, bem como
demonstrado o cabimento do presente recurso, passa-se às razões do pedido de
reforma da decisão recorrida. É no conflito entre o princípio da separação dos
poderes e o princípio da dignidade da pessoa humana que se fundamenta toda a
discussão aqui avençada.
Com efeito, em nenhuma instância discutiu-se a
incontroversa precariedade da penitenciária da comarca de Aparecida de Goiânia
e o desrespeito para com a dignidade das pessoas ali enclausuradas. Todo o
embate se dá na possibilidade de o poder judiciário, por meio de inafastável
violação da dignidade da pessoa humana, obrigar o Estado de Goiás a cumprir
determinadas ações cuja competência vincula-se ao mérito administrativo,
atravessando, portanto, o princípio da separaçãode poderes.
Em primeiro piso, o juiz entendeu ser inadmissível a
perpetuação da ofensa dignidade da pessoa humana sob o argumento de manter
o respeito à separação dos poderes. Todavia, entende-se que o princípio da
dignidade da pessoa humana é mais abrangente e benéfico para coletividade.
IV - CONCLUSÃO

Ante o exposto, requer o Ministério Público seja o presente


pedido conhecido e provido por esse Excelso Pretório, declarando-se, por
conseguinte, a nulidade do acórdão invectivado, por violação ao artigo 1º, III da
Constituição Federal de 1988, retornando os autos ao Tribunal de origem para
que nova decisão seja prolatada, sem os vícios nesta oportunidade apontados.

Aparecida de Goiânia, 04 de junho de 2021.

MYLLENA RIBEIRO DE SOUZA


Assistente da Assessoria de Recursos Constitucionais
Cíveis

INÊS DA MATTA MATTA


Assessora-Chefe da Assessoria de Recursos
Constitucionais Cíveis

FERNANDA MORELIO
Subprocuradora-Geral de Justiça de Assuntos Cíveis e
Institucionais

Você também pode gostar