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PARTE I
Conteudista
Profª. Dra. Rita De Cassia M. Moreira
Um homem observa uma foto. Enquanto o tempo passa, a foto perde cor.
Perde contraste. Até que a imagem se desfaça por completo, dando origem a
um papel em branco. O sangue sobe a parede, o cartucho de bala vazio
retorna ao revólver, e o tiro acontece. A cena está acontecendo de trás para
frente. É o início do filme “Amnésia”, que retrata a vida de Leonard,
protagonista que perdeu a capacidade de memorizar fatos recentes da sua
vida, e cujo corpo tatuado e fotos que ele carrega lhe dão pistas sobre seu
significado no mundo, em um mundo cujas informações ficam presentes na sua
mente por minutos e depois se vão. Todas as manhãs, imaginando se a cama
que ele dormiu faz parte das suas noites, ou se pertence a um lugar
desconhecido, ele inicia seus dias, confiando sua existência a pessoas que o
conhecem, mas que para ele são desconhecidas.
Esse tipo de amnésia, chamado amnésia anterógrada, é melhor
compreendida atualmente. Psicólogos, psiquiatras, educadores, neurologistas,
entre outros profissionais, conseguem diminuir as repercussões negativas que
tal disfunção causa na vida das pessoas que a possuem, utilizando os
conhecimentos das suas bases neurais e dos comportamentos a elas
relacionados. Mas como e quando o homem começou a pensar que seu
comportamento tinha bases biológicas?
O papel do cérebro no comportamento vem sendo especulado muito
antes do surgimento da neurociência moderna. Egípcios faziam referências ao
cérebro há mais de 3.700 anos atrás (Fig. 1).
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modo como outras culturas passaram a estudá-lo. O que é mais conhecido,
como já era de se esperar, é o papel dos filósofos gregos nos primeiros passos
em direção à ideia atual da interação entre cérebro e comportamento, pelo
menos para a cultura ocidental. Empédocles (430 a.C.) propôs que o cérebro
seria a sede da razão. Ele defendia que o cérebro gera e controla o
funcionamento da cognição. Hoje em dia é difícil imaginar que alguém possa
ter discordado dessa ideia, mas Aristóteles acreditava que o coração, por ser
quente e ativo, seria a sede da razão, enquanto o cérebro, frio e inerte, teria o
papel nada complexo de refrigerar o sangue. Isso parece um contrassenso
impressionante. Imagine-se fazendo cálculos matemáticos por horas a fio.
Agora imagine a dor de cabeça que pode acompanhar essa atividade. Por
outro lado, imagine uma despedida triste, imagine o aperto no coração que ela
causa. Foi com Platão (347 a.C.) que a ideia de que o cérebro seria
responsável pela razão voltou à tona. Para Platão, o cérebro, por ser um órgão
mais próximo do céu, se ocuparia do pensamento racional, enquanto o coração
seria responsável pelas emoções e desejos, e o baixo ventre pelo instinto e
desejo.
Aqui eu tenho que fazer um parêntese. É muito comum a utilização
inadequada dos nomes das regiões do sistema nervoso central. Embora esse
não seja o principal assunto dessa semana, vou explicar alguns conceitos
neuroanatômicos para que nós não cometamos os mesmos erros. Quando
mencionamos o cérebro, não devemos nos referir a todo sistema nervoso que
está dentro da nossa caixa craniana. O cérebro corresponde aos hemisférios
cerebrais e a uma região de menor volume abaixo deles, o diencéfalo. Observe
a Figura 2, nela você pode ver que os hemisférios cerebrais correspondem à
parte superior do encéfalo (em vermelho). Enquanto o encéfalo engloba tudo:
cérebro, tronco encefálico e cerebelo.
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Figura 2. Corte sagital da parte superior da cabeça humana. Os hemisférios cerebrais
(telencéfalo) estão representados pela cor vermelha.
Ou seja, quando quisermos nos referir a todo o sistema nervoso que está
dentro da nossa caixa craniana, devemos utilizar a palavra “encéfalo”. Até este
momento, eu usei “cérebro” para me referir tanto ao cérebro como ao encéfalo.
Daqui em diante, vou utilizar os nomes de maneira apropriada, então fique
atento.
Durante a Idade Média, uma técnica de neurocirurgia, a trepanação, se
difundiu abrindo caminho para mais estudos sobre a relação entre o sistema
nervoso e o comportamento. A trepanação era uma técnica que utilizava a
perfuração do crânio, e dos hemisférios cerebrais logo abaixo dele, em busca
da cura para comportamentos anormais (Fig. 3).
Mais do que isso, Gall propôs que se uma pessoa usasse mais uma
região específica, essa região se desenvolveria mais e, portanto, poderia ser
observada por meio do estudo do crânio. Conforme cada parte cresce, dizia
Gall, ela causa uma ondulação no crânio, criando saliências que indicam quais
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regiões estão mais desenvolvidas. O estudo das saliências do crânio em busca
de correlatos com o comportamento recebeu o nome de Frenologia.
Como uma nova ciência, a Frenologia foi testada. Um dos primeiros
cientistas a fazer isso foi o psicólogo francês Pierre Flourens, que a testou em
animais. Flourens removia diferentes partes do encéfalo dos animais,
principalmente dos hemisférios cerebrais, e observava como o comportamento
deles era modificado. Ele concluiu que partes específicas do encéfalo não
controlam por completo comportamentos específicos. Mas se precipitou
propondo que o encéfalo como um todo, especialmente os hemisférios
cerebrais, contribuiria para TODOS os processos mentais. Ou seja, e aqui
reside sua principal falha, qualquer parte dos hemisférios cerebrais seria capaz
de executar todas as funções desse hemisfério, e se você lesionar uma dessas
áreas, todas as funções cognitivas mais complexas deverão ser igualmente
afetadas (KANDEL et al., 2000). Não podemos esquecer aqui que, embora as
ideias de Gall não estivessem corretas, ele teve um papel importante
relacionando o sistema nervoso com o comportamento.
A visão atual do sistema nervoso começou a ser construída apenas após
a invenção do microscópio, no século dezenove. Antes disso, o tecido nervoso
era visto mais como uma glândula cujo fluido seria levado ao resto do corpo
pela medula espinhal. A microscopia, no entanto, revelou que o tecido nervoso
era composto por células diferenciadas, e coube a Camillo Golgi e Santiago
Ramón y Cajal descreverem com detalhe as células nervosas: os neurônios
(KANDEL et al., 2000).
Golgi desenvolveu a técnica que permitiu observar que os neurônios
apresentam partes distintas. Um corpo celular onde se encontra o núcleo e
duas grandes projeções. Ramón y Cajal utilizou a técnica desenvolvida por
Golgi para mostrar que o tecido nervoso é composto por diversas células
conectadas umas às outras por meio das projeções neuronais (Fig. 5).
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Figura 5. Desenho de um neurônio feito por Ramon y Cajal. O autor discute a estrutura
neuronal em Ramón y Cajal (1906).
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Figura 6. Desenho do encéfalo indicando as duas áreas: Área de Broca e Área de
Wernicke.
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da disciplina tema do nosso curso: a neuropsicologia. Na década de 60, a
neuropsicologia já era considerada uma área específica das neurociências
(TONI et al., 2005). Segundo Lezak (1995), o papel da neuropsicologia é
avaliar o comprometimento neurológico pela via do comportamento. Ou seja,
avaliar como mudanças no funcionamento normal do sistema nervoso
acarretam distúrbios comportamentais. O criador da teoria do sistema funcional
e um dos principais autores da neuropsicologia, o russo Alexander Romanovich
Luria, propõe que o objetivo específico da neuropsicologia é investigar o papel
de partes específicas do sistema nervoso em formas complexas de
comportamento (LURIA, 1981).
Esse é um ponto importante dessa aula. Embora a neuropsicologia utilize
os conhecimentos de várias disciplinas, como a neuroanatomia, neurofisiologia,
psicofarmacologia, neuroetologia e filosofia, ela não aborda qualquer tipo de
comportamento. Por exemplo, a neuroetologia observa o comportamento a
partir de uma visão evolucionista. Em 1859, o naturalista Charles Darwin
publicou sua principal obra: A origem das espécies. Darwin propôs que todos
os seres vivos compartilham parentesco. Segundo ele, características são
passadas de geração em geração, de forma que as características melhor
adaptadas possibilitam que os indivíduos se reproduzam mais e,
consequentemente, mantenham ou aumentem o número dessa característica
dentro da população. Não vou entrar em detalhes sobre o debate que seguiu a
publicação da teoria de Darwin, a Teoria da Seleção Natural, mas hoje a
ciência discute descobertas novas e antigas com base nessa teoria, inclusive
sobre o comportamento. Dessa forma, quando pensamos em um
comportamento, podemos analisá-lo sob diferentes pontos de vista. (1) Como
os neurônios, e a interação deles com o resto do corpo, geram tal
comportamento? (2) Como esse comportamento é modificado conforme o
organismo envelhece? (3) Como e por que esse comportamento evoluiu? (4) E
quais outras espécies apresentam comportamentos semelhantes?
A neuropsicologia se atém apenas às duas primeiras perguntas, assim
como se atém apenas a essas perguntas em relação a comportamentos
complexos, que requerem processos cognitivos “elevados”.
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O avanço de técnicas de estudo do sistema nervoso e do comportamento
proporcionam um rápido desenvolvimento dos estudos da neuropsicologia e de
suas aplicações práticas. Hoje em dia, é possível observar razoavelmente
como o sistema nervoso humano funciona sem necessidade de técnicas
invasivas, que necessitam de operações. Esse é o caso do imageamento
funcional magnético (fMRI – Fig. 7), que utiliza modificações do campo
magnético dentro do encéfalo proporcionadas pela modificação do fluxo
sanguíneo e do consumo de oxigênio, para que os cientistas estudem quais
áreas estão mais ativas durante a execução de funções cognitivas distintas,
saudáveis ou não.
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Figura 8. À esquerda, foto do aparato utilizado durante o EEG para registrar o campo
eletromagnético produzido pelo córtex cerebral ao redor do crânio. E à direita, um
exemplo de um eletroencefalograma.
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REFERÊNCIAS
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