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Realização:

Perspectivas de conexão nas experiências


criativas do corpo que dança
PERSPECTIVAS DE CONEXÃO NAS EXPERIÊNCIAS
CRIATIVAS DO CORPO QUE DANÇA
© 2021 Rosemeire Alcantara Prado
Todos os direitos reservados

1ª Edição – Editora GARCIA


Brasil – Abril de 2021
ISBN 978-65-89543-75-6

Ilustrações: Serafim do Mundo e Jean Rocha


Capa: Jean Rocha e Rose Prado
Revisão Técnica: Priscila Kibelkstis
Revisão ortográfica: Viviane Vieira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P89p Prado, Rosemeire Alcantara


Perspectivas de conexão nas experiências criativas do
corpo que dança / Rosemeire Alcantara Prado. – Juiz de Fora :
Editora Garcia, 2021.
Bibliogra ia.

ISBN 978-65-89543-75-6

1. Conexão social 2.Dança 3.Experiência criativa 4.Sobrevivência


5.Solidão 6.Isolamento. I Título.
CDD-792.62
2021-1674
CDU- 793

Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949

Índices para catálogo sistemático:


1.Dança 792.62
2. Dança 793

Editado por: Editora Garcia


Impressão: Editora Garcia
Site: www.editoragarcia.com.br
E-mail: editorial@editoragarcia.com.br
Rosemeire Alcantara Prado

Perspectivas de conexão nas experiências


criativas do corpo que dança
Dedicatória 1

Ao meu amado pai, José Alcantara Prado (in memoriam), por


mais esta história que concluímos, com as mãos cheirando a
doces, que um sapo de pernas compridas nos fez derrubar no
rio. Obrigada por dançar comigo a terceira valsa de nossas
vidas. Obrigada por tudo, infinitamente. Saudade eterna e
terna de ti, paizão.

Ao meu amor mais do que lindo, Maria Santana Prado.


Obrigada por fazer meu coração sentir-se sempre quentinho,
em festa, por compartilhar sua sabedoria, por dançar comigo,
por ser a experiência mais linda, que conecta os pontos, rendas
e bordados das minhas memórias, e faz nossas vidas mais
floridas. Obrigada por tudo, infinitamente. Obrigada, minha
leoa! Obrigada, minha mãe!
Dedicatória 2

Às Marias e Clarices, que choram no solo do Brasil,

e a tanta gente que partiu num rabo de foguete.1

1
Inspirada na canção O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e
Aldir Blanc.
AGRADECIMENTOS

Agradeço. Agradeço às pessoas humanas queridas, ou às que


nem sei seus nomes, mas que passaram por mim e eu por
elas. Algumas pessoas felinas também, por seus ronrons,
cafunés e convites para espreguiçar, daquelas que estão
por perto e outras por miarem pelas redondezas, por trazer
uma imagem de horizontes amplos e desconhecidos de
telhados afora. Agradeço pelas perguntas que não sei
responder e me franzem a testa, por muito tempo, mas,
também por aquelas que nem desejo responder, só quero
mesmo ficar com elas, ficar com as perguntas, ficar com as
questões e deixá-las crescendo, como “bichinhos do
iogurte”, trocando seu alimento, para que cresçam e se
mantenham vivas, ajudando a me alimentar e quem estiver
ao meu alcance. Aliás, agradeço a quem ajuda a me
alongar, a ampliar este meu alcance, sensório-
motoramente, socialmente, economicamente
e filosoficamente . Agradeço a quem acredita que eu posso
2

fazer de tudo, agradeço a quem pensa que eu posso fazer


algumas coisas, a quem acha que eu não posso fazer muita
coisa, ou coisa alguma, pois me dão uma oportunidade
preciosa de pensar o que quero e preciso fazer. Ah!
Agradeço aos que não estão preocupados com o que posso
ou não fazer, por me lembrarem como é bom descansar.
Agradeço às amigas de infância, mesmo que as tenha
acabado de conhecer. Agradeço às que gostariam que seus
nomes estivessem escritos em parágrafos exclusivos, nesta
página. Agradeço às que são tão infinitamente importantes,

2
Paráfrase à frase de Oswald de Andrade (1928): "Só a antropofagia
nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente."
que eu não poderia delimitar a razão pela qual lhes agradeço.
Seus nomes estão em meu coração: Helena, Fernanda C.,
Neide, Cecilia, Christine, Cida, Lenira, Ivani, Leila,
Maria, Regina, Rosana, Roberto, Rubens, Jade,
Thomas, Dodô, Ana, Cyntia, Rebeca, Michelle,
Jacqueline, Rodrigo P., Davi, Quinho, Nicole, Duda,
Tide, Nalva, Tote, Dylan, Netão, Cleide, Doralice,
Dionísia, Júlio, Patrícia, Marcio, Diogo, Simone, Isabela,
Lyli, Bea, Kelly, Priscila, Pri, Rita, Juliano, Olga, Tamara
F., Valter, Hugo, Fábio, Lívia, Jean, Soneka, Cic,
Deborah, Stelzer, Gatuna, Cissa, Larissa, Sofia, Beth,
Zélia, Ivan, Mulan, Gatuno, Jorge, Caroline, Serafim,
Taci, Pierre, Kizumba, Elza, Rogério C., Jebson,
Pretinha, Loraine, Tânia, Val, Renan, Willieny, Jéssica,
J. Roberto, Felipe, Hércules, Mãezinha, Bianca, Vitória,
Carol, Raphael, Marinês, Luiza, Lilian, Fernanda P., Fafá,
Wilson, Rodrigo M., Pin, Cássio, Sol, Chantal, Thaís,
Carina, Tata, Alberto, Tigrinha, Edson, Natascha,
Miguel, Marcela, Caio, Claudio, Luís, Luciano M.,
Marcos, Paulo,Selma, Denise, Lina, Tomaz, Jéferson, Abel,
Donna, Karin, Shaad, Ierê, Yanaê, Capes, CED, Programa de
Comunicação e Semiótica - PUC/SP, Teia LAB Formação
Técnico-cultural, Prefeitura do Município de Diadema, Lei
Aldir Blanc de Emergência Cultural, Aletéia, [...] e Miramar.
Figuras

Figura 1. Pé de flor – Flor de pé, de Jean Rocha


(2019)................................................................................26

Figura 2. Ilustração de Serafim do Mundo


(2019)................................................................................45

Figura 3. Consciência, de Serafim do Mundo


(2019)................................................................................48

Figura 4. Corpo Vulnerável, de Serafim do Mundo


(2019)................................................................................61

Figura 5. Massaescada – Escadamassa, de Jean Rocha


(2019)................................................................................64

Figura 6. Preste-no-ergo Ergo-no-preste, de Jean Rocha


(2019)................................................................................74

Figura 7. Um corpo ajoelhado, de Serafim do Mundo


(2019)................................................................................79

Figura 8. Sonho e Morte, de Serafim do Mundo


(2019)................................................................................94

Figura 9. Corpo craft – Craft corpo, de Jean Rocha


(2019)................................................................................98
Tabela

Tabela 1. Verbos de ação, referenciais espaciais e


dimensionais, selecionados pela artista-aprendiz...................96
SUMÁRIO

Apresentação
Patrícia Albuquerque..............................................................14

INTRODUÇÃO.....................................................................18

1.NOSSOS ACORDOS: AFINANDO AS DEFINIÇÕES......26

1.1 Criatividade – o mesmo termo, diferentes processos...,....29

1.2 O corpo...........................................................................33

2.CONEXÃO E ISOLAMENTO...........................................37

3.PERSPECTIVAS DE CONEXÃO......................................45

3.1 Imagem...........................................................................48

3.1.1 Experimentos de estudos..............................................61

3.1.1.1 O corpo Vulnerável....................................................61

3.1.1.2 Massaescada – Escadamassa.....................................64

3.2 Forma..............................................................................68

3.2.1 Experimentos de estudos..............................................74

3.2.1.1 Posturas e distinções.................................................74

3.2.1.2 Um corpo ajoelhado..................................................79


3.3 Conceito........................................................................83

3.3.1 Experimentos de estudos............................................94

3.3.1.1 Sonho e Morte........................................................94

3.3.1.2 Corpo craft – Craft corpo.......................................98

4. BREVES PISTAS PARA CONEXÕES.........................102

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................105

Referências Bibliográficas..................................................109
Apresentação

Patrícia Albuquerque3

Quando Rose me convidou para escrever a


apresentação de seu primeiro livro, “Perspectivas de conexão
nas experiências criativas do corpo que dança”, cheguei a
pensar que ela só poderia estar maluca. Como desenvolver
qualquer habilidade compatível ou, pelo menos, coerente com
essa função? Lembro-me de pensar que não havia tido
qualquer experiência na dança que pudesse explicar o porquê
desse seu desejo. Em um misto de felicidade clandestina e
desespero cômico, aceitei o desafio.

Talvez não soubesse - ainda que estivesse


minimamente familiarizada com a sua pesquisa - que a tal
convocação se fez ao mesmo tempo como dívida e como
dádiva. Não me refiro às noções cristã ou corporativista as
quais estamos habituados a considerar, que de tão

3
Patrícia Albuquerque é mestra em Comunicação e Semiótica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em sua
pesquisa de mestrado, analisou narrativas das dissidências de gênero
e sexualidade em ambientes digitais. Atualmente, é professora
substituta do curso de Design-Moda da Universidade Federal do
Ceará (UFC).
14
continuamente reiteradas parecem cristalizar como verdades
imutáveis. Procuro me distanciar desse pensamento e
acompanhar as ideias de Christian Laval e Pierre Dardot
(2016), pesquisadores com os quais a autora dialoga, no
sentido de perceber tanto os direitos, quanto os deveres em
nossas relações sociais. Implica em assumir uma postura ética
ou minimamente atenta aos efeitos das nossas movimentações
no mundo.

Já na dedicatória do livro, encontro indícios do que


está por vir: “obrigada por dançar comigo”. De qual dança, ou
melhor, de quais danças Rose fala? No pensamento prévio,
apressado, podemos caminhar no rumo das aptidões corporais
para desenvolver posturas ou movimentos, mas não é disso que
se trata, em absoluto. Quando Rose nos conta sobre a dança
como experiência cotidiana, talvez esteja nos dizendo algo
além daquilo que ousamos imaginar. E por falar em
imaginação, esta recebe um lugar privilegiado neste que chama
de “livro-ambiente”. Aqui, nestas cem páginas, temos a
sensação de trafegar em uma dimensão que não a da
instrumentalidade objetiva e da ficção de uma autossuficiência
produtivista. A tônica é outra. Ao invés de recomendações
conclusivas, abre-se espaço para possibilidades que se dão no
e pelo risco, no chamado pela persistência coletiva. Admite-se,
de partida, que a imprevisibilidade é parte do processo de

15
interações entre a escrita e a experiência singular de quem lê.
E a graça talvez resida justamente aí, na abertura para as tais
perspectivas de conexão.

Nas imagens, formas e conceitos criados a partir das


experiências entrecruzadas de artistas-aprendizes e arte-
educadores, temos a sensação de estarmos à espreita, como se
uma janela espaço-temporal fosse escancarada, abalando as
mais confortáveis certezas e impulsos classificatórios. Com e
entre seus passos e pausas, arquitetamos como seria mobilizar
‘alinhamentos entre confusão e felicidade’; ou mesmo
‘modelar resultados incertos’, tal qual propõe William
Forsythe, citado nestes escritos. Encontramos meios para criar
as condições nas quais abandona-se as buscas solitárias de
sucesso e assume-se o fluxo errático da vida e dos encontros.

A obra emerge em um momento no qual o


distanciamento social se fez necessário ao redor do mundo
inteiro, sobretudo no contexto brasileiro. As convocações
biopolíticas e neoliberais parecem reforçar o que já estava
posto: a ideia do outro como ameaça. A recusa das
experiências de contato com as diferenças (ou variações, como
propõe a autora) agora se vê justificada pelo álibi da
autopreservação. Por outro lado, quando as medidas sanitárias
são ignoradas acusa-se ameaça ao livre arbítrio. De ambas as
formas, temos um contexto que, como diz o ativista indígena
16
Ailton Krenak (2019, p. 26-27)4, “é especialista em criar
ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio
sentido da experiência da vida”. No seu entendimento, “isso
gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda
é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de
cantar. A despeito dessa realidade, Krenak crê que este mundo
“está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo
mundo que dança, canta, faz chover”.

Rose certamente é uma dessas pessoas que nos


convida a bailar uma coreografia outra, na qual talvez a única
certeza que possamos ter, a princípio, seja o potencial de
mudança. Aquele que denuncia qualquer parâmetro e
expectativa de normalidade estabilizada. A dádiva e a dívida de
escrever essa apresentação é, por um lado perceber o quanto a
obra de Rose inquieta, assim como casquinha de ferida aberta
e inestancável; e, por outro, como estímulo para nos
mantermos inteiros na busca por conexões genuínas pela
sobrevivência mútua. Estendo o convite feito a mim às leitoras
e aos leitores, parafraseando a autora, como um modo de “não
morrer e de não matar”, mas de produzir vida.

4
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. - 1a ed. - São
Paulo: Companhia das Letras, 2019.
17
INTRODUÇÃO

Esta escrita ocorreu com o apoio do edital da Lei


Aldir Blanc de Emergência Cultural, no início de 2021. O
nome que intitula esta lei pesa dolorosamente, ao lembrar que
é uma homenagem póstuma a um dos artistas admiráveis, dos
quais imaginávamos que viveriam por anos antes de ouvirmos
falar em suas partidas. Aldir se foi pela covid-19, sem que
sequer pudéssemos nos despedir, assim como tantas outras
pessoas, as quais suas perdas deixam feridas profundas.

Além deste triste acontecimento, a imagem de uma


escrita que foi apoiada por uma lei emergencial, ou seja,
compreendida como relevante entre as ações voltadas a suprir
ou amenizar demandas de um momento crítico, também
sugere algumas reflexões muito pertinentes aos diálogos aqui
propostos.

Estes momentos críticos se desenvolvem de maneiras


e por contextos sociais diferentes. Esta grave crise mundial,
causada pela Covid-19, nos chamou a atenção para alguns
hábitos e necessidades que identificam uma situação
emergencial, pois parte deles já estava presente antes desta
crise. O que ressalta a observação de que há muitas
necessidades emergenciais, estados críticos, que há tempos

18
necessitam de ações. Aqui, nos concentramos em uma destas
necessidades: as conexões sociais.

A conexão social se desenvolve por meio das


memórias, percepção, sentimentos, estados, trocas que
promovem um agir compartilhado, que não se resume a estar
simplesmente no mesmo espaço. As experiências criativas do
corpo que dança são alternativas de desenvolvimento de
importantes habilidades necessárias a estas conexões, como
veremos adiante.

Contudo, há um entendimento muito importante,


que deve ficar muito nítido em nossos diálogos. Conexão social
não é sinônimo de vínculos afetivamente positivos (amor,
amizade e similares). Embora eles possam ocorrer neste
processo, sua manutenção não objetiva criar grupos de pessoas
de mãos dadas, passeando por um campo florido, ao som de
alguma gentil canção do duo musical Carpenters. Deste modo,
lamento se alguém se apegou a esta imagem, pois é
fundamental deixá-la de lado (ao menos, para esta leitura).

Nossas escolhas; os modos como conceituamos o


mundo; configuramos os diferentes contextos sociais, culturais
e políticos; a produção das alternativas de agir e sobreviver;
tudo isto ocorre por meio das conexões sociais. A habilidade
de perceber as experiências de outros corpos é imprescindível

19
para o processo evolutivo, pois a avaliação das alternativas de
sobrevivência seria consideravelmente reduzida, caso apenas a
nossa experiência a balizasse. Além disto, esta conexão permite
que as escolhas sejam favoráveis à sobrevivência também dos
demais corpos, o que, no geral, aprimora as suas condições
coletivamente.

O estudo técnico das composições de obras cênicas


(seja coreografia, performance, sequência, instalação, ou
outro formato cênico) não é o objetivo final deste livro. A
atenção está nos processos que ocorrem e se reconfiguram
nas experimentações de criação em dança, principalmente
as habilidades perceptivas, cognitivas e conceituais, que
reconfiguram as conexões sociais e, interdependentemente, os
contextos sociais.

Isto tudo ocorre também em outros processos


cotidianos, no entanto, as variações das experimentações em
dança desenvolvem possibilidades e necessidades distintas,
principalmente, por abranger outras experiências sensório-
motoras5, que podem produzir importantes alternativas para a
manutenção das habilidades de conexão social e, mutuamente,
transformações nos contextos socioculturais e sociopolíticos.

5
Este livro e os referenciais nos quais ele se fundamenta não separam
sensorialidade e movimento, por esta razão, é adotada a
nomenclatura “sensório-motora” para nomear esta experiência.
20
Nesta proposta, é importante compreender que
embora não seja seu objetivo final, as configurações estéticas e
possibilidades técnicas da dança, como Arte da Cena, não
estão apartadas destes diálogos. Não se trata de reformular a
dança para que se torne uma ferramenta para sanar demandas
de outros campos de atuação, mas de investigar seus processos
simbólicos6, sociais e cognitivos, em seus princípios
artísticos, fundamentalmente, nos processos de arte-educação.

Esta investigação é proposta por meio de três


perspectivas de conexão interdependentes (imagem, forma e
conceito), que se baseiam em pesquisas desenvolvidas por
artistas da dança; Neurociência; Linguística; Ciências
cognitivas; Comunicação; Filosofia e Sociologia.

Dentre os principais referenciais estão: os artistas-


pesquisadores William Forsythe e Klauss Vianna; os
neurocientistas John T. Cacioppo e António Damásio; o
neurofisiologista Alain Berthoz; a filósofa Hanna Arendt; os
linguistas e cientistas cognitivos Mark Johnson e George
Lakoff; o semiólogo, antropólogo e filósofo colombiano Jesús
Martín-Barbero; e a pesquisadora das comunicações do corpo,

6
Fundamentando-se na definição, apresentada por Santaella (2008,
p.132), de modo geral, o símbolo é uma das mediações que
desenvolvem os nossos modos de interpretar o mundo. Desta
maneira, definimos aqui os processos simbólicos como o
desenvolvimento destas mediações.
21
em suas noções culturais e sociopolíticas, docente e crítica de
dança Helena Katz (PUCSP).

Embora a pesquisa desenvolvida no mestrado em


Comunicação e Semiótica (PUCSP/2019), na linha
“Dimensões políticas na cultura”, com orientação da Profa.
Dra. Helena Katz, seja um importante ponto de partida, o que
se apresenta aqui não é totalmente uma transcrição da
dissertação. A sua estrutura e algumas partes foram mantidas,
porém, parte da escrita foi reformulada.

Assim como a dissertação, o que se encontra aqui não


é um manual, de maneira alguma há a pretensão de apresentar
procedimentos, modelos ou regras a seguir. A intenção deste
contato é participar das reflexões, questões e diálogos sobre as
experimentações, processos, saberes, investigações e estudos
de artistas, arte-educadores, diretores, entre outros envolvidos
com o fazer artístico da dança.

Ao pensar no “corpo que dança”, a atenção está no


corpo que investiga, cria, pesquisa e experimenta dança, como
Arte da Cena, contudo, experiências como as que serão
descritas podem estar presentes nas práticas do Teatro, Circo,
Performance, Mímica, entre outras.

Poderia ser o bastante dizer que a dança a qual este


livro se refere é a Dança Contemporânea, entretanto, ao longo

22
dos anos, esta nomenclatura tem se mostrado cada vez mais
insuficiente para delimitar um entendimento comum a todos.
Deste modo, ao invés de nos dedicarmos à busca por
categorizar e nomear um recorte específico de dança,
proponho uma atenção reflexiva aos propósitos,
compromissos, necessidades, comunicações, potencialidades e
alternativas produzidas pelas experiências da dança, que estão
presentes em diferentes processos e fazeres das Artes da Cena,
nas vivências de cada leitora ou leitor.

O corpo-artista-aprendiz referencial para esta


pesquisa está na faixa etária de 18 a 40 anos, no entanto, neste
nosso diálogo, este livro-ambiente poderá se rearranjar,
fissurar-se por diferentes histórias, necessidades, saberes e não
saberes.

Os experimentos de estudos (final dos capítulos dois

três e quatro) são baseados em processos de ensino

aprendizagem, ocorridos em diferentes espaços culturais, de


2010 a 2016, com artistas-aprendizes a partir de 16 anos. Os
processos mais referenciados ocorreram em uma das escolas

livres do ABCD Paulista, um projeto público encerrado ao final

de 2016, que atendia artistas-aprendizes a partir de 18 anos.

23
Este projeto se desenvolveu como uma formação em dança e
teatro, com aulas regulares de segunda à sexta feira, três horas
diárias, em cursos com duração de três anos e diferentes
disciplinas. Devido à responsabilidade ética-científica, as
identidades dos artistas-aprendizes são preservadas no
anonimato. Para maiores detalhes institucionais sobre o
projeto, sugiro consultar a dissertação que concluiu a pesquisa
de mestrado referencial deste livro.

Estes experimentos não têm o intuito de propor


procedimentos, eles se apresentam como um referencial

empírico, isto é, uma base para complementar as

compreensões sobre os estudos de cada uma destes capítulos.

24
Cê tem um jeito verde de ser e eu sou meio
vermelho
Mas os dois juntos se vão no sumidouro do
espelho.

(Da canção Catavento e girassol, de Guinga e


Aldir Blanc)

25
1. Nossos acordos: Afinando as definições.

Figura 1. Pé de flor – Flor de pé, de Jean Rocha (2019)

26
Certa vez, em uma conversa com um amigo, ex-
estudante de Arquitetura, falávamos sobre projetos. As
compreensões dele e a minha (artista, educadora e produtora
cultural) sobre o que esta palavra nomeia eram muito
diferentes, o que poderia se desdobrar em uma conversa bem
engraçada (sendo otimista) ou bem equivocada e incômoda
(nem tão otimista).

Acreditar que o nosso entendimento sobre um termo


é o mesmo para todos, por vezes, pode ser uma armadilha
tecida pelas restrições da ingenuidade, ou ainda, da
arrogância, que desconsidera as diferenças e tomam nosso
ponto de vista algo que transcende as diversas experiências.

Seja qual for o caso, isto pode produzir uma


comunicação ruidosa e compreensões que se contradizem, até
mesmo, àquilo que desejamos propor. Como também, pode
fechar as nossas reflexões em um grupo muito específico de
interlocutores, com os quais nos sentimos conceitualmente
seguras, reproduzindo ecos de nossas falas e diálogos pouco
transformadores, inclusive, para estes termos (que não são
fixos).

Nossos diálogos estarão voltados principalmente à


conexão social, para isto o primeiro passo é entender que ela
não se desenvolve de maneira genérica ou transcendente. De

27
modo que, para esta leitura é imprescindível a manutenção de
um olhar social contextual. Este olhar se compõe pelos
processos comunicacionais (memória, percepção,
necessidades, cognição, significação, entre outros), culturais,
geográficos e por outros entendimentos que se produzem
continuamente entre os corpos e seus ambientes,
reconfigurando as relações sociais e as histórias de cada grupo.

Este olhar permitirá às diferentes experiências


refletirem neste texto, a fim de perceber-se e ramificar-se em
alternativas, não simplesmente atravessá-lo em busca de
respostas pré-definidas, como quem cruza os corredores de
uma sessão de enlatados de um supermercado. Estamos em
diálogo justamente porque nada do que aqui se apresenta se
conclui sem esta interação com as experiências de quem lê.

Dito isto, precisaremos ser um pouco pacientes e


fazer certos acordos, principalmente neste início, para que
nossa comunicação ocorra da melhor maneira possível.

28
1.1 Criatividade – o mesmo termo, diferentes processos

Um importante entendimento que precisamos afinar


é sobre a palavra “criatividade” e suas variações. Quais
processos abordaremos ao dizê-la?

Muito ouvimos falar sobre “criatividade”,


principalmente, nos discursos corporativos: a importância de
ser criativo; a capacidade de encontrar novas soluções; um
dom ou talento nato especial; “indústria criativa” e “economia
criativa”. O que cada um destes entendimentos movimenta
socialmente?

Esta questão possibilita muitas discussões e


respostas. Contudo, inicialmente, nos ateremos brevemente
em um conceito de criatividade, presente no livro Criatividade
e outros fundamentalismos, do sociólogo Pascal Gielen
(2015).

Embora neste livro Gielen faça um alerta sobre o


atual uso exaustivo desta palavra, o que a colabora para um
esgotamento das potencialidades políticas e revolucionárias da
criatividade, nos atentaremos às suas explicações sobre a
aplicação corporativa e neoliberal.

29
Para lidar com este conceito de “criatividade”, Gielen
utiliza o termo “criativismo”, um processo despojado de seu
potencial crítico e, supostamente, apolítico.

Segundo o sociólogo (2015, p. 102), o que impede


que a pessoa criativista seja realmente criativa é a exclusão das
possibilidades de deslocamentos, de trânsitos culturais, pois
seu propósito primordial é a otimização de recursos, com a
finalidade de dar manutenção aos padrões e estabilidades.

De tal modo, o foco deste conceito não está nas


transformações e trocas entre os sujeitos; seus processos
ocorrem por projetos, concentrados em resultados pré-
determinados que, quando atingidos, as conexões produzidas
entre os sujeitos (vínculos utilitários) se desfazem (idem,
p.50).

Nesta compreensão corporativa, as metas de um


projeto são externas à experiência do sujeito criador, ou seja,
os resultados almejados e produzidos, pouco ou nada, se
relacionam às necessidades e transformações de suas conexões
sociais e habilidades cognitivas7.

7
É importante pontuar que não há experiência humana desprovida
de processos cognitivos. Este parágrafo se refere à desatenção a estes
processos, produzida por transformações perceptivas, e não à sua
ausência.
30
Mas quais os riscos da generalização da palavra
“criatividade”?

Ao compreendermos que nem toda proposição que


abrange a palavra “criatividade” lida com os mesmos processos
ou tem os mesmos objetivos, estaremos mais criticamente
atentas para identificar seus enunciados e discursos,
consequentemente, teremos maiores chances de evitar que
deturpem ou insiram as nossas ações e agendas em discursos
que trilhem por caminhos distintos de nossos propósitos
artísticos, como também, que nós mesmas nos atemos a estes.

Para refletir sobre isto, recortemos a inventividade


destinada à otimização de recursos e à manutenção da
estabilidade, aspectos ligados à criatividade corporativa (ou
criativismo); em contraponto a uma noção de criatividade
investigada nas aulas, treinamentos e ensaios de dança, atenta
às transitoriedades, operações e processos que participam de
suas experiências sensório-motoras. Como estas duas noções
atuam nas habilidades necessárias à conexão social em
diferentes ambientes do cotidiano?

É comum separar as demais ações do cotidiano


(comer, estudar, caminhar na rua, entre outras) do que ocorre
nas salas de estudos e ensaios de dança. Não dizemos
“cozinhando e no cotidiano”, “nos estudos e no cotidiano”, ou

31
“dirigindo um carro e no cotidiano”. Então, por que
separamos as experiências da dança do cotidiano?

Esta separação, sugere o reconhecimento de um tipo


de experiência que se diferencia de grande parte das demais
ações. Isto é compreensível como metáfora, isto é, como uma
maneira de conceituar o modo de perceber uma experiência,
assim como, é comum ouvir que o corpo está em um lugar e a
mente em outro, mesmo que corpo e mente não se separem.

Mas, por que é tão importante compreender a dança


como experiência cotidiana, não como um processo apartado?

32
1.2 O corpo

Até o momento, já nos deparamos algumas vezes com


a palavra “corpo”. Quem sabe até, com alguma estranheza, de
acordo com a colocação. O que mais importa, neste nosso
diálogo, é compreender que com esta palavra não nos
referimos somente a um recorte fisiológico. As atividades
neuronais, sensório-motoras, psíquicas, sociais, intelectuais e
todas as demais operações e processos bioculturais estão nesta
noção. Não há um “eu” possuidor e controlador de um corpo-
ferramenta ou instrumento.

Ao pensar nas perspectivas de conexão nas


experiências criativas do corpo que dança, se parte de um
entendimento de corpo não fragmentado, sem dicotomia entre
corpo e mente. Da mesma maneira, um mesmo corpo não se
divide em “o corpo da dança” e “o corpo de outras ações
cotidianas”.

As informações e as habilidades, não abandonam o


corpo a cada experiência, nem ficam anestesiadas em um
compartimento. Elas se comunicam, estão em fluxo de trocas
com o ambiente e outros corpos, produzem transformações a
cada novo contato. Por estes trânsitos, as experiências criativas
do corpo que dança são relevantes para as discussões sobre as

33
conexões, pois reconfiguram continuamente as comunicações
entre corpos e ambiente, social, cultural e politicamente.

Segundo Katz e Greiner (2005), o corpo é uma


coleção móvel de informações, em trocas ininterruptas com o
ambiente. Cada nova informação que ele entra em contato,
negocia com aquelas que lá estão e se torna corpo,
transformando-o mutuamente. Portanto, as informações
que ele comunica são também corpo. Isto não quer dizer que
qualquer informação ganha estabilidade, como também, é
importante entender que estes contatos são mediados pela
percepção, um ação de decisão, não são todas as informações
com as quais nos deparamos, que entramos em contato e não as
absorvemos simplesmente.

Não há corpo recipiente, para o qual uma informação


simplesmente se transfira e/ou se retire, sem mediações ou
negociações, nem mesmo um corpo computacional, que
recebe uma informação, a processa e devolve um resultado
para o mundo, sem que nada em si se transforme.

O corpo que anda quadras e mais quadras para


chegar ao local de estudos de dança; o corpo que mora ao lado;
o corpo exposto às telas por muitas horas diariamente; o corpo
que trabalha em construção civil; o corpo que passa os dias
cuidando de outros; o corpo que salta, se espreguiça, investiga

34
os direcionamentos ósseos e os modos como se desloca pelo
espaço. O corpo não se esvazia, nem se fragmenta, tudo isto é
o corpo que se movimenta nas experiências de criação em
dança e age em outros diferentes contextos.

Assim como o corpo não se fragmenta, o ambiente


não se define como um lugar estático e passivo, ele é
contextual, ou seja, ele dialoga sensivelmente com as
informações, reconfigurando-se nestas trocas. (KATZ e
GREINER, in GREINER, 2005, pp. 129-130).

É sabido que cada ação requer habilidades


específicas, para as quais o corpo produz meios de desenvolvê-
las, de acordo com suas escolhas e necessidades. A dança é
uma experiência cotidiana, que pressupõe uma especialização
das habilidades sensório-motoras, que criam alternativas às
variações do ambiente, em diferentes perspectivas de conexão,
por imagens, formas e conceitos.

Por fim, este entendimento de corpo que abordamos


é o corpo-artista-aprendiz, disponível ao aprendizado, às
investigações e ao encontro do “não saber”, da dúvida, do
arriscar-se por incertezas, ao diálogo, tendo ou não
experiências como artista, anteriores ao processo de
investigação/ensino-aprendizagem.

35
Tão relevante quanto esta noção é entendê-lo
também como um corpo-artista (GREINER, 2005, p. 122).
Não é um corpo “em incubação”, que aguarda um término de
formação; ele se compromete com os fazeres artísticos e suas
transformações socioculturais, em suas proposições e
experimentações. Por esta razão, assumimos que as metáforas
que produz são geradoras de novas experiências e outras
metáforas.

36
2. Conexão e isolamento

A ilusão fundamental da humanidade


é supor que eu estou aqui e você está
aí.

(ROSHI apud CACIOPPO e


PATRICK, 2010, p. 188)

37
13.0468. Este é o número de suicídios que ocorreram
no Brasil em 2017. Além deles, em nosso país, os crimes de
ódio sofreram altas estarrecedoras, chegando a 12.3349 em
2019, segundo a ONG Words heal the world. Certamente, há
diferentes justificativas para estes acontecimentos, contudo,
estas informações acendem um alerta sobre as transformações
nas conexões sociais.

Somando-se a estas informações, temos as


proposições do neoliberalismo, bem como, os modos como
configuram as políticas públicas e imprimem o
empreendedorismo como alternativa econômica. Este
processo se funda na competitividade, nas capacitações
produtivistas, em contatos utilitários.

Estas práticas, por suas repetições agregadas a


promessa de prosperidade, de saída para as crises, não apenas
são apropriadas como aquilo que supre imediatamente as
necessidades de sobrevivência primárias, mas promovem estas
crenças de progresso a quem se dedicar fielmente às suas
metas, como recompensa pelo mérito de seus esforços. Todas
estas informações configuram não somente um modelo de

8
Somatória entre registros de suicídios de homens e mulheres
publicados no Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde
(disponível em https://bit.ly/2OuyEW3. Acesso em 14/03/2021)
9
Disponível em https://bit.ly/3bLpJbO. Acesso 14/03/2021.
38
trabalho e econômico, mas também um hábito social, um
modo de gerir a própria vida: o empreendedorismo de si
(DARDOT e LAVAL, 2016, p.333), no qual o corpo gere a si
mesmo, suas relações de convívio pessoal, suas rotinas diárias,
como uma empresa.

Afrânio Catani (in LAVAL, 2019, Orelha do livro) ao


apresentar o livro A escola não é uma empresa (LAVAL,
2019), menciona o fato de que “nenhuma sociedade é capaz
de funcionar se o vínculo social se resume às “águas geladas
do cálculo egoísta”, o que vai ao encontro do pensamento de
Cacioppo (2010) a respeito do aumento do risco de solidão,
quando o sujeito se percebe “apenas um meio instrumental
para os fins extrínsecos e não sociais da outra pessoa”
(CACIOPPO e CACIOPPO, 2014, p.10, tradução nossa10).

Nesta problemática, está a produção de


comportamentos pela lógica da tecnologia, na qual a
funcionalidade, o desempenho e a produtividade reconfiguram
a comunicação entre os corpos. Ressaltando que “lógica da
tecnologia” não é o mesmo que “tecnologia”. Esta última se
define como os modos de utilização de um instrumento ou
técnica, destinados a suprir diferentes demandas humanas.

10
“perceives s/he is merely an instrumental means to the other
person’s extrinsic, nonsocial ends”. (CACIOPPO e CACIOPPO,
2014, p.10)
39
Enquanto a primeira se caracteriza pela lógica de suas
operações, que não inclui ludicidade, imaginação e prazer.

Com base na “lógica da tecnologia” se tem um


diagnóstico sobre os modos de operar de uma sociedade, pois
esta lógica sintetiza, em grande parte, suas demandas e
produções econômicas, culturais, políticas e sociais.

Aparatos e aplicativos tecnológicos, tais como os


softwares, se destinam a ser eficientes e eficazes em suas
funções, contudo, não se recorre a eles quando não há
necessidade daquilo que produzem. O contato se dá pela
demanda funcional, que finaliza assim que o resultado é
obtido, ou que sua capacidade produtiva cesse. O problema se
apresenta quando este comportamento passa a balizar as
relações humanas, a definir os contatos como vínculos
utilitários.

É a sociedade que produz o corpo empreendedor de


si, que também demanda os aparatos tecnológicos, os utiliza,
a afinidade com estes aparatos amplia-se pelo uso, assim como
as habilidades cognitivas e sensório-motoras, mas esta
afinidade também tem como agente facilitador as necessidades
empreendedoras, de otimização, produtividade e, por outro
lado, a falta de afinidade com produções imaginativas, com a
ludicidade, com aquilo que não se localiza na ordem do “existe

40
para”. O empreendedor de si e o corpo app (KATZ, in KATZ
e GREINER, 2015, p.244) se entrecruzam em suas operações.

O sociólogo e filósofo Herbert Marcuse (1999, p.74)


destacava que a “técnica por si só pode promover tanto o
autoritarismo quanto a liberdade”. De modo que, não se trata
de uma declaração saudosista ou de apontar as tecnologias
como vilãs para as conexões sociais. Precisamos manter
atentos os nossos olhares sociais contextuais.

Devido à crise sanitária mundial causada pela Covid-


19, em 2020, muitos de nós estiveram em situações onde
desde simples conversas entre amigos ou familiares, ao acesso
a museus, teatros, cursos, ambientes de trabalho dependia, em
grande parte, do uso de aparatos tecnológicos informatizados.
Contudo, alguns destes meios de acesso, para muitos de nossa
sociedade, já eram a única alternativa de contato (mesmo antes
da covid-19), por questões econômicas, de segurança,
geográficas, acessibilidade diversas, entre outras.

Certamente, o uso excessivo de celulares, notebooks,


e similares tem um papel muito importante nas transformações
cognitivas e dos hábitos de convívio e comportamento.
Contudo, para os grupos que antes tinham acessos amplos a
muitas possibilidades de comunicação, ao se perceber em
uma situação na qual este tipo de contato passa a não ser

41
somente mais uma opção, mas a única via possível,
provavelmente, o entendimento sobre os processos
perceptivos, que operam nestas configurações também se
transformou.
Depois destas reflexões, se nos voltarmos para a
informação de que o Brasil, segundo OMS, é o país com a
maior população do mundo com ansiedade (9,3%)11,
aumentando 80% durante os primeiros meses de quarentena
obrigatória. O que poderemos perceber?

O neurocientista social John T. Cacioppo (2010,


p.31) demonstra que desde os períodos mais remotos, a
conexão social produz informações de segurança e bem estar.
Ao longo da evolução, os seres humanos que propagaram seus
genes foram aqueles que viviam em grupos, eles sobreviveram
às grandes adversidades da pré-história e a outras eras e
condições severas. Deste modo, isto se transformou em
informações da fisiologia humana. A evolução selecionou
“genes que favorecem o prazer da companhia e produzem
inquietude quando se está involuntariamente
desacompanhado” (idem).

Hanna Arendt (1989, p. 528) nos chama a atenção


sobre a diferença entre solitude e solidão. Mesmo a sós (na

11
Dados apresentados por Helena Katz (2020, p.9), no ensaio O que
lateja na palavra pandemia.
42
solitude) podemos manter as conexões com outros corpos.
Dialogamos com as memórias que evocamos e com as
transformações de nossos corpos geradas no contato com o
outro, mesmo quando não as identificamos prontamente,
como nos modos de caminhar, rir, ou fazer outra tarefa.
Agimos em conexão com as experiências produzidas nos
contatos com outros corpos.

Segundo Arendt (idem, p.527) a solidão é a “[...]


experiência de não pertencer ao mundo, que é uma das mais
radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter.”

O estado de solidão pode ocorrer quando se está a


sós, mas também em meio a duas, três ou mil pessoas. A
conexão e a solidão são estados que dependem da maneira
como estes contatos ocorrem, principalmente, como a
percepção faz estas mediações.

A solidão é o estado daquele que está isolado


socialmente. O isolamento social, aqui, se define como um
conjunto de dispositivos, compostos por ações que
desmobilizam o desejo e a necessidade de agir com o outro
(ARENDT, 1989, p.528).

Como elucida Cacioppo (2013), em isolamento, o


corpo desenvolve o sentimento de autopreservação,
demonstrado principalmente por uma atividade do córtex

43
visual, que se concentra nos aspectos nocivos daquilo com que
se depara, uma função neuronal de proteção, para detectar
rapidamente as ameaças.

Nos contextos sociais, dispositivos que distanciam os


corpos (culturalmente, economicamente, entre outros)
fomentam o desenvolvimento deste olhar para o outro como
ameaça. Um gesto, uma fala, um movimento, um aspecto
físico, com o aumento das diversas distâncias entre os corpos,
diferentes informações podem ser percebidas somente em seus
aspectos nocivos, se configurando como ameaças e gerando
uma necessidade de autopreservação: uma atitude agressiva,
ou outra dedicada a manter e/ou ampliar estas distâncias, para
manter-se seguro.

Estas distâncias podem gerar o estado de


autopreservação, um olhar para o outro como ameaça, mesmo
entre aqueles que se entendem como sendo do mesmo grupo,
por ser um estado que atua em sua habilidade cognitiva de ver
o outro. São corpos isolados, reagindo ao que enxergam como
ameaças, traçando um risco à sobrevivência, não somente para
si, mas também para os demais e alimentando as condições
que produzem o isolamento, continuamente.

44
3. Perspectivas de conexão

Figura 2. Ilustração de Serafim do Mundo (2019)

45
A partir deste capítulo, nossos diálogos se basearão
em três perspectivas de conexão: imagem, forma e conceito).
Há cerca de dez anos atrás, este estudo iniciou como uma
maneira de compreender os processos de criação de obras
cênicas em dança e, até 2016, eram chamados de “meios de
composição”. No entanto, aos poucos, notou-se que esta
proposição nos processos de ensino-aprendizagem, além do
estudo estético, promovia discussões atentas aos trânsitos
culturais, aos compromissos com o fazer artístico e,
principalmente, às transformações cognitivas nas atitudes que
reconfiguram os processos sociais.

Para apresentar o entendimento de perspectiva,


tomamos a explicação de António Damásio (2018, p. 99), a
respeito da perspectiva visual. A produção da visão abrange as
habilidades, o contexto (localização do observador, condições
de observação, fisiologia etc.) e outras “estruturas do corpo
(grupos musculares diversos) e do sistema nervoso (regiões do
controle motor), separadas das regiões das estações do sistema
visual.”. O que permite propor que esta geração de perspectiva
se produz por operações entrecruzadas, que abrangem outros
sistemas, além daquele que está em foco e que são dependentes
dos contextos de cada corpo.

Com base neste pensamento, as perspectivas que


serão apresentadas não se produzem independentemente
46
umas das outras, nem de maneira igual por todos os corpos.
Nenhuma delas que se produz de modo genérico, para
quaisquer corpos, em quaisquer contatos e configurações, e
seus estudos partem, imprescindivelmente, da percepção,
suas operações e do ambiente contextual.

47
3.1 Imagem.

Figura 3. Consciência, de Serafim do Mundo (2019)

48
A dança se faz não apenas dançando,
mas também pensando e sentindo:
dançar é estar inteiro.

(KLAUSS VIANNA,1990, p. 25)

49
“Esqueçam tudo o que ficou lá fora, busquem
esvaziar-se e se concentrem somente no presente”. Esta frase,
ainda reincidente nas orientações de alguns arte-educadores e
professores de artes da cena (dança, circo, teatro, entre
outras), ao propor experimentos de criação, por vezes,
demarca uma tentativa de apresentar um trabalho realizado
com seriedade, atento fielmente ao estudo.

É compreensível que o arte-educador (ou diretor)


deseje, em certa medida, uma concentração voltada ao instante
da aula ou ensaio, todavia, uma orientação dedicada ao
esquecimento pouco provável que seja o melhor caminho para
uma experimentação criativa.

Além de não ser possível esvaziar o corpo de suas


experiências, esta tentativa é incoerente, pois, segundo o
neurocientista António Damásio (2018, p.115), “A recordação
de imagens passadas é essencial para o processo de
imaginação, o qual, por sua vez, é a fonte da criatividade”.

Damásio (2000, n.p.) explica que “[...]imagem


designa um padrão mental em qualquer modalidade
sensorial.” O que significa dizer que não se restringe ao campo
visual, pode ser uma imagem sonora, tátil, gustativa, olfativa,
de movimento, um estado de bem estar, entre outras.

50
Um bom modo de não se confundir sobre esta
definição é pensar no ato de imaginar. Não imaginamos
somente o que é visual, esta ação que corresponde à imagem se
refere a diferentes modalidades: imaginamos emoções; gestos;
sons; sensações; cheiros; sabores, entre outras.

Todavia, as imagens não são apenas recordações,


Damásio (1996, p.123) propõe duas modalidades: perceptivas
(aquelas que entramos em contato ao olhar pela janela, ouvir
uma música ou acompanhar as linhas de um livro) e evocadas
(produzidas pela lembrança de um animal de estimação da
infância, do cheiro de café da casa de sua avó, dos sentimentos
pelo seu primeiro amor).

Ao pensar em conexões sociais, em seus processos de


memória, sensíveis, de compartilhamento de sensações,
conhecimentos, no agir comum, outra habilidade fundamental
também deve ser abordada: a empatia.

Assim como o termo “criatividade”, uso exaustivo da


palavra “empatia” arrisca a banalizar o seu entendimento,
passando a imprimir sobre ela uma ideia muito menos potente
do que poderia propor. Atualmente, ouvimos frequentemente
a orientação para ser empáticos ou praticar a empatia. Mas,
isto é possível somente a partir de uma resposta a um convite?

51
Embora seja comum nos depararmos com a noção de
empatia como atitude ou prática, é necessário compreendê-la
como uma habilidade.

Boa parte de nós, se convidada a fazer um “duplo


twist carpado”12, não o faria. Contudo, aqueles que treinaram
para isto teriam maiores chances de atender a este convite.
Querer é um fator importante para o desenvolvimento de uma
habilidade, contudo, não é o único requisito para realizar uma
ação que dela necessita.

Da mesma maneira, quando os hábitos, contextos


e contatos de um corpo muito pouco se configuram
como treinamentos para a habilidade empática, não será
uma orientação para ser empático que resolverá sozinha
esta demanda.

Um dos princípios da empatia, se encontra nos


neurônios espelho, definidos por Damásio (2009, n.p) como
dispositivos de simulação de um estado, “que não está
ocorrendo de verdade no organismo”. Também o
neurocientista social John T. Cacioppo (2010, p.174), a partir
da leitura de experimentos de laboratório do neurofisiologista
Giacomo Rizzolatti , propõe que a resposta neural dos

12
Salto de ginástica artística, também conhecido como “Dos
Santos”, por ser desenvolvido pela atleta Daiane dos Santos e seu
técnico.
52
neurônios espelho é produzida pelo propósito da ação e não
por ela em si, ou seja, não seria o salto de outro corpo que
produziria esta resposta, mas a percepção de seu propósito de
saltar.

Com base nas próprias experiências, um corpo que


tenha contato com informações de outro, como as ações de
saltar, sorrir, ou gestos relacionados a emoções e estados
(como euforia e cansaço, por exemplo), produzirá uma reação
neural, sobre estas informações, semelhante àquela produzida
pelo corpo que as produz. Permitindo que estes corpos estejam
em conexão, por estas informações.

Como exemplo, pode-se pensar que um corpo que já


realizou um movimento, para o qual sinta uma tensão dolorosa
nos ombros, por exemplo, ao ver outro realizando este mesmo
movimento ou outro que seja percebido como similar,
produzirá, neuronalmente, uma reação equivalente a esta
tensão nos ombros.

Apesar deste nome, não haveria como os neurônios


espelho produzirem cópias exatas das sensações alheias, esta
informação é produzida por uma perspectiva pessoal, ou seja,
com base nas próprias imagens. “Aparentemente, esse
entendimento "pessoal" das ações dos outros promove nosso

53
entendimento e ressonância com os outros.” (CACIOPPO e
PATRICK, 2008, p.154, tradução nossa13).

Comparando novamente a empatia com um “duplo


twist carpado”, se imaginarmos a própria atleta brasileira
Daiane dos Santos, que tanto treinou e o executou com
maestria, portanto, com habilidades suficientes para tal, sendo
convidada para realiza-lo em um solo rochoso irregular,
mesmo que haja treinamento e habilidade para realizar tal
salto, as configurações do ambiente serão um empecilho.

Portanto, unicamente uma indicação “para sermos


empáticos” é insuficiente para que isto aconteça, pois depende
de habilidades e, além disto, estas não são universais, estão em
dependência mútua com o ambiente. De maneira que, a busca
pela empatia requer uma disposição cognitiva, ou seja,
treinamentos perceptivos, experiências que desenvolvam a
habilidade necessária e uma disposição social, política,
cultural, histórica, que analise os ambientes, reconheça os
dispositivos que se oponham a estas produções, questione e
busque reconfigurá-los, para que haja condições para conexões
sociais baseadas na empatia.

13
This "personal" understanding of others' actions, it appears,
promotes our understanding of and resonance with others.
(CACIOPPO e PATRICK, 2008, p.154)
54
Nos experimentos do neurofisiologista Giacomo
Rizolatti, apresentados por Cacioppo e Patrick (2010, p. 175),
após alguns contatos, mesmo que um corpo não presencie
toda a ação do outro, mas somente um de seus indicadores,
esta reação dos neurônios espelho já será produzida. Isto é, ao
presenciar um corpo se preparando para um movimento já
conhecido, ou aproximar-se de um corpo, que é sabido estar
triste (por outra fonte de informação, como um telefonema,
por exemplo), os neurônios espelho produzirão estas reações.

Estas reações são a base do que entendemos como


empatia, que conecta corpos por estes estados, produzidos
nestas reações neurais. No entanto, esta disponibilidade ao
contato, com estas informações de outros corpos, depende das
informações de cada um, suas experiências e habilidades
perceptivas.

Grande parte das investigações na dança se baseia em


experimentações e técnicas de autoconhecimento, como as
noções articulares, de peso, apoios, direcionamentos ósseos,
oposições, resistência, que fazem parte de alguns estudos,
como da Técnica Klauss Vianna, por exemplo. Salientando
que estas são investigações sensório-motoras, ou seja, não se
atentam unicamente ao recorte fisiológico do movimento.

55
Estes processos são importantes para a empatia, pois,
de acordo com Cacioppo e Patrick (2010, p. 171) “[...] o
autoconhecimento e a capacidade de entender os sentimentos
e as intenções sinalizados por outros podem estar conectados”.
Uma constatação que colabora com esta hipótese é
apresentada pelo neurocientista e seu coeditor sobre os
desenvolvimentos neurofisiológicos necessários à empatia, que
se iniciam quando uma criança começa a reconhecer-se no
espelho, ou seja, quando há um indício de autoconhecimento.

Quanto mais as nossas escolhas se definirem somente


com base nas ações que realizamos (efetivamente), menores
serão as nossas alternativas para analisar as informações e
selecionar os contatos necessários, como também, menor será
a conexão destas escolhas com uma demanda social/coletiva.

Estas trocas de informações, por meio de ações


simuladas pelos neurônios espelho, como elucida o
neurofisiologista Alain Berthoz (2000, p.20), atuam para
“predizer suas consequências e escolher quais são mais
apropriadas entre elas”.

Para compreender a ação de predizer, usaremos um


exemplo simples: Ao escolher fazer um rolamento em um piso
de madeira, antes de realizar esta ação, os receptores
sensoriais simulam as variáveis necessárias à percepção deste

56
contato com o piso, o nível, a temperatura, o eixo corporal, o
esforço necessário, ou seja, as “[...] propriedades que
antecipam a natureza deste movimento, sua tônica e
dinâmica”. (BERTHOZ, 2000, p.57, tradução nossa14). Não
se trata de uma premonição, mas de uma “preparação para
perceber”, que ativa minimamente os receptores para tal. Esta
habilidade está intimamente ligada aos treinamentos que
reconfiguram a percepção tanto de imagens perceptivas,
quanto evocadas, inclusive, por meio das habilidades
empáticas, pois se desenvolve por negociações.

Outra via para a empatia, que dialoga com as práticas


da dança, mencionada por Cacioppo e Patrick (2010, pp.156-
158), é a ação do hormônio da oxitocina, a “substância central
do vínculo”, produzido, principalmente, pela ação do toque,
mas não somente por ela.

Há diferentes maneiras de produzir este hormônio,


como por exemplo, estimulações visuais, olfativas,
sonoras, entre outras. “A oxitocina aumenta a regulação social
por ser a substância da calma” (idem, p.158), ela dispara
outras produções hormonais, que regulam o desejo de conexão
social, associadas a uma sensação de prazer e tranquilidade.

14
[…] proprieties that anticipate the nature of the movement, tonic
or dynamic. (BERTHOZ, 2000, p.57)
57
Sejam os contatos pelo toque “pele a pele”, sejam estes outros,
é fácil reconhecê-los nos processos de investigação da dança.

Nas experimentações de criação da dança, focadas na


perspectiva conexão por imagens, o principal fundamento está
nos treinamentos das habilidades perceptivas, que podem se
desenvolver por meio de proposições atentas às diferentes
memórias e sensações, ignições produzidas por cheiros,
texturas, histórias diversas, contudo, o potencial da dança de
lidar com o movimento especializado, detalhado, necessita
estar ao centro destas investigações.

Contribuindo com este pensamento, está a definição


de movimento de Berthoz (2000), como o sentido perceptivo
mais importante à nossa sobrevivência. Segundo o

neurofisiologista, o movimento (ou cinestesia) se soma aos


cinco sentidos perceptivos tradicionais.

O movimento não é somente um modo de deslocar-


se pelo espaço, ao agir, os seus receptores (entre os músculos)
mediam informações diversas, como a densidade, o nível, a
distância, o equilíbrio, entre outras (BERTHOZ, 2000, p. 25).

Sabendo que todo sentido perceptivo age por


perspectivas, ou seja, entrecruzando as informações com os
demais, as informações que o sentido do movimento media
transformam e são transformadas pelos demais. Além disto, é

58
importante lembrar que as imagens, produções com as quais
colabora, não são somente informações captadas do ambiente,
são também memórias, estados, sensações, sentimentos, entre
outras, mediadas pela percepção.

Um dos modos de compreender o movimento como


sentido perceptivo é a partir da pausa. Comparando ao sentido
da audição, mesmo quando não há um som facilmente
percebido por seus receptores, em circunstâncias em que se
julga estar em um profundo silêncio, não há uma interrupção
das habilidades auditivas.

As leituras do ambiente produzidas pela audição


continuam, mesmo que de maneiras diferentes, assim como,
as possibilidades de selecionar as variáveis (responsáveis pelo
ato de predizer) e as conexões com os demais sentidos e
memórias. As operações de seus receptores se transformam,
mas o corpo não se torna surdo, não perde sua habilidade de
percepção sonora. Ou seja, a audição, como sentido
perceptivo, não se estanca.

Desta maneira, compreende-se que, mesmo para um


corpo em pausa, o movimento, como um dos sentidos
perceptivos, não é interrompido. Seus receptores continuam
suas ações. E, para este estudo sobre as conexões sociais nas
experiências criativas do corpo que dança, é relevante

59
compreender o movimento como sentido perceptivo, pois isto
significa entendê-lo como um modo de pensar. [...] Perceber
é escolher, na massa de informações disponíveis, aquelas que
são relevantes para a ação prevista. (BERTHOZ, 2010, p.387,
tradução nossa15)

15
[…] Percevoir, c’est choisir, dans la masse des informations
disponibles, celles qui sont pertinentes par rapport à l’action
envisagée. (BERTHOZ, 2010, p.387)
60
3.1.1 Experimentos de estudos

3.1.1.1 O corpo Vulnerável

Figura 4. Corpo Vulnerável, de Serafim do Mundo (2019)

61
A escolha deste tema, pelo artista-aprendiz (44 anos,
guarda civil metropolitano), se baseou em sua experiência,
sobre corpo enfermo. Anos antes, ele estivera hospitalizado,
com seus movimentos restringidos por seu estado debilitado.
Segundo ele, era a memória de um corpo que se sentia a mercê
dos desejos de outros, em um momento, em que não
conseguiria se contrapor a uma ação indesejada.

Para este experimento, o artista-aprendiz, manteve-


se em pé, em movimentação de pêndulo, que iniciou de modo
amplo. Fechou os olhos, e, ao mesmo tempo que pendulava,
oscilando pelo espaço, foi diminuindo seus movimentos,
apenas ficando com as reações de desiquilíbrio mal
recuperado, do começo do experimento.

Para este estudo investigou os tópicos do Processo


Lúdico da Técnica Klauss Vianna, fazendo variações de peso,
apoio, oposições e, principalmente, resistência.

Investigava movimentos mínimos de pernas e braços,


pouco visíveis, se baseando apenas nas musculaturas e ossos
que os impulsionavam, em pequenas contrações e
relaxamentos, conjuntos a uma curta respiração (baixa
inspiração e expiração), com pausas longas. Buscando uma
sensação de corpo manipulado, percebida durante sua
internação no hospital.

62
Durante o encontro de estudos, cada sequência de
experimento durava, em média, trinta minutos. No
compartilhamento, na mostra de processos, cerca de dois
minutos. Não somente pela necessidade abreviar o tempo, pela
organização geral dos compartilhamentos, mas, por uma certa
ansiedade, provocada pela observação, que, segundo ele,
também imprimia uma sensação de vulnerabilidade, pelos
contatos.

63
3.1.1.2 Massaescada - Escadamassa

Do medo primitivo de tocar em outro corpo e de ser


tocado, poderia nascer algo tão terrível e incontrolável?
As massas, na história humana, segundo Elias Canetti,
brotam exatamente daí, nascendo com ela essa vontade
desmesurada de autoproteção e de crescimento sem
limites. (HARDMAN, in CANETTI, 1995, orelha do
livro)

Figura 5. Massaescada – Escadamassa, de Jean Rocha (2019)

64
Como processo de estudos da noção de “massa”,
apresentada no livro Massa e Poder (CANETTI, 1995), a
proposta deste experimento, criada por uma das artistas-
aprendizes, era descer e subir uma escada de alvenaria estreita,
com poucos degraus e curvilínea, várias vezes (até que fosse
solicitada a interrupção da ação), iniciando cada um em
diferentes degraus. Explorando este espaço, com variação de
níveis (baixo, médio e alto), de dinâmicas de movimento e
planos (lateral, frontal, traseiro e diagonal). Primeiramente,
revezando entre estar de olhos fechados e abertos, depois
somente de olhos abertos.

Pelo formato da escada, um esbarrão um pouco mais


brusco, poderia desequilibrar os corpos, o que não causaria
nenhum acidente grave, mas uma certa apreensão. Além destes
riscos, após algum tempo, alguns artistas-aprendizes
(homens) decidiram continuar a investigação nus, o que
também causou um breve desconforto, para parte deles, que
não queria o toque com estes corpos, mesmo que estes
ocorressem de modo mais sutil.

Após certo tempo de experimento, notaram que o


melhor modo de evitar o incômodo dos impactos indesejáveis,
mesmo começando em espaços diferentes, era compatibilizar
os tempos e dinâmicas, o que ocorreu gradativamente, sem
combinações prévias. Cada um encontrou sua estratégia para
65
isso, alguns pelo som (ao estar de olhos fechados), outros pela
medição do intervalo de tempo em que, geralmente, sentiam
maior proximidade dos corpos, consequentemente, o risco do
esbarrão.

O que, a princípio, era uma estratégia para lidar com


a dificuldade de explorar o espaço, sem abandonar as suas
próprias escolhas e, ao mesmo tempo, manter esta constância
organizada dos contatos, aos poucos, se percebeu como uma
reconfiguração, que os permitia sentirem-se seguros, por estas
conexões que se produziram.

Durante o compartilhamento, em uma mostra de


processos, ao receber os observadores, que se mantiveram com
receio de serem tocados pelos artistas-aprendizes nesta
passagem, puderam investigar os contatos entre este grupo,
que se sentia seguro por suas conexões, e estes outros corpos,
que chegavam de diferentes lugares e tinham diferentes
vínculos.

E, nessa obra, a gente não podia falar dessa massa de


outra maneira. O público tem que estar o tempo inteiro
nessa tenção de "será que ele vai me tocar?", e esse
tocar faz parte dessa ideia de contaminação. Não é
sobre igualar o artista com o espectador, mas deixar
claro essa fricção que existe entre os dois. (Ex-artista-
aprendiz, 2015, n.p. )

66
Embora este relato, escrito por um dos artistas-
aprendizes, mencione uma relação entre artista e expectador,
se nos atermos aos corpos, por uma noção de alteridade, ele
indica que estes contatos, estas possibilidades de conexão, não
se baseiam em igualar corpos, mas nisto que chama de fricção,
nestas informações que produzem variações, reconfigurações,
em fluxo, numa produção de ambientes e possibilidades de
trocas.

67
3.2 Forma.

Coreografias modelam a potencial mitigação do caos.


Coreografias modelam resultados incertos.
Coreografias refletem a instabilidade de sistemas
complexos de governança.
Coreografias podem não insistir.
Coreografias traçam ideias na ação da percepção
Coreografias também podem se recusar a agir.
Coreografias podem circunscrever a inação.
Coreografias querem alinhar confusão e
felicidade.
Coreografias suspendem a certeza.
Coreografias valorizam o fracasso.
Coreografias têm um presente ativamente histórico.

(FORSYTHE, 2019)

(texto extraído de um dos murais da exposição William


Forsythe: Objetos Coreográficos. Sesc Pompeia- SP, 2019)

68
Os sons; a iluminação; a trajetória, ritmo e tonicidade
do movimento; a arquitetura e os objetos de uma sala.
Materialidades como estas estão ao centro das atenções nas
experimentações criativas na perspectiva de conexão por
forma.

Lembrando que tratamos de uma perspectiva, ou


seja, um fluxo de informações que ocorre entrecruzadamente,
os processos da percepção continuam a ser imprescindíveis
nestas experimentações. Nenhuma destas informações é
investigada como algo dado a priori, universal, transcendente.
São categorizações realizadas pelo corpo, como elucidam
Lakoff e Johnson (1999, n.p. tradução nossa16): “Categorias
conceituais espaciais surgem por causa dos corpos e das
experiências espaciais”.

Um entendimento que também dialoga com as


proposições do coreógrafo William Forsythe, pois não se trata
de investigar estas materialidades, mas sim de criá-las. Não é
uma criação a partir de uma arquitetura, mas criar dimensões
arquitetônicas de modo quase matemático, na experiência da
dança. Isto não significa ignorar portas e janelas, mas entrar
em contato com elas e cria-las. Explorar pelo sentido

16
Spatial conceptual categories come into being because of the
bodies and brains and spatial experiences we have. (LAKOFF e
JOHNSON, 1999, n.p)
69
perceptivo do movimento cada linha e fazer os trânsitos
metafóricos, produzir sentidos pelas suas formas, linhas,
traços, a dureza e densidade, peso, volume, cor, luminosidade.

Nas experimentações por meio desta perspectiva, a


produção de significados estará em fluxo, contudo, a atenção
se concentrará nos cálculos, estruturas lógicas, biomecânicas,
espaciais, entre retas, pontos e curvas. Uma investigação fina
das geometrias, nas trocas entre os corpos e um ambiente não
fixo, dado.

Estas materialidades não são casuais, aleatórias, as


suas escolhas, os modos como fazemos seus arranjos e as
categorizamos em uma experimentação criativa em dança não
ocorrem ao acaso. Elas não se baseiam em habilidades
naturais, há sentidos e potencialidades culturais, sociais e
políticas, que baseiam as escolhas determinantes destes
caminhos. A maneira mais eficaz de compreender e julgar estas
elaborações, como elucida Andrew Hewitt (2005, p.29), no
livro Social Choreography: Ideology as Performance in
Dance and Everyday Movement, é “por meio de uma analogia
com a configuração social.”

Com base nas proposições de Hewitt (2005, p. 14),


podemos refletir a respeito das criações que investigam estas
materialidades, contempladas na perspectiva da forma. Como

70
não temos diversos corpos, podemos sugerir que, em maior ou
menor escala, estamos fazendo estes arranjos atentos às
formas (espacialidade, trajetórias, distâncias e relações entre
os corpos), uma certa coerência estética entre estes elementos,
em diferentes ambientes sociais. De acordo com Hewitt (idem)
“a estética vai funcionar [...] como um lugar de possibilidades
sociais ensaiadas e performadas”.

Observemos que nestas experimentações o corpo não


está produzindo representações de uma configuração social,
elas são em si parte desta configuração. Estes estudos são um
meio de reflexão e uma “deliberação sobre como os
corpos fazem algo e sobre o trabalho que a obra de arte
executa” (HEWITT, 2005, p.15, tradução nossa17).

Desta maneira, filas de supermercado, carteiras


escolares enfileiradas em blocos, comícios, as disposições dos
móveis em uma casa, nada disto é simplesmente natural, todas
estas formas são elaboradas com propósitos pré-definidos, em
grande parte, destinados à manutenção de relações de poder,
ou, ao menos, um comportamento social específico.
Experimentações criativas nesta perspectiva atuam nas
habilidades de analisar estes arranjos, fomentando atentar-se
aos processos simbólicos que suas lógicas e operações

17
[…] how bodies “do” things and on the work that the artwork
performs. (HEWITT, 2005, p. 15)
71
produzem, nos trânsitos socioculturais. Além disto,
compreender que estas “coreografias sociais” não se
desenvolvem por uma “ordem natural” permite perceber que é
possível rearranjá-las.

Para estas experimentações, é necessário abranger


duas importantes instâncias evolutivas, acomodadas pelo
corpo que dança: “a variação (aleatória) e a seleção
(cumulativa)”. (KATZ, in DERDYK, 2006, p. 198).

Seria improvável refletir sobre experimentações


criativas do corpo que dança, nos entendimentos aqui
propostos, sem contemplar a variação.

A seguir apresentamos algumas variações, que geram


necessidades adaptativas, observadas em processos de arte-
educação, com artistas-aprendizes de 18 a 40 anos, entre os
anos de 2015 e 2016, em espaço de formação livre em Artes
Cênicas, situado na região conhecida como ABCD Paulista
(região metropolitana de São Paulo):

• Mudança nas condições de um experimento;

• Impossibilidade de utilizar alguma habilidade;

• Dificuldade de contato entre habilidades distintas,


entre os corpos;

72
• Outro corpo propõe uma mudança, de acordo
com sua habilidade;

• Conhecimento de uma nova habilidade até então


desconhecida;

• Contatos com ambientes e/ou materialidades, que


costumam ser muito variáveis.

Coerentemente com as noções apresentadas até

agora, estas variações, percebidas nas experimentações de

dança, são facilmente identificadas em outros contextos.

Permitindo uma reconfiguração dos hábitos e experiências


sensório-motoras, que pressupõe as habilidades de categorizar
e conceituar, nas relações com o ambiente, conforme veremos
na perspectiva de conexão por conceitos.

73
3.2.1 Experimentos de estudos

3.2.1.1 Posturas e distinções

O homem, que tanto aprecia sua postura ereta, pode


também, sem sair do lugar, sentar-se, deitar-se,
acocorar-se ou ajoelhar-se. Todas essas posições, e
sobretudo a passagem de uma para outra, expressam
algo específico. A hierarquia e o poder criam para si
posições fixas e tradicionais. A partir da maneira como
as pessoas se apresentam dispostas uma ao lado da
outra, pode-se facilmente deduzir a diferença de
prestígio entre elas. (CANETTI, 1995, p. 387)

Figura 6. Preste-no-ergo Ergo-no-preste, de Jean Rocha (2019)

74
Este experimento de estudos, ocorrido em 2015, com
a participação de dez artistas-aprendizes de 18 a 35 anos, foi
elaborado com base nas seguintes posições e suas metáforas,
descritas por Elias Canetti (1995, pp. 388-391), no livro
Massa e Poder, para refletir sobre o poder que estas formas
movimentam:

• O estar em pé:

O orgulho daquele que se encontra em pé reside no fato


de ele estar livre e não apoiar-se em coisa alguma. [...]
O estar em pé causa a impressão de uma energia ainda
não consumida, fica-se em pé antes de andar ou correr.
Trata-se da posição central, a partir da qual, sem que
haja transição alguma, pode-se passar seja para uma
outra posição, seja para uma forma qualquer de
movimento (CANETTI, 1995, p.388);

• O estar sentado:

Sentado, o homem se vale do auxílio de pernas


estranhas, empregando-as no lugar daquelas duas que
reserva para pôr-se de pé. [...] A dignidade de estar
sentado encontra-se especialmente contida na duração
deste ato. [...] O que o estar sentado exibe é o peso
corpóreo do homem. Tal peso necessita da cadeira
elevada para se fazer valer. [...] Sentado diretamente no
chão, a impressão que ele causa é outra [...] As
variações de estar sentado são sempre,
fundamentalmente, variações d pressão exercida.
(idem, pp. 389-390)

75
• O estar deitado:

O estar deitado traduz-se num desarmamento do


homem. [...] O homem deitado desvincula-se mais e
mais de seu entorno. [...] Uma grande quantidade de
homens tombados exerce um efeito terrível sobre
aquele que o vê. [...] ele é expulso do conjunto dos que
estão em pé. (idem, pp. 391-393)

• O acocorar-se:

O homem acocorado parece tranquilo e satisfeito; não


se espera dele nenhuma agressão: está satisfeito, ou
porque tem tudo de que precisa ou porque nada mais
deseja para si. [...] O acocorado apartou-se dos
homens, não pesa sobre ninguém, mas repousa sobre si
próprio. (idem, p.394)

• O ajoelhar-se:

Ao lado da forma passiva da impotência, que


conhecemos no deitar-se, há ainda uma outra,
bastante ativa, que se relaciona diretamente com
um poder presente e dirige a própria impotência
de forma a elevar esse poder. [...] Não esboça
nenhuma resistência; por meio da postura de seu
corpo, facilita o cumprimento da vontade que lhe
é estranha. [...] Quem aparentemente se resigna a
ser morto atribui àquele ante o qual se ajoelha o
poder supremo: o poder sobre a vida e a morte.
(idem, pp. 394-395)

76
Os artistas-aprendizes investigaram sequências de
movimentos e posturas, tendo como parâmetro as posturas
apresentadas nestes trechos, em uma praça, em frente ao
centro cultural onde aconteciam as aulas, frequentada por
moradores do bairro, de diferentes idades. Nesta investigação,
cada artista-aprendiz se deslocou e assumiu uma das posturas,
com uma proximidade moderada dos frequentadores da
praça, investigando as relações espaciais, iluminação,
geométricas, biomecânicas nestas variações. Eles poderiam
escolher uma única postura e repeti-la, em diferentes espaços,
ou alternar. O que movia este experimento eram as reflexões
sobre o que cada postura produzia, em diferentes corpos,
incluindo os frequentadores da praça.

Neste espaço, uma certa sequência coreográfica se


desenhava, pela mudança nas posturas, o que também ocorria
com os moradores que ali estavam, mesmo quando os artistas-
aprendizes estavam mais distantes deles. Ao longe, era notável
a comunicação entre os corpos, que, aos poucos, ocorria em
uma dinâmica que se repetia, como causalidades, em seus
tempos e correspondências. Aqueles que preferiam ficar em
pé, quando algum artista-aprendiz se sentava, e o faziam ainda
mais rapidamente, quando este se deitava ao chão, por vezes,
próximo, outras distante a eles, ou, ao contrário, sentar-se
também.

77
As trocas entre as informações daqueles corpos
ocorreram de modos diferentes de outros momentos, pois,
geralmente, ao perceber ser um estudo do curso de formação
daquele centro cultural, evitavam contatos mais participativos,
ou mesmo, se distanciavam dos artistas-aprendizes. Desta vez,
se mantiveram todos, por cerca de uma hora, nesta
composição, mesmo que parecesse ser algo involuntário (por
parte dos moradores).

78
3.2.1.2 Um corpo ajoelhado

Figura 7. Um corpo ajoelhado, de Serafim do Mundo (2019)

79
Em uma das proposições de estudos, desenvolvidas
durante o ano, havia algumas fotografias, dentre elas, uma que
retratava um homem em situação de rua ajoelhado com a mão
estendida à frente.

Para seu experimento de estudos final, um dos


artistas-aprendizes, de 18 anos, se lembrou desta fotografia e
a escolheu para desenvolvê-lo.

Deslocando-se pela sala, predominantemente, em


nível médio e baixo, o artista-aprendiz alternava entre um
rolamento e a postura deste homem, em diferentes planos, ou
seja, alterava eixos e orientações espaciais, com uma pequena
pausa, a cada vez que compunha uma postura similar à
fotografia. Em sua investigação, no encontro de estudos (sem
observação dos demais artistas-aprendizes), chegou a ficar
pouco mais de meia hora, a cada vez que investigou esta
sequência. Para definir esta dinâmica se apoiou em estudos
realizados durante o ano baseados em proposições do
bailarino, coreógrafo e pesquisador do movimento expressivo,
o húngaro Rudolf Laban.

O artista-aprendiz relatou o quanto foi intensa a sua


percepção de apoios, eixo e centro, pela transição entre
ajoelhar-se e o desiquilíbrio, produzido pelos seguidos

80
rolamentos, na continuidade deste movimento, por tanto
tempo.

Ele não destacou o significado social da imagem


fotográfica, como discussão, em seu experimento. No entanto,
mesmo que a ênfase de suas investigações estivesse na postura
do corpo fotografado, ou seja, em sua forma, a sua escolha se
diferenciava muitíssimo de seus demais estudos.

Anteriormente, primava por uma noção de beleza,


recorrendo a rosas, tecidos, folhas secas, objetos antigos,
mesmo que não apresentasse justificativa para a utilização
destes elementos cênicos, e muito pouco se percebesse de uma
suposta coerência, entre eles e seus movimentos.

Neste experimento, o trânsito das formas, a cada eixo


assumido nestes espaços, propunha diferentes imagens
(memórias, sensações, sentimentos e outras), sem que o artista
aprendiz sentisse a necessidade de se valer de seus recursos
habituais. Suas experiências sensório-motoras não poderiam
se apartar das produções e entendimentos metafóricos, mesmo
sem levantar tal discussão, este corpo ajoelhado, ocupando
diferentes espacialidades, não se absteve da produção de
conceitos, o que foi visível em seu comportamento, após os
primeiros estudos.

81
Durante a mostra de processos, este experimento foi
realizado por cerca de dois minutos, na presença de
observadores. Neste momento, o artista-aprendiz demonstrou
maior cansaço, como também se satisfez com as informações
do experimento mais rapidamente, que os experimentos
anteriores (sem a presença de observadores).

Entre equilíbrios e desiquilíbrios, ampliava a


percepção sobre suas ações contínuas, pontuando a
inconclusão do corpo, que nunca está pronto e totalmente
estável, que haverá sempre acordos, arranjos, algo a organizar
e desorganizar. Seus esforços e desafios musculares o
reposicionavam e lhe permitiam sentir a dureza do chão, as
perspectivas dos olhares dos demais, as dimensões do espaço,
e seu próprio tônus e formas. Mesmo sendo um experimento
de estudos de criação individual, seus fluxos criativos
produziam esta corresponsabilidade, estas reconfigurações do
espaço, que o permitiam perceber-se fisicamente tangível,
notável e transformável pelos olhares dos demais, como as
outras materialidades do espaço, sendo um modo de agir
contrário ao isolamento.

82
3.3 Conceito.

Um observador de uma pessoa em movimento fica


imediatamente consciente, não apenas dos
percursos e ritmos de movimento, mas também
das atmosferas que os percursos carregam em si,
já que as formas do movimento através do espaço
são tingidas pelos sentimentos e pelas ideias. E o
conteúdo dos pensamentos que temos ao nos
movermos ou ao observarmos o
movimento pode ser analisado tanto quanto as
formas e linhas traçadas no espaço.
(LABAN apud MIRANDA in FERNANDES,
2002, p. 18)

83
“O que lhe move?”, “O que você deseja mover?”
“Qual é o seu movimento?”, “Com quem você se
movimenta?”. Muitos de nós, arte-educadores, ao desenvolver
um processo com artistas-aprendizes, buscamos uma questão
que possa impulsionar as suas investigações, do ponto de vista
reflexivo, crítico. Contudo, mais relevante do que definir uma
questão de ignição é a manutenção de suas habilidades de
questionar, produzir lacunas, fissurar aquilo que está posto.

Estas lacunas não são descobertas de um vazio, uma


falha. Compreendemos isto tanto porque perceber não é
simplesmente captar uma informação, como já foi
apresentado, quanto porque estas lacunas não são algo pronto,
dado, nem mesmo são ausências de informação. Elas são
produções dos questionamentos.

Muito daquilo que é tomado como natural ou normal


circula socialmente com muita fluidez, encontrando poucos ou
nenhum questionamento que seja um obstáculo. A partir desta
constatação, ao pensar em uma sociedade desigual,
observamos facilmente que aquilo que é definido como normal
desempenha um papel muito importante na formação desta
desigualdade.

No capítulo anterior, falamos nas variações como


algo imprescindível para as experiências de criação, parte delas

84
é produzida por estes questionamentos. Estas habilidades
permitem criar lacunas, rupturas no fluxo da normalidade das
coisas.

As experiências criativas (não criativistas!) podem


desenvolver habilidades para questionar estas normalidades e
reconhecer suas lógicas de construção, que operam como
treinamentos para a legitimação e manutenção de sua
continuidade. Identificando como categorizações e processos
construídos também são passíveis de serem fissurados e
reconfigurados.

A lógica da manutenção da normalidade, ou seja,


daquilo que está posto e flui com facilidade pelos hábitos e
entendimentos, necessita resguardar ao máximo sua
impermeabilidade às transformações e necessidades do tempo-
espaço contemporâneo. Quando em nossos modos de agir,
apenas consideramos aquilo definido pela normalidade, nos
afastamos de ser contemporâneos, dos diálogos com as
necessidades e materialidades de nosso tempo-espaço.

As conexões sociais, que incluem corpos e ambiente,


pela perspectiva dos conceitos, têm como base fundamental de
seus desenvolvimentos fissurar estas normalidades, por meio

85
das habilidades de questionar e de ficar com as questões18,
produzir diálogos, permear os saberes além das certezas,
daquilo que está normatizado pelo conhecimento legitimado19.

Em consonância com o entendimento de corpo-


artista-aprendiz, compreende-se que a habilidade de produzir
experiências criativas, que tenham como base os
questionamentos, requer uma disponibilidade ao risco, ao
movimento que transita pelo “não saber”, pela produção de
instabilidades. Uma conexão desenvolvida pelo diálogo que
não objetiva imprimir uma relação de poder; uma
comunicação que prescinde de certezas; uma busca que não se
restringe ao que está legitimado.

Para Jesús Martín-Barbero (2014, p.33), “Dialogar é


arriscar uma palavra ao encontro não de uma ressonância, de
um eco de si mesma, mas sim de outra palavra, da resposta de
um outro.” Embora o autor trate da palavra (verbal), é possível
abranger outras naturezas de informação.

Esta noção de risco não se refere a uma falta de


compromisso com aquilo que é importante ao bem-estar do
corpo, nem mesmo a uma decisão isolada do corpo-artista-

18
Referência à proposição apresentada por Donna Haraway (2016),
no livro Staying with the trouble.
19
Referência ao conceito de “escuro”, definido por Giorgio Agamben
(2009), no artigo “O que é contemporâneo?”.
86
aprendiz na execução de uma tarefa, ou na superação do
próprio desempenho, em um contexto competitivo, ao
contrário disto.

Este entendimento de risco como experiência atua


como uma operação de manutenção do desejo de contato com
outros corpos e ambiente, que pressupõe a produção e
percepção de variações. A sua relevância não está em um
desfecho conclusivo, na execução de algo, mas na criação de
condições para reconfigurar os estados, categorizações e
conceitos nestes contatos e com estes contatos.

Embora a noção de variações entrecruze este


entendimento de “lacuna”, nos processos de isolamento é
possível ao corpo as ignorar. Esta possibilidade ocorre,
principalmente, quando as habilidades perceptivas atuam em
estado de autopreservação. O corpo que se autopreserva não
se arrisca, não dialoga. Esta indisposição ao contato com o
diferente é uma espécie de recusa cognitiva da experiência de
contato com as variações, em favor de manter-se seguro e
confortável.

Esta noção de experiência se baseia na definição do


professor da Universidade de Barcelona e doutor em Filosofia
da Educação, Jorge Larrosa Bondía (2002, p.21), que
apresenta que esta não é o que se passa, algo que ocorre e

87
temos contato, mas sim o que nos passa, o que nos acontece.
De modo que é importante que se entenda que não estamos
falando em algo que está ocorrendo em um certo lugar e se
escolhe não estar lá, ou seja, não estar em contato com a
informação. Quando falamos em “negação da experiência de
contato”, esta atitude é uma ação cognitiva sobre as operações
que ocorrem no corpo, promovida pelas habilidades
perceptivas, que se configuram de diferentes modos, propícios
ou não, para tal.

A experiência de contato não é a “coisa” com a qual


o corpo se depara, a informação. O excesso de informação
pode, inclusive, segundo Larrosa (idem, p.22), ser
desfavorável à experiência, pois o que se consegue com ele é
que nada aconteça no corpo. Importante compreender que
acontecimentos não são meras ocorrências. Eles são o
princípio da experiência, porque são os desencadeadores de
trânsitos e processos; eles reconfiguram contextos, estados
sensório-motores, memórias e imagens.

Outra ideia que costumamos ouvir, ou mesmo falar


com frequência é sobre a possibilidade de deixar o corpo agir
por si mesmo nas experimentações, sem interferência da
mente. O que estamos classificando como mente neste
pensamento?

88
A produção de conceitos é uma atividade mental, no
entanto mente não é unicamente a atividade lógico-racional
desenvolvida de modo planejado, pré-determinado, a partir de
procedimentos e métodos sistematizados, reconhecidos pela
consciência. Deste modo, ao invés de pensar que há ações
movidas pelo corpo, livres da mente, fica o convite para
repensar o entendimento sobre mente, que não é apartada do
corpo e inclui o que parece ser “incontrolável” também, como
o desejo e as emoções.

Damásio (2018, p.75) propõe o trato gastrointestinal


como o “primeiro cérebro”, por sua complexidade, assim
como, a produção do neurotransmissor serotonina,
responsável pela sensação de bem-estar e segurança também
se concentra neste órgão. Considerando que mente inclui
sensações, desejos, memórias, emoções e não se restringe a
pensamentos lógico-racionais ou planejamentos e
sistematizações de ações. Este é apenas um exemplo que os
mapas mentais entrecruzam atividades neuronais de toda
extensão do corpo e incluem aquilo que não identificamos um
controle lógico-racional. Portanto, a mente é corpada20.

20
Lakoff e Johnson (1999) utilizam a expressão “embodied mind”. A
tradução como “corpada” é uma opção para que não seja
compreendida como uma mente que foi atada ou tornada corpo.
Mente corpada, ou corpomente, parte de uma noção de mente e
corpo sem dicotomia.
89
Assim sendo, pensamos com o corpomente (não
hifenizado, não dividido) que somos. Não há uma mente que
possui um corpo, a mente é corpo. O movimento é um dos
sentidos perceptivos e a dança é pensamento21. É escolha,
reflexão, crítica, discussão, narrativa, metáfora.

Nesta perspectiva de conexão, o comprometimento


dos processos de ensino-aprendizagem do corpo-artista-
aprendiz, com as reflexões sobre os conceitos pode ocorrer por
diferentes vias, entre elas: a investigação de um conceito ou
uma ideia já legitimada e a produção de conceitos e
categorizações. Ambos processos têm como base a experiência
sensório-motora que produzem metáforas conceituais. Para
compreendê-los, olharemos para as proposições dos linguistas
e pesquisadores de Ciências Cognitivas George Lakoff e Mark
Johnson (1987 e 1999).

Mark Johnson (1987, p. xix, tradução nossa22)


apresenta que “Nossa realidade é moldada pelos padrões de
movimento [...] Nunca é apenas uma questão de conceituação
abstrata e julgamentos proposicionais.”

21
Definição baseada na tese da Profa. Dra. Helena Katz (1994): Um,
dois, três: a dança é o pensamento do corpo.
22
Our reality is shaped by the patterns of movement […] It is never
merely a matter of abstract conceptualization and propositional
judgements. (JOHNSON, 1987, p. xix)
90
Conhecer, entender, aprender, são operações das
experiências do corpo. Como seres neurais, não há como
explorar o ambiente e produzir conceitos, de modo não
corpado. Para Lakoff e Johnson (1999), este processo ocorre
por meio de metáforas conceituais, produzidas por estas
experiências sensório-motoras. A cognição está impregnada de
metáforas, atadas às ações motoras do corpo, a partir do córtex
cerebral, que realiza operações de memória, percepção,
consciência e outras, relacionadas à produção de
conhecimento. (GROSSI, LOPES e COUTO, in. MOTA e
BORBA, coord., 2014, p.30).

Evolutivamente, os seres humanos desenvolveram a


habilidade de categorizar, ou seja, de organizar informações e
experiências em grupos para compor entendimentos e modos
de interagir com estas, propiciando também classificá-las
naquilo que é favorável ou não, em cada contexto.

Para entender o mundo e nos movermos nele,


precisamos categorizar, em formas que tenham
sentido para nós, as coisas e experiências com que nos
encontramos. Algumas de nossas categorias emergem
diretamente da nossa experiência, dada a forma em
que são nossos corpos e a natureza de nossas
interações com outras pessoas e com nosso ambiente
físico e social. (LAKOFF e JOHNSON, 2009, pp.
204-205, tradução nossa23)

23
Para entender el mundo y movernos en él, tenemos que
categorizar, en formas que tengan sentido para nosotros, las cosas y
91
Lakoff e Johnson (1999) definem três categorias de
metáforas conceituais: as estruturais (estruturam a nossa
maneira de agir/perceber), como ao dizer “Acordá-lo era uma
guerra”; as orientacionais (relacionadas à orientação espacial),
como em “Esta mentira foi longe demais”; e as ontológicas
(transformam conceitos em seres ou coisas) , como formulado
em “A solidão devora a todos”.

Outro aspecto importante desta perspectiva se baseia


na noção de “compartilhamento24 cognitivo”. Os estudos da
neurociência social, segundo Cacioppo e Patrick, não somente

permitem compreender que não há uma “barreira mágica


entre mente e corpo”, como também as barreiras entre nós e
os outros não são tão rígidas.

A maneira do cérebro de formar representações


implica que duas ou cinco ou cinquenta pessoas
podem compartilhar mais ou menos a mesma
perspectiva. (CACIOPPO e PATRICK, 2010,
pp.187-188)

experiencias con que nos encontramos. Algunas de nuestras


categorias emergen directamente de nuestra experiencia, dada la
forma en que son nuestros cuerpos y la naturaleza de nuestras
interacciones con otras personas y con nuestro ambiente físico y
social. (LAKOFF e JOHNSON, 2009, pp. 204-205)
24 Embora a palavra “compartilhar”, muitas vezes, seja utilizada

como sinônimo de “enviar”, no compartilhamento é mantido o


vínculo com o objeto de partilha (seja uma mesa ou uma ideia) e
com o outro que participa desta ação.
92
As conexões ocorrem nesta perspectiva nas produções
de conceitos, pois não são processos isolados, as
representações mentais e as metáforas conceituais são
processos compartilhados. As experimentações criativas
dos corpos - artistas - aprendizes se entrecruzam e são
para dar manutenção a estas habilidades que atuam
em diferentes instâncias do cotidiano.

93
3.3.1 Experimentos de estudos

3.3.1.1 Sonho e Morte

Para certificar-me do que imaginava, debrucei-me


sobre a água e ergui a lanterna, e do escuro espelho de
água um rosto duro e sério me olhou com olhos
cinzentos, um rosto velho, sábio e vi que aquele era eu.

E como nenhum caminho voltava atrás, continuei


seguindo sobre a água escura dentro da noite.
(HESSE, 1955)

Figura 8. Sonho e Morte, de Serafim do Mundo (2019)

94
A artista-aprendiz que propôs este experimento de
estudo, tinha um olhar muito aguçado aos detalhes, hábitos de
leitura (literatura), e ampliou muito suas habilidades críticas e
seus conhecimentos sobre artes, durante o ano.

Nos estudos de dança, na maioria das vezes, se


movimentava com baixa tonicidade muscular, mas com
amplitude espacial tendendo a alta, talvez por ter um grande
alongamento. Sem criar atritos, ou quaisquer mal-estares, por
vezes, se colocava em estado de observação, durante uma
proposta de estudos.

Para este experimento, a artista-aprendiz escolheu o


conto “Sonho de uma flauta” (HESSE, 1955). Inicialmente,
sem um motivo muito nítido, além de um desejo de trabalhar
com este conto, de algum modo, há um certo tempo. Para estes
estudos, se atentou à perspectiva de conceitos, por desejar
investigar os seus aspectos metafóricos.

Na leitura do texto de Hesse, a artista-aprendiz


buscou verbos de ações, e referências espaciais e dimensionais,
para desenhar a composição metafórica do experimento. Estes
foram a base de sua investigação de movimentos:

95
Verbos de ações Referências espaciais e
dimensionais
Entregar; levar; cantar; Pequena; distante; grande;
soprar; botar no bolso; subir diante; grama (textura);
devagar; cruzar; carregar; raio de sol (luminosidade);
caminhar; levantar; apanhar; perto; dentro; abaixo; atrás;
morder; sentar; cruzar as cheio; luminoso; sombrio;
mãos em volta da perna; rir; longe; ao lado; sobre e
fechar a boca; abrir; carregar; geada.
parar; correr; segurar;
prender; marchar
apressadamente; acenar;
balançar; dobrar; deslizar;
atingir, tocar; penetrar;
envolver; repousar; voltar;
retornar; ir sempre para
frente; debruçar e seguir.
Tabela 1. Verbos de ação, referenciais espaciais e dimensionais,
selecionados pela artista-aprendiz

Com base nestes verbos de ações e referenciais,


experimentou variações de movimento. Contudo, nem todos
estes elementos foram trabalhados, pois, fazia parte desta
investigação, compreender quais destas informações
participavam do seu desejo de mover-se; como ocorria esta
produção; e que outras metáforas poderiam ser criadas, nestas
experiências.

Enquanto investigava estes movimentos, sua primeira


sensação foi de impossibilidade de interrupção de fluxo do

96
movimento. Como se os verbos sugerissem movimentos que
transitassem sem pausa de um para o outro.

Os movimentos experimentados pela artista-aprendiz


eram ora tensos, ora leves, e se realizavam ciclicamente,
transitando entre nível baixo e médio. Após cerca de pouco
mais de duas horas de experimentação contínua, ela relatou
que se percebia em um certo estado de suspensão, tanto pela
transformação de sua percepção de tempo, quanto pela
sensação de não conseguir interromper o movimento, o que
ela definiu como uma noção de sonho e morte.

Durante o compartilhamento, na mostra de processos


do projeto/curso de formação, seu modo de investigar, seus
movimentos, suas comunicações com o ambiente,
deslocamentos e escolhas, foram muitíssimo diferentes. Até
mesmo sua conexão com o texto e suas metáforas,
aparentavam uma certa ansiedade. Era outro modo de respirar
e perceber o tempo.

97
3.3.1.2 Corpo craft – Craft corpo

Figura 9. Corpo craft – Craft corpo, de Jean Rocha (2019)

98
O relato seguinte se refere a um experimento
ocorrido em 2015, com uma turma de dez artistas-aprendizes
de 18 a 35 anos, a maioria com vivências e estudos anteriores
sobre, em seu segundo ano de formação, de um curso livre em
Artes cênicas com três anos de duração.

Este experimento foi inspirado na performance Cut a


piece, de Yoko Ono (1964), contudo, invés de “cortar um
pedaço”, como ela originalmente sugere, era possível definir
outras proposições, que se modificavam, no decorrer do
experimento. Estavam à disposição: uma sala com o chão
forrado com papel craft, tintas, canetas, tecidos, argila e outros
materiais que poderiam gerar resíduos, semelhantes às tintas.

Além destes materiais, cada artista-aprendiz trouxe


um ou mais objetos que representassem uma inquietação, uma
dúvida, um desejo, algo que lhe produzisse o desejo de contato,
contudo, que lhe deixasse à mercê do risco da incerteza. Sobre
o chão forrado de craft onde os outros materiais já estavam,
depositaram pulseiras, caixinhas, fotografias, lenços, livros,
cadernos, Bíblia, entre outros. Se dispuseram também neste
espaço, próximo aos seus objetos e escreveram um pequeno
papel um comando, um “faça algo”, para que aqueles que
estivessem como interatores deste experimento, fizessem algo
consigo, como: “carregue”; “abrace”, “suspenda”, entre

99
outros. Enquanto aguardavam, as ações do outro, falavam
para si mesmos sobre estes objetos.

Mesmo que pré-definidos como ideia, os movimentos


promovidos pela ação destes interatores ocorriam de modos
diferentes, afinal, quantas maneiras podem existir de abraçar,
por exemplo? Desta maneira, as experiências sensório-
motoras reconfiguravam as falas e aos poucos as necessidades
de movimento de cada um. Reverberando em reflexões,
incômodos, contatos e criações por muitas outras aulas.

Para esta turma, os movimentos de rasgar, torcer,


pressionar, carregar, tingir, entre outros, foram experiências
de contatos, que produziram outros modos de conceituar e
metáforas, que variaram por religião, sexualidade, afetos, entre
outros. Estas produções, por sua vez, criaram atritos, fricções,
reconfiguraram o experimento, demandaram adaptações e
novas conexões, transformaram corpos e ambiente. Os
contatos entre os corpos, para esta turma, a partir deste
experimento, se transformaram relevantemente, nos modos de
tocar, de olhar, de se disponibilizar ao contato e nos desejos
de fazer algo juntos.

Um ruído, ou um estancamento de ações, muito


grande poderia ter sido produzido, nesta proposta em que cada
artista-aprendiz sugeriu um modo de contato consigo, naquele

100
momento, no qual ainda guardavam uma certa distância entre
si. No entanto, Cacioppo e Patrick (2010, p.279) apresentam
que “[...] estudos mostram que quanto mais rico o meio –
quanto mais permeado por aspectos físicos – mais ele estimula
a coesão social.”. Estes aspectos provocaram uma atenção
compartilhada, um certo prazer, um desejo de movimentar-se,
conhecer e explorar juntos. Estados que favoreceram os
contatos, dos mais sutis e delicados, aos mais abruptos.

101
4. Breves pistas para conexões

Ao final de um destes processos dos quais recortamos


alguns dos experimentos de estudos, uma das artistas-
aprendizes relatou que os movimentos que faziam parte de
nossos estudos passaram a não ser mais percebidos como
“pouco usuais”. Isto não queria dizer que estes passaram a
fazer parte de suas rotinas diárias, nas formas de
deslocamento, por exemplo. Ela não caminhou descalça, fez
rolamentos, “quedas e recuperações”, saltou, ou qualquer
outro movimento nestas configurações, em filas de banco (ao
menos, não narrou tal fato!). A artista-aprendiz se referia às
habilidades perceptivas desenvolvidas nas aulas de dança e
suas experiências, que produziram outras possibilidades de
entendimento e contatos com os ambientes.

Esta observação abre uma brecha para que


entendamos bem que as experiências criativas do corpo que
dança não se restringem às proposições dos programas
performativos que baseiam alguns dos experimentos de
estudos.

A Técnica Graham, por exemplo, fundamentada


principalmente em contração muscular-expiração,
relaxamento muscular-inspiração, expirais, e eixo motor. Ao

102
investigar diferentes movimentos com base nestes princípios,
o corpo não está reproduzindo um movimento, ele está
produzindo, criando suas imagens, suas intervenções e
relações com a geometria do seu corpo e linhas de conexão
com o espaço. O treinamento das habilidades perceptivas,
proporciona ao corpo lidar com as variações em cada
ambiente, criando alternativas e operações distintas mediadas
pelas perspectivas de conexão. Estes processos produzem
metáforas, imagens, são também experiências criativas do
corpo que dança.

Estamos onde nosso peso está, não há como


abandonar nosso peso. Embora a metáfora do abandono do
peso seja recorrente nas orientações de aulas de dança,
compreendendo que somos corpo e o peso não se descola do
corpo, não haveria como abandoná-lo, se desfazer dele.
Contudo, é possível não se concentrar no direcionamento do
peso, ou sequer, na atenção ao próprio peso. O peso é um
dos tópicos investigados por meio da Técnica Klauss Vianna25,
de maneira que, este reconhecimento de presença-peso se dá
pelas conexões que o corpo produz, gerando alternativas de
perceber-se no espaço, de criar metáforas e imagens por meio

25
Técnica de estudo do corpo cênico e educação somática,
desenvolvida com base nos princípios de trabalho de Klauss Vianna,
a partir dos anos 1970, inicialmente, por Neide Neves e Rainer
Vianna.
103
destas experiências sensório-motoras de direcionamento do
peso. Criações que conectam o corpo-artista-aprendiz com
diferentes processos e informações.

O Método Laban também inclui estudos nos quais as


variações do espaço, as lacunas naquilo que está na ordem do
normal, são produzidas por suas proposições. Ao investigar
suas dinâmicas e suas possibilidades de divisão espacial, a
tomada do espaço por suas esferas e outros estudos que
promovem uma criação contínua das formas, um treinamento
para lidar com aquilo que parece banal, estável, e abrir lacunas
de criação de alternativas para pensar com o corpo,
reconfigurar as relações de tempo-espaço.

Estes são apenas alguns métodos e técnicas, ou


melhor, algumas maneiras de observar estes processos. Como
as diferenças transitam por estas e outras propostas? Como
estas propostas transitam socialmente? Como os trânsitos
socioculturais propõem experiências criativas ao corpo que
dança? Como outras questões se produzem e movimentam
estes fluxos?

104
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre a neblina ouvimos o som dos nossos sinos

E ansiamos nos tocar: os olhos criam luzes.

Cada encontro os teus olhos barcos pedem aos


meus. Um cais.

(Da canção Neblinas e Flâmulas, de Guinga e


Aldir Blanc)

105
Desenvolver uma pesquisa nos processos de ensino-
aprendizagem é em si uma potente alternativa de conexão, pois
só podemos dizer que aquilo que investigamos faz parte de
uma pesquisa quando nos deparamos com o “não saber”. O
movimento de outros corpos, suas necessidades, desejos e suas
questões, são as variações que transformam os percursos do
arte-educador, rompem a estabilidade dos saberes legitimados,
se reconfiguram contextualmente. Cada uma destas ações são
processos simbólicos, que reformulam nossas compreensões
de mundo. Todos estes saberes, de artistas-aprendizes e arte-
educadores, estão nesta complexa rede de variações.

Por tantas vezes ouvimos a frase “A nossa liberdade


termina quando começa a do outro”. Que triste e
violento equívoco! A liberdade do outro não pode ser vista
como aquilo que restringe ou ameaça a nossa liberdade. E
para isto é importante que se entenda que liberdade não é
sinônimo de direito para se fazer qualquer coisa,
inclusive agredir, ofender, ou tolher a liberdade do outro.
Quanto mais se agride o outro, menos possibilidades,
menos alternativas de viver, pois, como já foi dito nestes
nossos diálogos, faz parte de nosso traço evolutivo estar
em conexão como premissa para a sobrevivência.

106
Estar em conexão é uma alternativa comunicacional
de sobrevivência, um modo de não morrer; um modo de
não matar, poética, política filosófica,
biocultural e urgentemente.

O processo evolutivo de algumas espécies de nosso


planeta desencadeou em extinção, portanto, reconhecer e
estar atentos aos traços evolutivos não se finda em si mesmo.
Um processo de ensino-aprendizagem artística não é um
percurso de absorção de informações. A percepção, por
meio de suas habilidades imprescindíveis a este processo, é
uma ação de decisão, são as escolhas dos corpos, que se
conectam, que produzem não só um processo evolutivo, mas
principalmente, um processo revolucionário, pois em
meio a tantas informações que atuam como dispositivos
de isolamento e solidão, a experiência do corpo que
dança, que produz alternativas para sobrevivência é
um ato evolutivo e revolucionário.

107
Tirar as sapatilhas e convidar a perceber o chão, as
articulações, em um período no qual dispositivos de controle
buscavam dominar o sentir é um ato revolucionário!26

Recusar-se a dançar sobre um território ideológico


higienista e escutar a memória do sangue, é um ato

revolucionário!27

Alargar, transformar, transmutar, criar espaços,


linhas, algoritmos, movimentos naquilo que muitos
acreditavam ser fechado em um código rígido e intocável é um
ato revolucionário!28

As conexões, o dançar, as experiências criativas do


corpo que dança são alternativas potentes ao autoritarismo, à
apatia, ao egoísmo, a isto tudo que se alastra e produz estados
críticos, tal qual uma doença, que mata e adoece.

Esta não é uma visão positivista nem negacionista.


Esta é a visão evolutiva e revolucionária de uma humana
sobrevivente.

...Ninguém põe quebranto no banto


Que dança tanto assim...
(Da canção Alafim, de Aldir Blanc e Moacyr Luz)

26
Referência a Klauss Vianna.
27
Referência a Martha Graham.
28
Referência a William Forsythe.
108
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