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Prefácio
Esclarecendo
1 - O coração do mundo
2 - A pátria do evangelho
3 - Os degredados
4 - Os missionários
5 - Os escravos
6 - A civilização brasileira
7 - Os negros do Brasil
8 - A invasão holandesa
9 - A restauração de Portugal
10 - As Bandeiras
11 - Os movimentos nativistas
13 - Pombal e os jesuítas
14 - A Inconfidência Mineira
15 - A Revolução Francesa
16 - D. João VI no Brasil
17 - Primórdios da emancipação
18 - No limiar da Independência
19 - A Independência
20 - D. Pedro II
22 - Bezerra de Menezes
23 - A obra de Ismael
24 - A Regência e o Segundo Reinado
25 - A Guerra do Paraguai
26 - O movimento abolicionista
27 - A República
29 - O espiritismo no Brasil
30 - Pátria do evangelho
Prefácio
Meus caros filhos. Venho falar-vos do trabalho em que agora colaborais com o nosso
amigo desencarnado, no sentido de esclarecer as origens remotas da formação da Pátria
do Evangelho, a que tantas vezes nos referimos em nossos diversos comunicados. O
nosso irmão Humberto tem, nesse assunto, largo campo de trabalho a percorrer, com as
suas facilidades de expressão e com o espírito de simpatia de que dispõe, como escritor,
em face da mentalidade geral do Brasil.
Os dados que ele fornece nestas páginas foram recolhidos nas tradições do mundo
espiritual, onde falanges desveladas e amigas se reúnem constantemente para os grandes
sacrifícios em prol da Humanidade sofredora. Este trabalho se destina a explicar a
missão da terra brasileira no mundo moderno. Humboldt,1 visitando o vale extenso do
Amazonas, exclamou, extasiado, que ali se encontrava o celeiro do mundo. O grande
cientista asseverou uma grande verdade: precisamos, porém, desdobrá-la, estendendo-a
do seu sentido econômico à sua significação espiritual. O Brasil não está somente
destinado a suprir as necessidades materiais dos povos mais pobres do planeta, mas
também a facultar ao mundo inteiro uma expressão consoladora de crença e de fé
raciocinada e a ser o maior celeiro de claridades espirituais do orbe inteiro. Nestes
tempos de confusões amargas, consideramos de utilidade um trabalho desta natureza e,
com a permissão dos nossos maiores dos planos elevados, empreendemos mais esta obra
humilde, agradecendo a vossa desinteressada e espontânea colaboração. Nossa tarefa
visa esclarecer o ambiente geral do país, argamassando as suas tradições de fraternidade
com o cimento das verdades puras, porque, se a Grécia e a Roma da Antiguidade tiveram
a sua hora, como elementos primordiais das origens de toda a civilização do Ocidente; se
o império português e o espanhol se alastraram quase por todo o planeta; se a França, e a
Inglaterra têm tido a sua hora proeminente nos tempos que assinalam as etapas
evolutivas do mundo, o Brasil terá também o seu grande momento, no relógio que marca
os dias da evolução da Humanidade.
1N.E.: Alexander von Humboldt (1769–1859) foi um geógrafo, historiador, naturalista e explorador
alemão.
atuação nesse sentido. O nosso irmão encontra mais facilidade para vazar o seu
pensamento em soledade 2 com o médium, como se ainda se encontrasse no seu
escritório solitário; daí a razão pela qual as páginas em apreço foram produzidas de
molde a se aproveitarem as oportunidades do momento. Peçamos a Deus que inspire os
homens públicos, atualmente no leme da Pátria do Cruzeiro, e que, nesta hora amarga
em que se verifica a inversão de quase todos os valores morais, no seio das oficinas
humanas, saibam eles colocar muito alto a magnitude dos seus precípuos deveres. E a
vós, meus filhos, que Deus vos fortaleça e abençoe, sustentando-vos nas lutas
depuradoras da vida material.
EMMANUEL
HUMBERTO DE CAMPOS4
4 N.E.: Espírito.
1
O coração do mundo
O mundo político e social do Ocidente encontra-se exausto.
Desde as pregações de Pedro, o Eremita, 5 até a morte do rei Luís IX,6 diante de
Túnis, acontecimento que colocara um dos derradeiros marcos nas guerras das
Cruzadas, as sombras da idade medieval confundiram as lições do Evangelho,
ensanguentando todas as bandeiras do mundo cristão.
Foi após essa época, no último quartel do século XIV, que o Senhor desejou realizar
uma de suas visitas periódicas à Terra, a fim de observar os progressos de sua doutrina e
de seus exemplos no coração dos homens.
Anjos e Tronos7 lhe formavam a corte maravilhosa. Dos céus à Terra, foi colocado
outro símbolo da escada infinita de Jacó,8 formado de flores e de estrelas cariciosas, por
onde o Cordeiro de Deus transpôs as imensas distâncias, clarificando os caminhos cheios
de treva. Mas, se Jesus vinha do coração luminoso das esferas superiores, trazendo nos
olhos misericordiosos a visão dos seus impérios resplandecentes e na alma profunda o
ritmo harmonioso dos astros, o planeta terreno lhe apresentava ainda aquelas mesmas
veredas escuras, cheias da lama da impenitência e do orgulho das criaturas humanas, e
repletas dos espinhos da ingratidão e do egoísmo. Embalde seus olhos compassivos
procuraram o ninho doce do seu Evangelho; em vão procurou o Senhor os
remanescentes da obra de um de seus últimos enviados à face do orbe terrestre. No
coração da Úmbria haviam cessado os cânticos de amor e de fraternidade cristã. De
Francisco de Assis só haviam ficado as tradições de carinho e de bondade; os pecados do
mundo, como novos lobos de Gubbio,9 haviam descido outra vez das selvas misteriosas
das iniquidades humanas, roubando às criaturas a paz e aniquilando-lhes a vida.
5N.E.: Pedro de Amiens (1050–1115) foi um monge francês e um dos principais pregadores da
Primeira Cruzada.
6 N.E.: Luís IX ou São Luís (1214–1270) foi um monarca francês.
7 N.E.: um dos nove coros de anjos, na hierarquia celeste.
8 N.E.: escada que interliga os céus e a Terra.
9N.E.: relaciona-se à lenda de Francisco de Assis, contada no final do século XIV, numa obra de autor
desconhecido, intitulada As pequenas flores de São Francisco.
— Helil 10 — disse a voz suave e meiga do Mestre a um dos seus mensageiros,
encarregado dos problemas sociológicos da Terra —, meu coração se enche de profunda
amargura, vendo a incompreensão dos homens, no que se refere às lições do meu
Evangelho. Por toda parte é a luta fratricida, como polvo de infinitos tentáculos, a
destruir todas as esperanças; recomendei-lhes que se amassem como irmãos, e vejo-os
em movimentos impetuosos, aniquilando-se uns aos outros como cains desvairados.
10 N.E.: o autor preferiu a forma árabe – Helil , em vez de Hilel, forma hebraica geralmente usada.
11 N.E.: Salah ad-Din Yusuf ibn Ayyub (1138–1193) – Sultão aiúbida do Egito e da Síria.
12 N.E.: ato desleal; traição.
a semente de uma vida nova. Nessas terras, para além dos grandes oceanos, poderíeis
instalar o pensamento cristão, dentro das doutrinas do amor e da liberdade.
— Helil — pergunta Ele —, onde fica, nestas terras novas, o recanto planetário do
qual se enxerga, no infinito, o símbolo da redenção humana?
Mãos erguidas para o Alto, como se invocasse a bênção de seu Pai para todos os
elementos daquele solo extraordinário e opulento, exclama então Jesus:
Daí a alguns anos, o seu mensageiro se estabelecia na Terra, em 1394, como filho de
D. João I14 e de D. Filipa de Lencastre,15 e foi o heroico Infante de Sagres,16 que operou a
renovação das energias portuguesas, expandindo as suas possibilidades realizadoras
para além dos mares. O elemento indígena foi chamado a colaborar na edificação da
pátria nova; almas bem-aventuradas pelas suas renúncias se corporificaram nas costas
da África flagelada e oprimida e, juntas a outros Espíritos em prova, formaram a falange
abnegada que veio escrever na Terra de Santa Cruz, com os seus sacrifícios e com os seus
sofrimentos, um dos mais belos poemas da raça negra em favor da Humanidade.
Foi por isso que o Brasil, onde confraternizam hoje todos os povos da Terra e onde
será modelada a obra imortal do Evangelho do Cristo, muito antes do Tratado de
Tordesilhas, 17 que fincou as balizas das possessões espanholas, trazia já, em seus
contornos, a forma geográfica do coração do mundo.
14 N.E.: Dom João I (1357–1437) foi o décimo rei de Portugal e o primeiro da dinastia de Avis.
15N.E.: Filipa de Lencastre (1359–1415) foi uma princesa inglesa da Casa de Lencastre, tornou-se
rainha de Portugal por meio do casamento com o rei D. João I.
16N.E.: Dom Henrique de Avis (1394–1460) foi um infante português e a mais importante figura do
início da era das descobertas, popularmente conhecido como Infante de Sagres ou O Navegador.
17N.E.: acordo assinado entre Espanha e Portugal em Tordesilhas (Velha Castela), em 7/6/1494, que
fixou, em 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde, a linha de demarcação que separava as
possessões coloniais dos dois países.
2
A pátria do evangelho
D. Henrique de Sagres abandonou as suas atividades na Terra em 1460.
Estava realizado, em linhas gerais, o seu grande destino. Da sua casa modesta da
Vila Nova do Infante, onde se encontra ainda hoje uma placa comemorativa, como
perene homenagem ao grande navegador, desenvolvera ele, no mundo inteiro, um
sentimento novo de amor ao desconhecido. Desde a expedição de Ceuta, 18 o Infante
deixou transparecer, em vários documentos que se perderam nos arquivos da Casa de
Avis, que tinha a certeza da existência das terras maravilhosas, cuja beleza haviam
contemplado os seus olhos espirituais, no passado longínquo. Toda a sua existência de
abnegação e ascetismo constituíra uma série de relâmpagos luminosos no mundo de
suas recordações. A prova de que os seus estudos particulares falavam da terra
desconhecida é que o mapa de André Bianco,19 datado de 1448, mencionava uma região
fronteira à África. Para os navegadores portugueses, portanto, a existência da grande ilha
austral já não era assunto ignorado.
33 N.E.: Dom Frei Henrique Soares de Coimbra (1465–1532) foi um frade e bispo português; no Brasil,
é conhecido por ter celebrado a primeira missa na terra recém-descoberta, em 26 de Abril de 1500.
34 N.E.: navegador, feitor e escrivão português do século XV.
Jesus, porém, confiante, por sua vez, na proteção de seu Pai, não hesita em dizer
com a certeza e a alegria que traz em si:
Nos céus imensos, havia clarões estranhos de uma bênção divina. No seu sólio de
estrelas e de flores, o supremo Senhor sancionara, por certo, as bondosas promessas de
seu Filho.
E foi assim que o minúsculo Portugal, ao longo de três longos séculos, embora
preocupado com as fabulosas riquezas das Índias, pôde conservar, contra flamengos e
ingleses, franceses e espanhóis, a unidade territorial de uma pátria com 8 milhões e meio
de quilômetros quadrados e com 8 mil quilômetros de costa marítima. Nunca houve
exemplo como esse em toda a História do mundo. As possessões espanholas se
fragmentaram, formando cerca de vinte repúblicas diversas. Os estados americanos do
norte devem sua posição territorial às anexações e às lutas de conquista. A Louisiana, o
Novo México, o Alasca, a Califórnia, o Texas, o Oregon surgiram depois da emancipação
das colônias inglesas. Só o Brasil conseguiu manter-se uno e indivisível na América,
entre os embates políticos de todos os tempos. É que a mão do Senhor se alça sobre a sua
longa extensão e sobre as suas prodigiosas riquezas. O coração geográfico do orbe não se
podia fracionar.
3
Os degredados
Todos os Espíritos edificados nas lições sublimes do Senhor se reuniram, logo após
o descobrimento da nova terra, celebrando o acontecimento nos espaços do Infinito.
Grandes multidões donairosas e aéreas formavam imensos hifens de luz, entre a Terra e
o Céu. Uma torrente impetuosa de perfumes se elevava da paisagem verde e florida, em
busca do firmamento, de onde voltava à superfície do solo, saturada de energias divinas.
Nos ninhos quentes das árvores, pousavam as vibrações renovadoras das esperanças
santificantes, e, no Além, ouviam-se as melodias evocadoras da Galileia, fecunda e
agreste antes das lutas arrasadoras das Cruzadas, que lhe devastaram todos os campos,
transformando-a num montão de ruínas. Afigurava-se que a região dos pescadores
humildes, que conheceu, bastante assinalados, os passos do divino Mestre, se havia
transplantado igualmente para o continente novo, dilatada em seus suaves contornos.
Complacente sorriso lhe bailava nos lábios angélicos e suas mãos liriais
empunhavam largo estandarte branco, como se um fragmento de sua alma radiosa
estivesse ali dentro, transubstanciado naquela bandeira de luz, que era o mais
encantador dos símbolos de perdão e de concórdia.
— Ismael, manda o meu coração que doravante sejas o zelador dos patrimônios
imortais que constituem a Terra do Cruzeiro. Recebe-a nos teus braços de trabalhador
devotado da minha seara, como a recebi no coração, obedecendo a sagradas inspirações
do nosso Pai. Reúne as incansáveis falanges do Infinito, que cooperam nos ideais
sacrossantos de minha doutrina, e inicia, desde já, a construção da pátria do meu
ensinamento. Para aí transplantei a árvore da minha misericórdia e espero que a cultives
com a tua abnegação e com o teu sublimado heroísmo. Ela será a doce paisagem dilatada
do Tiberíades, que os homens aniquilaram na sua voracidade de carnificina. Guarda este
símbolo da paz e inscreve na sua imaculada pureza o lema da tua coragem e do teu
propósito de bem servir à causa de Deus e, sobretudo, lembra-te sempre de que estarei
contigo no cumprimento dos teus deveres, com os quais abrirás para a Humanidade dos
séculos futuros um caminho novo, mediante a sagrada revivescência do Cristianismo.
Nessa hora, a frota de Cabral foge das águas verdes e fartas da baía de Porto Seguro.
Mas, Afonso Ribeiro, um dos condenados ao penoso desterro, avança numa piroga35
desprotegida e desmantelada, sem que os olhos da História lhe anotassem o gesto de
profunda desesperação, a caminho do mar alto. Ao longe, percebem-se ainda os
derradeiros mastros das caravelas itinerantes. O infeliz degredado anseia por morrer. Os
últimos gemidos abafados lhe saem da garganta exausta. Seus olhos, inchados de pranto,
contemplam as duas imensidades, a do oceano e a do céu, e, esperando na morte o
socorro bondoso, exclama, do íntimo do coração:
— Jesus, tende piedade da minha infinita amargura! Enviai a morte ao meu espírito
desterrado. Sou inocente, Senhor, e padeço a tirania da injustiça dos homens. Mas, se a
Nesse instante, porém, o pobre exilado sente que uma alvorada de luz estranha lhe
nasce no âmago da alma atribulada. Uma esperança nova se apossa de todas as suas
fibras emotivas e, como por delicado milagre, a sua jangada rústica regressa,
celeremente, à praia distante. Em vão as ondas sinistras e poderosas tentam arrebatá-lo
para o oceano largo. Uma força misteriosa o conduz à terra firme, onde o seu coração
encontrará uma família nova.
Ismael havia realizado o seu primeiro feito nas Terras de Vera Cruz. Trazendo um
náufrago e inocente para a base da sociedade fraterna do porvir, ele obedecia a sagradas
determinações do divino Mestre. Primeiramente, surgiram os índios, que eram os
simples de coração; em segundo lugar, chegavam os sedentos da Justiça divina e, mais
tarde, viriam os escravos, como a expressão dos humildes e dos aflitos, para a formação
da alma coletiva de um povo bem-aventurado por sua mansidão e fraternidade. Naqueles
dias longínquos de 1500, já se ouviam no Brasil os ecos acariciadores do Sermão da
Montanha.
4
Os missionários
D. Manuel I recebeu sem grande surpresa a notícia do descobrimento das terras
novas. Seu espírito se achava voltado para os tesouros inesgotáveis das Índias, que
faziam da Lisboa daquele tempo uma das mais poderosas cidades marítimas da Europa.
N.E.: porto que os mercadores árabes frequentavam desde o século VII, foi descoberto por Vasco de
36
Gama em 1498.
37 N.E.: (1451–1512) foi um cosmógrafo e navegador português.
38 N.E.: (1454 –1512) foi um navegador italiano.
Depois de graves incidentes, nos quais Vespúcio se entrega a aventuras pelo interior
da colônia, sedento de posição e de glória, o expedicionário português, pobre de
possibilidades e com raros companheiros, lança marcos de Portugal ao longo de toda a
costa brasileira. Uma das emoções mais gratas ao seu espírito é o quadro maravilhoso da
Baía de Guanabara. Julgando-se no estuário de um rio esplêndido, denomina Rio de
Janeiro o local, em virtude de encontrar-se ali nos primeiros dias do primeiro mês do
ano. No sítio, encantado, instala uma nova feitoria — a da Carioca, da qual não ficaram
largos vestígios, passando aí meses a fio, a retemperar suas energias em contato com a
paisagem magnífica. Prossegue na sua tarefa de reconhecimento e volta depois à
metrópole, sem conseguir interessar o monarca no que se referia à exploração da terra
nova. Limitou-se o rei português a permitir o estabelecimento de feiras de pau-brasil, na
colônia longínqua, o que facultou aos elementos estrangeiros o mais largo
desenvolvimento de comércio com os indígenas da região litorânea.
Foi, aproximadamente, por essa época, que Ismael reuniu em grande assembleia os
seus colaboradores mais devotados, com o objetivo de instituir um programa para as
suas atividades espirituais na Terra de Santa Cruz:
39N.E.: hábito em forma de saco, em baeta amarela e vermelha, que se enfiava pela cabeça, usado
pelos penitentes que iam ser queimados nas fogueiras da Inquisição.
momentos muito amargos, não obstante os sonhos de arte e de grandeza de Leão X,40
que detém neste instante uma coroa injustificável, porquanto o Reino de Jesus ainda não
é desse mundo; mas temos de aproveitar as possibilidades que o seu campo nos oferece
para encetar essa obra de edificação da pátria do Cordeiro de Deus.
Em 1531, após Portugal ter resolvido, sob a direção de D. João III, 46 a primeira
tentativa de colonização da Terra de Santa Cruz, alguns dos convocados, participantes
daquela augusta assembleia, chegavam ao Brasil com Martim Afonso de Sousa47 e a sua
companhia de trezentos homens, a tomar parte ativamente na fundação de São Vicente e
Piratininga.
40 N.E.: Giovanni di Lorenzo de‘ Medici (1547–1521) foi o 217º papa católico.
41 N.E.: (1534–1597) foi um padre jesuíta espanhol; um dos fundadores de São Paulo.
42N.E.: Bartolomeu Fernandes dos Mártires (1514–1590) foi um arcebispo de Braga; dedicou-se ao
ensino em Lisboa.
43 N.E.: (1517–1570) foi um religioso e educador português.
44 N.E.: (?–1565) foi um padre coadjutor da Companhia de Jesus. Dedicou-se à catequese dos índios.
45N.E.: (1490–1554) foi um padre jesuíta português. Atuou como missionário no Brasil, dedicando-se
à catequese dos índios.
46 N.E.: (1502–1557) foi o décimo quinto rei de Portugal.
47N.E.: (1500–1571) foi um administrador colonial português. Comandou a primeira expedição
portuguesa enviada ao Brasil com o fim de povoar a colônia (1531), fundando as vilas de São Vicente e
Piratininga.
48 N.E.: administrador português; segundo governador-geral do Brasil.
de civilização já existentes em Piratininga, aí se manteve no seu respeitável colégio, que
todos os governos paulistas conservaram com veneração carinhosa, como tradição de sua
cultura e de sua bondade. Alguns historiadores falam com severidade da energia
vigorosa do apóstolo que, muitas vezes, foi obrigado a assumir atitudes corretivas no seio
das tribos, que, entretanto, lhe mereciam as dedicações e os desvelos de um pai.
Anchieta aliou, no mundo, à suprema ternura, grande energia realizadora; mas, aqueles
que, na história oficial, lhe descobrem os gestos enérgicos, não lhe notam a suavidade do
coração e a profundeza dos sacrifícios, nem sabem que, depois, foi ainda ele a maior
expressão de humildade no antigo convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro, onde,
com o hábito singelo de frade, adoçou ainda mais as suas concepções de autoridade. A
edificadora humildade de um Fabiano de Cristo,49 aliada a um sentimento de renúncia
total de si mesmo, constituía a última pedra que faltava na sua coroa de apóstolo da
imortalidade.
Não constitui objeto do nosso trabalho o exame dos erros profundos da condenável
instituição, que fez da Igreja, por muitos séculos, um centro de perversidade e de
sombras compactas, em todas as nações europeias, que a abrigaram à sombra da
máquina do Estado. O que nos importa é a exaltação daqueles missionários de Deus, que
afrontavam a noite das selvas para aclarar as consciências com a lição suave do Mártir do
Calvário. Esses homens abnegados eram, de fato, ―o sal da nova terra‖.
49N.E.: João Barbosa (1676–1747) foi um frade da Ordem dos Frades Menores. No Brasil,
desenvolveu um trabalho de dedicação e amor ao próximo.
50N.E.: tribunal eclesiástico instituído pela Igreja católica no começo do século XIII, com objetivo de
investigar e julgar sumariamente pretensos hereges e feiticeiros, acusados de crimes contra a fé
católica.
5
Os escravos
Certo dia, preparava-se, numa das esferas superiores do Infinito, o encontro de
Ismael com aquele que será sempre o Caminho, a Verdade e a Vida.
Ismael, porém, não trazia no coração o sinal da alegria. Seus traços fisionômicos
deixavam mesmo transparecer angelical amargura.
— Ismael, asserena teu mundo íntimo no cumprimento dos sagrados deveres que te
foram confiados. Bem sabes que os homens têm a sua responsabilidade pessoal nos
feitos que realizam em suas existências isoladas e coletivas. Mas, se não podemos tolher-
lhes aí a liberdade, também não podemos esquecer que existe o instituto imortal da
51 N.E.: fidalgos portugueses a quem D. João III doou alguma capitania hereditária no Brasil.
52 N.E.: oprimido.
Justiça divina, onde cada qual receberá de conformidade com os seus atos. Havia eu
determinado que a terra do Cruzeiro se povoasse de raças humildes do planeta,
buscando-se a colaboração dos povos sofredores das regiões africanas; todavia, para que
essa cooperação fosse efetivada sem o atrito das armas, aproximei Portugal daquelas
raças sofredoras, sem violências de qualquer natureza. A colaboração africana deveria,
pois, verificar-se sem abalos perniciosos, no capítulo das minhas amorosas
determinações. O homem branco da Europa, entretanto, está prejudicado por uma
educação espiritual condenável e deficiente. Desejando entregar-se ao prazer fictício dos
sentidos, procura eximir-se aos trabalhos pesados da agricultura, alegando o pretexto
dos climas considerados impiedosos. Eles terão a liberdade de humilhar os seus irmãos,
em face da grande lei do arbítrio independente, embora limitado, instituído por Deus
para reger a vida de todas as criaturas, dentro dos sagrados imperativos da
responsabilidade individual; mas os que praticarem o nefando comércio sofrerão,
igualmente, o mesmo martírio, nos dias do futuro, quando forem também vendidos e
flagelados em identidade de circunstâncias. Na sua sede nociva de gozo, os homens
brancos ainda não perceberam que a evolução se processa pela prática do bem e que
todo o determinismo de nosso Pai deve assinalar-se pelo ―amai o próximo como a vós
mesmos‖. Ignoram voluntariamente que o mal gera outros males com um largo cortejo
de sofrimentos. Contudo, através dessas linhas tortuosas, impostas pela vontade livre
das criaturas humanas, operarei com a minha misericórdia. Colocarei a minha luz sobre
essas sombras, amenizando tão dolorosas crueldades. Prossegue com as tuas renúncias
em favor do Evangelho e confia na vitória da Providência divina.
— Não nos compete cercear os atos e intenções dos nossos semelhantes, e sim cuidar
intensamente de nós mesmos, considerando que cada um será justiçado na pauta de suas
próprias obras. Infelizmente, Portugal, que representa um agrupamento de espíritos
trabalhadores e dedicados, remanescente dos antigos fenícios, não soube receber as
facilidades que a misericórdia do supremo Senhor do Universo lhe outorgou nestes
últimos anos. Até aos meus ouvidos têm chegado as súplicas dolorosas das raças
flageladas por sua prepotência e desmesuradas ambições. Na velha Península já não
existe o povo mais pobre e mais laborioso da Europa. O luxo das conquistas lhe
amoleceu as fibras criadoras, e todas as suas preciosas energias e qualidades de trabalho
vêm esmorecendo sob o amontoado de riquezas fabulosas. Entretanto, o tempo é o
grande mestre de todos os homens e de todos os povos, e, se não nos é possível cercear o
arbítrio livre das almas, poderemos mudar o curso dos acontecimentos, a fim de que o
povo lusitano aprenda, na dor e na miséria, as lições sagradas da experiência e da vida.
A Casa de Avis, sob cujo reinado se iniciou o tráfico hediondo dos homens livres,
desapareceu para sempre, depois de sucessivos desastres. Após a derrota de D.
Sebastião54 em Alcácer-Quibir,55 o trono caiu nas mãos do cardeal D. Henrique56 e, em
1580, Portugal, exânime, entrega-se ao domínio da Espanha, acentuando-se a sua
decadência com Filipe II, 57 o mais fanático e o mais cruel de todos os príncipes da
Europa do século XVI.
O atrito das raças dava ensejo aos quadros mais dolorosos e mais lamentáveis.
Tomé de Sousa estava substituído por Duarte da Costa, que, como o primeiro
governador-geral, trouxera também consigo alguns dos missionários concitados por
Ismael ao novo apostolado nas florestas americanas.
58N.E.: Diogo Álvares Correia (1475–1557) foi um náufrago português que passou a vida entre os
indígenas da costa do Brasil e facilitou o contato dos primeiros viajantes europeus com os povos
nativos do Brasil.
59 N.E.: João Ramalho (1493–1580) foi um sertanista português.
60 N.E.: Gaspard de Coligny (1519–1572) foi um líder huguenote francês.
61 N.E.: Nicolau Durand de Villegaignon (1510–1575) foi um corsário francês.
tratamento dispensado aos seus companheiros. Os indígenas recebem carinhosamente a
orientação de Paicolás62 e se tornam devotados colaboradores da sua obra.
Em 1558, havia assumido o governo-geral de Santa Cruz, Mem de Sá, que combate
sem tréguas a influência dos estrangeiros. Com a sua energia, expele os franceses do Rio
de Janeiro, destruindo-lhes as fortificações. Mal, porém, se havia retirado o governador,
voltaram os franceses dispersos a reassumir a sua posição na Ilha de Serigipe, com o
auxílio dos tamoios, reunidos a esse tempo na maior confederação indígena que já
existiu em terras do Brasil, sob a direção de Cunhambebe,63 contra as perversidades dos
colonizadores portugueses. O governador-geral reconhece a necessidade de fundar-se
uma povoação que aí ficasse como sentinela da costa, a fim de eliminar os derradeiros
resquícios das influências francesas. O grande projeto aguarda ensejo favorável para a
sua concretização. Estácio de Sá, sobrinho do Governador, é então incumbido de
comandar uma guarnição que ali se planta, em defesa da cidade; a povoação se reparte
em pequenas guarnições de militares, junto ao Pão de Açúcar e numa das numerosas
ilhas do golfo esplêndido. Os franceses, todavia, unem-se aos índios e Estácio de Sá
morre, em 1567, empenhado com eles em guerras. O combate, em tais circunstâncias,
assume proporções aspérrimas e rudes. Mem de Sá reúne todas as forças disponíveis nas
cidades da colônia e ataca todas as fortificações que existiam onde hoje se situam a praia
do Flamengo e a Ilha do Governador; obtém a mais completa vitória sobre o inimigo,
mas permitiu, lamentavelmente, que aí se consumassem inauditas crueldades com os
vencidos.
Depois das lutas sanguinolentas nas praias da baía mais bela do mundo, onde os
vícios europeus, desencadeando nefandas guerras religiosas, batalhavam entre si,
estendendo suas crueldades até ao Novo Mundo, Ismael considerou a necessidade de
estabelecer uma diretriz para a organização econômica da terra do Cruzeiro. Após a
elaboração de largos projetos de ação do plano invisível, o sábio mensageiro do Senhor
discrimina as funções de cada região da pátria brasileira. Junto do golfo enorme, onde os
contornos da paisagem assumem as cambiantes mais delicadas e mais espantosas,
desdobrando-se nos mais graciosos caprichos da Natureza, traça ele as linhas de uma
urbe maravilhosa, que será a sede do pensamento brasileiro e, mais fundamente, no
coração da terra moça e bravia, traceja as plantas magníficas das duas usinas mais
poderosas, onde se guardará o profundo manancial de suas forças orgânicas. Os pontos
de fixação dessas sagradas balizas são encontrados ao longo dos 600 quilômetros de
extensão do Paraíba do Sul e nas cabeceiras do São Francisco, cuja corrente deverá
lançar, pelo seu percurso de quase 3 mil quilômetros, todas as sementes da brasilidade
mais pura.
64N.E.: Jean Jacques Le Balleur foi um missionário calvinista, estrangulado no Rio de Janeiro, em 20
de janeiro de 1567, pelo padre José de Anchieta.
65 N.E.: cidade do sudoeste da França.
66 N.E.: Caius Aurelius Valerius Diocletianus (244–311) foi um imperador romano.
67 N.E.: Oswaldo Gonçalves Cruz (1872–1917) foi um médico e cientista brasileiro.
Ninguém pode negar a hegemonia da intelectualidade carioca e fluminense, desde
os tempos em que a cidade de São Sebastião se derramou do morro do Castelo,
invadindo as ilhas, absorvendo as praias longas e elevando-se pelos outeiros vizinhos.
São Paulo e Minas de hoje foram as regiões escolhidas como as duas fontes poderosas
que guardariam o potencial de energias orgânicas da terra, formando os primeiros
índices da etnologia68 brasileira. As águas do Paraíba do Sul e as de todo o percurso do
São Francisco ainda constituem roteiro singular, onde se descobrem os característicos
mais fortes do povo fraternal da terra do Cruzeiro. Cada estado do Brasil tem a sua
função essencial no corpo ciclópico da pátria que representa o coração geográfico do
mundo; mas em São Paulo e em Minas Gerais se assentaram, por determinação do
Invisível, os elementos indispensáveis à organização da pátria esplêndida. Ambos serão
ainda, por muito tempo, as conchas da balança política e econômica da nacionalidade e
os dínamos mais poderosos da sua produção. Obedecendo aos elevados propósitos do
mundo oculto, ambos ficaram irmanados junto do cérebro do país, por indefectíveis
disposições do determinismo geográfico, que os reúne para sempre. Os Espíritos
infelizes e perturbados, inimigos da obra de Jesus, que, entretanto, se converterão um
dia ao supremo bem, pela sua infinita piedade, agem de preferência nos bastidores
administrativos dos dois grandes estados brasileiros, provocando a vaidade dos seus
homens públicos, levantando tricas políticas e conduzindo-os, muitas vezes, a lutas
fratricidas e tenebrosas, no sentido de atrasar os triunfos divinos do Evangelho, no
coração de todas as almas.
68N.E.: estudo ou ciência que estuda os fatos e documentos levantados pela etnografia no âmbito da
antropologia cultural e social, buscando uma apreciação analítica e comparativa das culturas.
compreenderão a imperiosa necessidade de se unirem para sempre, como irmãos muito
amados, novos símbolos de Castor e Pólux, 69 e expandirão juntos as suas energias
étnicas, modeladoras da Terra do Evangelho, absorvendo nos seus surtos extraordinários
as expressões excessivamente indiáticas do Amazonas, ao Norte, e as platinas influências
nas planícies do Rio Grande, por cumprirem, de mãos dadas, os imperativos da sua
grande missão histórica.
Nesse tempo que não vem muito longe, as mensagens de fraternidade e de amor,
expedidas pelos gênios inspiradores do Brasil, do sagrado Colégio de Piratininga,
tocarão, primeiramente, na coroa de tênues neblinas das montanhas, antes de
ascenderem aos céus.
Até hoje, comenta-se com espírito a célebre frase de Francisco I, exprimindo o seu
desejo de conhecer a disposição testamentária de Adão, que dividira o mundo entre
espanhóis e portugueses e o deserdara.
A esse tempo, a Terra do Evangelho não é mais conhecida pelo nome suave de Santa
Cruz. À força das expressões comuns, dos negociantes que vinham buscar as suas fartas
provisões de pau-brasil, seu nome se prende agora ao privilégio das suas madeiras. Os
missionários da colônia protestaram contra a inovação adotada, mas as falanges do
Infinito sancionaram a novidade imposta pelo espírito geral, considerando as terríveis
crueldades cometidas na Baía de Guanabara, em nome do mais caricioso dos símbolos. A
sanção de Ismael à escolha da nova expressão objetivava resguardar a Pátria do Cruzeiro
dos perigos da Inquisição, que na Europa fomentava os mais hediondos movimentos em
nome do Senhor.
— Ismael, nas tuas obrigações e trabalhos, considera que a dor é a eterna lapidária
de todos os espíritos e que o nosso Pai não concede aos filhos fardo superior às suas
forças, nas lutas evolutivas. Abriga aí, na sagrada extensão dos territórios do País do
Evangelho, todos os infortunados e todos os infelizes. No meu coração ecoam as súplicas
dolorosas de todos os seres sofredores, que se agrupam nas regiões inferiores dos
espaços próximos da Terra. Agasalha-os no solo bendito que recebe as irradiações do
símbolo estrelado, alimentando-os com o pão substancioso dos sofrimentos depuradores
e das lágrimas que lavam todas as manchas da alma. Leva a essas coletividades
espirituais, sinceramente arrependidas do seu passado obscuro e delituoso, a tua
bandeira de paz e de esperança; ensina-lhes a ler os preceitos da minha Doutrina, nos
códigos dourados do sofrimento.
Ismael sente que luzes compassivas e misericordiosas lhe visitam o coração e parte
com os seus companheiros em busca dos planos da erraticidade mais próximos da Terra.
Aí se encontram antigos batalhadores das Cruzadas, senhores feudais da Idade Média,
padres e inquisidores, Espíritos rebeldes e revoltados, perdidos nos caminhos cheios da
treva das suas consciências polutas.70 O emissário do Senhor desdobra nessas grutas do
sofrimento a sua bandeira de luz, como uma estrela-d‘alva, assinalando o fim de
profunda noite.
E aí, nas estradas escuras e tristes da angústia espiritual, viu-se, então, que falanges
imensas, ansiosas e extasiadas, avançavam com fervorosa coragem para as clareiras
abertas naquela mansão de dor e de sombras. Todos queriam, no seu testemunho de
agradecimento, beijar a bandeira sacrossanta do mensageiro divino. O seu emblema —
Deus, Cristo e Caridade — refulgia agora nas penumbras, iluminando todas as coisas e
clarificando todos os caminhos. As esperanças reunidas, daqueles seres infortunados e
sofredores, faziam a vibração de luz que então aclarava todas as sendas e abria todos os
entendimentos para a compreensão das finalidades, das determinações sublimes do Alto.
Foi por isso que os negros do Brasil se incorporaram à raça nova, constituindo um
dos baluartes da nacionalidade, em todos os tempos. Com as suas abnegações
santificantes e os seus prantos abençoados, fizeram brotar as alvoradas do trabalho,
depois das noites primitivas. Na Pátria do Evangelho têm eles sido estadistas, médicos,
artistas, poetas e escritores, representando as personalidades mais eminentes. Em
nenhuma outra parte do planeta alcançaram, ainda, a elevada e justa posição que lhes
compete junto das outras raças do orbe, como acontece no Brasil, onde vivem nos
ambientes da mais pura fraternidade. É que o Senhor lhes assinalou o papel na formação
da Terra do Evangelho e foi por esse motivo que eles deram, desde o princípio de sua
localização no país, os mais extraordinários exemplos de sacrifício à raça branca. Todos
os grandes sentimentos que nobilitam as almas humanas eles os demonstraram e foi
ainda o coração deles, dedicado ao ideal da solidariedade humana, que ensinou aos
europeus a lição do trabalho e da obediência, na comuna fraterna dos Palmares, onde
não havia nem ricos nem pobres e onde resistiram com o seu esforço e a sua
perseverança, por mais de setenta anos, escrevendo, com a morte pela liberdade, o mais
belo poema dos seus martírios nas terras americanas.
Por toda parte, no país, há um ensinamento caricioso do seu resignado heroísmo, e
foi por essa razão que a terra brasileira soube reconhecer-lhes as abnegações
santificadas, incorporando-os definitivamente à grande família, de cuja direção muitas
vezes participam, sem jamais se esquecer do Brasil de que os seus maiores filhos se
criaram para a grandeza da pátria, no generoso seio africano.
8
A invasão holandesa
Se à raça negra eram impostas as mais dolorosas torturas nos primórdios da
organização do Brasil, não menores sacrifícios se exigiam dos indígenas, acostumados à
amplitude da terra, propriedade deles.
No seio dessas lutas devastadoras, em que venciam, a maior parte das vezes, as
criminosas astúcias dos colonos, eram os padres piedosos os que mais sofriam,
experimentando a angústia de se verem desprezados pelos seus próprios companheiros
da raça branca, nos sertões ínvios e hostis. A alma simples dos naturais se mostrava
maleável aos seus ensinamentos. Aos seus apelos, aproximavam-se dos núcleos de
civilização. Aldeavam-se para uma vida ordeira que os colonizadores destruíam com as
suas taras infames e seculares. Anchieta e quase todos os outros missionários das selvas
brasileiras sustentaram demoradas lutas, defendendo os indígenas fraternos. A verdade,
porém, é que, embora esfacelassem os púlpitos na pregação da piedade cristã, suas vozes
se perdiam na imensidade do Céu, sem que seus irmãos da terra as escutassem com a
ideia generosa de lhes praticar os carinhosos ensinos. Os primeiros brancos que
aportaram à América do Sul, na sua generalidade, não tinham em conta a existência da
lei nas extensas florestas do Novo Mundo.
— Irmãos, não podemos tolher a liberdade dos nossos semelhantes. Não sou
indiferente a esses movimentos hediondos, nos quais os índios, simples e bons, são
capturados para os duros trabalhos do cativeiro. Esperemos no Senhor, cujo coração
misericordioso e augusto agasalhará todos aqueles que se encontram famintos de justiça.
Contudo, poderemos, com os nossos esforços, auxiliar os encarnados na compreensão
das leis fraternas, avisando-lhes o coração, de modo indireto, quanto aos seus divinos
deveres. Infelizmente, não encontramos, na atualidade do planeta, outro povo que
substitua os portugueses na grande obra de edificação da Pátria do Evangelho. Todas as
demais nações, como o próprio Portugal, se encontram presas da cobiça, da inveja e da
ambição. Os vícios de todas as identificam perfeitamente umas com as outras, e no povo
lusitano temos de considerar a austera honradez aliada a grandes qualidades de valor e
de sentimento, que o habilitam, conforme a vontade do Senhor, a povoar os vastos
latifúndios que constituirão mais tarde o pouso abençoado da lição de Jesus.
Colonizadores desalmados estão em todos os países dos tempos modernos, que não
reconhecem outro direito a não ser o da força desumana e impiedosa. Recorrendo, pois,
às possibilidades ao nosso alcance, buscaremos, na Europa, um príncipe liberal,
trabalhador e justo, que não esteja subordinado à política romana, a fim de caracterizar a
nossa ação indireta. Traremos a sua personalidade de administrador para a parte mais
flagelada da nova pátria, a fim de que seus exemplos possam servir aos que se encontram
na direção das atividades sociais e políticas da colônia e beneficiem, de maneira geral, a
nação inteira. Ele virá na qualidade de invasor, porquanto não encontramos outros
recursos para a adoção de providências dessa natureza; mas a sua permanência no Brasil
será curta e eventual, apenas durante os anos necessários a que suas lições sejam
prodigalizadas aos administradores da nova terra. Preliminarmente, porém, devemos
considerar que os seus companheiros não serão melhores que os portugueses, no sentido
da educação espiritual. A época é de profundo atraso de quase todos os indivíduos e é
para expelir essas trevas da consciência do mundo que nos teremos de sacrificar nas
atmosferas próximas da Terra, trabalhando pela vitória do Senhor em todos os corações.
O Recife se ostenta, diante da Europa, como uma das mais belas cidades da América
do Sul. Olinda é reedificada. Uma assembleia de mecânicos, de pintores, de arquitetos e
artistas acompanha o príncipe de Nassau, enchendo a sua cidade de singulares
esplendores. Mas o espírito construtivo do administrador holandês não se cristaliza nas
expressões materiais da sua cidade predileta. O amor e o respeito que vota à liberdade
fazem-no venerado de todos os brasileiros e portugueses de Pernambuco, cujas terras,
naquela época, desciam até a região do Paracatu, em Minas Gerais. Todos os escravos
que procuram abrigo à sombra da sua bandeira de tolerância ele os declara livres para
sempre, e os índios encontram, no seu coração, o apoio de um nobre e leal amigo.
Maurício de Nassau estabelece a liberdade religiosa e administra Pernambuco,
inaugurando aí a primeira liberal-democracia nas terras americanas, tais a justiça e a
liberdade com que se houve em seu governo.
A realidade, todavia, é que a lição de Nassau fora preparada no plano invisível, para
que os colonizadores da terra brasileira recebessem um novo clarão no seu caminho
rotineiro e obscuro.
Aquele povo minúsculo e heroico, cuja coragem acendera nova luz em todos os
departamentos de trabalho do Ocidente, encontrava-se agora reduzido à quase penúria.
Foi por esse tempo que Henrique de Sagres, o antigo Helil, mensageiro de Jesus,
que levantara as energias portuguesas com a sua escola de navegação, procurou o
Senhor, tocado de compaixão e de angústia, a implorar a bênção da sua misericórdia
para a nação de que se tornara o gênio renovador.
— Mestre — diz ele compungidamente —, venho pedir o vosso auxílio paternal para
a terra portuguesa, cujas experiências amargas tocam, agora, ao auge das penosas
provações coletivas. Humilhada e vencida, ela implora a vossa divina Providência, por
intermédio de minhas palavras, no sentido de lhe ser possível aproveitar as forças
derradeiras, para uma reorganização política e econômica que a possa esquivar de tão
angustiosa situação.
— Senhor, com o vosso apoio e com o vosso amparo, esperamos realizar essa
reorganização buscando para o trono os descendentes de D. Afonso, primeiro duque de
Bragança, que atualmente detêm a maior fortuna portuguesa e em cuja casa vivem mais
de oitenta mil vassalos. Quanto ao nosso plano, constará de uma larga ação dos
agrupamentos espirituais sob a minha direção, combinados com as falanges de Ismael,
no sentido de intensificarmos o pensamento cristão em Portugal, projetando as mais
nobres realizações no Brasil, disseminando-nos entre os colonizadores, a fim de que as
concepções de fraternidade se intensifiquem, cimentando as bases da pátria das vossas
lições divinas. Nossos apelos se estenderão aos companheiros reencarnados, que se
encontram nas cortes espanholas e nas selvas americanas, para levantarmos a bandeira
de Ismael sobre todas as frontes, como sublime legado do vosso coração compassivo e
misericordioso.
— Sim, Helil — retrucou Jesus, bondoso —, teu plano se realizará com a minha
bênção, efetuando-se essa ação espiritual conforme a idealizas. Temos, no entanto, de
considerar que os elementos a serem utilizados são os mais representativos, porém não
77.E.: tratado assinado entre a Inglaterra e Portugal (27/12/1703). Pelos seus termos, os portugueses
se comprometiam a consumir os têxteis britânicos e, em contrapartida, os britânicos, os vinhos de
Portugal.
78N.E.: (1604–1656) foi o vigésimo primeiro rei de Portugal, o primeiro da quarta dinastia, fundador
da dinastia de Bragança.
— No Evangelho de Jesus, ofereceu o demônio todos os seus reinos pela posse de
uma alma; mas, no Maranhão, não é necessário ao demônio tanta bolsa, para comprá-las
todas. Basta acenar o diabo com um tijupar de pindoba e dois tapuias para que seja
adorado com ambos os joelhos.
E não foram poucos os senhores que, tocados dessas claridades divinas, cuja origem
profunda estava nas lições de Ismael e de seus abnegados mensageiros, correram às suas
propriedades, envergonhados do crime de manter escravos os seus irmãos, e devolveram
para sempre, aos pobres cativos, a liberdade.
10
As Bandeiras79
No desdobramento da ação espiritual que deveria restaurar a pátria portuguesa,
Ismael congregou os Espíritos que chegavam aos espaços depois do primeiro contato
com a vida de Piratininga, a fim de elaborar novos projetos de trabalho naquele setor da
Pátria do Evangelho.
Almas decididas e heroicas, postas ali para a construção da grande obra, apesar dos
seus característicos de bondade e de energia, necessitavam regressar à luta terrestre, em
seu próprio benefício.
— Meus irmãos — disse ele —, regressareis dentro de breves dias aos núcleos de
trabalho estabelecidos no planalto piratiningano. Prosseguireis atuando no mesmo
campo de labor e liberdade com que caracterizastes as primeiras iniciativas aí
desenvolvidas. Agora, levareis mais longe a vossa coragem e o vosso heroísmo.
Penetrareis o coração da terra do Cruzeiro, rasgando as sombras de suas florestas
imensuráveis. Com a vossa dedicação, novas atividades serão descobertas e novas
possibilidades hão de felicitar a existência dos colonizadores do país, onde nos
desvelaremos pela conservação da bandeira de Jesus, desfraldada lá sobre todas as
frontes e sobre todos os corações. Até hoje, têm-se multiplicado as tristes caçadas
humanas em que os índios misérrimos são colhidos de surpresa, na sua simplicidade,
para os penosos trabalhos do cativeiro; desvendareis, agora, as fontes de riqueza dos
vastos latifúndios do Brasil, interessando a colonização e fazendo desabrochar com mais
intensidade os núcleos valorosos desse movimento de intensificação dos órgãos de
progresso da pátria e do seu povo. Muitos de vós conhecereis a penúria e o sofrimento;
sacrificareis a fortuna e os afetos mais santos da família, para construirdes a base do
porvir com as lágrimas abençoadas dos vossos martírios e das vossas renúncias
exemplares. Vossa tarefa será rasgar as selvas remotas, patenteando o ouro depositado
no seio da terra generosa.
79N.E.: expedições armadas ao interior do Brasil (séculos XVI–XVIII). Iniciativas particulares visando
a obtenção de lucro próprio.
Ali se encontravam as entidades que seriam, mais tarde, entre muitos outros,
Antônio Rodrigues Arzão, 80 Marcos de Azeredo, 81 Bartolomeu Bueno 82 e Fernão Dias
Paes. Este último, quebrando o silêncio da grande assembleia, exclamou, provocando
geral interesse:
— Anjo bom, que faremos com o ouro da terra, se no mundo ele é a causa sinistra de
todas as lutas e o demônio de todas as ambições? Aqui, na vida espiritual,
compreendemos semelhantes realidades; mas, no orbe das sombras, a nossa consciência
mergulha nas mais aflitivas perturbações e bem sabeis que a água mais pura,
misturando-se com a terra, se reduz quase sempre a um punhado de lama.
80 N.E.: bandeirante paulista, apontado como responsável pela descoberta de ouro em Minas Gerais.
81N.E.: Marcos Tenreiro de Azeredo Coutinho e Melo (1619–1680) foi um explorador brasileiro que, à
procura de esmeraldas, explorou parte do atual estado do Espírito Santo.
82 N.E.: Bartolomeu Bueno da Silva (1585–1638) foi um famoso bandeirante brasileiro.
esqueças a Misericórdia divina, sem exorbitar das funções que te forem confiadas,
entregando a Jesus os teus trabalhos de cada dia.
83N.E.: criado em 1642, com objetivo de regular as atividades comerciais das colônias portuguesas:
Brasil, Índia, Guiné, São Tomé e Cabo Verde.
84 N.E.: (1630–1685) foi um senhor de engenho e revolucionário português radicado no Brasil.
de se manterem estes últimos dentro da liberdade que lhes competia. Os amotinados
prendem todos os elementos do governo e, organizando uma junta com elementos do
clero, da nobreza e do povo, consideram extinto o monopólio e providenciam o imediato
banimento dos protetores dos indígenas. Festas extraordinárias assinalam, no
Maranhão, semelhantes feitos, inclusive te-déum85 na Catedral de São Luís. A notícia de
tão singulares quão inesperados episódios provoca as apreensões da corte de Lisboa, que
não desconhece as pretensões da França no tocante ao vale do Amazonas, nem ignora o
ascendente moral dos franceses sobre os elementos indígenas. A expedição que deverá
restaurar a lei na capitania não se faz esperar e a Gomes Freire de Andrade, 86 estadista
notável pelo seu talento militar e político, cabe a direção do movimento restaurador. As
providências da contrarrevolução no extremo norte são adotadas sem dificuldade.
Gomes Freire procede com magnanimidade para com os revoltosos, sem, contudo, poder
agir com a mesma liberalidade para com Manuel Beckman, que foi preso e sentenciado à
morte. Sua fortuna teve-a ele confiscada, mas o grande oficial que comandara a
expedição, dentro das tradições da generosidade portuguesa, arrematou todos os bens do
infeliz, em hasta87 pública, e os doou à viúva e aos órfãos do revolucionário.
85N.E.: hino litúrgico católico atribuído a Santo Ambrósio e a Santo Agostinho, iniciado com as
palavras Te Deum laudamus (A Vós, ó Deus, louvamos).
86N.E.: Gomes Freire de Andrade e Castro (1757–1817), governador da Capitania do Maranhão de
1685 a 1687.
87 N.E.: leilão.
88 N.E.: Francisco Teles de Menezes (1745–1845), religioso brasileiro.
89N.E.: conflito gerado no estado de Pernambuco entre os comerciantes de Recife e os latifundiários
de Olinda, em 1711, para determinar quem detinha o poder central do estado.
A felonia e a traição constituem o código dessas criaturas insuladas nas matas
desconhecidas e inóspitas.
Pela mesma época, a França, que sempre custou a resignar-se com a influência
portuguesa no Brasil, envia Duclerc90 para investir no porto do Rio de Janeiro com mil
homens de combate. A metrópole portuguesa não podia proteger, de pronto, a cidade, e
o governador Francisco de Castro Morais,91 deixando-se dominar pela timidez, permitiu
o desembarque das forças francesas, que, todavia, foram rechaçadas pela população
carioca. Estudantes e populares lutaram contra o invasor. Algumas dezenas de franceses
foram barbaramente trucidados. Fizeram-se ali mais de quinhentos prisioneiros e o
capitão Duclerc acabou assassinado em trágicas circunstâncias. O governo do Rio não
providenciou quanto ao processo dos criminosos, a fim de punir os culpados e definir as
responsabilidades pessoais, provocando com isso a reação dos franceses, que voltaram a
assediar a maior cidade brasileira.
Nessa época, o Rio de Janeiro já eclipsava todas as cidades do Brasil. Aí, ao lado das
águas claras e puras do rio Carioca, onde os Tamoios encontravam sagradas virtudes
para a beleza de suas mulheres e para a voz dos seus cantores, já se erguia o casario
imenso, a descer do cume dos morros para o lençol arenoso das praias.
Aí, sob o céu azul que cobre a paisagem tranquila, os governadores podem fazer,
com serenidade imperturbável, seus longos expedientes para a metrópole e os padres
podem rezar beatificamente, nos seus breviários, entre as paredes coloniais do Convento
de Santo Antônio.
Ao entardecer, não se cuidava de outra coisa que não fosse a iluminação dos
oratórios das esquinas, únicos pontos onde, às vezes, se concentravam alguns
transeuntes retardatários, que afrontavam sem receio os capoeiras ocultos no silêncio
das ruas ermas. De qualquer modo, porém, às oito horas da noite não se encontrava mais
ninguém pelas vielas escuras, com exceção dos dias de grande gala, em que o
Governador comparecia pessoalmente às festas populares, tendo todos o cuidado de ir a
esses folguedos de rua com os elementos precisos para a iluminação do caminho, no
regresso a casa.
O Rio de então, como as demais cidades não só do Brasil, mas também de Portugal,
não primava pela higiene e pela limpeza. Os igarapés que conheci, ainda no princípio
deste século, em algumas pequenas cidades do norte brasileiro, onde se viam, em pleno
dia, homens e crianças acertando contas com a natureza, se localizavam então nos
recantos mais afastados das ruas, em grandes valas dentro das quais os pobres escravos
depositavam, todas as tardes, o conteúdo malcheiroso dos largos potes de barro,
carregados à cabeça.
Alguns forasteiros ilustres, que nos visitaram naquela época, arquivaram tristes
impressões do Brasil dos vice-reis, cheio dos mais espantosos quadros de imundície.
Todavia, um dos espetáculos mais dolorosos e comovedores ofereciam-no os mercados
de escravos, como o do Valongo, 94 onde os miseráveis se amontoavam aos magotes,
esperando o comprador que lhes examinava os pulsos e os dentes, selecionando os mais
fortes para os duros trabalhos das fazendas. Ali, encontravam-se representantes dos
negros de Guiné, de Cabinda e de Benguela, que eram separados dos pais e das mães, dos
irmãos e dos filhos, nos sucessivos martirológios da raça negra, na qual os próprios
padres de Portugal não viam irmãos em humanidade, mas os amaldiçoados
descendentes de Cam.95 Até há pouco tempo, podia-se ver na Luanda a cadeira de pedra
do bispo, de onde um prelado português abençoava os navios negreiros, prontos para se
fazerem ao mar largo, com a pesada carga de desgraçados cativos. A bênção religiosa
visava conservá-los vivos até aos portos do destino, a fim de que os mais fartos lucros
compensassem o trabalho dos hediondos mercadores. Estes últimos, no entanto, além da
bênção, adotavam outras precauções, amontoando os desditosos africanos nos porões
infectos, onde viajavam como animais ferozes, trancafiados na prisão, para que não
vissem, pela última vez, os horizontes do berço ingrato em que haviam nascido,
vacinando-se contra as dores supremas da desesperação, que os arrastaria para os
abismos do oceano.
A Igreja, no Brasil, abre o seu culto a São Benedito e a Nossa Senhora do Rosário,
tornando-se um refúgio de doce consolação para os pobres africanos. As ordens
religiosas possuíam os seus pretos, que eram bem tratados e jamais poderiam ser
vendidos. Nas fazendas, agrupavam-se eles em famílias, que, as mais das vezes, eram
plenamente alforriadas em testamento dos proprietários. Todos os hábitos em voga, na
época, dão testemunho da liberdade brasileira, porquanto, em nosso país, nunca a
emancipação foi impedida por lei, como em outras nações. A filantropia dos brasileiros
cedo começou o movimento abolicionista, e a prova da profunda assistência espiritual
que acompanhava essas ações na Pátria do Evangelho é que nunca teve o Brasil um
código negro, à maneira da França e da Inglaterra. E a verdade espiritual, que paira
acima das considerações de todos os historiadores, é que Ismael preparou aqui a oficina
da fraternidade, onde os negros incompreendidos vinham erguer a pátria da sua
descendência. Se sofreram nas mãos de alguns escravocratas impiedosos, seus prantos e
sacrifícios iam florescer ao tênue rocio das bênçãos do Céu, na Terra do Evangelho,
clarificando-lhes, mais tarde, os caminhos, quando seus corações resignados e sofredores
se dilatassem, na alma fraterna dos filhos e dos netos.
96 N.E.: antiga tradição popular, integrada nos rituais de passagem, ligada ao simbolismo da
regeneração e renovação.
13
Pombal e os jesuítas
Após o reinado de esbanjamento de D. João V, sobe ao trono de Portugal D. José I,
como o quinto rei da dinastia bragantina. O soberano escolhe para seu primeiro ministro
Sebastião José de Carvalho e Melo,97 depois conde de Oeiras e, mais tarde, marquês de
Pombal.
Pombal aproveita o ensejo que se lhe oferece para justificar a expulsão dos jesuítas,
apontando-os como autores indiretos do atentado e D. José I, a instâncias do seu valido,
assina sem hesitar o decreto de banimento.
— Irmãos — diz ele —, muitas vezes, os próprios Espíritos que escolhemos para
determinados labores terrestres não resistem à sedução do dinheiro e da autoridade.
Sentem-se traídos em suas próprias forças e se entregam, sem resistência, ao inimigo
oculto que lhes envenena o coração. Deixai aos déspotas da Terra a liberdade de agir sob
o império da sua prepotência. Por mais que operem dentro das suas possibilidades no
plano físico, a vitória pertencerá sempre a Jesus, que é a luminosidade tocante de todos
os corações. Temos, porém, de considerar, a par da tirania política que tenta destruir a
nossa ação, o lamentável desvio dos nossos irmãos incumbidos de velar pelo patrimônio
do Evangelho, no mundo europeu. Infelizmente, não têm eles procurado levar a luz
espiritual às almas aflitas e sofredoras, clareando a estrada dos ignorantes e abençoando
o rude labor dos simples; ao contrário, buscam influenciar os príncipes do planeta,
disputando os mais altos lugares de domínio no banquete dos poderes temporais, em
todos os países onde milita a Igreja do Ocidente. Peçamos a Jesus pelos tiranos e pelos
nossos companheiros desviados da consciência retilínea. Se terminamos, agora, uma
etapa da nossa tarefa, em que aproveitamos os elementos que nos oferecia a disciplina da
Companhia fundada por Loiola, prosseguiremos o nosso trabalho dentro de novas
modalidades. Deixemos aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos, como ensinou o
divino Mestre em suas lições sublimes. Vossos irmãos, transformando a cruz do Cristo
num símbolo de opressão e despotismo, nos tribunais malditos da Inquisição, cavam a
sepultura moral de suas almas, que se amoldam ao sacrilégio e à ignomínia. Quanto aos
políticos, esses têm uma órbita de ação que não lhes é possível ultrapassar; o tempo e a
experiência, com a dor, eterna aliada de ambos, ensinarão às suas consciências a lei de
fraternidade e de amor, que esqueceram nos dias do fastígio e da glória efêmera sobre a
face do mundo. Oremos por eles e que Jesus, na sua bondade infinita, nos acolha os
corações sob o manto da sua misericórdia.
A Companhia de Jesus foi suprimida pelo próprio papa Clemente XIV, em 1773,
para reaparecer somente em 1814, com Pio VII. Nunca mais, todavia, puderam os
jesuítas readquirir o imenso prestígio que possuíram no Ocidente. Quanto ao marquês
de Pombal, conheceu no silêncio a lição do abandono e do olvido dos homens. No dia em
que agonizava D. José I, o cardeal de Lisboa, D. João Cosme da Cunha, que devia ao
famoso Ministro a altura da sua posição eclesiástica, lhe declara no aposento do
moribundo: ―V. Ex. já nada mais tem que aqui fazer‖, testemunhando-lhe venenosa
a
ingratidão. Daí a algum tempo, em subindo ao trono, D. Maria I destituía o marquês de
todas as suas funções no reino, banindo-o da corte após rumoroso processo, em que
procurou fundamentar a sua condenação. Retirando-se para a Vila de Pombal,
desprendeu-se do mundo em 1782, humilhado e esquecido, sob o jugo dos mais
pungentes desgostos.
14
A Inconfidência Mineira
Por morte de D. José, ascendeu ao trono sua filha, D. Maria I, a Piedosa, a cuja
autoridade ficariam afetas as grandes responsabilidades do trono, naquela época em que
um sopro de vida nova modificava todas as disposições políticas e sociais do Velho
Mundo.
Por esse tempo, o Brasil sofria o máximo de vexames, no que se referia ao problema
da sua liberdade. A capitania de Minas Gerais, que se criara e desenvolvera sob a
carinhosa atenção dos paulistas, era então o maior centro de riquezas da colônia, com as
suas minas inesgotáveis de ouro e diamantes. A sede de tesouros edificara Vila Rica nos
cumes enevoados e frios das montanhas, reunindo-se ali uma plêiade de poetas e
escritores que sentiriam, de mais perto, as humilhações infligidas pela metrópole
portuguesa à pátria que nascia. A verdade é que em Minas se sentia, mais que em toda
parte, o despotismo e a tirania. O clero, a magistratura e o fisco, juntos aos ambiciosos
que aí se estabeleceram, apossavam-se de todas as possibilidades econômicas, presas de
criminosa ânsia de fortuna. Os padres queriam todo o ouro das minas para a edificação
das suas igrejas suntuosas; os membros da magistratura consideravam de necessidade
enriquecer-se, antes de regressarem a Portugal, com opulentas aquisições; os agentes do
fisco executavam as determinações da corte de Lisboa, árvore farta e maravilhosa, onde
todos os parasitas da nobreza iam sugar a seiva de pensões extraordinárias e fabulosas.
101 N.E.: Martinho de Melo e Castro (1716–1795) foi um diplomata e político português.
102 N.E.: título criado por decreto em 1718.
103 N.E.: Jean-Jacques Rousseau (1712–1778) foi um escritor e filósofo suíço.
capitania mais rica da colônia, desdobram-se quadros dolorosos da miséria do povo,
esmagado pelos impostos de toda natureza. As coletividades de trabalhadores,
conduzidas à ruína pelo malogro das minerações, não conseguiriam suportar por mais
tempo semelhantes vexames. Em Minas, porém, uma elite de brasileiros considera a
gravidade da situação. Intelectuais distintos se sentem compenetrados da maioridade da
pátria, que, ao seu ver, poderia tomar as rédeas dos seus próprios destinos.
Embriagados pela concepção da liberdade política, mas, dentro dos seus triunfos
literários, afastados das realidades práticas da vida comum, os intelectuais mineiros não
descansaram. Idealizaram a república, organizaram seus símbolos, multiplicaram
prosélitos das suas ideias de liberdade; porém, no momento psicológico da ação, os
delatores, a cuja frente se encontrava a personalidade de Silvério dos Reis, 110 português
104 N.E.: Inácio José de Alvarenga Peixoto (1744–1793) foi um advogado e poeta brasileiro.
105N.E.: (1746–1792) foi um dentista, tropeiro, minerador, comerciante, militar e ativista político
brasileiro.
106 N.E.: (1729–1789) foi um jurista e poeta brasileiro.
107 N.E.: Tomás Antônio Gonzaga (1744–1806) foi um jurista, poeta e ativista político luso-brasileiro.
N.E.: José Joaquim da Maia e Barbalho (1757–1788) ficou também conhecido pelo pseudônimo
108
Vendek.
109 N.E.: Thomas Jefferson (1743–1826) foi o 3º presidente dos EUA.
110 N.E.: Joaquim Silvério dos Reis Montenegro Leiria Grutes (1576–1819).
de Leiria, levaram todo o plano ao visconde de Barbacena, então governador de Minas
Gerais. O governador age com prudência, a fim de sufocar a rebelião nas suas origens, e,
expedindo informes para que o vice-rei Luís de Vasconcelos 111 efetuasse a prisão do
Tiradentes no Rio de Janeiro, prende todos os elementos da conspiração em Vila Rica,
depois de avisar secretamente aos seus amigos do peito, simpatizantes da conjuração,
quanto à adoção de tais providências, para que não fossem igualmente implicados.
Mas, nesse momento, Ismael recebia em seus braços carinhosos e fraternais a alma
edificada do mártir.
— Irmão querido — exclama ele —, resgatas hoje os delitos cruéis que cometeste
quando te ocupavas do nefando mister de inquisidor, nos tempos passados. Redimiste o
pretérito obscuro e criminoso, com as lágrimas do teu sacrifício em favor da Pátria do
Daí a alguns dias, a piedosa rainha portuguesa enlouquecia, ferida de morte na sua
consciência pelos remorsos pungentes que a dilaceravam e, consoante as profecias de
Ismael, daí a alguns anos era o próprio Portugal que vinha trazer, com D. João VI, a
independência do Brasil, sem o sucesso duvidoso das revoluções fratricidas, cujos
resultados invariáveis são sempre a multiplicação dos sofrimentos das criaturas,
dilaceradas pelas provações e pelas dores, entre as pesadas sombras da vida terrestre.
15
A Revolução Francesa
Em 1792, D. João assumia a direção de todos os negócios do trono português, em
virtude da perturbação mental de sua mãe, D. Maria I. Época de profundas transições
em todos os setores políticos do Ocidente, a regência se caracterizou por inúmeros
desastres, no capítulo da administração.
113N.E.: Maximilien François Marie Isidore de Robespierre (1758–1794) foi um advogado e político
francês; uma das personalidades mais importantes da Revolução Francesa.
114 N.E.: Napoleão I, imperador francês (1769–1821).
115 N.E.: família nobre e importante casa real europeia.
direção audaciosa, todas as conquistas militares se empreendem. A Europa inteira
apresta-se para a campanha, ao tinido sinistro das armas. Pela estratégia dos generais
franceses, caem todas as praças de guerra e o imperador vai catalogando o número
ascendente das suas vitórias.
— Irmãos — elucidam eles —, ordena o Senhor que espalhemos a sua luz e o seu
amor infinito sobre todos os corações que sofrem na Terra. As forças das sombras
intensificam a miséria e o sofrimento em todos os recantos do planeta. As ondas
revolucionárias enchem de sangue todas as estradas do globo terrestre e as trombetas da
guerra se fazem ouvir, entoando as notas horríveis da destruição e da morte. Levantemos
o espírito geral das coletividades oprimidas, renovando a concepção de liberdade na face
do mundo.
O século XIX começava a viver embalado pelo fragor das armas, em todas as
direções.
116 N.E.: na mitologia grega, deusa da Justiça. Seus atributos são a espada e a balança.
117 N.E.: maior rio da península Ibérica.
havia desaparecido nas águas pesadas do Atlântico, já os soldados de Junot 118 se
apoderavam de Lisboa e de suas fortalezas, com ordem de riscar Portugal da carta
geográfica europeia.
Logo, porém, ao seu primeiro contato com o Brasil, sob o influxo das falanges do
Infinito, o príncipe generoso sente-se tocado da mais alta simpatia para com a Pátria do
Evangelho.
Ainda na Bahia, graças às suas relações com o conde de Aguiar, ministro de D. João
VI, José da Silva Lisboa, mais tarde visconde de Cairu, 119 consegue do soberano a
abertura de todos os portos da colônia ao comércio universal. E note-se que semelhante
119 N.E.: José da Silva Lisboa (1756–1835) foi um político e economista brasileiro.
providência, a base primordial da autonomia brasileira, teve seus ascendentes
indiscutivelmente, na atuação das forças espirituais que presidiam aos movimentos
iniciais da emancipação, porque, na convenção secreta de Londres, em 22 de outubro de
1807, um dos pontos essenciais que deveriam ser observados, em troca da proteção de
Jorge III120 à Casa de Bragança, no sentido de sua fuga para a colônia distante, era o da
abertura dos portos do Brasil à livre concorrência da Inglaterra, reservando-se tal direito
somente aos interesses britânicos. O soberano e seus ministros conheciam essas
estipulações, por intermédio de Lorde Strangford; mas, com o auxílio das influências
salutares do plano invisível, reconsideraram a tempo o absurdo de semelhantes
exigências e cuidaram de realizar as primeiras aspirações dos patriotas brasileiros.
Nos seus novos paços, sentia-se o rei confortado e satisfeito com a magnificência do
panorama e com a fartura da terra. Apenas D. Carlota Joaquina,125 com a sua educação
deficiente, a sua megalomania e apego aos prazeres requintados da época, não se
conformava com a situação, protestando contra todos os elementos, demonstrando
aridez de espírito e lamentável agressividade.
nacionais, que foram declaradas livres, o que facilitou a colaboração dos estrangeiros
estabelecidos nas costas marítimas da Pátria do Cruzeiro, surgindo um novo período de
trabalho construtivo do país, prestes a celebrar suas núpcias com a liberdade.
N.E.: George William Frederick (1738–1820) foi rei da Grã-Bretanha e rei da Irlanda de 25 de
120
outubro de 1760 até a união desses dois países em 1º de janeiro de 1801, passando a ser Rei do Reino
Unido da Grã-Bretanha e Irlanda até sua morte.
121 N.E.: título de nobreza criado por carta pela rainha portuguesa D. Maria I, em 1808.
122 N.E.: título de nobreza criado pela rainha portuguesa D. Maria I, em 1801.
123 N.E.: título de nobreza criado por carta pelo rei português D. João V, em 1714.
124 N.E.: título de nobreza criado por D. João IV, em 1648.
N.E.: Carlota Joaquina Teresa Caetana de Bourbon e Bourbon (1775–1830) foi uma rainha de
125
O príncipe, contudo, não soube manter-se constantemente dentro das linhas de sua
autoridade. Com as suas liberalidades na América, criava-se em derredor da sua corte
toda uma sociedade de parasitas e de inúteis. Os reinóis abastados do Rio de Janeiro e
das outras grandes cidades coloniais receberam títulos e condecorações de toda
natureza. As cartas honoríficas eram expedidas quase que diariamente. Por toda parte,
havia comendadores da Ordem do Cristo e cavaleiros de São Tiago dando lugar a um
grande menosprezo pelas instituições. Os nobres da época eram os novos ricos do
mundo moderno. Conquistados os títulos, sentiam-se no direito de viver colados ao
orçamento da despesa, apodrecendo longe do trabalho. Só os gastos da despensa da
corte, dos quais vivia a multidão dos criados, no Rio de Janeiro, ao tempo de D. João VI,
se aproximavam da respeitável importância de mais de quinze mil contos de réis! O
alojamento dos fidalgos e de suas famílias exigiu, por vezes a fio, as mais enérgicas
providências da autoridade, no capítulo das expropriações. A chamada lei das
aposentadorias obrigava todos os inquilinos e proprietários a ceder suas casas de
residência aos favoritos e aos serviçais reais. Bastava que qualquer fidalgote desejasse
este ou aquele prédio, para que o juiz aposentador efetuasse a necessária intimação, a
fim de que fosse imediatamente desocupado. Ao oficial de justiça, incumbido desse
trabalho, bastava escrever na porta de entrada as letras ―P. R.‖, que se subentendiam por
―Príncipe Regente‖, inscrição que a malícia carioca traduzia como significando —
―Ponha-se na rua‖.
Moreira de Azevedo126 conta em suas páginas que Agostinho Petra Bittencourt era
um dos juízes aposentadores ao tempo de D. João VI, quando lhe apareceu um fidalgo da
corte, exigindo pela segunda vez uma residência confortável, apesar de já se encontrar
126 N.E.: Manuel Duarte Moreira de Azevedo (1832–1903) foi um médico e professor de História.
muito bem instalado. Decorridos alguns dias, o mesmo homem requer a mobília e, daí a
algum tempo, solicita escravos. Recebendo a terceira solicitação, o juiz, indignado em
face dos excessos da corte do Rio, exclama para a esposa, gritando para um dos
apartamentos da casa:
E, indicando à mulher, que viera correndo atender ao chamado, o fidalgo que ali
esperava a decisão, concluiu com ironia:
— Este senhor já por duas vezes exigiu casa; depois pediu-me mobília e agora vem
pedir criados. Dentro em breve, desejará também uma mulher e, como não tenho outra
senão a senhora, serei forçado a entregá-la.
O generoso soberano, cujo reinado transcorria num dos períodos mais críticos da
História do mundo, foi obrigado a deixar no Brasil o filho, como príncipe regente.
— Pedro, se o Brasil se separar de Portugal, antes seja para ti, que me respeitarás, do
que para algum desses aventureiros.
Lisboa vivia então sob grande terror, devido aos julgamentos sumários que se
haviam verificado contra todos os implicados no movimento que visava depor a ditadura
de Beresford. Inúmeros fuzilamentos se executaram, sem que as sentenças de morte
fossem bafejadas pela sanção régia, constituindo verdadeiros assassínios, com os mais
hediondos requintes de crueldade.
A caravana de Ismael desvela-se pelo cultivo das ideias liberais no coração da pátria
e, por meio de processos indiretos, procura espalhar por todos os setores da Terra do
Cruzeiro as sementes da fraternidade e do amor.
É então que a personalidade espiritual daquele que fora o Tiradentes procura o
mensageiro de Jesus, solicitando-lhe o conselho esclarecido quanto à solução do
problema da independência:
— Anjo amigo — inquire ele —, não será agora o instante decisivo para nossa
atuação? Por toda parte há uma exaltação patriótica nos ânimos. As possibilidades estão
dispersas, mas poderíamos reunir todas as forças, para o fim de derrubar as últimas
muralhas que se opõem à liberdade da Pátria do Evangelho.
Os patriotas, daí por diante, já não pensam noutra coisa que não seja a organização
política do Brasil. Todas as câmaras e núcleos culturais do país se dirigem a D. Pedro em
termos elogiosos, louvando-lhe a generosidade e exaltando-lhe os méritos. Os homens
eminentes da época, a cuja frente somos forçados a colocar a figura de José Bonifácio,131
como a expressão culminante dos Andradas, auxiliam o Príncipe regente, sugerindo-lhe
medidas e providências necessárias. Chegando ao Rio por ocasião do grande triunfo do
povo, após a memorável resolução do ―Fico‖, José Bonifácio foi feito ministro do Reino
do Brasil e dos Negócios Estrangeiros. O patriarca da Independência adota as medidas
políticas que a situação exigia, inspirando, com êxito, o Príncipe regente nos seus
delicados encargos de governo.
Todavia, se a ação desses abnegados condutores do povo se fazia sentir desde Minas
Gerais até o Rio Grande do Sul, o predomínio dos portugueses, desde a Bahia até o
Amazonas, representava sério obstáculo ao incremento e consolidação do ideal
emancipacionista. O governo resolve contratar os serviços das tropas mercenárias de
Lorde Cochrane,132 o cavaleiro andante da liberdade da América Latina. Muitas lutas se
travam nas costas baianas, e verdadeiros sacrifícios se impõem os mensageiros de
Ismael, que se multiplicam em todos os setores com o objetivo de conciliar seus irmãos
encarnados, dentro da harmonia e da paz, sempre com a finalidade de preservar a
unidade territorial do Brasil, para que se não fragmentasse o coração geográfico do
mundo.
Dali, do âmbito silencioso daquelas paredes respeitáveis, saiu uma vibração nova de
fraternidade e de amor.
Eis por que o 7 de setembro, com escassos comentários da história oficial, que
considerava a independência já realizada nas proclamações de 1 de agosto de 1822,
o
passou à memória da nacionalidade inteira como o Dia da Pátria e data inolvidável da
sua liberdade.
―Sente-se o teu coração com a necessária fortaleza para cumprir uma grande missão
na Pátria do Evangelho?‖
— Pois bem — redarguiu Jesus com grande piedade —, essa missão, se for bem
cumprida por ti, constituirá a tua última romagem pelo planeta escuro da dor e do
esquecimento. A tua tarefa será daquelas que requerem o máximo de renúncias e
devotamentos. Serás imperador do Brasil, até que ele atinja a sua perfeita maioridade,
como nação. Concentrarás o poder e a autoridade para beneficiar a todos os seus filhos.
Não é preciso encarecer aos teus olhos a delicadeza e sublimidade desse mandato,
porque os reis terrestres, quando bem compenetrados das suas elevadas obrigações
diante das leis divinas, sentem nas suas coroas efêmeras um peso maior que o das
algemas dos forçados. A autoridade, como a riqueza, é um patrimônio terrível para os
espíritos inconscientes dos seus grandes deveres. Dos teus esforços se exigirá mais de
meio século de lutas e dedicações permanentes. Inspirarei as tuas atividades, mas
considera sempre a responsabilidade que permanecerá nas tuas mãos. Ampara os fracos
e os desvalidos, corrige as leis despóticas e inaugura um novo período de progresso
moral para o povo das terras do Cruzeiro. Institui, por toda parte, o regime do respeito e
da paz, no continente, e lembra-te da prudência e da fraternidade que deverá manter o
país nas suas relações com as nacionalidades vizinhas. Nas lutas internacionais, guarda a
tua espada na bainha e espera o pronunciamento da minha justiça, que surgirá sempre,
no momento oportuno. Fisicamente consideradas, todas as nações constituem o
patrimônio comum da Humanidade e, se algum dia for o Brasil menosprezado, saberei
providenciar para que sejam devidamente restabelecidos os princípios da justiça e da
fraternidade universal. Procura aliviar os padecimentos daqueles que sofrem nos
martírios do cativeiro, cuja abolição se verificará nos últimos tempos do teu reinado.
Tuas lides terminarão ao fim deste século, e não deves esperar a gratidão dos teus
contemporâneos; ao fim delas, serás alijado da tua posição por aqueles mesmos a quem
proporcionares os elementos de cultura e liberdade. As mãos aduladoras, que buscarem
a proteção das tuas, voltarão aos teus palácios transitórios para assinar o decreto da tua
expulsão do solo abençoado, onde semearás o respeito e a honra, o amor e o dever, com
as lágrimas redentoras dos teus sacrifícios. Contudo, amparar-te-ei o coração nos
angustiosos transes do teu último resgate, no planeta das sombras. Nos dias da
amargura final, minha luz descerá sobre os teus cabelos brancos, santificando a tua
morte. Conserva as tuas esperanças na minha misericórdia, porque, se observares as
minhas recomendações, não cairá uma gota de sangue no instante amargo em que
experimentares o teu coração igualmente trespassado pelo gládio da ingratidão. A
posteridade, porém, saberá descobrir as marcas dos teus passos na Terra, para se firmar
no roteiro da paz e da missão evangélica do Brasil.
Ele nasceria no ramo enfermo da família dos Braganças; mas todas as enfermidades
têm na alma as suas raízes profundas. Se muitas vezes parece permanecer a herança
psicológica, é que o sagrado instituto da família, dentro da lei das afinidades,
frequentemente se perpetua no infinito do tempo. Os antepassados e seus descendentes,
espiritualmente considerados, são, às vezes, as mesmas figuras sob nomes vários, na
árvore genealógica, obedecendo aos sábios dispositivos da lei de reencarnação. Foi assim
que Longinus preparou a sua volta à Terra, depois de outras existências tecidas de
abnegações edificantes em favor da Humanidade, e, no dia 2 de dezembro de 1825, no
Rio de Janeiro, nascia de D. Leopoldina, a virtuosa esposa de D. Pedro, aquele que seria,
no Brasil, o grande imperador e que, na expressão dos seus próprios adversários, seria o
maior de todos os republicanos de sua pátria.
21
Fim do Primeiro Reinado
Um dos traços característicos do povo brasileiro é o seu profundo amor à liberdade.
A largueza da terra e o infinito dos horizontes dilataram os sentimentos de emancipação
em todas as almas chamadas a viver sob a luz do Cruzeiro. Desde que se esboçaram os
primeiros movimentos nativistas, a mentalidade geral do Brasil obedeceu a esse nobre
imperativo de independência e, ainda hoje, todas as ações revolucionárias que se
verificam no país, lamentavelmente embora, trazem no fundo esse anseio de liberdade
como o seu móvel essencial.
Se bem ignorasse o que vinha a ser uma constituição boa e justa, o povo a
reclamava, dentro do seu conhecimento intuitivo, acerca da transformação dos tempos.
O imperador, apesar das suas paixões tumultuárias e das suas fraquezas como
homem, possuía notável acuidade, se tratando de psicologia política. Os estudiosos, que
viram na sua personalidade somente o amoroso insaciável, muitas vezes não lhe
reconhecem o espírito empreendedor na direção das coisas públicas, inaugurando a era
constitucional do Brasil e Portugal, com as suas valorosas iniciativas. São de lamentar os
seus transviamentos amorosos e a tragédia da sua vida conjugal, quando a seu lado tinha
uma nobre mulher, cujas renúncias e dedicações se elevavam ao heroísmo supremo;
mas, nos instantes em que seu coração se tocava das ideias generosas, criando-lhe no
íntimo um estado receptivo propício às inspirações do mundo invisível, as falanges de
Ismael aproveitavam o minuto psicológico para auxiliá-lo na tarefa de consolidação da
liberdade da Pátria do Evangelho. Foi assim que muitos decretos saíram de suas mãos,
objetivando, inegavelmente, a tranquilidade geral.
N.E.: Luís Alves de Lima e Silva (1803–1880) – Duque de Caxias; um dos mais importantes
134
Depois da meia-noite, preferiu ficar só, na quietude do seu gabinete. Ali, atentou no
patrimônio das suas experiências. Através do silêncio e da sombra, a voz de seu pai, já na
vida livre dos espaços, lhe falava brandamente ao coração. Os mensageiros de Ismael
auxiliam-lhe o cérebro esgotado na solução do grande problema e, às duas horas da
madrugada de 7 de abril de 1831, sem ouvir sequer os seus ministros e conselheiros,
abdicava na pessoa do filho, D. Pedro de Alcântara, que contava então cinco anos, e
ficaria sob a esclarecida tutela de José Bonifácio.
Antes dessa época, quando prestes a findar o Primeiro Reinado, Ismael reúne no
Espaço os seus dedicados companheiros de luta e, organizada a venerável assembleia, o
grande mensageiro do Senhor esclarece a todos sobre os seus elevados objetivos.
— Irmãos — expôs ele —, o século atual, como sabeis, vai ser assinalado pelo
advento do Consolador à face da Terra. Nestes cem anos se efetuarão os grandes
movimentos preparatórios dos outros cem anos que hão de vir. As rajadas de morticínio
e de dor avassalarão a alma da Humanidade, no século próximo, dentro dos imperativos
das transições necessárias, que serão o sinal do fim da civilização precária do Ocidente.
Faz-se mister amparemos o coração atormentado dos homens nessas grandes
amarguras, preparando-lhes o caminho da purificação espiritual, através das sendas
penosas. É preciso, pois, preparemos o terreno para a sua estabilidade moral nesses
instantes decisivos dos seus destinos. Numerosas fileiras de missionários encontram-se
disseminadas entre as nações da Terra, com o fim de levantar a palavra da Boa Nova do
Senhor, esclarecendo os postulados científicos que surgirão neste século, nos círculos da
cultura terrestre. Uma verdadeira renascença das filosofias e das ciências se verificará no
transcurso destes anos, a fim de que o século XX seja devidamente esclarecido, como
elemento de ligação entre a civilização em vias de desaparecer e a civilização do futuro,
que assentará na fraternidade e na justiça, porque a morte do mundo, prevista na Lei e
nos profetas, não se verificará por enquanto, com referência à constituição física do
globo, mas quanto às suas expressões morais, sociais e políticas. A civilização armada
terá de perecer para que os homens se amem como irmãos. Concentraremos, agora, os
nossos esforços na Terra do Evangelho, para que possamos plantar no coração de seus
filhos as sementes benditas que, mais tarde, frutificarão no solo abençoado do Cruzeiro.
Se as verdades novas devem surgir primeiramente, segundo os imperativos da Lei
natural, nos centros culturais do Velho Mundo, é na Pátria do Evangelho que lhes vamos
dar vida, aplicando-as na edificação dos monumentos triunfais do Salvador. Alguns dos
nossos auxiliares já se encontram na Terra, esperando o toque de reunir de nossas
N.E.: Cristiano Frederico Samuel Hahnemann (1755–1843) foi um médico alemão, fundador da
141
homeopatia.
falanges de trabalhadores devotados, sob a direção compassiva e misericordiosa do
divino Mestre.
— Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos trabalhadores de boa vontade!
142N.E.: Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti (1831–1900) foi um médico, militar, escritor, jornalista
e político brasileiro.
23
A obra de Ismael
O grande movimento preparatório do Espiritismo em todo o mundo tinha, no Brasil,
a sua repercussão, como era natural.
Por volta de 1840, ao influxo das falanges de Ismael, chegavam dois médicos
humanitários ao Brasil. Eram Bento Mure 143 e Vicente Martins, 144 que fariam da
Medicina homeopática verdadeiro apostolado. Muito antes da Codificação kardequiana,
conheciam ambos os transes mediúnicos e o elevado alcance da aplicação do
magnetismo espiritual. Introduziram vários serviços de beneficência no Brasil e traziam
por lema, dentro da sua maravilhosa intuição, a mesma inscrição divina da bandeira de
Ismael — ―Deus, Cristo e Caridade‖. Indescritível foi o devotamento de ambos à
coletividade brasileira, à qual se haviam incorporado, sob os altos desígnios do mundo
espiritual.
Nas suas luminosas pegadas, seguiram, mais tarde, outros pioneiros da Homeopatia
e do Espiritismo, na Pátria do Evangelho. Foram eles, os médicos homeopatas, que
iniciaram aqui os passes magnéticos, como imediato auxílio das curas. Hahnemann
conhecia a fonte infinita de recursos do magnetismo espiritual e recomendava esses
processos psicoterápicos aos seus seguidores.
N.E.: Benoît Jules Mure (1809–1858) é considerado um dos introdutores e grande incentivador da
143
homeopatia no Brasil.
145N.E.: refere-se aos fenômenos mediúnicos ocorridos na casa das irmãs Fox, situada em Hydesville,
vilarejo próximo da cidade de Rochester.
publicações espiritistas. Em 1865, o Dr. Luís Olímpio Teles de Menezes, 146 com alguns
colegas, replicava pelo Diário da Bahia a um artigo algo irônico de um cientista francês,
desfavorável ao Espiritismo, publicado na Gazette Médicale e transcrito no jornal
referido. As publicações brasileiras não passaram despercebidas ao próprio Allan
Kardec, que delas teve conhecimento, com a mais justa satisfação íntima.
146N.E.: (1825–1893) foi um jornalista brasileiro; considerado como um dos pioneiros do Espiritismo
no país.
147N.E.: sentença de maldição que expulsa da Igreja; excomunhão; reprovação enérgica; condenação,
repreensão, maldição, execração.
os escaninhos da sua personalidade espiritual, e os seres das trevas, se não conseguiram
vencer totalmente os trabalhadores, conseguiram desuni-los no plano dos seus serviços à
grande causa. O ―Grupo Confúcio‖ teve uma existência de três anos rápidos.
Elias bate, então, à porta generosa do mestre venerável, o que não era preciso,
porque seu grande coração já se encontrava a postos, no sagrado serviço da seara de
Jesus, na face da Terra.
148N.E.: Francisco Leite de Bittencourt Sampaio (1834–1895) foi um advogado, poeta, jornalista,
político brasileiro.
149N.E.: (1829–1903) foi um escritor, jornalista, pregador, dedicado à assistência aos necessitados,
além de destemido propagador da Doutrina Espírita.
150N.E.: (1848–1903) foi um fotógrafo português radicado no Rio de Janeiro, pioneiro do Espiritismo
no Brasil.
Bezerra de Menezes traz consigo a palma da harmonia, serenando todos os conflitos.
Estabelece a prudência e a discrição entre os temperamentos mais veementes e
combativos.
Essa regência interina, com imensos sacrifícios, iniciou o seu trabalho de pacificação
na Bahia, em Minas e em Pernambuco, onde inúmeros portugueses eram assassinados,
sob o pretexto de antigas desforras dos movimentos nativistas. Os distúrbios militares
proliferavam em toda parte, exigindo a mais alta cota de sacrifícios e dedicações dos
verdadeiros patriotas.
Não obstante a sua condição de adolescente, D. Pedro II, assistido pelas numerosas
legiões do bem, que o rodeavam no plano invisível, tomava o cetro e a coroa consciente
da responsabilidade gravíssima que lhe pesava sobre os ombros.
Depois dos esgotamentos a que o país inteiro fora conduzido pela ação corrosiva dos
processos revolucionários, o Brasil ia regenerar suas forças orgânicas dentro de um largo
período de paz, no qual as falanges esclarecidas de Ismael, inspirando a generosa
autoridade do imperador, argamassariam as bases do pensamento republicano, sobre as
ideias de fraternidade e liberdade, a caminho das grandes realizações do porvir.
25
A Guerra do Paraguai
O Segundo Reinado, depois das angustiosas expectativas do período revolucionário,
atravessava uma época de paz, em que se consolidavam as suas conquistas no terreno da
ordem e da liberdade.
154N.E.: episódio numa longa disputa entre Argentina e Brasil pela influência no Uruguai e hegemonia
na região do Rio da Prata.
155 N.E.: Justo José Urquiza (1801–1870) foi um militar e político argentino.
156 N.E.: província da Argentina.
N.E.: também chamada de Batalha de Caseros, foi uma das batalhas da Guerra contra Oribe e
157
Rosas (1851-1852).
— Pedro, guarda a tua espada na bainha, pois quem com ferro fere com ferro será
ferido. A tua indecisão e a tua incerteza lançaram a Pátria do Evangelho numa sinistra
aventura. As nações, como os indivíduos, têm a sua missão determinada e não é justo
sejam coagidas no terreno das suas liberdades. O lamentável precedente da invasão
efetuada pelo Brasil no Uruguai terá dolorosa repercussão para a sua vida política. Não
descanses sobre os louros da vitória, porque o céu está cheio de nuvens e deves fortificar
o coração para as tempestades amargas que hão de vir. Auxiliarei a tua ação, através dos
mensageiros de Ismael, que se conservam vigilantes no desenvolvimento dos trabalhos
sob a tua responsabilidade no país do Cruzeiro; mas que as tristes provações gerais, em
perspectiva, sejam guardadas como lição inesquecível e como roteiro de experiência
proveitosa para as tuas atividades no trono.
D. Pedro II, depois daquele sono curto, na intimidade do oratório, sono preparado
pelas forças invisíveis que o rodeavam, recolheu-se ao leito, cheio de angústia e de
ansiosa expectativa.
Nesse dia inesquecível, toda uma onda de claridades compassivas descia dos céus
sobre as vastidões do norte e do sul da Pátria do Evangelho. Ao Rio de Janeiro afluem
multidões de seres invisíveis, que se associam às grandiosas solenidades da Abolição.
Junto do espírito magnânimo da princesa, permanece Ismael com a bênção da sua
generosa e tocante alegria. Foi por isso que Patrocínio, intuitivamente, no arrebatamento
do seu júbilo, se arrastou de joelhos até aos pés da princesa piedosa e cristã. Por toda
parte, espalharam-se alegrias contagiosas e comunicativas esperanças. O marco divino
da liberdade dos cativos erguia-se na estrada da civilização brasileira, sem a maré
incendiária da metralha e do sangue.
Por essa razão os anos de 1888 e 1889 assinalaram os derradeiros tempos do único
império das plagas americanas. Por toda parte e em todos os ambientes civis e militares
acendiam-se os fachos do idealismo republicano, sob o pálio da generosidade da Coroa.
―Consolidareis o templo de Ismael, para que do seu núcleo possam expandir-se, por
toda a extensão territorial da pátria brasileira, as claridades consoladoras da minha
doutrina de redenção, de piedade e de misericórdia. Ensinareis aos meus novos
discípulos encarnados a paciência e a serenidade, a humildade e o amor, a paz e a
resignação, para que a luta seja vencida pela luz e pela verdade. Abrireis para a caravana
do Evangelho, que marcha ao longo dos caminhos da sombra, a estrada da revolução
interior, cujo objetivo único é a reforma de cada um, sob o fardo das provas, sem o
recurso à indisciplina perante as leis estatuídas no mundo e sem o auxílio das armas
homicidas.
―A Nova Revelação não é dada para que se opere a conversão compulsória de César
às coisas de Deus, mas para que César esclareça o seu próprio coração, edificando-se no
exemplo dos seus subordinados e tornando divina a sua imperfeita obra terrestre.
Conduzireis, portanto, aos meus discípulos encarnados o estandarte da fé e da caridade,
com o programa da renúncia e do desprendimento dos bens humanos, dentro dos
sagrados imperativos da sua grandiosa missão.
―No capítulo das instituições humanas, os esforços que despendemos até agora estão
mais ou menos encerrados; compete-nos, todavia, em todos os dias do porvir, conservar
e desenvolver a ‗melhor parte‘, espiritualizando essas mesmas instituições, dentro das
grandes finalidades de todos os labores das esferas elevadas do plano espiritual.
O grande imperador recebe a notícia com amarga surpresa. Deodoro, que era íntimo
do seu coração e da sua casa, voltava-se agora contra as suas mãos generosas e paternais.
Todos os ambientes monárquicos pesam esse ato de ingratidão clamorosa, mas a
verdade é que todos os republicanos eram amigos íntimos de D. Pedro; quem não lhe
devia, no Brasil, o patrimônio de cultura e liberdade?
O nobre monarca repeliu todas as sugestões que lhe eram oferecidas pelos Espíritos
apaixonados da Coroa, no sentido da reação.
Confortado pelas luzes do Alto, que o não abandonaram em toda a vida, D. Pedro II
não permitiu que se derramasse uma gota de sangue brasileiro, no imprevisto
acontecimento. Preparou, rapidamente, sua retirada com a família imperial para a
Europa, obedecendo às imposições dos revolucionários e, com lágrimas nos olhos, rejeita
as elevadas somas de dinheiro que o Tesouro Nacional lhe oferece, para aceitar somente
um travesseiro de terra do Brasil, a fim de que o amor da Pátria do Cruzeiro lhe
santificasse a morte, no seu exílio de saudade e pranto.
Jesus, porém, consoante à sua promessa, lhe santificaria os cabelos brancos. Uma
tranquila paciência caracterizou o seu inenarrável martírio moral.
164 N.E.: Benjamin Henri Constant de Rebecque (1767–1830) foi um político e escritor francês.
165N.E.: Quintino Antônio Ferreira de Sousa Bocaiúva (1836–1912) foi um escritor, jornalista e
político brasileiro.
166 N.E.: José Lopes da Silva Trovão (1848–1925) foi um médico, jornalista e político brasileiro.
167 N.E.: Inocêncio Serzedelo Correia (1858–1932) foi um político e economista brasileiro.
168 N.E.: Rui Barbosa de Oliveira (1849–1923) foi um jurista, político e diplomata brasileiro.
169 N.E.: Manuel Deodoro da Fonseca (1827–1892) foi um marechal e político brasileiro.
O grande imperador retirou-se do Brasil deixando, não um império perecível e
transitório do mundo, mas uma família ilimitada, que hoje atinge a soma de quase
cinquenta milhões de almas.
Visitado pelo visconde de Ouro Preto,170 no mesmo dia em que este chegava à capital
portuguesa, o imperador lhe declara com serena humildade:
No Brasil, iam ser continuadas as suas tradições de amor e de liberdade, pelas forças
militares, que, a seu turno, as entregariam aos grandes presidentes paulistas.
Nunca a sua figura de chefe da família brasileira foi esquecida no altar das
lembranças da Pátria do Evangelho, e não foi só o Brasil quem lhe reconheceu a
inesquecível superioridade espiritual.
— Senhor cônsul-geral do Brasil, peça a Deus que a sua pátria, que foi governada
durante meio século por um sábio, não seja doravante levada pelo tacão do primeiro
ditador que se lhe apresente.
brasileiro.
N.E.: do latim exequatur, significa autorização concedida a um cônsul estrangeiro para este exercer
172
Atendendo aos seus rogos reiterados, a palavra do Mestre se faz ouvir, esclarecendo
o seu emissário dileto:
N.E.: periódico matutino publicado no Rio de Janeiro, entre o último quartel do século XIX e a
177
Revolução de 1930.
deverá ser a âncora da tua obra, ligada para sempre ao fundo dos corações, no mar
imenso das instabilidades humanas. A caridade valerá mais que todas as ciências e
filosofias, no transcurso das eras, e será com ela que conseguirás consolidar a tua casa e
a tua obra.
As energias dissolventes das trevas do mundo invisível lutaram contra ele e contra o
Evangelho. Forças terríveis de separatividade pesaram sobre os seus esforços no ano de
1893, quando o próprio Bezerra, incansável e abnegado missionário, foi obrigado a
paralisar os seus escritos nas páginas de O Paiz, depois de quase sete anos de
doutrinação ininterrupta e brilhante, num apelo a Jesus, com as mais comovedoras
lágrimas da sua crença e do seu sacrifício.
Bezerra desprendeu-se do orbe, tendo consolidado a sua missão para que a obra de
Ismael pudesse ser livremente cultivada no século XX. E essa obra prossegue sempre.
Podem as inquietações da Terra separar, muitas vezes, os trabalhadores humanos no seu
terreno de ação, mas a sociedade benemérita, onde se ergue a flâmula luminosa — ―Deus,
Cristo e Caridade‖ — permanece no seu porto de paz e de esclarecimento. A sua
organização federativa é o programa ideal da Doutrina no Brasil, quando chegar a ser
integralmente compreendido por todas as agremiações de estudos evangélicos no país.
Jesus, com as suas mãos meigas e misericordiosas, fez reviver, no país abençoado
dos seus ensinamentos, as curas maravilhosas dos tempos apostólicos.
A obra de Ismael prossegue em sua marcha por dentro de todos os centros de estudo
e de cultura do país. Todavia, temos de considerar que um trabalho dessa natureza, pelo
seu caráter grandioso e sublime, não poderia desenvolver-se sem os ataques
inconscientes das forças reacionárias do próprio mundo invisível, e, como a Terra não é
um paraíso e nem os homens são anjos, as entidades perturbadoras se aproveitam dos
elementos mais acessíveis da natureza humana para fomentar a discórdia, o demasiado
individualismo, a vaidade e a ambição, desunindo as fileiras que, acima de tudo,
deveriam manter-se coesas para a grande tarefa da educação dos Espíritos, dentro do
amor e da humildade. A essas forças, que tentam a dissolução dos melhores esforços de
Ismael e de suas valorosas falanges do Infinito, deve-se o fenômeno das excessivas
edificações particularistas do Espiritismo no Brasil, particularismos que descentralizam
o grande labor da evangelização. Mas, examinando semelhante anomalia, somos
forçados a reconhecer que Ismael vence sempre. Construídas essas obras, que se
levantam com pronunciado sabor pessoal, o grande mensageiro do divino Mestre as
assinala imediatamente com o selo divino da caridade, que, de fato, é o estandarte
maravilhoso a reunir todos os ambientes do Espiritismo no país, até que todas as forças
da Doutrina, pela experiência própria e pela educação, possam constituir uma frente
única de espiritualidade, acima de todas as controvérsias.
É para essa grande obra de unificação que todos os emissários cooperam no plano
espiritual, objetivando a vitória de Ismael nos corações. E os discípulos encarnados bem
poderiam atenuar o vigor das dissensões esterilizadoras, para se unirem na tarefa
impessoal e comum, apressando a marcha redentora. Nas suas fileiras respeitáveis, só a
desunião é o grande inimigo, porque, com referência ao Catolicismo, os padres romanos,
com exceção dos padres cristãos, se conservam onde sempre estiveram, isto é, no
banquete dos poderes temporais, incensando os príncipes do mundo e tentando
inutilizar a verdadeira obra cristã. Os espiritistas bem sabem que se eles constituem
sérios empecilhos à marcha da luz, todos os obstáculos serão, um dia, removidos para
sempre do caminho ascensional do progresso. Além disso, temos de considerar que a
Igreja Católica se desviou da sua obra de salvação, por um determinismo histórico que a
compeliu a colaborar com a política do mundo, em cujas teias perigosas a sua Instituição
ficou encarcerada e que, examinada a situação, não é possível desmontar-se a sua
máquina de um dia para outro. Sabemos, porém, que a sua fase de renovação não está
muito distante. Nas suas catedrais confortáveis e solitárias e nos seus conventos
sombrios, novos inspirados da Úmbria179 virão fundar os refúgios amenos da piedade
cristã.
Dentro, pois, do Brasil, a grande obra de Ismael tem a sua função relevante no
organismo social da Pátria do Cruzeiro, vivificando a seara da educação espiritual. E não
tenhamos dúvida. Superior às funções dos transitórios organismos políticos, é essa obra
Outros, por certo, consultando as razões dos fatos relacionados no tempo, poderão
apresentar trabalho mais pormenorizado e melhor, no domínio dos estudos
transcendentes do psicólogo e do historiador, onde se emaranham as causas profundas
dos menores acontecimentos, englobando as atividades de quantos, ainda encarnados, se
encontram em evidência no país e são suscetíveis de apresentar, de futuro, mais amplos
esclarecimentos.
Nosso objetivo, trazendo alguns apontamentos à história espiritual do Brasil, foi tão
somente encarecer a excelência da sua missão no planeta, demonstrando,
simultaneamente, que cada nação, como cada indivíduo, tem sua tarefa a desempenhar
no concerto dos povos. Todas elas têm seus ascendentes no mundo invisível, de onde
recebem a seiva espiritual necessária à sua formação e conservação. E um dos fins
principais do nosso escorço foi examinar, aos olhos de todos, a necessidade da educação
pessoal e coletiva, no desdobramento de todos os trabalhos do país. Porque a realidade é
que o Brasil, na sua situação especialíssima e com o seu patrimônio imenso de riquezas,
não poderá insular-se do resto do mundo ou acastelar-se na sua posição de Pátria do
Evangelho, embora a época seja de autarquias detestáveis, neste período de decadência e
transição de todos os sistemas sociais.
O maior problema é o da educação nacional, para que os filhos das outras terras,
necessários e indispensáveis ao progresso econômico da nação, não se sintam dispostos a
reviver, no Brasil, as taras de suas antigas organizações, e sim absorvidos no círculo
Nesta época de confusão e amargura, quando, com as mais justas razões, se tem, por
toda parte, a triste organização do homem econômico da filosofia marxista, que vem
destruir todo o patrimônio de tradições dos que lutaram e sofreram no pretérito da
Humanidade, as medidas de repressão e de segurança devem ser tomadas a bem das
coletividades e das instituições, a fim de que uma onda inconsciente de destruição e
morticínio não elimine o altar de esperanças da pátria. Que o capitalismo, visando à
própria tranquilidade coletiva, seja chamado pelas administrações ao debate, a
incentivar com os seus largos recursos a campanha do livro, do saneamento e do
trabalho, em favor da concórdia universal.
Todas as fórmulas humanas, dentro das concepções que exprimam, por mais
alevantadas que se afigurem, são perecíveis e transitórias. A política sofrerá, no curso
dos séculos, as alternativas do direito da força e da força do direito, até que o planeta
possa atingir relativa perfeição social, com a cultura generalizada. A Ciência, como a
Filosofia e as escolas sectárias, viverá entre dúvidas e vacilações, assentando seus feitos
na areia instável das convenções humanas. Só o legítimo ideal cristão, reconhecendo que
o Reino de Deus ainda não é deste mundo, poderá, com a sua esperança e o seu exemplo,
espiritualizar o ser humano, espalhando com os seus labores e sacrifícios as sementes
produtivas na construção da sociedade do futuro.
Que as falanges de Ismael possam, aliadas a quantos se desvelam pela sua obra
divina, reunir o material disperso e que a Pátria do Evangelho mais ascenda e avulte no
concerto dos povos, irradiando a paz e a fraternidade que alicerçam, indestrutivelmente,
todas as tradições e todas as glórias do Brasil.
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