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Resumo: Este ensaio faz uma aproximação entre as teorias de Wittgenstein e Schoenberg sob o paradigma
de uma dupla virada epistemológica: (i) a análise como um esclarecimento gramatical de uma linguagem
determinada, abandonando a busca de uma essência ou de um isomorfismo entre conceitos e fatos do
mundo e (ii) a construção do sentido não mais como função das condições de verdade, mas como uma
função do método de verificação e resultado relacional dos jogos de linguagem.
Palavras-chave: harmonia, sentido, discurso, jogos de linguagem.
Abstract: This essay seeks an approximation between the Wittgenstein and Schoenberg theories under the
paradigm of a double epistemological turn. They both consider the analysis as a grammatical clarification
of a particular language, abandoning the search for an essence or an isomorphism between concepts and
facts of the world. They also adopt the meaning construction no more as a function of the true conditions,
but as a function of the verification method and a result of language games.
Keywords: harmony, meaning, speech, language games.
Abertura apaixonada
Talvez a primeira grande aproximação que se possa fazer entre Wittgenstein e
Schoenberg – pensadores da forma, da lógica e da música – seja a surpresa que
ambos guardam como um verdadeiro regalo aos leitores que os acompanharem até
os capítulos finais de seus respectivos tratados, de lógica e de harmonia.
Depois de longas análises, formalizações e interpretações, os autores propõem que
se ponha de lado o que se teorizou até aquele momento para tentar ir além do que
já fora dito. Mais ainda: deixam no ar a ideia de que talvez o mais importante ainda
não tenha sido dito!
No final do Tractatus, Wittgensteinaponta a necessidade de sobrepujar as proposi-
ções “através delas – por elas – para além delas” (WITTGENSTEIN, 1993, § 6.54),
desenvolvendo em suas investigações posteriores a ideia de que o sentido não é dado
pelas condições de verdade, como se dissera antes.
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Nas últimas linhas do Tratado, Schoenberg (2001) afirma que “[...] a capacidade das
dissonâncias em formarem complexos sonoros não depende de suas possibilidades
ou necessidades de resolução”; Schoenberg emenda ainda uma frase enigmática: “[...]
por que isto é assim e por que é certo, é algo que, de momento e detalhadamente, eu
ainda não seria capaz de dizer” (SCHOENBERG, 2001, p. 577).
Para quem acompanhou as intrincadas e fenomenais descrições de sequências
harmônicas e interpretação dos usos das dissonâncias e acordes superpostos ou
invertidos que Schoenberg faz nos capítulos anteriores, essas observações do com-
positor podem soar muito próximas da sugestão que Wittgenstein (1993, § 6.54)
faz, no final de seu Tractatus, de jogar a escada fora depois de ter subido por ela, para
ver o mundo corretamente.
Este ensaio aproxima as teorias de Wittgenstein e Schoenberg nesse ponto que se
está interpretando como uma virada epistemológica: onde o sentido deixa de ser
considerado uma função das possibilidades ou necessidades ou das condições de verdade
para ser uma função do método de verificação de uma interpretação. E a análise
deixa de ter por meta a busca do elemento simples ou essencial, para dedicar-se ao
esclarecimento gramatical.
Construção de sentido
Wittgenstein (1889-1951) pertenceu à tradição conhecida como logicista, juntamente
com Frege1 e Russel. Tal tradição buscou, em linhas gerais, estabelecer as condições
segundo as quais a linguagem pode representar o mundo e como se pode analisar o
processo de produção do sentido. O objetivo de tais autores era o estabelecimento de
uma forma lógica que fosse subjacente à linguagem cotidiana, a partir da definição
de cálculos que determinam os valores de verdade de toda proposição.
Schoenberg (1874-1951) foi um compositor e pensador da música e da forma (Cf.
SOULEZ, 2007) que formalizou, em um dos mais importantes tratados de Harmonia
da história da música, o sistema tonal, levando-o durante o decorrer da obra, aos seus
limites (SCHOENBERG, 2001). Alguns anos depois seria responsável por propor o sis-
tema Dodecafônico, que tinha a pretensão de romper dramaticamente com a gramática da
tonalidade. Suas discussões caminharam para a filosofia da música e análise do discurso.
Os dois realizam, cada um em seu campo – linguagem e música – uma obstinada
busca de explicação para determinados fenômenos na construção do sentido e da
compreensão das proposições assertivas, no caso do lógico, ou temáticas e formais,
no caso do compositor. Mais ainda, buscam uma possível ligação entre esses sentidos
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2 Malgrado não seja o foco do presente trabalho remeto o leitor à obra sobre a necessidade do sujeito
transcendental no Tractatus (CUTER, 2006). Argumentos análogos podem ser estendidos ao Tratado, de
Schoenberg. Tarefa que ainda não foi realizada e fica por fazer.
3 Utilizaremos, de forma analógica, falar, discurso, tema e outros termos indistintamente para a lingua-
gem ou a música. Pedimos ao leitor a caridade de transpor os limites dos termos, penetrando nesse ora
proposto jogo de linguagem.
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Nomes e figuração
Wittgenstein, em sua primeira fase, isto é, quando da publicação do Tractatus (1921),
tinha por principal preocupação e estratégia a formalização de uma linguagem capaz
de eliminar todos os erros, imprecisões e ambiguidades da linguagem comum, respon-
sáveis pelas confusões de que a filosofia está repleta. Sob esse aspecto, manteve-se
concordante com a linha logicista:
Para evitar esses equívocos, devemos empregar uma notação que os exclua,
não empregando o mesmo sinal em símbolos diferentes e não empregando
superficialmente da mesma maneira sinais que designem de maneiras
diferentes. Uma notação, portanto, que obedeça à gramática lógica – à
sintaxe lógica. (A ideografia de Frege e Russell é uma tal notação, que não
chega, todavia, a excluir todos os erros.) (WITTGENSTEIN, 1993, § 3.325).
Além disso, deveria ser possível estabelecer uma análise até o mais elementar dos
componentes da linguagem, seus átomos por assim dizer. E no ponto final dessa
análise estariam os nomes, um sinal primitivo:
Para Wittgenstein, no Tractatus, a linguagem poderia ser analisada até seus elemen-
tos constitutivos mais simples: os nomes. A linguagem compõe-se da totalidade das
proposições, estas compostas de proposições mais simples que, por sua vez, são
combinações de nomes, o elemento último da análise. Os nomes combinam-se entre
si formando as proposições; e os objetos combinam-se entre si formando os estados
de coisas. As proposições e os estados de coisas se correspondem estrita e mutuamente
de forma que as primeiras figurem os segundos. O que garante o significado no pro-
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A série harmônica
Schoenberg, por sua vez, faz uso de uma recorrente analogia ontológica: a teoria
da série harmônica como tendo uma correspondência estrita com a teoria da sub-
divisão das cordas. Porém, já parecia estar atento para questões que envolveriam
alguns aspectos muito semelhantes às preocupações filosóficas de Wittgenstein,
destacando-se, em grandes linhas evitar o essencialismo e o naturalismo nas inter-
pretações da teoria musical.
Muito do que se tem tido por estética – ou seja, por fundamento neces-
sário do belo –, não está sempre alicerçado na essência das coisas. É a
imperfeição de nossos sentidos o que nos obriga a compromissos graças
aos quais alcançamos uma ordem. Porque a ordem não vem exigida pelo
objeto, mas pelo sujeito. (SCHOENBERG, 2001, p. 72).
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que não eram consideradas “corretas” e mesmo “legais” pelas regras oficiais
de harmonia (SCHOENBERG, 2001, p. 45).
Tais regras seriam fundadas, pelo menos nos dizeres dessa própria teoria, em fenôme-
nos naturais – a teoria da série harmônica – e permitem definir termos considerados
fundamentais para a teoria da música, principalmente a dicotomia básica da teoria das
resoluções ou soluções harmônicas: a diferenciação entre consonância e dissonância.
Pelo modelo da série harmônica, que remonta a Pitágoras, a sucessiva divisão da
extensão da corda quando se trata de instrumento de cordas (violino, piano, violão
etc.) ou do tubo de ar nos instrumentos de sopro (flauta, clarinete, tuba etc.) pode
ser organizada matematicamente segundo algumas proporções, particularmente
duas, que podem a partir de si, gerar todo o restante das notas utilizadas para a
formação das diversas escalas e modos:
(i) a divisão ou multiplicação binária da corda ou tubo representa uma oitava,
portanto uma definição de amplitude escalar: o limite de circularidade de
uma escala ou modo é o atingimento de sua oitava, sua mais próxima forma
parental de sonoridade.
(ii) A divisão ou multiplicação ternária da corda, através das proporções de
2/3 (dois terços), uma quinta acima produzindo uma relação intervalar de
quinta. Esse intervalo de quinta é contado a partir da escala diatônica: dó [1],
ré [2], mi [3], fá [4], sol [5], vale dizer que dó-sol por exemplo é um intervalo
de quinta.
A sucessão das quintas – o círculo das quintas – resulta na amostragem do
espectro sonoro que tem norteado as organizações de escalas e modos nas
formalizações da música por muitas e diferentes culturas, desde a antiguidade:
dó-sol-ré-lá-mi-si-fá#-dó#-sol#-ré#-lá#-fá-dó.
Evidentemente que a série das quintas percorre mais de uma oitava e que o
procedimento de organização dos modos ou escalas procede por redução das
notas a uma só oitava (através de divisões sucessivas de 1/2 da frequência
para obtenção da nota oitava abaixo).
Uma vez reduzidos a uma mesma oitava, obtém-se a escala cromática de doze notas,
base da teoria musical ocidental: dó-dó#-ré-ré#-mi-fá-fá#-sol-sol#-lá-lá#-si.
O isomorfismo entre o modelo harmônico de organização dos intervalos e o mundo
real da sonoridade das cordas e tubos, seria responsável por garantir as regras sin-
táticas da harmonização e condução de vozes, ou determinar o caráter bem-feito ou
não de uma obra. Dessa forma desenvolveu-se a teoria musical a partir da ideia de
que uma corda ou tubo ao vibrar, vibra ao mesmo tempo em toda a sua extensão e
nas proporções e intervalos ascendentes, ordenados pela divisão natural da corda,
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o que pode ser percebido pelo ouvido humano em parte como relações de altura e
em parte como reconhecimento dos timbres: a série harmônica.
Respeitada a subdivisão natural da corda ou tubo de ar, consonância e dissonância são
definidas segundo um modelo isomórfico: quanto mais próximas as notas estiverem
dentro do ordenamento da série harmônica da nota mais grave, mais consonantes
serão as relações entre elas; quanto mais distantes, mais dissonantes. Se tomarmos
as primeiras subdivisões e também as mais notáveis, poderemos ordenar da mais
para a menos consonante um intervalo, conforme a nota figure mais ou menos dis-
tante na série harmônica, segundo a teoria das subdivisões das cordas: oitava (1/2,
segundo harmônico da série), a quinta (1/3 da corda, terceiro harmônico), segunda
(proporção 1/11, o nono harmônico), trítono (ou quarta aumentada, subdivisão da
corda em 1/11, décimo primeiro harmônico) etc.
Considera-se que as primeiras notas que aparecem na série soam mais forte (oitava,
quinta, terça etc.) portanto são consoantes com o som fundamental e daí se deduz
que são intervalos consoantes também na combinação harmônica e na formação de
acordes. “[...] Uma vez que devo operar com esses conceitos, definirei consonância
como as relações mais próximas e simples com o som fundamental e dissonância
como as relações mais afastadas e complexas” (SCHOENBERG, 2001, p. 59).
Mas no caso da bipartição e contraposição entre consonâncias ou dissonâncias, parece
que o sistema apresentava muitas contradições na definição e uso desses termos. Mesmo
que se considere a questão da distância dos harmônicos dentro da série harmônica
como parâmetro, a relação entre consonância e a dissonância parece muito mais “uma
questão de graduação e não de essência”. Não existe uma antítese entre consonância
e dissonância, são apenas formas de organizar e interpretar o discurso musical.
Por outro lado, parecia ser extremamente arbitrário afirmar uma ontologia para a defi-
nição de escala diatônica: durante muito tempo a teoria foi aceita como representação
real do fenômeno natural, mas depois da sistematização do sistema temperado, isto
é, com divisões e subdivisões dos tons das notas segundo as médias matemáticas das
frequências e não segundo a teoria dos harmônicos, a arbitrariedade das nomeações
do que sejam os bemóis ou os sustenidos parecia vir à tona.
De fato, pela teoria da subdivisão das cordas, uma nota elevada em meio tom (sus-
tenido) e uma nota abaixada meio tom (bemol) tem tamanhos diferentes, pois são
gerados de forma diferente na teoria musical. Portanto dó# e réb não são a mesma nota.
Isso acaba sendo um grande inconveniente em instrumentos de teclado (piano, cravo etc.)
pois não seria possível comportar, na mesma partitura, a escrita em bemóis e sustenidos.
O sistema temperado arbitrariamente tira a média da frequência e iguala os intervalos de
meio tom acima (sustenido) ou abaixo (bemóis) o que resulta, na prática, em igualar, por
exemplo, dó# e reb (no caso do piano, a nota preta que fica entre notas brancas do e ré).
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Ao considerar que a teoria tinha que conviver com sistemas e técnicas arbitrárias
como essa do temperamento, Schoenberg aponta que o que se considera natural
nem sempre o é no sentido de uma estrita ontologia.
Hoje nos é muito cômodo afirmar: “os modos eclesiásticos não eram natu-
rais, mas os nossos modos coincidem com a natureza”. Também em seu
tempo acreditava-se que os modos eclesiásticos coincidiam com o natural.
Aliás, até que ponto são naturais os nossos modos maior e menor se são
um sistema temperado? E o que acontece com aquelas partes que não
coincidem com o natural? (SCHOENBERG, 2001, p. 71).
A figura da série harmônica cumpriria um papel muito similar ao octaedro das cores,
citado por Wittgenstein (2005): serve para dar uma visão do todo de uma represen-
tação [figuração] da gramática.
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É verdade que a explicação exata deve ser a meta de toda investigação, ainda
que, quase sempre, o que se obtenha seja uma interpretação equivocada.
Mas nem por isso deve-se permitir que se desvaneça o prazer pela procura
da interpretação correta; ao contrário, é preciso contentar-se com essa
satisfação, essa alegria, que talvez seja o único resultado positivo de todos
esses esforços (SCHOENBERG, 2001, p. 57).
Nomes e isomorfismo
Ambos – Wittgenstein e Schoenberg – parecem sugerir uma mesma estratégica:
caminhar para um questionamento do isomorfismo entre nomes e o mundo. Colo-
cam a teoria sob suspeita de um profundo dogmatismo que seria necessário para a
manutenção de sua própria coerência diante da exigência de um lastro ontológico. A
coerência ou consistência do sistema sempre poderá ser reconhecida, mas ao custo
de dados que teriam que ser arbitrariamente tomados a partir de posições ou pontos
de vista que não se mostravam necessários, mas contingentes e mesmo, no caso da
música, originados em habitualidade.
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Conjuntos estranhos
O Paradoxo de Russell, como ficou conhecido, é um dos capítulos mais dramáticos
da história da lógica, em particular envolvendo os logicistas.
Frege estava prestes a publicar Os fundamentos da aritmética (FREGE, 1983) e Russell
escreve-lhe uma carta, denunciando uma contradição em seu sistema, que induzia a
um paradoxo. Frege vai publicar a carta (em posfácio do próprio livro) e reconhecer
o erro publicamente, como grande cientista que era.
O problema é mostrado por Russell através da definição de um conjunto de um tipo
bastante original: conjuntos que não são membros (subconjuntos) de si mesmos. Por
exemplo, um conjunto de alcateias é uma alcateia, assim como o conjunto de todas
as ideias é uma ideia. Mas isso não vale, por exemplo, para os números: o conjunto
de todos os números não é um número. Nem para as notas musicais: o conjunto das
notas musicais não é uma nota musical.
Diante disso, Russell propõe que se imagine um conjunto composto por todos os
conjuntos desse segundo tipo, isto é, que não podem ser membros de si mesmos,
perguntando-se depois se este conjunto formado – o conjunto de todos os conjuntos
que não podem ser membro de si mesmos – pode ou não afinal ser membro de si mesmo.
Assim ele apresenta esse paradoxo em carta a Frege, datada de junho de 1902:
Em linguagem simbólica:
∀X(X∈X↔X∉X)
Isto é, se o conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmo for sub-
conjunto de si mesmo, então não deveria estar no conjunto dos conjuntos que não são
subconjuntos de si mesmo. No entanto, se não estiver listado como subconjunto de si
mesmo, deveria estar, pois satisfaz a propriedade do conjunto dos conjuntos que não
são subconjuntos de si mesmo.
4 “Harmoniefremde” tone (nota original do tradutor Marden Maluf) (SCHOENBERG, 2001, p. 435).
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Por isso, defendia Schoenberg, que não pode haver teoria musical, no sentido cons-
trutivo ou de uma explicação ontológica para as relações semânticas e de sentido,
mas apenas um sistema que descreva a gramática envolvida na construção da lin-
guagem em seu uso.
Sobre as essências e a natureza, não cabia negá-las ou afirma-las, mas apenas desen-
volver uma análise que nada mais fizesse do que aclarar as relações gramaticas entre
os vários componentes da linguagem: objetos, funções, relações etc.
“Mas não se deve pretender que resultados tão pobres sejam considerados
como leis eternas, como algo semelhante às leis naturais.
Repito: as leis naturais não conhecem exceções; as teorias da arte compõem-
-se, antes de tudo, de exceções.” (SCHOENBERG, 2001, p. 46).
Essa análise teria, segundo a interpretação que se defende neste ensaio, a caracterís-
tica de expor, isto é, tornar explícitos, os critérios de valoração que estariam em jogo,
explicitando o método de verificação, segundo a terminologia de Wittgenstein, pois
dada a diversidade que envolve a construção de sentido na música, ao invés de procurar
categorizar os objetos musicais, busca-se, antes, as maneiras com que são validados
ou valorados dentro de um discurso, através do esclarecimento gramatical.
Esclarecimento gramatical
As Observações Filosóficas (WITTGENSTEIN, 2005) começam com algumas afirmações
importantes, que aparentemente trazem uma guinada no pensamento do Tractatus:
“[...] uma proposição é analisada completamente em termos lógicos se sua gramática
é completamente esclarecida: não importa em que idioma possa estar escrita ou
expressa.” (WITTGENSTEIN, 1993, § 1).
Portanto a análise que se procede agora não conta com um ponto de chegada, qual
seja, o objeto, onde mirar: o nome. Sua análise é um esclarecimento gramatical. E
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Parece que a necessidade de uma linguagem supra, que estivesse para além de, ou
subjacente à linguagem cotidiana está ficando menos importante. A passagem a
seguir que reforça essa situação:
Além disso, já nas Observações sobre a forma lógica, Wittgenstein também começara
um novo capítulo: incluir os números nas proposições elementares, de forma que
“devem entrar na estrutura das próprias proposições atômicas” (WITTGENSTEIN,
2004, p. 3). “A meu ver, a ocorrência de números nas formas das proposições atômicas
não é meramente um traço de um simbolismo especial, mas um traço essencial e, por
conseguinte, inevitável da representação.” (WITTGENSTEIN, 2004, p. 3).
E ainda aqui uma outra guinada com relação a determinadas ideias do Tractatus: nas
proposições que expressam gradações, como comprimento de um intervalo, altura
de uma nota etc. uma proposição automaticamente exclui as outras todas: se isto é
vermelho, não é nenhuma outra das cores. “Uma característica dessas propriedades
é que um grau delas exclui qualquer outro. Um matiz não pode ter simultaneamente
dois graus diferentes de brilho ou vermelhidão; uma nota, duas intensidades dife-
rentes etc.” (WITTGENSTEIN, 2004, p. 4).
Ou seja, aqui não podem mais, como se afirmara no Tractatus, afirmar-se que as
proposições elementares são independentes logicamente entre si. “A exclusão mútua
entre asserções de grau não analisáveis contesta uma opinião, publicada por mim
muitos anos atrás, segundo a qual seria necessário que proposições atômicas não
podem se excluir reciprocamente.” (WITTGENSTEIN, 2004, p. 4).
Schoenberg afirmará que não é seu objetivo oferecer uma teoria real dos sons, seu
objetivo é desviar-se de uma teoria fisiologista, que dependeria intrinsecamente, de
um subjetivismo sensível. Uma teoria fisiologista, análoga à já citada anteriormente
teoria das cores de Schopenhauer, baseada em fenômenos como estados, modificações
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do olho deveria ser fundada exclusivamente no sujeito “[...] ou seja, em uma teoria
real dos sons” (SCHOENBERG, 2001, p. 56).
Não é minha intenção oferecer tal teoria, ou mesmo uma teoria da har-
monia, ainda que possuísse a capacidade e os conhecimentos necessários
a isso. Almejo, tão-somente, dar uma exposição dos meios artísticos da
harmonia que sirva de uso imediato na prática. Talvez suceda alcançar,
nesse caminho, mais do que pretendo: apenas conseguir claridade e riqueza
de relações na exposição. [...]
E, quando teorizo, mais do que preocupar-me se as teorias são exatas,
interessa-me que sejam adequadas à comparação, suficientes a esclarecer
o objeto e dar um maior panorama às considerações. (SCHOENBERG,
2001, p. 56).
Verdade e verificação
Se no Tractatus o sentido era dado pelas condições de verdade, agora o sentido é
dado em função do método de verificação: “Entender o sentido de uma proposição
significa saber como a questão de sua verdade ou falsidade tem de ser decidida.”
(WITTGENSTEIN, 2005, § 43).
Isso porque a própria proposta de figuração traz implícita um problema: o método
de projeção. No artigo sobre a forma lógica, Wittgenstein dá o exemplo da projeção
entre dois planos: “no plano I estão desenhadas figuras, digamos, elipses e retângulos
de tamanhos e formatos diferentes, e nossa tarefa é produzir imagens dessas figuras
no plano II.” (WITTGENSTEIN, 2004, p. 2).
Podemos, dirá Wittgenstein, estabelecer leis de projeção e em seguida passar a projetar
todas as figuras de I para II segundo essas regras. Por exemplo: para qualquer elipse
projetar um círculo, ou para retângulos quadrados, talvez por alguma conveniência
em ter apenas círculos e quadrados. Evidentemente que a partir dessa segunda
forma não poderei inferir as imagens originais do plano I. “Não se pode comparar
uma figuração com a realidade a menos que se possa confrontá-la com um padrão
[de medição]. Tem-se de poder ajustar a proposição à realidade.” (WITTGENSTEIN,
2005, § 43). Para descobrir um formato original, teria que conhecer o método indi-
vidual com que uma elipse em particular é projetada no círculo.
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Isso significa uma grande mudança com relação ao Tractatus, pois neste a questão do
encaixe categorial de um nome era um processo interno ao próprio nome, portanto
transcendental e inacessível para a linguagem. Segundo o professor João Vergílio:
Neste caso, o método de verificação aparece como parte de uma atividade inerente
à própria significação que denota um saber mover-se em um espaço lógico que, em
virtude de sua multiplicidade, deve ser procurado pela pertinência de uma proposição
em um contexto determinado.
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Harmonia e contraponto
Também Schoenberg irá propor uma guinada semelhante, após algumas considerações
sobre a análise de determinadas peças antigas com sistemas e métodos que não são
próprios: por exemplo analisando músicas modais com critérios de validade tonais.
A obra de arte consegue refletir o que se enxerga nela. Nisto podem ser reco-
nhecidas as condições que a nossa capacidade de entendimento estabelece
[...]. Mas esse reflexo não mostra o plano de orientação da obra de arte, e
sim o plano de nosso método de orientação (SCHOENBERG, 2001, p. 73).
Isso nos permite dizer que existe uma regra não explícita como teoria, mas que
demanda um preceito semântico, desqualificando como inválidas determinadas
formações de notas: não obstante a definição não abarque isso.
Deve existir aqui uma fronteira [...] mas que ninguém diz, mas compreende-
-se nas entrelinhas, o que se tem em mente. [...] Que não são acordes,
ninguém o duvida; quando muito, diz-se a respeito deles: “formações
harmônicas casuais”. O que pressupõe que as outras não são casuais.
(SCHOENBERG, 2001, p. 439).
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Mas o que significa dizer que são formações casuais? Schoenberg deixa claro que isso
não é uma questão transcendental ou essencial, mas que ganha seu sentido de casual
ou não casual conforme um ou outro sistema de verificação seja adotado. Cita como
argumento, a análise de algum trecho musical segundo a harmonia ou o contraponto:
os acordes que surgem nas polifonias e que são resultados do contraponto são cha-
madas de casuais e, portanto, sem significação para a construção harmônica. Alguns
acordes ou formações chegam a ter dificuldade de ser nomeadas, segundo algumas
teorias das funções, por exemplo, como quando se tenta classificar os acordes de
alguns corais de J. S. Bach.
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A teoria da harmonia não trata, portanto, dos objetos harmônicos, mas da compreen-
são e esclarecimento do uso gramatical, isto é, semântico e sintático, na construção
do sentido, inclusive do sentido ético e estético. Esse esclarecimento gramatical
depende não de essências ou uma estrita correspondência ontológica com o mundo;
também não pretende construir uma teoria real das coisas. Mas sim uma teoria que
possa organizar o discurso e identificar os mecanismos de verificação que permi-
tem incluir ou excluir do próprio sistema determinadas formações ou proposições.
Porém não é uma teoria que se proponha a estipular metas, mas compreender os
universos e os usos dos termos, quando ocorrem para a explicação ou justificação
de determinados fenômenos.
Porém, qual seja esta meta [de uma composição] é algo que somente
podemos analisar por indícios imprecisos: até que se satisfaça o sentido
de forma, até que se esgotem as possibilidades expressivas colocadas em
jogo, até que se exponha claramente a ideia da qual se trata etc. [...]. Nos-
sas tarefas têm sempre um objetivo determinado; a obra de arte, nunca
(SCHOENBERG, 2001, p. 194).
Essa mudança – do sentido entendido como sendo função das condições de verdade
para o sentido como função do método de verificação – acaba sendo um importante
fator em uma batalha que é cara a ambos: contra o dogmatismo, nas teorias prontas
e em si mesmos no processo de construção de suas próprias obras ou teorias.
A construção de sentido pode ser compreendida como uma relação dinâmica onde o
significado não mais aparece como uma figuração, mas como revelação de aspectos
expressivos de um jogo de linguagem.
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Referências
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Literatura recomendada
BRÍGIDO, Edimar Inocencio. Ver aspectos: a atividade estética em wittgenstein. Ekstasis:
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COSTA, Claudio F. Reconsiderando o verificacionismo. Princípios, Natal, v. 18, n. 29, p. 299-320,
jul. 2011.
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Anais do SEFiM
Esclarecimento gramatical, método de verificação e jogos de linguagem:...
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V. 3, n. 3, 2017