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A guerra submarina na costa sergipana

(1942-1945)
Luiz Antônio Pinto Cruz
Graduado em História pela UFS e bolsista da CAPES no Programa de pós-graduação em História/UFBA,
onde desenvolve projeto de pesquisa “Submarinos alemães e o cotidiano de Aracaju”.
Lina Maria Brandão de Aras
Doutora em História e professora do Departamento e do Programa de pós-graduação em História/FFCH-UFBA.

Resumo Abstract

Dentre os submarinos alemães que atuaram na Among the german submarines that acted
costa do Brasil, o desempenho do U-507 foi o on the coast of Brazil, the performance of the
mais emblemático para os brasileiros, porque, U-507 was the most emblematic for the brazil-
além de afundar sete embarcações no Atlân- ians, because in addition to sink seven vessels
tico Sul e matar mais de 600 pessoas, eviden- in the South Atlantic and kill more than 600
ciou a chegada da Segunda Guerra Mundial ao people, it revealed the coming of the World War
Brasil. Estudar as agressões dos U-boots sob o II to Brazil. Studying the aggressions of U-boats
prisma social foi uma estratégia metodológica under the social prism was a methodological
para identificar como a Batalha do Atlântico foi strategy to identify as the Battle of the Atlantic
construída, pensada e dada a ler em Sergipe, was built, thought and interpreted in Sergipe,
no período de 1942 a 1945. from 1942 to 1945.

PALAVRAS-CHAVE: Brasil, U-507, Segunda KEYWORDS: Brazil, U-507, World War II


Guerra Mundial

INTRODUÇÃO

“O invisível não é irreal: é o real que não é visto”.


Murilo Mendes. O Discípulo de Emaús, p. 817.

À luz da História Naval, a ampla costa do Brasil é um espaço oceânico repleto de aconteci-
mentos marcantes. Felizmente, alguns deles ainda resistem ao esquecimento, como, por exem-
plo, a presença do “submarino alemão U-507, cuja ação na costa de Sergipe levou o Brasil à
guerra.”1 Do microevento marítimo à macroconjuntura da Batalha do Atlântico, cabe ao olhar do
historiador trazê-los à tona através de suas análises, evidenciando a importância da população
costeira na constituição das memórias navais da Segunda Guerra Mundial. Atualmente, para se
compreender o ataque nazista em águas brasileiras, toma-se o caminho inverso dos náufragos,
pois a documentação em terra fez esta pesquisa avançar sobre um mar de histórias dramáticas.
1
GAMA, Arthur Oscar Saldanha da & MARTINS, Helio Leoncio. A Marinha na Segunda Guerra Mundial. História
Naval Brasileira. Volume Quinto. Tomo II. Rio de Janeiro: Ministério da Marinha/Serviço de Documentação Geral da
Marinha. 1985, p. 316.

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Luiz Antônio Pinto Cruz & Lina Maria Brandão de Aras

Arma surpreendente e versátil, o subma- ultraje que sacode, num frêmito, a


rino despertou um medo coletivo na costa alma do povo de Sergipe.
do Brasil, a partir do dia 15 de agosto de
1942, quando o U-507, capitaneado pelo ale- É inconcebível, é inacreditável o
que estamos presenciando!(...)
mão Harro Schacht2, torpedeou sequencial-
mente as seguintes embarcações: Baepen- Os navios foram torpedeados nas
di, Araraquara e Aníbal Benévolo em Sergipe; barbas do nosso litoral, à vista da
Itagiba, Arara e Jacira na Bahia; e, por fim, costa do Saco e Mangue Seco,
o navio sueco, o Hamaren. Essas agressões dentro das nossas águas territo-
ampliaram a área de atuação dos U-boots riais, invadidas de um modo ultra-
para o Atlântico Sul e evidenciaram uma jante pelo inimigo!3
logística militar ambiciosa, que procurou
estrangular as linhas navais entre os portos A leitura desta matéria jornalística permi-
da costa americana. Um dos êxitos do U-507 te perceber que a sociedade aracajuana pas-
derivou da morte de centenas de brasileiros, sou a ver o submarino como uma ameaça
feito de Harro Schacht que ganhou notorie- real às suas vidas. Normalmente, os U-boots
dade na Alemanha nazista. simbolizavam perigo apenas às unidades da
Passageiros e tripulantes dos navios bra- Marinha e aos pescadores oceânicos, mas
sileiros soçobrados vivenciaram a violência não às cidades, povoados ou colônias de
do “mundo da guerra” em suas águas juris- pescadores. Esse medo coletivo evidencia-
dicionais. Em cada torpedeamento, a histó- va que a população costeira não tinha um
ria não se repetiu, pois o evento bélico se entendimento pleno sobre o alcance da na-
revestiu de dimensões implícitas, envolveu vegação submarina. Estudar uma temática
diferentes tipos de barcos, apresentou cir- militar sob o prisma social foi uma estratégia
cunstâncias espaciais singulares e contou metodológica para se identificar como a his-
com experiências individualizadas e coleti- tória desses ataques foi construída, pensada
vas. Em suma, a alarmante notícia de su- e dada a ler no cotidiano de Aracaju.
cessivos naufrágios causou uma profunda Em virtude desses aspectos, a Guerra
consternação entre os aracajuanos. Submarina4 foi colocada no centro de uma
abordagem de História Social, ancorada
Não. Nunca atravessamos uma a uma tipologia documental diversificada:
fase destas. inquéritos, processos, protestos marítimos,
telegramas, relatórios, jornais, revistas,
Nunca, em tempo algum, a ame- cartazes, memorialistas e monumentos, a
aça à nossa integridade como na- exemplo, do Cemitério dos Náufragos, onde
ção e como povo, exigiu tanto do se tem registrado em sua placa tumular: “aí
nosso espírito de resolução tão de-
está o golpe mais traiçoeiro e terrível vibrado
cisivas provas de energia, a fim de
que se mantenha de pé a própria
contra o coração da nacionalidade”.5
dignidade nacional. (...) A declaração de guerra de 1942, o dos-
siê da História Naval Brasileira, o jornalismo
Não é possível sopitar a revolta e histórico de Mauro Santayana, os relatórios
a indignação diante do miserável do piloto Walter Batista e as fontes orais

2
Em 1942, a tripulação do U-507 obteve pleno êxito em suas operações na América do Sul e ganhou reconheci-
mento da Kriegsmarine. Harro Schacht (1907-1943) e seus homens receberam uma nova missão na costa do Brasil,
mas, dessa vez, eles foram surpreendidos com o bombardeio de um Catalina, que liquidou toda tripulação, em 13
de janeiro de 1943.
3
Correio de Aracaju. Aracaju-SE, 18 de agosto de 1942.
4
Durante a Segunda Guerra Mundial, operaram na costa brasileira os submarinos alemães de números: 126, 128,
129, 134, 154, 155, 161, 164, 170, 172, 174, 176, 185, 190, 507, 513, 514, 518, 591, 598, 604 e 861. A esta lista podemos
acrescentar o supridor (chamado de vaca leiteira), U-406 e os dois submarinos que se refugiaram na Argentina, por
ocasião da rendição: U-530 e U-977. In: GAMA, Arthur Oscar Saldanha da & MARTINS, Helio Leoncio, op. cit., p. 318.
5
Cemitério dos Náufragos dos Navios Mercantes Baependi, Araraquara e Aníbal Benévolo. Monumento Histórico de Ara-
caju, erguido com recursos do Ministério da Marinha e do Governo do Estado de Sergipe. Povoado Mosqueiro. 1972.

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são documentos importantes, que apontam de Salvador. Histórias de espiões, sabotado-


como o U-507 agiu na costa de Sergipe. Na res e quinta-colunistas alarmaram algumas
entrevista com o prático José Martins Ribei- cidades costeiras. Havia a impressão que os
ro Nunes, conhecido nacionalmente como submarinistas sabiam do que era levado a
Zé Peixe, surgiram algumas questões sobre bordo pelos navios brasileiros, pois o Bae-
a ação dos submarinistas alemães na Bar- pendi transportava tropas militares e mate-
ra de Estância/SE. Vale frisar que ele era rial bélico (armas, canhões e munição) para
adolescente no tempo dos torpedeamentos, guarnecer o saliente nordestino.
mas seu convívio com a antiga marinhagem Outro aspecto intrigante diz respeito ao
o permitiu traçar uma leitura peculiar so- conhecimento dos espiões alemães sobre a
bre essas ocorrências trágicas. Nas sábias aproximação do Brasil com os Estados Uni-
palavras do lobo do mar, os inimigos “esco- dos, especificamente dos trâmites secretos
lheram” caprichosamente as imediações do nos acordos bilaterais. Amparados pela po-
Rio Real, para o cumprimento das ambições lítica de boa vizinhança, geólogos ingleses e
expansionistas do III Reich no Brasil: norte-americanos encontraram no subsolo
brasileiro uma variedade de minérios, consi-
Eu não sei a história. Ninguém derados essenciais para indústria bélica dos
conta quem foi o submarino, mas
Aliados: ferro, quartzo, titânio, zircônio, den-
dizem que foi alemão. Veio esperar
aí na passagem da Barra de Estân-
tre outros, e, para os países do Eixo, era vital
cia. O lugar mais deserto de Ser- cortar essa linha de suprimentos. Ao relatar
gipe era a Barra da Estância. De as origens da Companhia Vale do Rio Doce,
Estância para São Cristóvão. Quer em 1942, e o início da extração de ferro em
dizer, como esse povo [os homens Itabira/MG, Emília de Caux recordou:
dos submarinos] sabia né? Bom,
pela Carta de Navegação ele vê. A Vale começou, primeiro, a tirar
Pela Carta de Navegação ele sabe. o minério do rolamento. Do Cauê
Sabia mais ou menos, porque a para baixo, a carga vinha no cava-
Carta de Navegação tem a cidade, lo. Depois, transportava no cami-
o lugar mais deserto e a aproxima- nhão até Drummond. De lá, é que
ção mais próxima à praia.6 ia para Vitória e, depois, para os
Estados Unidos. No primeiro car-
Estranhos ao universo naval dos araca- regamento, o navio foi torpedeado
juanos, os submarinistas apresentavam-se pelos alemães. Então, o primeiro
como bons conhecedores da costa de Sergi- minério de Itabira está no mar!7
pe. No entendimento de Zé Peixe, vários as-
pectos devem ser levados em consideração: A presença dos seus U-boots no Brasil, de
1 – O submarino esperou seus alvos na bei- certa forma, demonstrava que a Alemanha
ra da costa, configurando uma emboscada; nazista estava atenta ao comércio exterior do
2 – A barra de Estância era o lugar mais de- país e às alianças militares de Getúlio Vargas,
serto do Estado; 3 – O manuseio das cartas, pois o Brasil, inúmeras vezes, feriu o princí-
a experiência da tripulação e os sinais do fa- pio de neutralidade.8 Diante das baixas em
rol davam aos submarinistas coordenadas sua Marinha Mercante, o historiador francês
navegacionais; e, por fim, 4 – A operação Georges Duby apresentou a rota brasileira
de ataque foi minuciosamente planejada. como uma das linhas vitais para os Aliados9,
Esses aspectos ampliavam a áurea de mis- por esta razão, é compreensível que os U-
térios, que pairava sobre a região portuária boots viessem com a missão de obstruí-la.
6
José Martins Ribeiro Nunes (Zé Peixe) entrevistado em Aracaju, em 7 de abril de 2004.
7
CAUX, Emília de. In: MAYRINK, Geraldo. História da Vale. São Paulo: Museu da Pessoa/Companhia Vale do Rio
Doce, 2002, p. 35.
8
Embora revestido pela neutralidade, o Brasil assinou acordos secretos de cooperação militar com os Estados Uni-
dos no início da guerra. Neles, o País se comprometeu em alimentar a indústria bélica aliada com seus minérios e,
em contrapartida, os marines americanos cederiam armas navais e auxiliariam na segurança costeira.
9
DUBY, Georges. Atlas historique. Paris: Larousse, 1987. p. 94-95.

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Em virtude do recrudescimento da bata- rujada. Quando alvejado, o navio levava pou-


lha naval, o Nordeste brasileiro ganhou vá- cos minutos para ser tragado pelo mar. No
rias bases militares. A maior delas foi erguida entanto, para os sobreviventes, esse “tempo
em Natal-RN, chamada de Parnamirin Field, curto” se transformou em um “longo trau-
considerada um dos quatro pontos estratégi- ma” em suas vidas. As memórias dos náu-
cos mais importantes do mundo, comparado fragos foram apropriadas pelos moradores
ao Estreito de Gilbratar, ao Canal de Suez e a da zona litorânea. “Os feridos iam chegando
Dardanellos (todos no Mediterrâneo).10 macilentos e esfarrapados, a bestial tragédia
Iniciada em 1939, a Segunda Guerra pas- refletia nos olhos cheios de espanto e angús-
sou a ter um valor significativo para os araca- tia (...) Dezenas de cadáveres começaram,
juanos a partir de 1942, graças às investidas então, a chegar às praias sergipanas.”14
dos U-boots. Desde então, as perdas navais Os “olhos cheios de espanto” apreen-
brasileiras cresceram de modo assustador. deram imagens terríveis nas praias e res-
O Ministro Oswaldo Aranha foi categórico ponderam ao que viram denominando-as
ao redigir a Declaração de Guerra do Brasil: de “bestial tragédia”. O espaço líquido e o
“não há como negar que a Alemanha (Itá- social articularam-se à força do desconheci-
lia) praticou contra o Brasil atos de guerra, do, das histórias dramáticas dos náufragos
criando uma situação de beligerância que e da gravidade das ocorrências bélicas. Para
somos forçados a reconhecer na defesa da os sergipanos, os afundamentos das unida-
nossa dignidade, da nossa soberania e da des mercantes representaram “bestial tra-
nossa segurança e da América”.11 gédia”, “presepada do diabo”, “armação da
Até 1945 se acreditava que “o perigo dos gota serena”, “coisa do cão”, etc. Como diria
submarinos continuará sempre enquanto Jacques Revel, o acontecimento agora per-
durar a guerra”12, pois, somente em 7 de mite ler o imaginário de uma sociedade para
maio de 1945, o Almirante Karl Dönitz, então a qual ele desempenha, ao mesmo tempo, o
Füher e Supremo Comandante-chefe da Ar- papel de memória e de mito.15
mada germânica, transmitiu ordens a todos Ao entrevistar os antigos homens costei-
os U-boots que cessassem as hostilidades.13 ros16, percebe-se distinção entre o conceito
militar de “submarino” e o apreendido pelo
INIMIGOS INVISÍVEIS NO MAR mundo social, entre o significado de “torpe-
E EM TERRA deamento” e os múltiplos signos reinventa-
dos por uma cidade amedrontada. Nessa
Na percepção dos tripulantes, o navio pluralidade de compreensões (ou incompre-
mercante era bem mais do que um meio de ensões), as palavras navais ganharam no-
transporte, representava o “lugar de traba- vas vestimentas de uma cultura tipicamente
lho”, “espaço de convivialidade”, o “segundo nordestina e de uma sociedade que se sen-
lar”, a “pátria”, enfim, a “razão de ser” da ma- tia ameaçada pelos U-boots.
10
SÁ, Xico. Arquivo exibe guerra ignorada (Segunda Guerra Mundial). Folha de São Paulo. São Paulo-SP, 28 de junho
de 1998.
11
ARANHA, Oswaldo. Declaração de Guerra do Brasil à Alemanha e à Itália. Documentação Oficial. Rio de Janeiro,
31 de agosto de 1942.
12
Em Guarda – Para Defesa das Américas. Washington/USA: Bureau do Coordenador de Assuntos Interamericanos/
Business Publishers International Corporation of Filadelphia. Ano 3. No 6. 1944, p. 3.
13
PRESTON, Antony. Submarinos. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico. 1983, p. 46.
14
CABRAL, Mário. Roteiro de Aracaju: guia sentimental da cidade. Aracaju: Livraria Regina, 1948, p. 259.
15
Cf. REVEL, Jacques (org.). Jogos de Escala - a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
16
Tradicionalmente os homens costeiros eram homens fortes, de pele bronzeada e músculos encordoados que, dia
e noite, arrostavam o grave perigo do mar ignoto. Eles tinham uma vida simples e primitiva. Moravam em casas de
palhas, pescavam de forma grosseira, com tarrafas ou redes grandes. Adoravam beber cachaça, contar histórias,
tocar viola, dançar samba de coco ou bate-cocha em noites de plenilúnio. Atualmente, os homens costeiros são
os moradores da zona litorânea, seja da cidade, do povoado ou da colônia de pescadores. “Ele lembrará cheio de
horror, uma negra página do nazismo, no litoral sergipano, causando a morte a dezenas de crianças, mulheres e
homens, cujos corpos davam na praia, dias depois, inchados e corroídos, de mistura com mercadoria avariada e
destroços do naufrágio. Ele falará sobre as tempestades, quando, em pleno oceano, a sua canoa luta contra as on-
das imensas, contra os ventos esfuziantes, contra as chuvas torrenciais cujas gotas chegam a doer na pele como
se fossem alfinetes pontiagudos”. CABRAL, Mário, op. cit., p. 106-107.

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Ao longo das últimas semanas de agos-


to de 1942, os sergipanos recolheram os Eu conversei com um marinhei-
destroços navais, acudiram os sobreviven- ro velho nessa época. Conversei
tes e sepultaram os mortos. Salvelina San- com ele aqui em Aracaju já de
tos de Moraes, filha do faroleiro Teodoro muito tempo. Conversei com ele.
Ele disse: – Olha rapaz fui mari-
José dos Santos, lembrou-se de que seu
nheiro na gestão da Segunda
pai foi convocado a auxiliar os policiais nas Guerra Mundial. Acontece que,
rondas praianas. quando a gente entrava aqui, nas
águas de Sergipe, o navio, quan-
O capitão mandou chamar ele. E do o capitão via algum movimen-
botou ele na praia com o esqua- to estranho, ele parava o navio
drão. Três soldados e ele. Os faro- e mandava todo mundo ficasse
leiros, os marinheiros e tudo não quieto e apagasse todas as luzes.
ficavam nenhum em casa. Tudo Com medo de serem torpedea-
na capitania, armado. Todos de dos. Ele disse que muitos com-
prontidão na capitania porque dis- panheiros dele foram mortos aí,
seram que o submarino ia entrar nessa beira de costa.20
aqui na barra.17
A costa de Sergipe ganhou a fama de ser
Salvelina Santos de Moraes ainda recor- “um lugar de submarinos”. Os marinheiros
dou o peso da missão imposta ao seu pai, brasileiros realmente tinham razão de temê-
“quando papai chegava em casa ninguém la, pois, em 1943, mais dois torpedeamen-
aguentava o fedor. Era ui, ui, ui. [nesse exa- tos foram registrados próximos à foz do Rio
to momento Dona Salvelina tapou o nariz Real. Em 1o de março, o navio Fitz John Por-
com a mão]. Era um fedor, dos mortos que ter acabou surpreendido pelo U-518. No dia
ele pegava na praia. (...) Foi muito triste, era 31 de julho, o Vapor Bagé foi torpedeado pelo
muita gente morta”.18 Seu Teodoro recolhia U-185, comandado pelo Capitão-Tenente Au-
os corpos nas praias de Atalaia, Mosqueiro, gust Maus.21 A amarga rotina de naufrágios
Caueira e Saco. A putrefação dos cadáveres na Barra de Estância fez os militares batiza-
grudava-se às suas roupas. O cheiro e as rem os acontecimentos navais de o “Massa-
imagens impactantes abalaram a estrutura cre do Rio Real”.
psicológica do faroleiro que, para cumprir Na busca de respostas para entender
suas obrigações e controlar seus nervos, o perigo representado pelo submarino, os
bebia muita cachaça. “Ele dizia que se o sol-
sergipanos encontraram outros inimigos
dado pegava, ele também tinha que pegar.
em seu cotidiano: o quinta-coluna, o cami-
(...) Ele bebia um bucado, mas ele dizia que
sa-verde, o boateiro e o espião. Em batalha
se não bebesse, não pegaria o defunto não,
contra esses inimigos invisíveis, o imaginá-
eu morro. Se eu não beber, eu não pego de-
rio social aumentou o clima de desconfian-
funto não, eu morro”.19
ça. Contemporâneo do tempo dos torpede-
Cada cadáver jogado pelas ondas na
amentos e da campanha anticolunista, o
praia era um sinal de alerta: a guerra che-
sergipano Mário Cabral poetizou:
gou ao mar do Brasil. O litoral sergipano
trazia más lembranças para os marinheiros eu, muitas vezes, contemplo uma
brasileiros, ora pela péssima navegabilida- árvore e nela não distingo o ca-
de das barras locais, ora pelas histórias de maleão. A polícia, muitas vezes,
naufrágios. Seu Eliseu Timóteo recordou as observa um agrupamento e nele
histórias que ouviu dos navegadores. não distingue o quinta-coluna. O
17
Salvelina Santos de Moraes entrevistada em Aracaju, em 19 de julho de 2006.
18
Idem.
19
Idem.
20
Eliseu Timóteo entrevistado em Aracaju, em 28 de maio de 2005.
21
GAMA, Arthur Oscar Saldanha da & MARTINS, Helio Leoncio. A Marinha na Segunda Guerra Mundial. História
Naval Brasileira. Volume Quinto. Tomo II. Rio de Janeiro: Ministério da Marinha/Serviço de Documentação Geral da
Marinha. 1985, p. 32.

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Luiz Antônio Pinto Cruz & Lina Maria Brandão de Aras

quinta-coluna, como o camaleão, simulações em terra. Somou-se à ameaça


muda de cor sob a influência de externa registrada no Sergipe-Jornal como a
causas acidentais.22
ação destruidora e subterrânea
Afinal quem era o quinta-coluna? Por que dos inimigos internos, sabotado-
ele era considerado uma ameaça social? A res da unidade nacional, quinta-
ninguém mais, diante dos fatos concretos, colunista. Além da atividade poli-
é dado negar que, no Brasil, existe realmente cial contra elementos organizados
de espionagem, é preciso que to-
uma quinta-coluna e que esta se compõe não
dos os brasileiros se transformem
só de estrangeiros, mas, na sua maior parte de em soldados ativos da campanha
maus brasileiros, a maioria dos quais perten- anticolunista.25
centes à extinta AIB.23 A ameaça do quinta-co-
luna nasceu na Espanha, no tempo da Guer- Após o afundamento dos navios, o espí-
ra Civil (1936-1939) e, depois, espalhou-se rito de retaliação enfardou milhares de ho-
pelo mundo. De acordo com Jean Delemeau, mens e mulheres do Brasil. Passageiros e
tripulantes foram lançados subitamente em
quanto mais for intenso o medo um mar de guerra. Mais do que “náufragos”,
coletivo, mais se terá tendência de
cada vítima se tornou um “símbolo de luta”
acreditar em várias conjurações
apoiadas em ramificações adver-
e uma “bandeira de desafrontamento” dos
sas. Não que a quinta-coluna seja brasileiros na Segunda Guerra Mundial.
um mito. Mas em qualquer tempo, Destacar a microrregião costeira de Ser-
o temor que dela se teve ultrapas- gipe foi uma chave para entendimento da
sou os limites do real e do possí- maior tragédia submarina da história do
vel. Assim, um rumor é na maioria Brasil. Especialmente quando se confronta
das vezes a revelação de um com- a experiência dramática dos náufragos à
plô, isto é, de uma traição.24 perplexidade dos homens costeiros. Do pon-
to onde o navio afundou até o desembarque
Clandestinamente, acreditava-se que o improvisado nas praias, catalogou-se uma
quinta-coluna agia sorrateiro no interior da variedade de medos. Com base na docu-
sociedade brasileira. Esse temor serviu para mentação arrolada em Sergipe foi possível
fortalecer, ainda mais, a ditadura do Estado perceber que os avassaladores torpedea-
Novo, incentivar a perseguição a grupos sus- mentos multiplicaram os medos, as dores e
peitos e discriminar os estrangeiros taxados as perdas.
de “eixistas”. Evidentemente, que as células Nesse mar de subjetividades, os náufra-
de espionagem atuaram no Brasil, mas o gos flutuaram entre o “mundo da guerra na-
olhar de desconfiança social estava impreg- val” e o “social dos homens costeiros”. Eles
nado de inveja, de intolerância, de raiva, de compartilharam suas experiências e eviden-
cobiça, de preconceito, de oportunismo, de ciaram uma realidade de beligerância no
prazer, de retaliação e não apenas de dever País. A singularidade dos medos sergipanos
patriótico, como afirmava o DIP – Departa- se associou aos de projeção universal. Essa
mento de Imprensa e Propaganda. Ou seja, via de mão dupla permitiu ao homem costei-
o Governo varguista silenciava e censurava ro ver o invisível e pensar a guerra no mar. O
o que o próprio poder desejava esconder. exercício de apropriação requeria um esfor-
Nesse jogo de ilusões, o inimigo se ca- ço coletivo em responder ao desconhecido,
muflava ao seio social assim como o subma- por esta razão, pontes simbólicas foram for-
rino que se escondia debaixo d’água. Prote- madas e conduziram os sergipanos ao en-
gidos pela invisibilidade, eles costumavam tendimento de uma nova emoção: o medo
criar suas emboscadas no mar ou suas dis- do submarino.
22
CABRAL, Mário. Arame Farpado. Correio de Aracaju. Aracaju, 23 de setembro de 1942.
23
MONTEIRO, Araújo. O Nordeste. Aracaju, 20 de agosto de 1942.
24
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente: 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 184.
25
Sergipe-Jornal. Aracaju, 19 de agosto de 1942.

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Tabela I
DOS ATAQUES DO U-507 DERIVARAM-SE VÁRIOS MEDOS

PASSAGEIROS E
NÁUFRAGOS SERGIPANOS
TRIPULANTES

Medo do submarino, medo Medo do submarino, Medo do submarino, medo da mor-


da morte, medo do navio medo da morte, medo te, medo do sofrimento, medo da
afundar, medo de cair na do sofrimento, medo escuridão, medo do mar, medo da
água, medo do sofrimen- da escuridão, medo solidão, medo de morrer de fome,
to, medo do fogo, medo do mar, medo da soli- medo da loucura, medo de violên-
da explosão da caldei- dão, medo de tubarão, cia, medo do desconhecido, medo
ra, medo de ser cortado medo de naufrágio da da guerra, medo de não enterrar
pela hélice do navio, medo baleeira, medo de uma seus parentes, medo do inimigo
de ser tragado pelo mar, nova agressão subma- adentrar a boca da barra, medo de
medo dos tiros de metra- rina, medo de morrer invasão à praia, medo do amanhã,
lhadora dos submarinis- afogado, medo das on- medo de embarcações estranhas,
tas, medo da escuridão, das, medo de morrer de medo de espiões, medo da multidão
medo do mar, medo da fome, medo da loucura raivosa, medo de aviões, medo da
solidão e medo de perder dos náufragos, medo escuridão, medo de estrangeiros,
os parentes. de violência, medo de medo dos forasteiros, medo dos
não ter forças de nadar estudantes, medo de ser convoca-
até a praia, medo de do, medo de perder seus parentes
não voltar para casa e na Itália, medo do quinta-coluna,
medo dos pescadores. medo da cavalaria, medo de luzes
noturnas, medo do diabo, medo da
guerra e medo do fim do mundo.

Fonte: Luiz Antônio Pinto Cruz, 2011

Os ataques do U-507 ocorreram longe velina Santos de Moraes, ainda se recorda


dos olhos dos homens costeiros, por que das histórias do seu tio Henrique:
a população aracajuana costuma trazer a
ameaça submarina para o seu interior so- Henrique, um tio meu, ia no Baepen-
cial? Mesmo a milhas de distância, os três di. Todo mundo dançando, tocando.
Naquele tempo era aquela vitrola.
torpedeamentos registrados em águas ser-
Ele disse que quando viu foi o tor-
gipanas envolveram os navios e a cidade de pedeamento. Aí ele disse que já tava
Aracaju. A maneira pela qual os citadinos preparado, dizia ele. Tinha uma faca
entenderam o significado desses atenta- de marinheiro e um vaso de compri-
dos criou uma ressonância mais ampla da mido. Umas pastilhas que quando
tragédia. De acordo com o náufrago Milton você chupava, não tinha fome. (...)
Fernandes da Silva, o navio Araraquara foi
atacado quase no través com o clarão da Todos tiveram que tirar a roupa na
barca. No meio desses homens,
cidade de Aracaju.26 Apenas dois aracaju-
apenas uma mulher: Vilma Cas-
anos chegaram a salvo em sua terra natal: telo Branco. Foi meu tio Henrique
Deoclides Gomes da Silva (moço de con- que por sinal salvou ela. Aí deram
vés do Baependi) e Henrique Francisco dos na praia de Estância e da praia de
Santos (moço de convés do Baependi). Sal- Estância, todos estavam morrendo
26
SILVA, Milton Fernandes da. TORRES, Sérgio. Naufrágio do Araraquara. Folha de São Paulo. São Paulo, 8 de julho de 2007.

91
Luiz Antônio Pinto Cruz & Lina Maria Brandão de Aras

de fome. Foi quando um homem e o U-507 não tenha adentrado o estuário do


a sua esposa viram eles. A mulher Rio Sergipe, o medo disso acontecer foi for-
desmaiou com medo deles. Mas o te suficiente para paralisar o comércio local,
homem tirou coco e disse: – eu não suspender as aulas, encerrar o expediente
tenho comida, mas tenho coco com
das repartições públicas e aumentar a vigi-
farinha pra vocês. E foi isso que eles
comeram. Mandaram aviso ao pre-
lância costeira. Portanto, o navio Aníbal Be-
feito. E o prefeito mandou uma con- névolo “fazia aqui o fim de sua linha. Dentre
dução para Estância. Deram roupas seus tripulantes, alguns eram sergipanos.
a eles, uma coisa que antigamente Lavadeiras de Aracaju lavavam peças para
chamava de pé de anjo e roupa tam- bordo. Os sergipanos se acostumaram a vê-
bém. Eles vieram para Aracaju e fi- lo na Ponte do Lima e a viajarem nele. Era
caram no Hotel Marozzi. um navio também de Sergipe”.28
A ameaça invisível alterou a rotina dos
Depois disso, o meu tio ficou aracajuanos e alçou a cidade à condição de
quase um ano sem embarcar. Ele
vítima da Guerra Submarina. Segundo o Cor-
trabalhava no Lloyd Brasileiro, no
Baependi. A minha avó ficou muito
reio de Aracaju, “o inimigo pode realmente
triste, chorava muito para ele não estar em todos os pontos do mar brasileiro,
embarcar. Ele não embarcou, pa- no desaguadouro dos rios, nas praias deser-
rou quase um ano. Depois ele dis- tas, sob os coqueiros ou sob as areias, espe-
se que não se acostumava mais rando o momento de atacar pela traição, de
com a vida no sítio. Ele retornou ao afundar navios, de matar brasileiros”.29
Rio de Janeiro e ficou conhecido A costa sergipana inspirava várias des-
como “Peixinho do Mar”. (...) confianças no tempo da guerra. Uma delas
foi revelada pelo jornalista David Nasser, que
Botaram o nome dele de “Peixinho
veio a Aracaju averiguar se “haveria a possibi-
do Mar” porque ele salvou a maioria
do povo. E essa Vilma deu a ele de
lidade de encontrar vestígios da existência de
presente um peixe muito bonito pra bases clandestinas para submarinos alemães
botar em cima da casa dele. O peixe no litoral sergipano? Os homens do subma-
quando acendia e iluminava era a rino poderiam buscar refúgio e mantimento
coisa mais linda do mundo. Com o em algum lugar de Sergipe”?30 As agressões
nome “Peixinho do Mar”. Todo mun- alimentaram suspeitas para o interior, pois se
do do Lloyde só conhecia Henrique acreditava que o inimigo adentrou estuários
como “Peixinho do Mar.” 27 do Rios Real, Vaza-Barris e São Francisco para
se abastecer de víveres. Enoch Santiago, Che-
Bravura de um lado, comoção coletiva fe de Polícia do Estado, foi entrevistado pelo
de outro. Os aracajuanos se desesperaram referido jornalista e constou da reportagem:
ao saber do naufrágio do Aníbal Benévolo
pelas seguintes razões: em primeiro lugar, No litoral brasileiro, desde o Rio
porque ele seguia viagem oceânica rumo à até o extremo Norte, existirão ba-
cidade de Aracaju; em segundo lugar, todos ses de abastecimento para os
sergipanos a bordo desse vapor morreram submarinos inimigos? O Chefe
de Polícia de Sergipe, no que diz
nesse ataque nazista, criando um luto cole-
respeito a este estado, afirma que
tivo e duradouro, pois nenhum conterrâneo não. Nos outros Estados, afirma-
foi localizado. Terceiro, e mais aterrorizante, se a impossibilidade de existirem
suspeitava-se na época, como já foi dito, as mesmas bases que não foram
que os submarinistas alemães soubessem jamais vistas pelos pescadores e
da rota naval até o porto da cidade. Embora pelos aviões de patrulhamento.31

27
Salvelina Santos de Moraes entrevistada em Aracaju, em 19 de julho de 2006.
28
Correio de Aracaju. Aracaju, 18 de agosto de 1942.
29
Correio de Aracaju. Aracaju, 30 de setembro de 1942.
30
NASSER, David. Vigilância sem trégua. Jornal O Globo, Rio de Janeiro. 1942. Sábado, 22 de agosto de 1942.
31
Idem.

92
Navigator 15 A guerra submarina na costa sergipana (1942-1945)

A natureza da guerra marítima desafiava A política de equilibrista no picadeiro de


a compreensão dos homens costeiros, pois Getúlio Vargas chegou ao fim logo após o ata-
o U-boot simplesmente aparecia e desapare- que japonês a Pearl Harbor, em 7 de dezem-
cia. Raramente se via a sua aproximação ou bro de 1941, e a declaração de guerra dos Es-
o seu afastamento. Na caçada noturna em tados Unidos ao Japão, à Itália e à Alemanha.
Sergipe, o submarino alemão surpreendeu Na Conferência Panamericana, no Rio de
os marinheiros com torpedos repentinos e, Janeiro, em 28 de janeiro de 1942, contrarian-
depois, quando os sobreviventes estavam à do a opinião dos militares pró-Alemanha, de-
deriva, os submarinistas acenderam os ho- cidiu-se a favor do rompimento das relações
lofotes e se fizeram ver. Alguns náufragos diplomáticas com os países do Eixo.34
relataram que a tripulação inimiga atirou O Brasil rompia com a sua neutralidade,
rajadas de metralhadoras sobre as vítimas mas a maioria dos brasileiros não sabia dos
a sangue frio.32 Essas informações foram riscos dessa decisão política e continuou a
documentadas pelas autoridades e publica- navegar a bordo dos navios mercantes. O
das pelos principais jornais aracajuanos. O desfecho foi brutal e conhecido, o U-507 em-
drama das vítimas, estampado nos diários, preendeu uma das maiores caçadas navais
gerou vários impactos em seus leitores, ali- empreendida na América do Sul, no tempo
mentando ainda mais o medo e a ira social. da Segunda Guerra Mundial.
Outro detalhe interessante das repor-
tagens da época foi a comparação entre o O ESFORÇO DE GUERRA EM SERGIPE
“atentado nazista em Sergipe” e o “atentado
japonês a Pearl Harbor”, pois ambos foram A costa de Sergipe, com 163km de ex-
executados por países beligerantes do Eixo tensão entre a foz do Rio São Francisco, ao
e arrastaram suas respectivas nações à Se- Norte, e a do Rio Real, ao Sul, ainda con-
gunda Guerra Mundial. De acordo com o serva muitas histórias navais sobre a passa-
Correio de Aracaju, gem dos U-boots durante a Segunda Guerra
Mundial. Neste pequeno trecho atlântico do
A guerra chegou, materialmente, Brasil registrou-se uma intensa movimenta-
ao Brasil, pois há muito já estava ção dos submarinos alemães. A distinção
nela. A nova situação, porém, im- de ser o lugar de tantos torpedeamentos re-
põe tarefas mais concretas e preci-
quer novos estudos históricos, para enten-
sas. Antes de tudo, é preciso con-
siderar que esta não é uma guerra, der as repetidas investidas da Kriegsmarine
mas é a guerra, a deflagração final nesta microrregião nordestina.
das imensas contradições em que A movimentação da corrente marítima
o mundo se vem arrastando para do Brasil, o mar de água doce na foz do São
se superar, em busca da “con- Francisco, a ausência de bases navais, as
tinuidade, da sobrevivência, do praias desabitadas, o litoral raso de águas
progresso”. E o que Sergipe tem quentes, o farol da Cotinguiba e as infor-
haver com tudo isso? Os torpede-
mações de carta náutica formavam um
amentos entre o litoral sergipano
conjunto de elementos favoráveis para os
e baiano foram uma espécie de
‘Pearl Harbor’, pois escandalizou experientes navegadores germânicos esco-
a opinião pública brasileira e teve lherem o litoral sergipano. No entanto, a si-
uma série de consequências, en- tuação começou a se inverter para os Alia-
tre elas a declaração de guerra à dos, quando as Forças Armadas do Brasil
Alemanha, Itália e Japão.33 e os marines americanos reforçaram a sua

32
“Dentre os cadáveres encontrados hoje pela manhã, na praia do Mosqueiro, acha-se o do 2o piloto do Araraquara.
No cinto da cortiça, de que se utilizava para salvar-se, nota-se, conforme observou o nosso repórter, duas perfura-
ções produzidas, provavelmente, por balas de metralhadoras, o que fez ver como agem os sicários do Eixo, torpe-
deando navios e metralhando aqueles que se procuram salvar”. Correio de Aracaju. Aracaju, 18 de agosto de 1942.
33
Correio de Aracaju. Aracaju, 1o de Setembro de 1942.
34
Cf. KESTLER, Izabela Maria Furtado. Exílio e Literatura: Escritores de Fala Alemã durante a Época do Nazismo. São
Paulo: EDUSP, 2003.

93
Luiz Antônio Pinto Cruz & Lina Maria Brandão de Aras

segurança costeira. Com o aprimoramento Você sabe quem evitou a guerra


das tecnologias navais, os lobos cinzentos aqui? Quem acabou com o mo-
perderam o elemento surpresa e passaram vimento do submarino aqui? Um
a ser caçados com mais facilidade pelos avião de guerra, parecido com um
charutão. Não vi, mas ouvi tiroteio
aviões de guerra.
por cima da barra. tra tra tra tra
Em 16 de maio de 1943, a movimentação tra tra [faz som de tiros de metra-
de um submarino alemão foi detectada pelo lhadora]. Dava tiro como diacho.
radar da aeronave VP-74. Este avião anfíbio A gente ouvindo e ele dava des-
estava embasado em Aracaju, nas águas carga. Tum! Tum! Tum! Tum! Tum!
do Rio Sergipe. Os militares, então, inicia- Eles deram os nomes de “Forta-
ram as buscas pelo submarino no litoral lezas Voadoras” dos americanos.
Norte de Sergipe. Era o U-128, do coman- (...) Os alemães tomaram medo
dante Heyse. De imediato, foram lançadas viu! Tomaram medo porque ainda
chegou a notícia dizendo: – Olhe a
cargas de profundidade, que avariaram o
Fortaleza Voadora em tal parte bo-
barco. Sem conseguir submergir, o U-128 tou o submarino a pique. Tal parte
se tornou um alvo fácil. Então, a tripulação assim afundou outro. Aí aquilo foi
abandonou o barco. Os 51 submarinistas diminuindo, diminuindo, dimi-
alemães foram resgatados e aprisionados nuindo. A guerra foi se retirando,
pelos destroyers USS Moffett e USS Jouett, se retirando, se retirando... Graças
que partiram da base naval de Aratu, região a Deus que a guerra acabou”.39
da grande Salvador/BA.35
O U-161, outro submarino bombardeado, Enquanto a guerra dos U-boots não ces-
atravessou o litoral sergipano em setembro sava, os civis contribuíram com a campa-
de 1943. Nas imediações da foz do Rio São nha antissubmarina. A defesa da costa de
Francisco, ele afundou um mercante não Sergipe era questão de Segurança Nacio-
identificado no dia 20. Logo depois, próximo nal, pois o inimigo naval jamais deveria pi-
à foz do Rio Real, mas em lado baiano, o sar em solo brasileiro. À frente desta tarefa
referido submarino, capitaneado por Albre- estava o Capitão de Corveta Gentil Homem
cht Achilles, foi localizado e bombardeado de Menezes, responsável pela Capitania dos
no dia 27.36 As histórias de perseguição aos Portos de Sergipe. Ele obteve o apoio dos jo-
U-boots chegaram aos ouvidos dos homens vens aviadores do aeroclube e dos homens
costeiros. De acordo com Zé Peixe, “os avi- do mar (barqueiros, faroleiros, marinheiros,
ões vieram guarnecer a costa. Quem botou práticos e pescadores). Várias instituições
o submarino a pique foram os americanos. auxiliaram o esforço de guerra: o Governo
O Brasil não tinha avião daquele. O avião Estadual, a Prefeitura de Estância, a Prefei-
veio pra aqui, dormia no Rio Sergipe. Cor- tura de São Cristóvão, a Prefeitura de Ara-
ria a costa às 5 da manhã. Todo dia voava”.37 caju, a Legião Brasileira de Assistência e a
“Era avião direto em Aracaju. Ia pra lá, ia pra Cruz Vermelha Brasileira.
cá, pelo mar, rodando tudo”, ainda recorda A questão crucial era: como se pro-
Dona Idalina.38 teger das ameaças advindas do mar? A
Próximo ao local onde o U-161 foi a pi- orientação da Marinha do Brasil era que
que, entrevistamos João Martins do Nas- se montasse um Sistema de Defesa Pas-
cimento, morador do povoado Pontal, mu- sivo. Algumas mudanças foram introduzi-
nicípio de Indiaroba/SE. Ele contou como das na sociedade aracajuana. Em primeiro
os pilotos norte-americanos conseguiram lugar, montou-se uma vigilância costeira,
perseguir e afundar o submarino alemão na que foi reforçada com a chegada de tropas
barra do Rio Real. baianas e gaúchas. No mar, os pilotos ci-

35
GAMA, Arthur Oscar Saldanha da & MARTINS, Helio Leoncio, op. cit., p. 384.
36
Ibidem, p. 386.
37
José Martins Ribeiro Nunes (Zé Peixe), entrevistado em Aracaju, em 7 de abril de 2004.
38
Salvelina Santos de Moraes entrevistada em Aracaju, em 19 de julho de 2006.
39
João Martins do Nascimento, entrevistado no povoado de Pontal, Indiaroba/SE, em 7 de julho de 2005.

94
Navigator 15 A guerra submarina na costa sergipana (1942-1945)

vis auxiliaram as buscas pelos náufragos com a luz acesa, amamentando o


e os marines americanos realizaram a pa- meu irmão. Os cavalos do Esqua-
trulha antissubmarina. Em segundo lugar, drão pisaram na calçada, fazendo
instituiu-se o blecaute, pois, sob o manto um momento de barulho e tal, por-
que mandaram que apagassem
da noite, a cidade de Aracaju precisava fi-
a luz: apaguem a luz! Mamãe de
car invisível de quem rondava a costa. “O pronto apagou a luz. E nesse perí-
Governo do Estado avisa à população que odo já tinham sido bombardeados
esteja preparada para o blecaute total a os navios por submarinos.42
partir de hoje. Quer isso dizer que o povo
deve preparar a iluminação residencial de No discurso dos sergipanos entrevista-
maneira a não ser percebida externamen- dos percebe-se que o submarino alemão ain-
te”.40 Em terceiro, foram detidas mais de 50 da navega na memória coletiva ou ascende
pessoas suspeitas de cooperarem com os em territorialidades flutuantes, mesclando a
submarinos: alemães, italianos, espanhóis, experiência, o tempo e o espaço. O U-boot
brasileiros (integralistas, religiosos e ou- era um inimigo inteiramente desconhecido
tros). E, por fim, organizaram-se ensaios do homem comum, que utilizou sua tradi-
antiaéreos (dois diurnos e dois noturnos). ção para “organizar o elemento assustador,
surpreendente e desconhecido”. Os náufra-
Em matéria de defesa passiva gos e os submarinos se foram, mas o medo
nada pode e nem deve ser improvi- continuou na região costeira. Quem residia
sado; tudo deve e pode ser anteci-
no litoral, aprendeu a conviver com o medo
padamente organizado, antes que
do submarino. Para Jean Delumeau, se uma
o perigo se concretize, pois que –
em face do perigo toda a improvi- sociedade “não consegue afastar completa-
sação equivale a uma incorrigível mente o medo para fora de seus muros, ao
sentença de morte.41 menos enfraquecê-lo o suficiente para que
possa viver com ele”.43
A defesa passiva exigia disciplina e rigor Na iminência de um desembarque ini-
no cumprimento das normas de segurança. migo, postos de observação foram monta-
Os aracajuanos ainda recordam da extrema dos na região litorânea. “Cada posto deve
violência com que eram tratados pelos poli- ser constituído de um graduado e de um
ciais da cavalaria. As recordações de Paulo número de homens suficiente para asse-
Oliveira Santos dissipam as trevas do ble- gurar a permanência da observação e das
caute e iluminam as práticas disciplinado- transmissões – dotado de material que faci-
ras da época. lite sua tarefa (binóculos, aparelhos de es-
cuta)”.44 O bombeiro Jardilino Marques ser-
No período da guerra, havia pa- viu em um posto de observação e recordou
trulhamento da polícia no sentido sua missão: “Eu ficava na beira do Rio Ser-
de orientar as pessoas como se gipe, ali onde é hoje o Iate Clube, de vigília.
conduziam nesse período porque O medo nesse tempo era que o submarino
estava na iminência da cidade ser alemão viesse pelo mar, ou debaixo d’água,
bombardeada porque os alemães
e entrasse pela boca da barra e destruísse
estavam realmente bombardean-
do várias cidades. E um dos países
Aracaju”.45 Por esse tempo, as atividades
visados pelos alemães era exata- da Marinha de Guerra chegaram ao estu-
mente o Brasil. Eu era pequeno, eu ário do Rio Sergipe, “caça-submarinos,
tinha 12 anos quando morava aí e chamados de Caçapau, porque eram na-
me lembro que pela noite, mamãe vios de madeira, construídos nos arsenais

40
Correio de Aracaju, Aracaju, 27 de agosto de 1942.
41
Correio de Aracaju. Aracaju, 17 de abril de 1943.
42
Paulo de Oliveira Santos entrevistado em Aracaju, em 10 de agosto de 1999.
43
DELUMEAU, op. cit, p.12.
44
Correio de Aracaju. Aracaju, 17 de agosto de 1943.
45
Jardilino Marques entrevistado em Aracaju, em 23 de agosto de 1999.

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Luiz Antônio Pinto Cruz & Lina Maria Brandão de Aras

nacionais, aportavam na capital sergipana, e da França para conhecimento


entravam e saíam, e pelo litoral buscavam não só dos marinheiros como de
os inimigos”.46 quaisquer outras pessoas”.51
O submarino por si só tinha uma enorme
capacidade de mobilizar a imaginação ara- Muitos brasileiros encararam com bas-
cajuana. As histórias de homens loiros nas tante seriedade os desafios daquela época.
praias sergipanas foram tratadas como me- A luta contra os U-boots e a defesa do litoral
ros boatos desordeiros. “Essas conversas do nordestino evidenciaram uma concepção
perigo iminente, de assalto às nossas costas mais moderna de Segurança Nacional.
para o dia marcado, bem próximo, do apare-
cimento de homens loiros em tais lugares Creio havermos aprendido que a
escusos, fazem parte do programa que com- defesa nacional não é propriedade
exclusiva, nem incumbência pe-
preende a guerra de nervos”.47 A nota do go-
culiar dos homens de farda, mas
verno deixou evidente que puniria os inven-
que sua responsabilidade deve
tores dessas estórias. “Estejamos alertas, é ser compartilhada pelo trabalho,
verdade, porém tenhamos cuidados ainda o capital, a agricultura, a indústria
maiores com esses sutis boateiros, autênti- e outros grupos que contribuem
cos quinta-colunistas disfarçados”.48 para o mosaico nacional. As guer-
Diante de tantas incertezas e temores co- ras se travam e se ganham ou se
letivos, as palavras do Almirante Henrique perdem na terra, no mar ou no ar
Aristides Guilhem procuravam tranquilizar e nas linhas de batalhas situadas
a população: “Posso assegurar a vossên- atrás da frente, onde estão as for-
ças civis. Não basta mobilizar o
cia que sejam quais forem os perigos que
poderio militar da Nação. Deve ha-
a Marinha tenha de enfrentar, a gola azul do ver a mobilização de todos os seus
marinheiro e o botão dourado do oficial se- recursos econômicos.52
rão sempre motivo de orgulho para o povo
brasileiro”.49 Para os inimigos não atingirem A campanha antissubmarina exigiu ope-
a sua costa atlântica foi montada uma das rações conjuntas das três forças militares.
maiores linhas defensivas de toda a Segun-
A Marinha do Brasil teve a incumbência de
da Guerra Mundial.
criar uma consciência coletiva e mobilizar a
Além dos homens de farda, o Ministério
sociedade na luta contra os inimigos ocul-
da Marinha ainda contou com o auxílio dos
tos no mar. Era necessário cultivar o espírito
pescadores de diferentes rincões do País.50
de cooperação de “todos” para o esforço de
Os pescadores representavam um elemen-
guerra, pois o perigo era para “todos” e, no
to auxiliar das forças navais nos serviços de
caso da batalha naval, se transferir às praias
vigilância da costa e socorro aos náufragos.
locais, havia a possibilidade de “todos” se-
Esses homens costeiros eram os olhos e ou-
rem transformados em combatentes dentro
vidos das autoridades militares.
de uma mobilização total.
A Segunda Guerra Mundial, diferente
“Para facilitar o conhecimento dos
submarinos e aviões do Eixo tem a da Primeira Guerra, gerou uma nova con-
Capitania dos Portos mapas com cepção de encarar o confronto de escala
desenhos e silhuetas de submari- global. Além da mobilização militar, o papel
nos e aviões das potências do Eixo dos civis se tornou crucial na montagem do
46
WYNNE, J. Pires. Augusto Maynard. In: História de Sergipe (1930 – 1972). Vol. II. Rio de Janeiro: Pongetti, 1973, p. 125.
47
Correio de Aracaju, Aracaju, 4 de setembro de 1942.
48
Correio de Aracaju, Aracaju, 4 de setembro de 1942.
49
Correio de Aracaju. Aracaju, 14 de setembro de 1942.
50
Decreto-Lei 4830-A, de 15 de outubro de 1942, subordina ao Ministério da Marinha, as colônias de pesca [até
então subordinadas ao Ministério da Agricultura, Comércio e Indústria] In: GAMA, Arthur Oscar Saldanha da &
MARTINS, Helio Leoncio, op. cit., p. 57.
51
Correio de Aracaju. Aracaju. 13 de novembro de 1942
52
FARIAS, Oswaldo Cordeiro de. Palestra sobre a organização da Escola Superior de Guerra em 1949. In: Revista da
ESG. Rio de Janeiro: Alemgraf. V. 20, No 42. jan/dez. 2003, p. 154.

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Navigator 15 A guerra submarina na costa sergipana (1942-1945)

esquema de segurança. No dia 6 de outubro Esse documento da Marinha mais parecia


de 1942, a Capitania dos Portos de Sergipe uma postura ambiental, mas se constituía
publicou o seguinte edital. em uma medida defensiva. O capitão dos
portos de Sergipe estava consciente de
De ordem do Senhor Capitão de como era importante manter as barreiras
Corveta Gentil Homem de Mene- naturais (terrenos pantanosos, áreas ala-
zes, Capitão dos Portos deste Es- gadiças, mangues densos e mata fechada)
tado, comunico a todos a quantos
para dificultar o acesso à capital sergipana,
possa interessar que esta Capita-
nia dá por muito bem recomenda caso tropas inimigas desembarcassem nas
a proibição do corte de lenha de praias locais.
mangue por quem não esteja para Com o racionamento do querosene, as
isso legalmente habilitado, bem normas da Capitania não surtiram efeitos
como a sua compra e venda fora porque a madeira era um dos gêneros de
de tais condições; a proibição de primeira necessidade nos lares mais hu-
detenção em poder de particu- mildes em Aracaju. Entretanto, o ponto
lares de quaisquer salvados de
mais agressivo do edital foi a proibição dos
náufragos ou qualquer objeto ou
embarcação que dê à praia; a obri- civis se apropriarem dos salvados, pois ha-
gação que é imposta a quem quer via uma “cultura dos malafogados”. À cata
que encontre objetos, salvados ou dos salvados era um traço marcante do
embarcações em tais condições, homem costeiro: “o navio afundou na bar-
de promover a sua guarda e co- ra de Aracaju, trazendo os malafogados
municar o encontro a esta Capita- pra vestir os nus”, cantoria recordada por
nia com maior brevidade; que na Dona Idalina54.
forma das disposições do decreto
A palavra malafogado, portanto, era tudo
4557 de 10 de agosto último, todo
movimento dos portos e águas in-
aquilo que não tinha afogado completamen-
teriores bem como a sua fiscaliza- te, que voltava à tona, trazendo, porém, a
ção e vigilância além da orla marí- marca do mal da grande tragédia marítima.
tima, são a cargo desta Capitania e O material recolhido pelos militares foi des-
das entidades federais e estaduais tinado para a Capitania dos Portos ou para
que com ela colaborem, com o fim o 28o Batalhão dos Caçadores. O General
comum; que pelo cumprimento de Eurico Gaspar Dutra enviou o seguinte tele-
disposições análogas às presentes grama ao interventor de Sergipe, o General
e anteriormente tornadas públicas
Augusto Maynard Gomes:
têm sido aplicadas às sanções re-
gulamentares e multas a grande
número de contraventores. Esta Muito agradeço seu comunicado
Capitania em benefício de serviço de 20 acerca restabelecimento or-
público e no cumprimento de suas dem Estado e recolhimento ao 28
atribuições não pode deixar de ser BC material salvo últimos naufrá-
rigorosa com os infratores nem es- gios. Sou muito mais penhorado
tes podem alegar ignorância das medida tomadas essa Interventoria
e meu distinto camarada contida
disposições legais.53
acolhida nossos patrícios, compa-
nheiros de farda – vítimas torpede-
O olhar de proteção das autoridades amento nossos navios litoral Bahia-
marítimas se voltou para o bom andamen- Sergipe; e carinhosa assistência
to do sistema de defesa passivo. Para tan- moral e material lhes foi prestada
to, os aracajuanos tinham ordens estritas no transe doloroso por que passa-
de não cortarem os extensos manguezais ram, sob a nossa mais profunda
que rodeavam o município de Aracaju. consternação e repulsa.55

53
DANTAS, José Augusto Diniz de Aguiar. Edital da Capitania dos Portos de Sergipe. In: Correio de Aracaju. Aracaju,
6 de outubro de 1942.
54
Idalina Lima de Sousa entrevistada em Porto Alegre-RS, em 15 de julho de 1999.
55
Correio de Aracaju. Aracaju, 22 de agosto de 1942.

97
Luiz Antônio Pinto Cruz & Lina Maria Brandão de Aras

As agressões submarinas no Nordeste inexistentes. O isolamento naval asfixiou o


criaram um clima de beligerância em todo comércio e encalhou a safra açucareira nos
território nacional. No entanto, a Declaração trapiches ribeirinhos. De acordo com o Cor-
de Guerra do Brasil não foi oficializada de reio de Aracaju, os citadinos sabiam das ra-
imediato pelo Governo varguista. Então, os zões da crise econômica estadual.
brasileiros foram às ruas e criaram imensas
manifestações. “A população se revoltou de A falta de transporte, determina-
tal ordem, de tal maneira, que começou de- da pela Guerra Submarina, vinha
predar a casa de italiano, de alemão. E de- preocupando os produtores com a
sobra dos seus produtos armaze-
pois, como o Governo de Getúlio começou
nada, sem saída. Aqui em Sergipe
a demorar a declarar à Alemanha e à Itália, sentimos, em toda sua extensão,
nós fomos à rua exigir a declaração de guer- a gravidade do momento. A nossa
ra”.56 A declaração ao Eixo foi anunciada safra de açúcar dormia nos trapi-
em 31 de agosto de 1942. Após 16 dias dos ches esperando o transporte que
avassaladores ataques do U-507. Essa de- não vinha e o produto já se ia de-
mora de posicionamento foi encarada pela teriorando, resfriado pela demora
sociedade como sendo temor de entrar na do consumo. Não tardaram, feliz-
guerra, dúvida se o País estava preparado e mente, as providências. O porto de
Aracaju, pela sua situação de por-
simpatia pelos regimes totalitários.
to sujeito à maré, não poderá ser
incluído na rota dos comboios.58
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o Atlântico Sul coalhado de sub-
Enquanto o U-507 realizava a travessia do
marinos, os comboios excluíram os portos
Atlântico a fim de retornar à Europa, os ara-
das barras fluviais, pois não podiam es-
cajuanos se sentiram presos em sua própria
perar a maré alta para adentrar o cais da
cidade. Sem os navios, sem os marinheiros,
cidade, ainda mais se tratando do trecho
sem os passageiros, sem seus parentes de-
costeiro mais perigoso do País. Sem a mo-
saparecidos, sem as mercadorias, enfim, a
vimentação de carga a bordo dos navios,
identidade naval de Aracaju foi literalmente
os estivadores sergipanos foram atingidos
torpedeada. Diante desses vazios, a popu-
diretamente pela interrupção do transporte
lação sofreu com a carestia de alimentos.
marítimo. Sem exercer o seu ofício, a esti-
“A guerra lá das Oropa, bateu também no
va local se articulou junto à imprensa de
Brasil; cum ela nas nossas costas, danou-
esquerda para exigir o cumprimento dos
se tudo a assubi, e inté mermo o qui é dos
seus direitos trabalhistas e o recebimento
pobres: feijão, bejú, sarnambi”.57 A palavra
dos seus salários atrasados.
“costa” aparece neste trecho documental
As necessidades impostas pela conjun-
com um duplo significado: sentido de ombro
tura e pelo quadro de penúria motivaram
(simbolizando a carestia e o racionamento)
os trabalhadores a unir às manifestações
e sentido de batalha naval.
políticas. Assim como os seus patrões, eles
As operações destinadas à movimenta-
também utilizaram os jornais para protestar
ção de mercadorias de terra para bordo ou
perante a sociedade aracajuana,
dos saveiros para os navios a vapor, ou das
embarcações para terra, foram subitamente Assinada por ‘Um Estivador’, re-
canceladas. Nessa época, Sergipe não con- cebemos uma carta historiando a
tava com um sistema ferroviário eficiente. atual vida de aperturas da Estiva,
Para complicar ainda mais a situação, as em virtude da falta de vapores, e
estradas de rodagem interestaduais eram pedindo-nos sejamos o seu porta-

56
Tertuliano Azevedo entrevistado em Aracaju. Programa Terra Serigy/TV GLOBO. 16 de janeiro de 2010.
57
Essa expressão cultural do sergipano, da década de 1940, ainda preserva a feição de um Brasil arcaico e tipi-
camente nordestino. MONTEIRO, Exupero. ABC Poético. In: Revista de Aracaju. Aracaju: Prefeitura Municipal de
Aracaju. Ano III. No 2. 1949.
58
Correio de Aracaju. Aracaju 2 de janeiro de 1943.

98
Navigator 15 A guerra submarina na costa sergipana (1942-1945)

voz para a reclamação que se se- A guerra dos U-boots impôs preocu-
gue: “É que os estivadores devem, pações militares e despertou conflitos
por lei, receber o seu salário no sociais em Aracaju. Mais do que afundar
prazo de 24 horas, o que não vem navios, a passagem dos submarinistas
sendo observado aqui. Agora, es-
pela costa do Brasil abre um amplo leque
sencialmente, que eles veem pas-
sando sérias dificuldades, quando
temático ainda pouco explorado pelas uni-
acontece ter trabalho querem – e versidades brasileiras. Mesmo hoje em
é justo – receber em dia! Princi- dia, a crueldade da guerra do U-boot cau-
palmente quando veem passar os sa estremecimento, pois a Guerra Subma-
dias de feira com dinheiro ganho e rina foi e será sempre um misto de bravura
não embolsado”.59 e profunda crueldade.60

LISTA DE FONTES

Impressas
ARANHA, Oswaldo. Declaração de Guerra do Brasil à Alemanha e à Itália. Documenta-
ção Oficial. Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1942.
Decreto-Lei 4830-A, de 15 de outubro de 1942, subordina ao Ministério da Marinha, as
colônias de pesca do País.
DANTAS, José Augusto Diniz de Aguiar. Edital da Capitania dos Portos de Sergipe. Ara-
caju, 6 de outubro de 1942.

Orais
Edmundo Cruz, entrevistado em Aracaju, em 6 de maio de 1998.
Eliseu Timóteo, entrevistado em Aracaju, em 28 de maio de 2005.
Idalina Lima de Sousa, entrevistada em Porto Alegre-RS, em 15 de julho de 1999.
Jardilino Marques, entrevistado em Aracaju, em 23 de agosto de 1999.
João Martins do Nascimento, entrevistado no povoado de Pontal, município de Indiaroba,
em 7 de julho de 2005.
José Martins Ribeiro Nunes (Zé Peixe), entrevistado em Aracaju, em 7 de abril de 2004.
Paulo de Oliveira Santos, entrevistado em Aracaju, em 10 de agosto de 1999.
Salvelina Santos de Moraes, entrevistada em Aracaju, em 19 de julho de 2006.

Monumento
Cemitério dos Náufragos dos Navios Mercantes Baependi, Araraquara e Aníbal Benévolo.
Monumento Histórico de Aracaju, erguido com recursos do Ministério da Marinha e do Go-
verno do Estado de Sergipe. Povoado Mosqueiro, 1972.

Jornais
Correio de Aracaju. Aracaju, 1942 (18, 22, e 27 de agosto, 1, 4, 23 e 30 de setembro, 6 de
outubro e 13 de novembro); 1943 (2 de janeiro, 8 e 17 de abril, 17 de agosto); 24 de janeiro
de 1944.
Folha da Manhã. Aracaju, 18 de agosto de 1942.
Revista em Guarda – Para Defesa das Américas. Washington/USA: Bureau do Coordena-
dor de Assuntos Interamericanos/Business Publishers International Corporation of Filadel-
phia. Ano 3. No 6. 1944.
Sergipe-Jornal, Aracaju, 19 de agosto de 1942.

59
Correio de Aracaju. Aracaju, 8 de abril de 1943.
60
PRESTON, op. cit., p. 23.

99
Luiz Antônio Pinto Cruz & Lina Maria Brandão de Aras

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CABRAL, Mário. Roteiro de Aracaju: guia sentimental da cidade. Aracaju: Livraria Regina,
1948.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
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Cristóvão, 1999. Monografia (Graduação em História/Universidade Federal de Sergipe).
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