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humanidades história

O sonho do
Eldorado amazônico
A arqueologia brasileira e a eterna busca por civilizações
ocultas na Floresta Amazônica | Carlos Haag

Ao encontrar, em uma ca- Uma “briga” acadêmica que não escon­ busca da civilização perdida de “Z”,
verna, um papiro com a de diferenças ideológicas. A primeira, o arqueólogo Michael Heckenberger,
figura humanizada do do “paraíso ilusório”, é defendida pela da Universidade da Flórida e um dos
sol e uma inscrição indí­ arqueóloga americana Betty Meggers, principais detratores de Meggers, re­
gena, o Doutor Benignus para quem o ambiente de solos “po­ força o mito. “Havia nessa região uma
decide partir à procura bres” em nutrientes da região impediu cultura estética da monumentalidade e
de mundos perdidos numa ar­ uma agricultura intensiva e, logo, a for­ os índios gostavam de ter belas estradas
riscada expedição pelo interior do mação de grandes populações avança­ e praças e pontes. Seus monumentos
Brasil. Depois de uma série de aventu­ das. A sua rival prega a existência de não eram pirâmides, daí ser difícil de
ras rocambolescas, o documento o leva um “Eldorado quase real”, como afir­ achá-los, mas criações horizontais não
até uma ilha misteriosa e lá resolve criar mam os seguidores de outra arqueó­ menos extraordinárias”, diz o pesqui­
uma “civilização” que reuniria todos os loga americana, Anna Roosevelt, que sador, parte integrante de uma equipe
povos e seria capaz de livrar os brasi­ desprezam as hipóteses “deterministas que afirma ter encontrado provas ar­
leiros “da indolência e do barbarismo”. ambientais” de Meggers como “impe­ queológicas de cacicados avançados na
Todo o esforço em solucionar o enigma rialistas” e interessadas em reforçar “a Amazônia. “Fawcett estava convencido
valeu a pena, pois, assegurava o natura­ degeneração dos índios”. Esse grupo de que a floresta selvagem escondia ves­
lista, “o Brasil é fonte inexaurível como prefere trabalhar com a hipótese de tígios de pelo menos uma civilização
subsídio para a história das primeiras que, em tempos pré-coloniais, a Ama­ avançada. Ele estudou as lendas do
épocas da humanidade!” Infelizmente, zônia abrigou cacicados desenvolvidos Eldorado e ouviu dos índios descri­
o pobre cientista descobre que correra e com “um nível de sofisticação em seu ções de grandes cidades com muitas

reproduções do livro legendes croyances et talismans des indiens de l’ámazone/ilustração de V. de rego monteiro
em busca de uma falsa utopia, pois o modo de vida que rivalizava ou mesmo ruas, lugares onde o ambiente não era
tal papiro era uma falsificação feita por excedia o europeu”, para usar as pala­ problema e havia comida abundante”,
seu criado, que queria tirá-lo da tristeza vras do antropólogo Neil Whitehead, afirma Grann. “O coronel irritava-se
em que mergulhara em face da realida­ da Universidade de Wisconsin. com seus detratores, os ‘homens de
de pouco gloriosa do país. Não é uma “Após três séculos o mito de Eldora­ ciência’, que também haviam ridicula­
coincidência que a primeira obra de do está sendo revivido por arqueólogos. rizado a ideia de grandes civilizações
ficção científica feita no Brasil, Dou- Insistir no ‘mito de impérios amazôni­ pré-colombianas ou a existência de
tor Benignus (1875), de Emílio Zaluar cos’ não apenas impede pesquisadores Troia. Falava sempre da sua visão de
(1826-1882), tenha sido um “romance de reconstruir a pré-história da região uma cultura majestosa no Amazonas
arqueológico de mundos perdidos”. como os faz cúmplices na aceleração que se irradiou para regiões distantes,
Procurar monumentos escondidos na do processo de degradação ambiental, mas, por fim, acabou devorada pela flo­
floresta densa pode ser risível, mas, em já que subsídios para a crença de que a resta.” O mesmo destino aguardava o
outras plumagens, o dilema se fomos exploração do ecossistema da floresta coronel, desaparecido naquele mesmo
“inferno ou Eldorado” ainda hoje é um é possível”, afirmou Meggers em seu ano no Xingu. “Ele pode ter sido um
dos principais motivos de discussão en­ artigo “The continuing quest for El Do­ amador e facilmente desprezado como
tre arqueólogos, como revela Cotidiano rado: round two”. Efetivamente, num um ‘maluco’, mas, de certa forma, viu as
e poder na Amazônia pré-colonial (240 livro recém-lançado nos EUA, The lost coisas com mais clareza do que muitos
páginas, R$ 92), de Denise Cavalcante city of Z (que deve sair em julho no eruditos profissionais da arqueologia”,
Gomes, Museu Nacional da Universi­ Brasil pela Companhia das Letras), de nota Heckenberger.
dade Federal do Rio de Janeiro, lançado David Grann, a história da O pesquisador deixa
agora pela Edusp. malfadada expedição claro que não está em
Em pesquisas feitas no Pará, a ar­ do coronel britânico busca de “eldorados”,
queóloga cava buracos nas teorias que Percy Fawcett (1867- embora seja difícil
tentam explicar a ocupação amazônica. 1925) ao Xingu em não pensar nesses

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(e em Fawcett) em face de suas desco­ ocupando o nicho mental de um im­ nacional. Afinal, o Império
bertas recentes de vestígios das chefias pério rico e inexplorado que ajudaria brasileiro não podia fi­
pré-coloniais, cuja interpretação, alerta a nossa projeção no resto do mundo. car atrás das repúblicas
Denise, contribui perigosamente “para Só que, aqui, ao contrário do ‘mundo latinas vizinhas e pre­
a construção de uma imagem grandio­ perdido’ colonialista de escritores es­ cisava apresentar ruí­
sa do passado amazônico, reafirmada trangeiros, era expressão de um impe­ nas de civilizações que
em sínteses acadêmicas”. Efetivamente, rialismo interno, projeção de estratégias estivessem à altura de
a arqueologia é uma das ciências que colonialistas sobre regiões inexploradas astecas, incas e maias.
mais mexem com o imaginário ociden­ do próprio país”, avalia. Há para todos “Os anos 1840 fo­
tal. Não sem razão foi (e é) fonte de os gostos, desde A Amazônia misteriosa ram o auge da tentativa
romances e filmes populares. As ideias (1925), de Gastão Cruls, que descreve da monarquia brasileira de
de Fawcett, por exemplo, inspiraram encontros com guerreiras amazonas, recuperar restos monumen­
Conan Doyle (1859-1930), o criador até A República 3000 ou a filha do in- tais, relacionando a história nacional a
de Sherlock Holmes, a escrever Mun- ca (1927), de Menotti del Picchia, que civilizações formidáveis, a exemplo da
do perdido (1912), primeira novela a mistura princesas incas, civilizações Atlântida ou dos fenícios e vikings. Não
usar a Amazônia como cenário de um cretenses, florestas tropicais brasilei­ sem razão foi no ano da coroação de
“romance de mundo perdido”. Entre ras e utopias eugenistas e racistas, que dom Pedro II que se realizaram as prin­
meados do século XIX e do século XX afirmavam a degeneração do índio e do cipais expedições de busca da ‘cidade
esse subgênero predominou em detri­ caboclo e a superioridade europeia. perdida’ no interior da Bahia”, explica o
mento do chamado “romance plane­ historiador Johnni Langer, da Univer­

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tário” (aventuras espaciais futuristas) ssa literatura que misturava “ciên­ sidade Federal do Maranhão, autor do
como tema central da incipiente ficção cia”, política, ideologia e exotismo, doutorado Ruínas e mito: a arqueologia
científica nacional. “Há uma ausência porém, não foi influenciada apenas no Brasil Império. A arqueologia já nas­
do ‘romance planetário’, muito em voga pelas leituras de Rice Haggard e seu As cia como “ciência do Estado”, convoca­
no exterior, entre nós. O ‘mundo perdi­ minas do rei Salomão, mas refletia toda da a ajudar na criação de um “mito de
do’, em especial o amazônico, teve mais uma história de discussões sérias feitas origem” para a nova nação. “O mito das
ressonância por causa do exotismo e por doutores do IHGB (Instituto Histó­ cidades perdidas virou um valor para­
imensidão que víamos no nosso territó­ rico e Geográfico Brasileiro) e do Museu digmático, um modelo de referência do
rio, que nos fazia pensar o Brasil como Nacional e outras instituições sérias. Co­ passado nacional: a civilização avançada
‘romance planetário’, um vasto mundo mo o melancólico Doutor Benignus, há perdida que deixou marcas por todo o
cuja ecologia evocava mistério e inquie­ tempos os doutos de carne e osso do país território, sendo então rastreada pela ar­
tação”, analisa Roberto de Sousa Causo, padeciam do mesmo mal e sonhavam, queologia”, nota o pesquisador. “O papel
autor de Ficção científica, como ele, em encontrar civilizações per­ da arqueologia e dos museus seguia as
fantasia e horror no didas que provassem a grandeza inata narrativas que reuniam os Estados na­
Brasil (1875-1950), da jovem nação. Desde 1838, quando cionais a grandes civilizações, material
estudo editado pela foi criado, com total apoio do Estado palpável para a elaboração de símbolos
Universidade Fede­ imperial, o IHGB, cuja linha mestra pre­ nacionais e vinculações ancestrais, na­
ral de Minas Ge­ conizava “buscar vestígios do passado, turalizando o sentimento de pertencer
rais (UFMG). “O relíquias esquecidas no solo pátrio”, ex­ a uma nação”, analisa o historiador Lu­
território selvagem pedições foram organizadas para reve­ cio Menezes Ferreira, da Universidade
dava à nossa consciência lar o passado glorioso que poderia ser Federal de Pelotas, que acaba de termi­
uma paisagem colonial recuperado pela nascente arqueologia nar um pós-doutorado sobre o tema no

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Núcleo de Estudos Amazônica, espaço da inda na Monarquia e primeiro-de-
Estratégicos da Uni­ misterioso onde a -abril passado no Alencar Araripe pelo
camp (2008). vegetação poderia jornal Comércio das Amazonas”. “Essa
“Vestígios de civiliza­ ocultá-los, o que exi­ ironia andradiana ataca diretamente
ções mediterrâneas camu­ gia a observação direta por a chamada ‘arqueologia nobiliárquica’
flados sob as matas tropicais, meio de expedições científicas, que se fazia então e que, como os par­
garranchos semíticos em paredes de como a busca pela “cidade perdida da nasianos, tinha os pés no Brasil e os
cavernas, invadiram aos poucos a ima­ Bahia”, iniciada em 1840, a pedido do olhos voltados para a Europa”, observa
ginação literária, quando trabalhá-los instituto, pelo cônego Benigno Carva­ Ferreira. Segundo o pesquisador, para a
‘em ciência’ trazia o risco de expor es­ lho. Um ano antes, um pesquisador en­ elite política e intelectual do IHGB era
tudiosos a chacotas”, explica Ferreira. contrara um manuscrito anônimo, “Re­ uma busca que pretendia dar um lugar
Antes disso, porém, a imaginação era a lação historica de uma occulta, e grande social a ser ocupado pelos indígenas
força motriz da arqueologia. Em 1839, povoação antiquissima sem moradores”, dentro da lógica genealógica do Esta­
numa reunião do instituto, os erudi­ suposta narração feita por bandeirantes do imperial. “Estabelecer antepassados
tos foram alertados para a presença, sobre como haviam se deparado com nobres (fenícios, gregos ou europeus)
na pedra da Gávea, “de uma inscrição um vilarejo deserto que, entre outras para os indígenas viabilizava represen­
em caracteres fenícios e que revelam maravilhas, possuía “uma collumna de tá-los no quadro das nações civilizadas.
grande antiguidade”, o que levava à pedra preta de grandeza extraordinaria, Numa sociedade que distribuía títulos
conclusão de que “o Brasil tinha sido e sobre ella huma Estatua de homem de nobreza e em que o passado indí­
visitado por nações conhecedoras da ordinario, com humana mao na ilharga gena deveria modelar-se num espelho
navegação antes dos portugueses”. Uma esquerda, e o braço direito estendido, agradável para a ‘raça branca’, as raças
expedição foi enviada e retornou algo mostrando com o dedo index ao Polo fossilizadas também deveriam ser ‘no­
desapontada, pois o achado poderia ser do Norte; em cada canto da dita Praça bres’, ainda que essa ‘nobreza’ estivesse
apenas “feito pela natureza”. Isso não está uma Agulha, a imitação das que perdida num tempo quase sem memó­
impediu, no relatório de conclusão, que uzavão os Romanos”. Hoje conhecido ria”, nota o historiador. Era necessário
se afirmasse tratar de uma descoberta como o Manuscrito 512 (o mesmo provar que os antepassados indígenas
“de importância comparável às gran­ que Fawcett usaria como “guia” de sua eram de natureza diversa dos “degene­
des construções da arqueologia, como expedição), essa visão de uma civiliza­ rados” índios contemporâneos, “ruínas
os grandes monumentos do Egito e as ção “clássica” em plena Bahia atiçou a de povos” como os chamava Martius,
cidades mesopotâmicas que poderiam imaginação não apenas de estudiosos insistindo na ideia da “geração gran­
fazer uma revolução na nossa história e brasileiros, mas de várias instituições diosa” que se extinguiu. “Eles, então,
abrir uma estrada luminosa do passado internacionais. Nada foi encontrado, teriam sido antes criadores, membros
ao futuro”. Clamava-se por um “Cham­ mas isso não impediu que o IHGB de uma antiga civilização que seria re­
pollion brasileiro” que mudasse os co­ insistisse em pesquisar, no sertão bra­ construída pela nobreza do império,
nhecimentos sobre a história nacional, sileiro, menires, inscrições com runas numa arqueologia que se confunde
sem fatos ou monumentos notáveis. que atestariam a passagem de nórdicos com a heráldica e que seja uma arque­
“Era preciso poder colocar o Brasil do nos trópicos, outras cidades perdidas ologia nobiliárquica a reconstruir a ge­
futuro ao lado das grandes nações e e mesmo relatos da descoberta de um nealogia da nação.” Se não havia ruínas
impérios, orgulhosos de suas ruínas “fragmento de estátua de mármore con­ nas florestas, a culpa era do ambiente
antigas. A partir de 1840, a aceitação temporâneo do mais brilhante período
da existência da ‘geração perdida’, uma da arte grega”, em 1887, na Amazônia. A
civilização nacional avançada desapa­ informação era falsa, como também
recida, mostra a união de mito e his­ eram as inscrições talhadas numa
tória, ideal de ‘como deveria ter sido’ o pedra enviada a Ladislau Neto,
Brasil dos tempos antigos, mesmo sem do Museu Nacional, que as tra­
evidências concretas”, avalia Langer. duziu e afirmou se tratarem de
um relato da vinda de fenícios

A
final, ninguém menos do que o cé­ da cidade de Sidônia para o
lebre Von Martius, em Como se deve Brasil.
escrever a história do Brasil (1845), Macunaíma, o anti-herói
opúsculo premiado pelo IHGB cujas de Mario de Andrade, em
ideias deveriam nortear a instituição, sua busca quase arqueoló­
afirmou que “não há de se achar inve­ gica pela pedra muiraquitã,
rossímil encontrar antigos monumentos das amazonas, também se
nas florestas do Brasil, tanto mais que impressionou, em seu percur­
até agora elas não são conhecidas nem so, com “letreiros encarnados
acessíveis senão em pequena proporção”. da gente fenícia” e, cavando em
Para o naturalista alemão a localização Manaus, “descobriu os restos de
dos preciosos vestígios seria na Floresta Deus Marte, escultura grega acha­

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hostil que as destruía. O índio, ainda ou doutos, preferiam a ser cortejada pela polí­
assim, era “um grego nu”. O espelho vê-los como frutos de tica e pela ideologia ou a
primitivo, com novas cores, reforçava expansão da civiliza­ aceitá-la de bom grado.
os “brilhos da civilização”. ção andina pelo Brasil Daí, nota Ferreira, a per­
“Ele podia ser um bárbaro na sua que a ecologia nacio­ sistência da teoria da de­
condição atual, mas talvez ainda recupe­ nal, o “determinismo generação indígena que
rável para a história da nação, desde que ambiental”, teria igual­ teria continuado nos
o reverso da medalha contivesse símbo­ mente degenerado. trabalhos de Betty Meg­
los de uma cultura elaborada”, observa gers, responsável, a partir

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o pesquisador. Mas, segundo Ferreira, a uando a triste reali­ de 1964, ao lado de Clifford
busca de vestígios de civilização não era dade coloca em xeque o Evans, pelo treino de toda uma
apenas uma fantasia mitológica, a res­ modelo da “arqueologia do fantás­ geração de arqueólogos brasileiros por
surreição de mitos antigos no imaginário tico”, os pesquisadores voltam-se para a meio do Programa Nacional de Pes­
científico. “Descobrir monumentos nas “arqueologia do primitivo”, como pre­ quisas Arqueológicas (Pronapa), finan­
florestas brasileiras também respondia conizada pelos estudos de Peter Lund e ciado pelo Smithsonian Instituition.
a interesses específicos do projeto polí­ seus achados na Lagoa Santa. “A partir Isso, aliás, teria levado historiadores a
tico imperial: interiorizar a civilização de 1865, pode-se até pensar em ‘civili­ associarem o projeto (e as teorias) de
e civilizar as populações indígenas. As zações europeias’ chegando à América, Meggers (que foi acusada de trabalhar
‘viagens arqueológicas’ não buscavam desde que se escave sítios arqueológicos para a CIA) a uma suposta articulação
apenas ruínas, mas também cartografar para verificar se os artefatos possuem entre a ditadura militar e Washington.
o espaço, descobrir riquezas minerais, ou não signos legíveis de civilização. “Não é preciso documentos oficiais
esmiuçar tudo aquilo que era visto como Não basta, como fazia a ‘arqueologia para demonstrar os fundamentos co­
a antítese da civilização.” As pesquisas nobiliárquica’, o achado fortuito. Agora lonialistas das representações de Me­
arqueológicas, desde o Império, então a ordem era escavar e recuperar os res­ ggers. Eles residem nos axiomas do
procuravam instituir um “colonialismo tos de ‘raças primitivas’ e as ‘relíquias’ ‘determinismo ambiental’, cristalizados
interno”. “Narravam um passado nativo de civilização para estabelecer a origem e maturados por ela ao longo de suas
e mostravam que, de algum modo, ele dos sítios arqueológicos e dos indíge­ pesquisas na década de 1950. Segun­
sobrevivia no presente. Assim, o terri­ nas”, afirma o historiador. Darwin havia do esses, a Floresta Amazônica, com
tório estaria ainda coalhado por povos chegado ao Brasil, como se podia ver seu ambiente impiedoso, degenerou
cuja ‘inferioridade cultural’ clamava no enunciado de Lund, para quem a as populações indígenas, estorvando
por missões civilizadoras, projetos de natureza sempre procede do “imper­ a evolução”, nota Ferreira. Segundo
pacificação e, mais tarde, a revitaliza­ feito para o perfeito”. O IHGB perdia ele, as conclusões que advêm disso são
ção dos aldeamentos em consonância terreno, embora, até o século XX, havia preocupantes, pois, para Meg­gers, as
com a ciência mundial. Arqueologia e quem continuasse a perseguir “cida­ ‘altas civilizações’ se erguem nos solos
colonialismo queriam promover, assim, des perdidas” além do pobre Fawcett. de áreas que ela chamou de ‘nuclea­
a expansão geográfica e geopolítica do “O Brasil não seria só o mais antigo res’. Quanto mais perto dessas, maior
Estado nacional”, explica Ferreira. Afi­ continente, mas o berço de civilizações a evolução do grupo. Longe dos núcleos
nal, os indígenas seriam ingredientes da mesoamericanas, tendo em suas matas, haveria a degeneração dos ambientes
futura mão de obra do Brasil. “Deve­ sobre raízes pré-históricas, uma peque­ degradantes. “É uma alegoria para o
riam ser civilizados nos assentamentos, na ilha de civilização, a ilha de Marajó”. presente, pois o foco de luz civilizadora,
povoar os sertões e aguardar a chegada Ponto para o Doutor Benignus. hoje o núcleo, transfere-se para a Amé­
de imigrantes ‘brancos’ com os quais se “A arqueologia do primitivo não só rica do Norte, enquanto a Amazônia
miscigenariam recompondo as fibras da buscou registros de primitividade e ci­ seria um sorvedouro de civilizações,
população nacional.” Ao classificarem vilização nos sambaquis, mas deu lastro embora, diz Meggers, tenha emba­
os povos indígenas de degenerados, o à teoria da antiguidade do espaço ‘Bra­ lado sonhos de Eldorados. Ela, aliás,
IHGB (por meio de figuras como Von sil’. Como fizera antes a nobiliárquica, veio nos esclarecer sobre as nossas ilu­
Martius e Varnhagen), muito admirado a do primitivo lançou hipóteses sobre sões oníricas. Justificam-se, assim, as
pelo imperador, legitimou esse “colo­ o povoamento nacional. O continente desigualdades regionais do continente
nialismo interno”, como fariam, mais ‘mais antigo do planeta’, origem de americano.”
tarde, os “romances de mun­ civilizações americanas, ger­ Sem cidades perdidas ou a primazia
do perdido” da nossa ficção minado por uma raça pri­ de ser o mais velho da turma, o Brasil
científica, amplamente mitiva que se expandiu também faria parte do chamado pristine
divulgada pela impren­ dos planaltos mineiros myth (como definido no texto clássico
sa e com largo acesso para as cordilheiras de William M. Denevan sobre o cenário
ao público leigo, para andinas: tudo garan­ da América em 1492) ou “mito da pu­
quem o índio fora cria­ tia a nova demarcação reza original” da terra pré-colombiana.
dor de uma civilização geopolítica, agora com “Os nativos não teriam a racionalidade
que o inóspito Amazonas bases sólidas arqueológi­ necessária para trabalhar suas terras e,
degenerou. Outros, leigos cas.” A ciência continuava assim, o conquistador europeu aparece

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como a fonte de razão e ta ter sido produzida sa sobre o futuro da Amazônia se virar
inovação iluminista no pela ação humana. “Ao senso comum a possibilidade de ex­
vácuo que eram as colô­ menos 10% da Amazô­ ploração comercial do solo da floresta.
nias antes de sua chegada. Por nia está coberta por ‘terra Voltamos ao dilema do início: inferno
esse raciocínio, eles é que teriam preta’. Assim, não é verdade ou Eldorado? Roosevelt ou Meggers?
‘moldado’ a paisagem do Novo Mun­ que as chuvas tirariam os nutrientes Com uma novidade: o que é melhor
do”, explica o geógrafo Andrew Sluyter, do solo e impediriam o avanço das cul­ para o futuro da Amazônia? “A teoria
da Universidade da Pensilvânia, autor turas. Esse tipo de terra não é afetada baseada em tipologias socioevolucio­
de Colonialism and landscape. “A impli­ pelas chuvas e até reage a elas de forma nistas é inadequada para reconstruir a
cação disso é que faltaria às paisagens positiva. Além disso, tudo indica que a paisagem da Amazônia pré-colonial.
pré-coloniais uma população densa em ‘terra preta’ foi criada deliberadamente Mas o modelo de sociedades complexas
função de uma suposta inabilidade do por povos amazônicos para modificar proposto por Roosevelt deve ser visto
uso da terra. Essa ideia continuou a ser o solo e melhorá-lo para o cultivo”, como apenas uma tentativa preliminar
usada pelo pós-colonialismo recente pa­ afirma o geógrafo William Woods, da de compreender os dados disponíveis
ra promover a categorização do mundo Southern Illinois University. sobre a organização social dessas so­
entre um Ocidente racionalmente pro­ ciedades. “Não é, com certeza, uma

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gressivo versus um ‘não-Ocidente’ irra­ egundo ele, os habitantes originais interpretação definitiva”, avalia Denise
cionalmente tradicional, prática ainda plantaram culturas que transfor­ Gomes. Infeliz o país que precisa de
hoje mantida com a difusão perversa de maram terras pouco férteis em ter­ “civilizações perdidas”. Afinal, como
conhecimento e tecnologias de um para reno adequado ao cultivo de muitas es­ explica o criado do Doutor Benignus
o outro.” O colonizador teria o mérito pécies, garantindo alimento farto para ao final da novela, confessando ter sido
de ter transformado materialmente, sustentar populações maiores. “Os ín­ o autor do papiro, o que importava era
e para melhor, a paisagem “prístina” dios literalmente criaram o solo a seus seu patrão ter enfrentado tudo em bus­
do mundo pré-colonial na paisagem pés e parte da floresta é antropogênica, ca da verdade, e, mesmo não a encon­
produtiva do pós-1492. Isso, porém, acredita Woods, o que comprometeria trando, descobriu outras utopias. “Não
vem sendo contestado pela descoberta tanto o pristine myth quanto as teses é preciso ter medo de falhar”, escreveu
contínua de “terra preta” na Amazônia de Meggers. Isso, porém, explicaria a Fawcett em sua última carta. Pouco
(algo já apontado por Anna Roosevelt reação da americana, em cujas críticas a antes de desaparecer na floresta e – ele
no Marajó), a terra fértil que se acredi­ esse novo modelo afirma estar temero­ adoraria – virar mito também. n

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